Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 20 de maio de 2010
Guiné 63/74 - P6434: Notas de leitura (109): Carlota Lima Leite Pires, 'Nha Carlota' (1889-1970), de António Estácio (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2010:
Luís,
Nem a propósito! Este livrinho da Nha Carlota bem podia abrir as portas a várias histórias de gente que nos tratava bem à mesa.
Gostei muito da ideia do António Estácio em trazer para a ribalta esta senhora cuja memória perdura em muitos corações da Guiné.
É bom vê-la elogiada, num tempo em que fazer bem e oferecer a mesa não é norma comum.
Um abraço do
Mário
“Nha Carlota”: Saudades de uma Mindjer Garandi de Nhacra
por Beja Santos
O que pode levar um guineense da nossa idade, um regente agrícola que passou a maior parte da sua vida profissional a trabalhar em Macau, a escrever um livrinho sobre uma gentil senhora cabo-verdiana que deixou saudades a muita gente depois de 60 anos a viver na região de Nhacra?
O António Estácio de vez em quando vem ao nosso blogue e clarifica acertadamente algumas matérias. Nasceu no “Chão Papel”, frequentou o liceu Honório Barreto, preparou-se para regente agrícola em Coimbra, trabalhou em Malange no Instituto do Algodão em Angola, onde cumpriu o serviço militar de 1970 a 1972, depois seguiu para Macau. Decidiu agora investigar esta figura ímpar da Guiné, “Nha” Carlota, que deixou saudosa recordação em muita gente, pela sua forte personalidade, pelo seu proverbial acolhimento, quem lhe batia à porta tinha sempre refeição.
O livro do António Estácio foi lançado recentemente, quem quiser contactá-lo para qualquer esclarecimento, pode fazê-lo através dos telefones 219229058 ou 96269655.
Chamava-se Carlota Lima Leite Pires, não se sabe exactamente em que ilha nasceu em Cabo Verde, nem em que ano, morreu no hospital de Sant’ Ana em 1970. Viveu seis décadas na Guiné, foi uma comerciante muito bem sucedida, casada com João José Pires que durante anos foi seu empregado. Terá chegado à Guiné entre 1906 e 1907. Por essa data, ainda conheceu a muralha que cercava a ilha de Bissau, considerada muito importante para a segurança da povoação, ao tempo sempre ameaçada pelas populações circunvizinhas.
Reza a lenda que terá combatido e apoiado o capitão Teixeira Pinto, mas não há documentos que comprovem tal temeridade. O importante é que se tornou numa pessoa de grande influência, uma conselheira permanentemente procurada, a proprietária de uma casa comercial onde ela recebia e preparava comida variada e petiscos.
Dos depoimentos colhidos, Estácio ouviu os suficientes para confirmar que era tratada como “a mãe dos pobres de Nhacra”. Falava fluentemente crioulo e balanta, as suas lojas estavam sediadas no Cumeré e em Nhacra, mas os seus negócios eram diversificados. Nha Carlota comprava aos agricultores da região a mancarra e, ao que parece, os seus preços eram justos.
António Estácio obteve depoimentos elogiosos de quem frequentava a mesa da Mulher Grande de Nahcra, desde Elysée Turpin (fundador do PAIGC), o alferes Sebastião Alves (da CCaç 564) até ao coronel Nuno Rubim, nosso confrade.
O que ninguém esqueceu foi mesmo a instituição da comida: sobretudo aos fins-de-semana, as pessoas punham-se a caminho para almoçar no alpendre da Nha Carlota. Alguém descreveu que nada havia de comum naquela sala da Nha Carlota com um restaurante convencional, as pessoas comiam mesmo na sala de jantar da dona de casa ou na parte sombria da varanda.
Combinava-se com antecedência a ementa (cabrito assado, chabéu ou cachupa), tudo começava com ostras ou camarão e a refeição terminava com a fruta disponível. Frequentemente, Nha Carlota sentava-se à mesa e conversava com toda a gente.
Um aspecto curioso que alguém registou é que havia nesta sala de jantar, dependurado do tecto, sobre a mesa, um grande pano enfiado num pau que uma corda, passando por uma roldana fazia oscilar proporcionando uma suave brisa. Quem puxava essa corda era um pequenito que toda a gente tratava por “Ventoinha”, que no final do repasto recebia uma gratificação. Os negócios sucederam-lhe bem, para além dos estabelecimentos do Cumeré e Nhacra, adquiriu prédios em várias localidades.
Uma das singularidades da Nha Carlota foi o seu salazarismo indefectível, proibia que se falasse mal de Salazar. Fez sociedade com um dos filhos do antigo Presidente da República António José de Almeida, Manuel Alexandre Toscano de Almeida (confesso que de algum modo me baseei nesta personagem para criar o primeiro marido da Benedita, Albano Toscano, do meu livro “Mindjer Garandi”).
Este Manuel Toscano era opositor ao regime de Salazar, participou na sublevação da Guiné de 17 de Abril de 1931, foi demitido da função pública e depois enveredou pelos negócios. Viajou várias vezes a Portugal, numa delas, já perto do final da sua vida, foi recebida por Salazar. Nessa audiência ofereceu ao ditador um retrato dele próprio feito a carvão com a seguinte dedicatória: “Um homem tão grande para um país tão pequeno”.
O seu altruísmo permanece na memória de muitos, bem como a simplicidade no convívio e hospitalidade. É muito bonito dedicar um livrinho a uma mulher que fez bem às suas gentes e seguramente aos nossos camaradas que beneficiaram do seu aprazível acolhimento.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 19 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6427: Notas de leitura (108): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (2) (Mário Beja Santos)
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4 comentários:
Um abraço amigo ao António Júlio Emerenciano Estácio que conheci em Macau em 1980. Depois temos andado por aí,temo-nos encontrado por aqui e sobretudo por acolá, cada um nos passos que dá, ele com a sua terra natal, a Guiné, às costas e no latejar do sangue, e a cidade de opção e vida, Macau nas voltas do coração. Eu, China, Macau, às vezes, a Guiné.
Mais um livro do Estácio. Parabéns, meu Amigo.
Não resisto a copiar um poema do António Estácio publicado no seu livro Na Roda de Amigos, Macau,Tipografia Marsul, 1993, pag. 64
Chama-se Peregrinação.
Fui na Europa concebido
De raiz bem transmontana
Tendo na Guiné nascido
Entre a flora africana.
À Europa voltei um dia
Apenas para estudar,
A África me atraía
E eu decidi regressar.
Por Angola então andei
Em conturbado ambiente,
Certo é que nunca pensei
Vir parar ao Oriente.
Cheguei como de passagem,
pouco a pouco enraizei,
Interrompendo a viagem
E por Macau me quedei.
Depois tenho andado
Pelos cinco continentes,
Com muitos povos privado
Em latitudes diferentes.
Fui à China, à Tailândia,
À Indonésia, a Israel,
À Coreia, Nova Zelândia.
Mas que Torre de Babel!
(...)
Sou fruto da gesta lusa
Com a riqueza tropical
Que por onde passa atesta
A amizade fraternal.
Eu estive em Nhacra, em Outubro/Novembro de 1969. Fui meia dúzia de vezes jantar no "Restaurante Carlota". Era assiom como tivesse ido Jantar a casa da minha tia.
Só que a minha tia não era tão boa cozinheira, nem era amiga do Salazar.
Um dia, o "Dog", que era o comandante da única secção militar do Cumeré, perguntou, depois de comer, de que eram aqueles bifes.
Nha Carlota respondeu:
- De macaco, menino. Queria bife de vitela?
Foi uma risada geral e todos continuamos clientes até ao dia da partida para Quebo.
Manuel Amaro
Por favor, algum dos soldados que chegaram à Guiné em 63, se lembra do Dr. Noronha de Bafatá?do Sr. Toscano de Almeida, madeireiro que ajudou a levar tantos colonos para a Guiné? do Dias saboeiro? Porque não li nada sobre eles e julgo que deviam dar a conhecer estas pessoas a quem brancos e negros desse tempo tanto devem... Eu era pequena e pouco sei deles... mas gostaria de aprofundar as suas origens e até conhecer os seus descendentes para lhes contar o que me lembro deles. Eles povoam as memórias da minha infância.
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