Guiné > Zona leste > Gabu > Canjadude > 1974 > O Fur Mil Enf Carvalho, da CCAÇ 5, com um guerrilheiro do PAIGC, equipado a rigor e empunhando a mítica espingarda-metralhadora Kalash...
Foto: © João Carvalho (2006)
Texto do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1).
Caro Luís Graça,
Entre o material que diariamente me chega via e-mail, o que mais aprecio é sem dúvida aquele que resulta da produção dos nossos camaradas tertulianos. Li com muito gosto aquela crónica do Beja Santos acerca do soldado desconhecido de Mansoa (2). Esta história teve o condão de limpar algumas teias de aranha de uma carunchosa prateleira da minha memória, onde havia um registo já velhinho de um episódio em que um soldado desconhecido, mas este do lado de lá, resolveu apresentar-se à minha companhia.
Estávamos para aí a meio da comissão e as coisas até corriam bem: praticamente sem baixas e, com uma razoável liberdade de movimentos numa zona em que os que nos antecederam, passaram o cabo das tormentas.
Com a notável excepção dos oficiais, sargentos e alguns especialistas ( transmissões, cozinheiros, mecânicos e pouco mais ), os homens da CCAÇ 2753 eram quase todos açoreanos, que se tinham oferecido como voluntários para servir naquela "sagrada parcela do Território Nacional" chamada Guiné. Que me perdoem os mais sensíveis, mas era assim que se dizia!
Diplomados pelo B.I.I.17 (3), então aquartelado na fortaleza de S. João Baptista no sopé do Monte Brasil, em Angra do Heroísmo com uma suadíssima recruta e temerária especialidade (*), os Barões rumam ao Continente, chegando a Lisboa mesmo a tempo de prestar as honras militares ao Dr. Botas que entretanto se aboletara numa câmara, dita ardente, no Mosteiro dos Jerónimos (4).
Nas redondezas da capital do Império (Serra da Carregueira, Amadora, Pragal), fazem-se mais uns cursos e ensaiam-se umas guerras da treta, à espera do dia do embarque que nunca mais chega.
É aqui que a companhia recebe um reforço de peso: o soldado Lima. Nortenho, vindo dos lados de V. N. Gaia, era baixote, gago e tinha o hábito de deixar descair a cabeça para o lado quando alguém o abordava (défice auditivo?). Alegre, simpático, sorria com facilidade. No olhar, um brilho entre o matreiro e o irónico.Típico rato de celeiro!
O nosso pronto Lima conseguiu uma proeza digna de registo: manteve-se em completo anonimato, a bem dizer incógnito, sem que ninguém desse por ele até ao momento em que a Companhia foi colocada em quadrícula. Claro que se sabia que ele estava lá, fazia parte da unidade e o seu nome até constava na papelada da secretaria ...
Mas ao certo ninguém sabia por onde é que andava o Lima, de que pelotão fazia parte, se estava escalado para algum serviço... nada! Até que um dia foi obrigado a dar à costa.
Tinha havido uma rebelião que opôs praças (manjacos) da CAÇ 17 aos seus alferes e furriéis. O general Spínola ordenou a imediata retirada desta companhia que se encontrava no Bironque, um ponto no mapa entre Mansabá e Farim, para Bula, sendo substituída no terreno pela CCAÇ 2753 que era a única força disponível naquele momento em Bissau.
Trasladados à pressa e sem aviso prévio, lá fomos malhar com os ossos num buraco no meio de uma belíssima mata, para as bandas do Oio deixando para trás aquela vidinha boa, com qualidade, quase requinte em Bissau. E aí tornou-se impossível ao Lima continuar a escapulir-se. Sorte malvada!
Para surpresa do maralhal, fica-se então a saber que o Lima é... Básico, funcionalmente falando. Passa portanto a desempenhar tarefas adequadas à sua simplicidade de cabeça: racha lenha, ajuda na cozinha e nas limpezas, faz recados e claro está, enquanto os espertos embrulham no mato, ele bate umas sornas.
Do Bironque seguimos umas semanas depois para Madina Fula e mais tarde atingimos o términus desta peregrinação em Saliquinhedim (K 3). Durante este período não tínhamos dado grandes motivos de regozijo ao nossos camaradas do PAIGC pelo que era mais do que natural que não tivessem grande apreço pela presença da Companhia dos Açoreanos na região.
É aqui que entronca a história deste outro soldado desconhecido. Estamos então no K 3 e são cerca das cinco da tarde. O cozinheiro aperta com o Lima, vocifera, pragueja, berra que nem um danado. O motivo é este: quer ultimar o jantar e o lume debaixo do caldeirão dos feijões está a ir-se abaixo por falta de combustível. O pessoal já tomou o seu banhito balanta e está a anoitecer. É preciso comer antes de se fazer escuro como mandam as normas, de maneira a que quando começar a chover a bernarda, já todos estejam nos seu postos. O aquartelamento é atravessado a meio, no sentido norte - sul, por uma estrada asfaltada acabada de construir.
Junto ao cavalo de frisa da entrada sul está um monte de lenha e o Básico tenta abnegadamente transformar aqueles cibos em cavacas.Transpira, resmunga, ofega, está exausto.Talvez para retomar o fôlego, levanta a cabeça e avista a cerca de uma centena de metros do arame farpado, caminhando calmamente em direcção a ele, um militar (usava camuflado e estava armado)! Era negro, portanto só podia ser do IN já que entre os nossos não havia nenhum africano. Além disso, o tipo de arma e a maneira como ele a trazia cruzada sobre o peito, desvaneceram-lhe quaisquer dúvidas.
A sua agilidade mental tomou-lhe conta dos gestos. Sem qualquer hesitação, empunha a ferramenta e corre na direcção do militar a quem ordena que levante os braços. O homem do PAIGC, com Kalashnikov carregada, bala na câmara, e quatro carregadores pendurados no cinturão obedece prontamente.
Entretanto alguém deu o alarme e, à parada até então quase deserta, começa a afluir o pessoal que se preparava para o tacho. A cena deixa-os estupefactos. De machado em riste apontado à cabeça do elemento capturado e caminhando à sua retaguarda, o soldado Lima trespassa aquela espécie de porta de armas com pose de general. Dirige-se ao comandante da companhia e diz-lhe sem gaguejar:
- Meu capitão, fiz este prisioneiro!
Entre o receoso e o incrédulo, o capitão mandou desarmar o prisioneiro e nomeou quem deveria ficar responsável pela sua vigilância. Com grandes dificuldades de comunicação, reais ou de conveniência, lá foi explicando que desencantado com a vida que levava no mato resolvera entregar-se à tropa portuguesa.
Seguiu um Sitrep para o estado Maior a contar o sucedido e, até ser evacuado uns dois dias depois, o recém chegado foi tratado como uma vedeta. Comeu e bebeu à la gardère, tabaqueou quanto quis e até mamou umas bujecas à pala do pagode. Recebeu palmadas de amizade nas costas, riu com as graçolas do tugas e passeou-se livremente por todo o perímetro interno do arame farpado, casernas, paióis e espaldões incluídos. Afinal ele agora era um dos nossos e portanto, merecedor de amizade e depositário da nossa confiança.
Algum tempo depois chegam notícias de Bissau. O nosso amigo está a colaborar bem nos interrogatórios e tem fornecido informações de grande interesse para as NT. Mais tarde: o elemento do IN que se entregou no K 3 foi transferido para a Psico para um período de reeducação e observação, após o que será restituído à liberdade.
Pouco depois, mais notícias: o prisioneiro fugiu! E finalmente, um mês ou dois mais tarde: o prisioneiro foi (re)capturado em combate na região do Morés. Afinal é capitão das tropas do lado de lá, terá recebido formação no exterior e foi designado para esta missão de pura espionagem, sendo essa a verdadeira razão pela qual se deixou capturar. Manga de ronco!
Tansos? Ingénuos? Que importa isso agora!? Siga a marinha.
Um abraço do Vitor Junqueira
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(*) Tivemos mais baixas na especialidade do que no TO [da Guiné]!
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Notas de L.G.
(1) Vd. post anterior, P1083, assinado também pelo Vitor Junqueira,
(2) Vd. post de 14 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido
(3) Referência à morte do Dr. António de Oliveira Salazar, em 27 de Julho de 1970.
(4) Batalhão Independente de Infantaria 17
(5) Vd. primeiro poste da série Histórias de Vitor Junqueira de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 18 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
Texto do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), já aqui reproduzido em post de 4 de Agosto de 2005 (Na altura não tínhamos as cartas que temos hoje, em linha)(1). Actualmente o Vitor é médico e vive em Pombal.
(...) Estávamos nos primeiros dias do mês de Fevereiro de 1971. A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T, tendo-lhe sido atribuída a missão (transcrevo dos registos oficiais, que constam da História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):
"Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá - Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados.
"Na segurança dos trabalhos as forças adoptam o dispositivo com as seguintes
missões:
"- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída.
"-Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração.
"- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá - Farim".
(...) Há anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário, a partir de e para norte de Mansabá até ao K3. A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, que lhe permitiam uma ligação fácil e rápida entre as bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares).
As frequentes escaramuças consistiam em emboscadas e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre trabalhadores e danos nas máquinas. Após o pôr do Sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR [Canhão sem recuo], MORT 82 e RPG que, vindo da orla mata, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do aquartelamento.
Localizado num ponto do mapa, onde antes da guerra existia uma pequena povoação, o Destacamento Temporário do Bironque foi ocupado pela CCAÇ 2753 em 1 de Dezembro de 1970, que aí veio substituir a CCAÇ 17 (2).
Dias antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que, a terem levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão [cujo coração era Canchungo ou Teixeira Pinto]. O gen Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.
De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa- macaca. Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional e, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais batidas, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à própria custa. Certo é que provaram ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats, Noblessse Oblige [Nobreza Obriga]!
Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com armas e bagagens em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior, qualquer protecção contra balas ou estilhaços, pelo que toda a gente preferia pernoitar nos abrigos. Tratava-se em rigor de um acampamento que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:
(i) Sobre uma das faixas desmatadas de cerca de 100 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura, de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado;
(ii) No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens;
(iii) Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas que no final do dia de trabalho, recolhiam ao seu interior. Como vizinhança , muita força de mosquitos e matacanhas!
Logo nos primeiros passeios pela natureza, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de (e volto a citar dos registos) Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.
Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que antes tinham sido as bermas e valetas da estrada, as cápsulas de munições de armas ligeiras, apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que se chamavam (?) Panzerovkas.
Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas. Por ali confiscamos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens antigos, como obsoletos canhangulos, novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20 mm e os tripés das mesmas (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Espingardas M44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda (2) e Dreyses (1), por certo gamadas ao Exército Português. Também faziam parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o sêlo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?
O dia começava bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3º Gr Comb que iria emboscar em Farim 2 C6 97.
Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata, comiam mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que servia de refeitório, a parelha dos tachos aguardava impaciente (queriam voltar para o choco!) os homens que iam assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentavam-se praticamente em estado de prontidão. Devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6 cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico. GMD [granadas de mão defensivas] penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK.
Todo o material se encontrava limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, tinham desvelos amorosos, tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas!Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3 próprios e alheios a que pudessem deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consistia em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva. E não se disse ataviados, como impõe a gíria militar.
Porque fardas era coisa que já não existia havia tempo, tinham ido à vida. Mergulhos forçados nas bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, tinham decretado o seu desgaste precoce. Por esta altura, iam-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no coiro, umas já sem rasto, outras com ventiladores nas biqueiras, alternavam com as de lona a dar as últimas e chanatos adquiridos pelos próprios. Já então era a crise!
Vitor Junqueira
____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXV: Informação & propaganda: de que lado estava a verdade ? (2)
(2) A história da unidade a que pertenceu o nosso camarada Carlos Vinhal, a madeirense CART 2732, cruza-se com a da CCAÇ 2753: ambas pertenceram ao COP 6 (Mansabá), quando estiveram a fazer segurança à construção da estratégica estrada Mansabá-Farim:
Vd. posts de
21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P890: Uma mina no Bironque (Carlos Vinhal)
(...) "Ao fim da tarde do dia 16 de Julho de 1971 o meu pelotão, que estava de piquete, ia fazer uma coluna auto ao K3 para levar correio à CCAÇ 2753. Aparentemente tratava-se de mais uma normalíssima coluna, que por se tratar de uma distância tão curta, se faria numa hora, ir e vir" (...)
18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
(...) "Em 11 de Novembro de 1970 a CART 2732 deixou de pertencer ao BCAÇ 2885, passando a estar integrada no Comando Operacional n.º 6, reactivado pela necessidade da construção da estrada Mansabá-Farim. O COP6 ficou instalado em Mansabá e a CART apoiou, fornecendo todos os meios logísticos necessários à sua operacionalidade.
(...) "No dia 8 de Fevereiro de 1972 começou a rendição pela CCAÇ 2753, pelo que 2 Gr Comb da CART 2732 partiram para Bissau.
(...) Estávamos nos primeiros dias do mês de Fevereiro de 1971. A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T, tendo-lhe sido atribuída a missão (transcrevo dos registos oficiais, que constam da História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):
"Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá - Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados.
"Na segurança dos trabalhos as forças adoptam o dispositivo com as seguintes
missões:
"- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída.
"-Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração.
"- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá - Farim".
(...) Há anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário, a partir de e para norte de Mansabá até ao K3. A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, que lhe permitiam uma ligação fácil e rápida entre as bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares).
As frequentes escaramuças consistiam em emboscadas e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre trabalhadores e danos nas máquinas. Após o pôr do Sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR [Canhão sem recuo], MORT 82 e RPG que, vindo da orla mata, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do aquartelamento.
Localizado num ponto do mapa, onde antes da guerra existia uma pequena povoação, o Destacamento Temporário do Bironque foi ocupado pela CCAÇ 2753 em 1 de Dezembro de 1970, que aí veio substituir a CCAÇ 17 (2).
Dias antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que, a terem levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão [cujo coração era Canchungo ou Teixeira Pinto]. O gen Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.
De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa- macaca. Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional e, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais batidas, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à própria custa. Certo é que provaram ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats, Noblessse Oblige [Nobreza Obriga]!
Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com armas e bagagens em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior, qualquer protecção contra balas ou estilhaços, pelo que toda a gente preferia pernoitar nos abrigos. Tratava-se em rigor de um acampamento que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:
(i) Sobre uma das faixas desmatadas de cerca de 100 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura, de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado;
(ii) No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens;
(iii) Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas que no final do dia de trabalho, recolhiam ao seu interior. Como vizinhança , muita força de mosquitos e matacanhas!
Logo nos primeiros passeios pela natureza, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de (e volto a citar dos registos) Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.
Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que antes tinham sido as bermas e valetas da estrada, as cápsulas de munições de armas ligeiras, apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que se chamavam (?) Panzerovkas.
Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas. Por ali confiscamos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens antigos, como obsoletos canhangulos, novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20 mm e os tripés das mesmas (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Espingardas M44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda (2) e Dreyses (1), por certo gamadas ao Exército Português. Também faziam parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o sêlo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?
O dia começava bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3º Gr Comb que iria emboscar em Farim 2 C6 97.
Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata, comiam mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que servia de refeitório, a parelha dos tachos aguardava impaciente (queriam voltar para o choco!) os homens que iam assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentavam-se praticamente em estado de prontidão. Devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6 cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico. GMD [granadas de mão defensivas] penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK.
Todo o material se encontrava limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, tinham desvelos amorosos, tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas!Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3 próprios e alheios a que pudessem deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consistia em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva. E não se disse ataviados, como impõe a gíria militar.
Porque fardas era coisa que já não existia havia tempo, tinham ido à vida. Mergulhos forçados nas bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, tinham decretado o seu desgaste precoce. Por esta altura, iam-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no coiro, umas já sem rasto, outras com ventiladores nas biqueiras, alternavam com as de lona a dar as últimas e chanatos adquiridos pelos próprios. Já então era a crise!
Vitor Junqueira
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXV: Informação & propaganda: de que lado estava a verdade ? (2)
(2) A história da unidade a que pertenceu o nosso camarada Carlos Vinhal, a madeirense CART 2732, cruza-se com a da CCAÇ 2753: ambas pertenceram ao COP 6 (Mansabá), quando estiveram a fazer segurança à construção da estratégica estrada Mansabá-Farim:
Vd. posts de
21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P890: Uma mina no Bironque (Carlos Vinhal)
(...) "Ao fim da tarde do dia 16 de Julho de 1971 o meu pelotão, que estava de piquete, ia fazer uma coluna auto ao K3 para levar correio à CCAÇ 2753. Aparentemente tratava-se de mais uma normalíssima coluna, que por se tratar de uma distância tão curta, se faria numa hora, ir e vir" (...)
18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
(...) "Em 11 de Novembro de 1970 a CART 2732 deixou de pertencer ao BCAÇ 2885, passando a estar integrada no Comando Operacional n.º 6, reactivado pela necessidade da construção da estrada Mansabá-Farim. O COP6 ficou instalado em Mansabá e a CART apoiou, fornecendo todos os meios logísticos necessários à sua operacionalidade.
(...) "No dia 8 de Fevereiro de 1972 começou a rendição pela CCAÇ 2753, pelo que 2 Gr Comb da CART 2732 partiram para Bissau.
domingo, 17 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)
O BCAÇ 2851 e o BCAÇ 2852 viajaram juntos, em finais de Julho de 1968, no Uíge, de Lisboa a Bissau.
N/M Uíge > Foto da excelente página Navios Mercantes Portugueses (com a devida vénia)...
1. Reproduzo aqui a correspondência trocada recentemente entre o nosso camarada Beja Santos e um novo elemento que pede para entrar na nossa tertúlia, o Raul Albino.
1.1. E-mail do Raul Albino, datado de 23 de Agosto:
Vejo que já voltaste de férias, espero que bem recuperado.
Aproveito para agradecer todo o esforço que dispendeste na organização do Almoço-Convívio de Figueiró dos Vinhos. Na minha opinião e na dos militares e seus familiares com quem falei, todos são unânimes em considerar este evento o mais interessante e bem conseguido de todos os que até agora foram organizados. Por isso os meus parabéns.
Tenho problemas nos caracteres especiais incluídos nos textos do blogue, que me dificultam a sua leitura completa. Sabes como posso ultrapassar este problema?
Outra ajuda, podes-me dar o endereço de email do Luís Graça? Para que alguma coisa venha a ser colocada no blogue, basta enviar-lhe correio pelo email ou tem de ser de outra forma qualquer?
Um abraço amigo,
Raul Albino
1.2. Resposta do Beja Santos:
Caro Raúl, obrigado pelas tuas notícias. Ainda bem que toda a gente ficou contente com o encontro de Figueiró. Por favor, evitem reuniões em quartéis e discursos do Vargas para não termos uma atmosfera excessivamente militar. No conhecimento tens os contactos do Luis Graça, que seguramente providenciará as informações que pedes. Tanto quanto me é dado ler no blogue, pouco se sabe sobre as companhias do nosso batalhão. Assume as tuas responsabilidades, entra no blogue, apela a que toda a gente da CCAÇ 2402 ofereça materiais, como fotografias, postais, etc.
Sempre ao teu dispor, Mário Beja Santos
1.3. Outro e-mail do Beja Santos, de 23 de Agosto:
Caro Albino, só para te desejar saúde e confirmar que continuo activo no blogue Luis Graça e Camaradas da Guiné. Tu tinhas obrigação de dar uma perninha, depois do livro que coordenaste e pôr outras pessoas a colaborar.
Esta história só vai interessar aos nossos netos mas temos obrigações morais de não fazer desaparecer estupidamente a nossa memória.
Recebe um abraço do Mário Beja Santos.
2. Em 27 de Agosto de 2006, recebi o pedido formal do Raul para entrar na nossa tertúlia:
Através do Mário Beja Santos tive conhecimento do vosso blogue e ele convenceu-me a participar nele.
Esta primeira mensagem tem a finalidade de testar o endereço electrónico e dar-lhe os parabéns pela iniciativa. (...)
1.1. E-mail do Raul Albino, datado de 23 de Agosto:
Vejo que já voltaste de férias, espero que bem recuperado.
Aproveito para agradecer todo o esforço que dispendeste na organização do Almoço-Convívio de Figueiró dos Vinhos. Na minha opinião e na dos militares e seus familiares com quem falei, todos são unânimes em considerar este evento o mais interessante e bem conseguido de todos os que até agora foram organizados. Por isso os meus parabéns.
Tenho problemas nos caracteres especiais incluídos nos textos do blogue, que me dificultam a sua leitura completa. Sabes como posso ultrapassar este problema?
Outra ajuda, podes-me dar o endereço de email do Luís Graça? Para que alguma coisa venha a ser colocada no blogue, basta enviar-lhe correio pelo email ou tem de ser de outra forma qualquer?
Um abraço amigo,
Raul Albino
1.2. Resposta do Beja Santos:
Caro Raúl, obrigado pelas tuas notícias. Ainda bem que toda a gente ficou contente com o encontro de Figueiró. Por favor, evitem reuniões em quartéis e discursos do Vargas para não termos uma atmosfera excessivamente militar. No conhecimento tens os contactos do Luis Graça, que seguramente providenciará as informações que pedes. Tanto quanto me é dado ler no blogue, pouco se sabe sobre as companhias do nosso batalhão. Assume as tuas responsabilidades, entra no blogue, apela a que toda a gente da CCAÇ 2402 ofereça materiais, como fotografias, postais, etc.
Sempre ao teu dispor, Mário Beja Santos
1.3. Outro e-mail do Beja Santos, de 23 de Agosto:
Caro Albino, só para te desejar saúde e confirmar que continuo activo no blogue Luis Graça e Camaradas da Guiné. Tu tinhas obrigação de dar uma perninha, depois do livro que coordenaste e pôr outras pessoas a colaborar.
Esta história só vai interessar aos nossos netos mas temos obrigações morais de não fazer desaparecer estupidamente a nossa memória.
Recebe um abraço do Mário Beja Santos.
2. Em 27 de Agosto de 2006, recebi o pedido formal do Raul para entrar na nossa tertúlia:
Através do Mário Beja Santos tive conhecimento do vosso blogue e ele convenceu-me a participar nele.
Esta primeira mensagem tem a finalidade de testar o endereço electrónico e dar-lhe os parabéns pela iniciativa. (...)
Como apresentação ligeira, fui Alf Mil Inf na CCAÇ 2402 do BCAÇ 2851, na Guiné entre 1968 e 1970 (1). Como primeiro pedido gostaria de saber se é possível enviarem-me um mapa do tipo dos que o vosso blogue contém, das localidades de Có, Mansabá e Olossato, que não encontrei na vossa lista já bem extensa.
Agradecia também uma explicação geral do vosso projecto e a forma mais adequada de participar. Os textos e/ou fotos deverão ser enviados para este endereço? Ou existe outra rotina de contacto?
Ao vosso dispor,
Raul Albino
PS - Aproveito para lhe pôr um problema: - quando tento visualizar os textos do vosso blogue que o Beja Santos me enviou, os caracteres especiais (ç, ã, á, atc.) não são convertidos e eu tenho dificuldade em ler os artigos. Pode-me dar alguma dica para eu resolver o assunto?
3. Resposta do editor do blogue, em 17 de Setembro de 2006:
Caro Raul:
(i) És bem vindo: o tratamento por tu serve para quebrar barreiras e distâncias, é o tratamento adequado entre velhos camaradas;
(ii) As poucas regras que temos constam da página específica sobre a tertúlia.
(iii) Se quiseres e puderes, manda-me duas fotos tuas (digitalizadas, em formato.jpg), uma do tempo da tropa e outra mais actual... E conta-nos a tua estória... Aqui tens os meus contactos e endereços... Tudo passa por mim, por enquanto (...).
(iv) O Beja Santos já me falou em ti...
(v) O problema técnico que tens na visualização do nosso blogue, vou estudá-lo ou aconselhar-me... para dar uma resposta correcta. Em princípio, o teu PC não reconhece os caracteres portugueses... Também podes pedir a opinião de um algum informático teu amigo... Para já tenta isto:
Tools > Internet Options > General > Languages > (Acrescenta) Portuguese (Portugal) [pt]
(vi) Temos mais uns tantos mapas / cartas para inserir... O problema é o tempo... Tem paciência...
(vii) Desculpa só agora responder-te...
___________
Nota de L.G:
(1) O BCAÇ 2851 partou para a Guiné no N/M Uíge, no final de Julho de 1968, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70):
Agradecia também uma explicação geral do vosso projecto e a forma mais adequada de participar. Os textos e/ou fotos deverão ser enviados para este endereço? Ou existe outra rotina de contacto?
Ao vosso dispor,
Raul Albino
PS - Aproveito para lhe pôr um problema: - quando tento visualizar os textos do vosso blogue que o Beja Santos me enviou, os caracteres especiais (ç, ã, á, atc.) não são convertidos e eu tenho dificuldade em ler os artigos. Pode-me dar alguma dica para eu resolver o assunto?
3. Resposta do editor do blogue, em 17 de Setembro de 2006:
Caro Raul:
(i) És bem vindo: o tratamento por tu serve para quebrar barreiras e distâncias, é o tratamento adequado entre velhos camaradas;
(ii) As poucas regras que temos constam da página específica sobre a tertúlia.
(iii) Se quiseres e puderes, manda-me duas fotos tuas (digitalizadas, em formato.jpg), uma do tempo da tropa e outra mais actual... E conta-nos a tua estória... Aqui tens os meus contactos e endereços... Tudo passa por mim, por enquanto (...).
(iv) O Beja Santos já me falou em ti...
(v) O problema técnico que tens na visualização do nosso blogue, vou estudá-lo ou aconselhar-me... para dar uma resposta correcta. Em princípio, o teu PC não reconhece os caracteres portugueses... Também podes pedir a opinião de um algum informático teu amigo... Para já tenta isto:
Tools > Internet Options > General > Languages > (Acrescenta) Portuguese (Portugal) [pt]
(vi) Temos mais uns tantos mapas / cartas para inserir... O problema é o tempo... Tem paciência...
(vii) Desculpa só agora responder-te...
___________
Nota de L.G:
(1) O BCAÇ 2851 partou para a Guiné no N/M Uíge, no final de Julho de 1968, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70):
vd. post de 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge
sábado, 16 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Finete > 2003 > "Bacari Soncó vestido a preceito, fotografia que ele mandou para o seu irmão Mário, único irmão que ele tem branco". É o actual o régulo do Cuor. É irmão do Malã e do Fodé Dahaba.
Lisboa > Hospital Militar Princiapal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba, "com um sorriso muito triste, tirada nos jardins do Hospital Militar Principal em Lisboa"... Elemento do Pel Caç Nat 52, foi gravemente ferido na Op Anda Cá (Fevereiro de 1969).
Texto e fotos : © Beja Santos (2006)
Continuação da publicação das memórias do Beja Santos >
Diário do Tigre de Missirá, na terceira semana de Agosto de 1968 (1)
Matar ou morrer?
Beja Santos
Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha?
Como estávamos rodeados de soldados, pedi-lhe para conversarmos depois do jantar e a sós. As nossas relações estavam tensas, habitualmente a seguir ao jantar eu pedia ao furriéis (nesta altura só estavam em Missirá o Saiegh, indiscutivelmente o sargento mais apto e prestigiado junto das tropas, e o Ferreira, que não escondia a expectativa de viver em paz as poucas semanas que o separavam da peluda) para prepararmos a agenda do dia seguinte constituída pela inevitável ida a Mato de Cão, um patrulhamento ou limpezas e gestão do aquartelamento e outras trivialidades.
O Saiegh ouvia as minhas propostas e gradualmente afundava-se no silêncio. Aquela já não era a sua guerra. É no decurso da segunda semana de Agosto que durante um patrulhamento acima de Finete, descendo entre Gã Joaquim, Gã Gémeos e Gambicilai que encontrámos vestígios pronunciados da passagem de guerrilheiros. Mais: no chão, descobrimos dois carregadores de PPSH e um de uma pistola (que mais tarde vim a saber que era uma Tokarev). Quando analisámos a situação a três, lembro-me de ter comentado que os guerrilheiros seguramente atravessavam ali o Geba (fazer a cambança) e deveriam abastecer-se em Mero, junto dos balantas.
Como se tivesse sido ferido na sua sensibilidade, Saiegh protestou dizendo que no passado patrulhara muitas vezes aquela área e não havia informações nesse sentido. Ora, a seguir a este patrulhamento, dias depois, encontrámos em Mato Madeira um novo trilho que passava o rio de Biassa até se internar no velho caminho que na carta vai na direcção de Quebá Jilã. Saiegh emergiu num mutismo absoluto, agravado com a conversa que tivemos em particular com Quebá, o irmão do régulo Malâ, e que era o nosso picador. Quebá foi muito claro:
- Inimigo vai buscar comida aos Balanta, mas também gente que vai para o mato. Se atacarmos ali o inimigo, guerra vai crescer.
E a guerra cresceu mesmo: a partir de finais de Agosto passámos a ter emboscadas diárias entre Malandi e Canturé, ou entre Canturé e Gã Gémeos, ou entre Boa Esperança e Gambicilai... fomos estreitando a vigilância na margem esquerda do Geba em torno de Mero e Fá Balanta. Inevitavelmente, as colunas foram detectadas, houve baixas, o contra-terror fora detonado. A 6 de Setembro, veio a primeira flagelação de Missirá, bem brutal por acaso. Seguir-se-ão as minas, as curtas flagelações , as mensagens na picada, as tentativas de rapto das populações civis em Finete.
Naquela noite, expliquei ao desmotivado Saiegh que Matar ou Morrer não era a minha insígnia: - Desculpar-me-à quanto aos seus propósitos, mas não estamos em guerra santa. Temos populações civis a defender e consciências a salvar. Isto não é nenhum maniqueísmo, estou-lhe a demonstrar que não fico à espera do inimigo dentro do arame farpado, esse inimigo tem populações civis que não vamos chacinar. Nada tenho que apoiar as insígnias que você criou e asseguro-lhe que não as vou proibir. Mas não me peça que adira entusiasticamente a uma fórmula que não obedece ao meu sentir.
E assim arrumámos o assunto... ainda que o Matar ou Morrer viesse a ser pintado na base do pau de bandeira. O projecto da escola iria começar em meados de Setembro, dois abrigos apodrecidos começaram a ser substituidos, negociei com o Teixeira das transmissões a cimentação do armazém da comida. Em Bambadinca, pedi ao antecessor do David Payne,[médico do BCAÇ 2852], que recebesse uma vez por semana a população civil, em horário a estipular. Iniciava-se assim as consultas a pedido da população ou por minha própria iniciativa.
Diário do Tigre de Missirá, na terceira semana de Agosto de 1968 (1)
Matar ou morrer?
Beja Santos
Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha?
Como estávamos rodeados de soldados, pedi-lhe para conversarmos depois do jantar e a sós. As nossas relações estavam tensas, habitualmente a seguir ao jantar eu pedia ao furriéis (nesta altura só estavam em Missirá o Saiegh, indiscutivelmente o sargento mais apto e prestigiado junto das tropas, e o Ferreira, que não escondia a expectativa de viver em paz as poucas semanas que o separavam da peluda) para prepararmos a agenda do dia seguinte constituída pela inevitável ida a Mato de Cão, um patrulhamento ou limpezas e gestão do aquartelamento e outras trivialidades.
O Saiegh ouvia as minhas propostas e gradualmente afundava-se no silêncio. Aquela já não era a sua guerra. É no decurso da segunda semana de Agosto que durante um patrulhamento acima de Finete, descendo entre Gã Joaquim, Gã Gémeos e Gambicilai que encontrámos vestígios pronunciados da passagem de guerrilheiros. Mais: no chão, descobrimos dois carregadores de PPSH e um de uma pistola (que mais tarde vim a saber que era uma Tokarev). Quando analisámos a situação a três, lembro-me de ter comentado que os guerrilheiros seguramente atravessavam ali o Geba (fazer a cambança) e deveriam abastecer-se em Mero, junto dos balantas.
Como se tivesse sido ferido na sua sensibilidade, Saiegh protestou dizendo que no passado patrulhara muitas vezes aquela área e não havia informações nesse sentido. Ora, a seguir a este patrulhamento, dias depois, encontrámos em Mato Madeira um novo trilho que passava o rio de Biassa até se internar no velho caminho que na carta vai na direcção de Quebá Jilã. Saiegh emergiu num mutismo absoluto, agravado com a conversa que tivemos em particular com Quebá, o irmão do régulo Malâ, e que era o nosso picador. Quebá foi muito claro:
- Inimigo vai buscar comida aos Balanta, mas também gente que vai para o mato. Se atacarmos ali o inimigo, guerra vai crescer.
E a guerra cresceu mesmo: a partir de finais de Agosto passámos a ter emboscadas diárias entre Malandi e Canturé, ou entre Canturé e Gã Gémeos, ou entre Boa Esperança e Gambicilai... fomos estreitando a vigilância na margem esquerda do Geba em torno de Mero e Fá Balanta. Inevitavelmente, as colunas foram detectadas, houve baixas, o contra-terror fora detonado. A 6 de Setembro, veio a primeira flagelação de Missirá, bem brutal por acaso. Seguir-se-ão as minas, as curtas flagelações , as mensagens na picada, as tentativas de rapto das populações civis em Finete.
Naquela noite, expliquei ao desmotivado Saiegh que Matar ou Morrer não era a minha insígnia: - Desculpar-me-à quanto aos seus propósitos, mas não estamos em guerra santa. Temos populações civis a defender e consciências a salvar. Isto não é nenhum maniqueísmo, estou-lhe a demonstrar que não fico à espera do inimigo dentro do arame farpado, esse inimigo tem populações civis que não vamos chacinar. Nada tenho que apoiar as insígnias que você criou e asseguro-lhe que não as vou proibir. Mas não me peça que adira entusiasticamente a uma fórmula que não obedece ao meu sentir.
E assim arrumámos o assunto... ainda que o Matar ou Morrer viesse a ser pintado na base do pau de bandeira. O projecto da escola iria começar em meados de Setembro, dois abrigos apodrecidos começaram a ser substituidos, negociei com o Teixeira das transmissões a cimentação do armazém da comida. Em Bambadinca, pedi ao antecessor do David Payne,[médico do BCAÇ 2852], que recebesse uma vez por semana a população civil, em horário a estipular. Iniciava-se assim as consultas a pedido da população ou por minha própria iniciativa.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 ou 1969 > Uma das raras fotos do furriel Saiegh, da época da sua passagem por Missirá: aqui na frente de uma viatura, na picada da bolanha de Finete, entre o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, de óculos escuros, e o condutor. O Saiegh, guineense de origem sírio-libanesa, sairá mais tarde desta unidade para ajudar a formar a 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegaria à posição de capitão, depois da morte de João Bacar Jaló. Foi fuzilado pelos homens do PAIGC, depois da independência (2) .
Foto: © Beja Santos (2006)
Eu sabia das febres e das pestes mas nunca vira uma elefantíase, um testículo até aos pés, um rosto comido por o que me parecia uma lepra. Havia igualmente o ritual da fome e que eu conhecia por vários processos escabrosos: por exemplo, sair do abrigo às 6h da manhã e uma mulher espremer-me diante dos meus olhos uma pele murcha que fora um seio e dizer-me: -Leite cá tem, minino muri....
Aí o Comandante da CCS perguntou-me se eu tinha enlouquecido:
-O quê, você quer dar Nestogeno a estes putos todos? Tenha juízo!
Criou-se então um fundo só para leite... O meu regime de sonos alterava-se: com a preocupação de acompanhar a vigilância nocturna, só adormecia entre as 2 e as 3h da manhã. Passei a escrever e a ler furiosamente. Simulava ser poeta, e guardo uns papéis amarelecidos com disparates como este, em homenagem a um grande poeta francês, Saint-John Perse, laureado com Nobel:
Ode a Saint-John Perse
Acreditar no vento como feto aborígene!
Ouvir nos caijueiros em flor as flotilhas de morcegos.
Desfolhar um livro nestas noites de emboscadas em que os campos de cana
Lembram terra de morangos.
Imaginar caçadores furtivos que se deslocam na bruma na pista dos búfalos.
Esperar que as águas tropicais nos apaziguem o sofrimento.
E enviar uma mensagem a quem me lembra e esquece:
Em Missirá há um homem que esgrime com uma catana mutilada, à espera de uma árvore [prometida.
O poeta pede um milagre: que as águas encham a vereda da estrada e que haja um permanente [batuque no céu.
Passando às coisas sérias, relia Alexandre O'Neill que descobrira pelos meus 20 anos (3). Dentro do baú tirei um livro da Ulisseia, As andorinhas não têm restaurante. E no ar pesado da noite comecei a ler o seu texto admirável O Cotovelo Trinchado. Ora oiçam:
"Você conhece esses restaurantes de traz-que-eu-engulo, de engole-vai-embora, esses esófagos da cidade que mal dão tempo para fazer glu? No calor da nalga recém-partida você assenta a sua própria nalga recém-chegada, mas o desgosto dura o tempo de fusão dos dois calores. Outra virá, meu filho, desgostar-se (breve) do calor da sua... É nessas estações da devoração que você se reabastece de azias, de opilações, de engulhos, de flatulências, de tonturas e ardências. É aí que você faz glu com um vinho que, bebido, lhe deixa no fundo da garrafinha uma inesperada linda frase: A CEPA O DEU, VOCÊ O BEBEU!".
O'Neill representava para mim a mudança mágica na literatura portuguesa, um pouco à semelhança do que já fizera José Cardoso Pires na novela e Herberto Heldér na poesia. Mal sabia eu nessa altura que viria a conhecer o O'Neill graças ao Ruy Cinatti (4) e até por razões profissionais iríamos mutias vezes falar de publicidade. Mal sabia eu que dentro em breve a Cristina me iria enviar a obra mais influente que li durante toda a guerra: O Delfim, do José Cardoso Pires. Como relíquia, guardo este livro como o único que não me ardeu no incêndio de Março de 69 e que ainda hoje releio com prazer inexcedível. Mais adiante falarei dele.
Esta tarde partirei para Finete. Levo rações de combate para não criar problemas a ninguém. Finete não resistirá ao fogo de dois obuses, durante meia hora. Há que abrir valas, fortalecer os abrigos, contagiar com entusiasmo o Pelotão de Milícias nº 102.
A grande surpresa é a amizade que vou fazer com Bacari Soncó, irmão de Malá e Fodé Dahaba. O primeiro é hoje o régulo do Cuor. Quando nos reencontramos em 1991 guardo na memória o seu esforço para conter a comoção. Adorava as suas qualidades humanas, percorremos as margens do Geba a falar de fauna e flora. Era e é um principe e na noite de 15 Outubro de 1969 (5) irá atirar-me com um balde de água à cara que provou que afinal não tinha perdido o olho esquerdo.
Fodé, um dos homens mais lindos que conheci, gargalhava a torto e a direito e vai ficar brutalmente mutilado na Anda Cá, a última operação que farei no Cuor, em Fevereiro de 1970 (6). Vale a pena falar seguidamente destas ternas amizades que perduram no meu coração.
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. último post, de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.
(2) Vd. também post de 19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros:
Eu sabia das febres e das pestes mas nunca vira uma elefantíase, um testículo até aos pés, um rosto comido por o que me parecia uma lepra. Havia igualmente o ritual da fome e que eu conhecia por vários processos escabrosos: por exemplo, sair do abrigo às 6h da manhã e uma mulher espremer-me diante dos meus olhos uma pele murcha que fora um seio e dizer-me: -Leite cá tem, minino muri....
Aí o Comandante da CCS perguntou-me se eu tinha enlouquecido:
-O quê, você quer dar Nestogeno a estes putos todos? Tenha juízo!
Criou-se então um fundo só para leite... O meu regime de sonos alterava-se: com a preocupação de acompanhar a vigilância nocturna, só adormecia entre as 2 e as 3h da manhã. Passei a escrever e a ler furiosamente. Simulava ser poeta, e guardo uns papéis amarelecidos com disparates como este, em homenagem a um grande poeta francês, Saint-John Perse, laureado com Nobel:
Ode a Saint-John Perse
Acreditar no vento como feto aborígene!
Ouvir nos caijueiros em flor as flotilhas de morcegos.
Desfolhar um livro nestas noites de emboscadas em que os campos de cana
Lembram terra de morangos.
Imaginar caçadores furtivos que se deslocam na bruma na pista dos búfalos.
Esperar que as águas tropicais nos apaziguem o sofrimento.
E enviar uma mensagem a quem me lembra e esquece:
Em Missirá há um homem que esgrime com uma catana mutilada, à espera de uma árvore [prometida.
O poeta pede um milagre: que as águas encham a vereda da estrada e que haja um permanente [batuque no céu.
Passando às coisas sérias, relia Alexandre O'Neill que descobrira pelos meus 20 anos (3). Dentro do baú tirei um livro da Ulisseia, As andorinhas não têm restaurante. E no ar pesado da noite comecei a ler o seu texto admirável O Cotovelo Trinchado. Ora oiçam:
"Você conhece esses restaurantes de traz-que-eu-engulo, de engole-vai-embora, esses esófagos da cidade que mal dão tempo para fazer glu? No calor da nalga recém-partida você assenta a sua própria nalga recém-chegada, mas o desgosto dura o tempo de fusão dos dois calores. Outra virá, meu filho, desgostar-se (breve) do calor da sua... É nessas estações da devoração que você se reabastece de azias, de opilações, de engulhos, de flatulências, de tonturas e ardências. É aí que você faz glu com um vinho que, bebido, lhe deixa no fundo da garrafinha uma inesperada linda frase: A CEPA O DEU, VOCÊ O BEBEU!".
O'Neill representava para mim a mudança mágica na literatura portuguesa, um pouco à semelhança do que já fizera José Cardoso Pires na novela e Herberto Heldér na poesia. Mal sabia eu nessa altura que viria a conhecer o O'Neill graças ao Ruy Cinatti (4) e até por razões profissionais iríamos mutias vezes falar de publicidade. Mal sabia eu que dentro em breve a Cristina me iria enviar a obra mais influente que li durante toda a guerra: O Delfim, do José Cardoso Pires. Como relíquia, guardo este livro como o único que não me ardeu no incêndio de Março de 69 e que ainda hoje releio com prazer inexcedível. Mais adiante falarei dele.
Esta tarde partirei para Finete. Levo rações de combate para não criar problemas a ninguém. Finete não resistirá ao fogo de dois obuses, durante meia hora. Há que abrir valas, fortalecer os abrigos, contagiar com entusiasmo o Pelotão de Milícias nº 102.
A grande surpresa é a amizade que vou fazer com Bacari Soncó, irmão de Malá e Fodé Dahaba. O primeiro é hoje o régulo do Cuor. Quando nos reencontramos em 1991 guardo na memória o seu esforço para conter a comoção. Adorava as suas qualidades humanas, percorremos as margens do Geba a falar de fauna e flora. Era e é um principe e na noite de 15 Outubro de 1969 (5) irá atirar-me com um balde de água à cara que provou que afinal não tinha perdido o olho esquerdo.
Fodé, um dos homens mais lindos que conheci, gargalhava a torto e a direito e vai ficar brutalmente mutilado na Anda Cá, a última operação que farei no Cuor, em Fevereiro de 1970 (6). Vale a pena falar seguidamente destas ternas amizades que perduram no meu coração.
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. último post, de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.
(2) Vd. também post de 19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros:
(...) "Os olhos de Saiegh cuspiram fogo, mas ele conteve a dimensão da chama. Com o tempo, virei a saber que este descendente de sírio-libaneses também se movia por razões raciais, independentemente dos seus interesses económicos têm sido profundamente afectados pela luta de guerrilhas. O nosso conflito estava armado, mas passados estes anos todos reconheço que ele me deu uma colaboração exemplar, apagando-se progressivamente do mando e da decisão militar. Irei chorar amargamente no dia em que soube do seu fuzilamento" (...).
(3) O Alexandre O'Neil é também um dos meus poetas preferidos e um dos poetas portugueses, do Séc. XX, homenageado no Parque dos Poetas, em Oeiras.
(3) O Alexandre O'Neil é também um dos meus poetas preferidos e um dos poetas portugueses, do Séc. XX, homenageado no Parque dos Poetas, em Oeiras.
Alexandre O'Neil (1924-1986)
Foto: © Instituto Camões (2001) (com a devida vénia...)
Vd o meu post de 27 de Setembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (4): O Parque dos Poetas do Isaltino:
(...) Quem não viu nada,
Mas que riria
Até às lágrimas,
Se fosse vivo,
Seria
O caixa d'óculos do O'Neil,
Agora príncipe
Do Reino da Dinamarca.
Imagino-o,
De Ombro na Ombreira,
Polidor de esquinas,
Desnalgando as gajas,
Mesmo não sendo trolha
Da construção
Nem nunca tendo ido
Para o trabalho,
De lancheira na mão.
Ou de lancheira na mão
Para o trabalho,
Trocando a mão direita
E a esquerda,
A lancheira e a mão,
Subindo e descendo a Avenida
Da Liberdade
À espera talvez de uma outra vida,
Mais segura,
Ou da dita,
Que só era de nome,
Reza a história,
Por causa da Ditadura,
De má catadura,
De má memória.
Mas que pode a palavra, etérea,
De um poeta,
Surrealista, anarca,
Genial,
Mas mais que morto
E enterrado,
Contra a palavra, de pedra e cal,
De um senhor autarca,
No seu feudo, no seu horto, no seu olival? (...).
(4) Vd. post de 10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti.
(5) Nesse fim de tarde, o autor sofreu uma violenta emboscada com mina anticarro, na estrada Finete-Missirá. Vd. posts relacionados com este episódio da mina com emboscada ao Beja Santos e ao seus homens:
Vd o meu post de 27 de Setembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (4): O Parque dos Poetas do Isaltino:
(...) Quem não viu nada,
Mas que riria
Até às lágrimas,
Se fosse vivo,
Seria
O caixa d'óculos do O'Neil,
Agora príncipe
Do Reino da Dinamarca.
Imagino-o,
De Ombro na Ombreira,
Polidor de esquinas,
Desnalgando as gajas,
Mesmo não sendo trolha
Da construção
Nem nunca tendo ido
Para o trabalho,
De lancheira na mão.
Ou de lancheira na mão
Para o trabalho,
Trocando a mão direita
E a esquerda,
A lancheira e a mão,
Subindo e descendo a Avenida
Da Liberdade
À espera talvez de uma outra vida,
Mais segura,
Ou da dita,
Que só era de nome,
Reza a história,
Por causa da Ditadura,
De má catadura,
De má memória.
Mas que pode a palavra, etérea,
De um poeta,
Surrealista, anarca,
Genial,
Mas mais que morto
E enterrado,
Contra a palavra, de pedra e cal,
De um senhor autarca,
No seu feudo, no seu horto, no seu olival? (...).
(4) Vd. post de 10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti.
(5) Nesse fim de tarde, o autor sofreu uma violenta emboscada com mina anticarro, na estrada Finete-Missirá. Vd. posts relacionados com este episódio da mina com emboscada ao Beja Santos e ao seus homens:
24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio
26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá'
(6) Lapso do Beja Santos. A Op Anda Cá realizou-se em 1969 e não 1970. Em 1970 foi a Op Tigre Vadio.
Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(6) Lapso do Beja Santos. A Op Anda Cá realizou-se em 1969 e não 1970. Em 1970 foi a Op Tigre Vadio.
Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
Guiné 63/74 - P1080: Uma nota de tristeza, nostalgia, desencanto e revolta (Rogério Freire, CART 1525)
Foto: © Rogério Freire (2006)
O Rogério Freiree foi alferes miliciano, na CART 1525 (Os Falcões), esteve em Bissorã (1966/67) e vive hoje em Lisboa.
A propósito de um post sobre o futebol e a passagem, pelo Oio, do Gilberto Madail (ex-alf mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)(1), escreveu-nos ele, já há umas largas semanas, a seguinte nota por onde perpassa tristeza, nostalgia, desencanto e revolta:
Luís:
Sabes, quando no e-mail sobre o Madaíl caí em mim, com mais 40 anos me lembrei de que... O que é triste é que após 40 anos....
Na foto, da esquerda para a direita:
(i) Alferes Miliciano Rui Chouriço (já falecido) ;
(ii) Alferes Miliciano Rogério Freire (o escriba);
(iii) Capitão (posteriormente Coronel) Jorge Mourão (já falecido);
(iv) Alferes Miliciano Manuel Eduardo Oliveira ;
(v) Alferes Miliciano Germano Silva.
Em resumo, dois dos cinco oficiais da Companhia [, a CART 1525], já faleceram e já não vão ser mais uma encargo para a Nação Portuguesa ... Com este rácio realmente daqui a mais 20 anos já poderão passar a pagar as pensões.
É só um desabafo ... Não quero entrar em polémica, mas ... já no tempo da outra senhora se dizia que cada País tem o Governo que merece. Pergunto-me muitas vezes se será que nós ex-combatentes (eu incluído, claro está) temos o que merecemos ou será que, desde há muito, deveríamos ter feito [algo] e nunca fizemos nada ou quase nada?
Será que ainda podemos fazer?
Fui informado recentemente pelos jornais que alguns ditos antifascistas começaram a receber uma pensão mensal pela sua luta pela liberdade ... mormente membros do Partido Comunista que começaram a lutar pela Liberdade na Sibéria e em Cuba. É a vida!!!
De momento, aos meus netos só posso dizer que, se na vida deles vier a acontecer uma situação semelhante [à nossa], que fujam para o estrangeiro .... Pode ser depois que, depois de passada a borrasca, se tornem heróis sem nunca terem dado o corpo ao manifesto.
Vou também dizer-lhes que isso de Nação, de Governo, de Pátria, é tudo balela e que o bom mesmo é dar de frosques enquanto podem e de preferência para um País agradável.
Rogério Freire (2)
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de
21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail
(2) Vd. também post de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIX: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67)
O Rogério Freiree foi alferes miliciano, na CART 1525 (Os Falcões), esteve em Bissorã (1966/67) e vive hoje em Lisboa.
A propósito de um post sobre o futebol e a passagem, pelo Oio, do Gilberto Madail (ex-alf mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)(1), escreveu-nos ele, já há umas largas semanas, a seguinte nota por onde perpassa tristeza, nostalgia, desencanto e revolta:
Luís:
Sabes, quando no e-mail sobre o Madaíl caí em mim, com mais 40 anos me lembrei de que... O que é triste é que após 40 anos....
Na foto, da esquerda para a direita:
(i) Alferes Miliciano Rui Chouriço (já falecido) ;
(ii) Alferes Miliciano Rogério Freire (o escriba);
(iii) Capitão (posteriormente Coronel) Jorge Mourão (já falecido);
(iv) Alferes Miliciano Manuel Eduardo Oliveira ;
(v) Alferes Miliciano Germano Silva.
Em resumo, dois dos cinco oficiais da Companhia [, a CART 1525], já faleceram e já não vão ser mais uma encargo para a Nação Portuguesa ... Com este rácio realmente daqui a mais 20 anos já poderão passar a pagar as pensões.
É só um desabafo ... Não quero entrar em polémica, mas ... já no tempo da outra senhora se dizia que cada País tem o Governo que merece. Pergunto-me muitas vezes se será que nós ex-combatentes (eu incluído, claro está) temos o que merecemos ou será que, desde há muito, deveríamos ter feito [algo] e nunca fizemos nada ou quase nada?
Será que ainda podemos fazer?
Fui informado recentemente pelos jornais que alguns ditos antifascistas começaram a receber uma pensão mensal pela sua luta pela liberdade ... mormente membros do Partido Comunista que começaram a lutar pela Liberdade na Sibéria e em Cuba. É a vida!!!
De momento, aos meus netos só posso dizer que, se na vida deles vier a acontecer uma situação semelhante [à nossa], que fujam para o estrangeiro .... Pode ser depois que, depois de passada a borrasca, se tornem heróis sem nunca terem dado o corpo ao manifesto.
Vou também dizer-lhes que isso de Nação, de Governo, de Pátria, é tudo balela e que o bom mesmo é dar de frosques enquanto podem e de preferência para um País agradável.
Rogério Freire (2)
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de
21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail
(2) Vd. também post de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIX: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67)
Guiné 63/74 - P1079: Almoço-convívio da CCS do BCAÇ 2927 (Bissorã, 1970/72) (Carlos Fonseca)
Guiné > Rehgião do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 - Os Leões Negros > 1971> O Fur Mil Fortunato, ao centro, junto de uma peça de artilharia pesada (obus 10,5 cm) que defendia Bissorã, sede do BCAÇ 2927 (1970/72).
Foto: © Carlos Fortunato (2005)
1. Amigo Luis Graça:
O meu nome é Carlos Fonseca, de Maceira, Leiria, telefone 962603713, ex-combatente da CCS do BCAÇ 2927, Guiné, Bissorã, 1970/72.
Admiro bastante o seu empenhamento na divulgação da nossa causa através do seu site.
Informo que a nossa companhia irá realizar um almoço-convívio no dia 7 de Outubro, em Fátima. Caso seja possivel, divulgue. Gostaria ter o seu endereço para lhe enviar um convite para estar presenta no nosso convívio, era um prazer.
Desde já os meus agradecimentos.
Um Abraço
Carlos Fonseca
2. Comentário de L.G.:
Carlos:
Este é o maior espaço na Internet sobre a experiência, única, dos ex-combatentes que estiveram na Guiné, no período da guerra colonial (1963/74). É naturalmente também o teu espaço e o espaço dos teus camaradas da CCS da 2927. Podes ver, nas nossas páginas mais informação sobre Bissorã. Será que chegaste a conhecer alguém da CCAÇ 13 - Os Leões Negros ?
Podes também consultar a carta de Mansoa (1/50.000) onde se inclui Bissorã.
O Carlos Fortunato é elemento da nossa tertúlia. Em breve, no próximo mês de Novembro de 2006, deverá revisitar Bissorã e outros sítios por onde andaram os Leões Negros.
Aqui fica a divulgação da data e local da vossa festa. É simpártico o teu convite, mas -como deves imaginar - não poderei estar convosco nessa data. No dia 14, também deveremos ter um encontro, a nível da nossa tertúlia, em Montemor-o-Novo.
De qualquer modo, ajuda também a divulgar o nosso blogue:
Luís Graça & Camaradas da Guiné > http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com
O meu endereço de e-mail é o seguinte > luis.graca@ensp.unl.pt
Também podes telefonar-me, nos dias úteis, directamente para: 21 751 21 38 (das 9 às 17h).
Guiné 63/74 - P1078: Estórias avulsas (2): Uma boleia 'by air' até Nova Lamego para uma noite de fados (Joaquim Mexia Alves)
Texto de Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu a: (i) ; CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); (ii) Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) ; e (iii) CCAÇ 15 (Mansoa) .
Caro Luís Graça:
Mais uma história, verdadeira, claro está (1).
A Visita Aérea às Companhias que não aconteceu.
Quando estava na Ponte de Udunduma com o Pel Caç Nat 52, fui chamado a Bambadinca, para reforçar a CCAÇ 12, numa qualquer operação de que não me lembro, mas na qual nada deve ter acontecido, pois senão até a minha fraca memória se lembraria.
A verdade é que ao fim da manhã (a operação começaria ao fim da tarde), quando já estava em Bambadinca a fim de combinar a coisa com o meu grande amigo Capitão Bordalo, comandante da CCAÇ 12, e os seus Alferes, aterra uma DO 27 na pista do quartel.
É sabido, pelo menos no meu tempo assim era, que os Comandantes de Batalhão (passo a crítica jocosa), se pelavam por uma voltinha de avião ou helicóptero, com a desculpa da visita às Companhias mais afastadas.
É curioso que as colunas de abastecimento, pelos vistos, não serviam tal propósito, vá-se lá saber porquê, o que pelo menos no caso do meu batalhão era uma realidade.
Mas, voltando aos factos, logo o Comandante do Batalhão [ BART 3873, Bambadinca, 1972/74] se deslocou à pista para tomar assento no avião e dar a sua volta aérea (1).
Foi então que o piloto, grande amigo meu de Monte Real, e que penso não se importa que aqui deixe o seu nome, Jaime Brandão, perguntou por mim, e convidou-me para ir com ele até Nova Lamego, pois iria acontecer uma noite da fados, e era muito importante a presença da minha voz. (Já perceberam que na altura eu cantava o fado e, segundo dizem, bastante bem).
Acrescentou ele que não havia problema, pois no outro dia voltava a Bissau e no caminho deixava-me em Bambadinca. (Era fácil, declaravam uma porta aberta e assim tinham de aterrar).
A cara do Comandante era indescritivel e eu disse ao Jaime que era impossível porque tinha aquela operação.
Voltamos para a messe e passadas uma hora ou duas ouve-se um helicóptero aterrar e aí o Comandante disse:
- Agora é que é!!!
Claro que fui também até à pista.
Do helicóptero sai o Pedro Melo Ribeiro, outro amigo de Lisboa, que não era piloto mas vinha a acompanhar, e me diz:
- É pá, vimos-te buscar porque esta noite há fados em Nova Lamego e o pessoal disse logo que tu eras imprescindivel!!!
A vossa imaginação está agora com certeza a ver a cara do Tenente-Coronel, com o espanto e sei lá mais o quê bem retratado na fisionomia.
Claro que dei a mesma resposta e retirei-me para a messe, sob os olhares gozões de uns e o olhar reprovador de outro, que não sabia bem o que fazer e até talvez meditando na importância da minha pessoa.
Por volta das 3 ou 4 horas da tarde, depois de uns uísques bebidos para animar as tropas, aterra outra DO 27, e o Comandante entre, incrédulo e ansioso, lá se dirigiu para a pista, comigo e já um número de camaradas a acompanhar.
Era novamente o Jaime Brandão, que com um sorriso dispara:
- Então vens ou não?
Escusado será dizer que a resposta foi a mesma e que o Comandante neste momento já não tinha cara, mas uma máscara de incredulidade, espanto, irritação, etc. etc.
Nos dias que se seguiram o gozo foi enorme, umas vezes mais descarado, outras mais disfarçado.
À noite lá fomos para a operação que, como digo acima, não teve nada de especial a reportar.
E assim aconteceu a visita aérea que... não aconteceu!!!!
Durante uns tempos foi lenitivo para as agruras e desconforto da guerra e só por isso já foi muito bom!!!
Abraço do
Joaquim Mexia Alves
____________
Nota de L.G. ;
(1) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)
(2) Tenente-coronel António Tiago, já falecido: vd. post de 17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)
sexta-feira, 15 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)
Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > O abutre ou jagudi. Foto do João Santiago, filho do Paulo Santiago, que o acompanhou na viagem de todas as emoções.-
Foto: © João/Paulo Santiago (2006)
Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)
Luís:
Aqui segue mais um mail para ver a estirpe do proveta [Capitão Lourenço, comandante da CCAÇ 3490, sedeada no Saltinho, 1972/74]
Passaram-se uns quinze dias após o meu regresso de um mês de licença na metrópole. O Lourenço estava de férias e a companhia andava abúlica e acabrunhada. Tinha passado muito pouco tempo sobre a Tragédia do Quirafo (1).
Naquela manhã encontrava-me no bar, quando se aproxima um heli. Dirijo-me ao heliporto e distingo, quando a aeronave baixa, o Caco Baldé. Vinha acompanhado pelo seu novo ajudante de campo, Cap Ayala Boto e pelo Major Fabião.
Após os cumprimentos da praxe, o Spínola pergunta-me pelo comandante da companhia, respondendo-lhe estar de licença e apenas um dos Alferes, o Garcia, estar no quartel
Os outros dois estavam nos destacamentos. O Garcia tinha ficado no bar de volta da bazooka matinal para a hepatite. O Fabião mandou um soldado chamá-lo. O General vai-me interrogando sobre o que se passa na companhia, falo-lhe no moral muito em baixo, ao que ele me interroga de novo:
- E para além disso?
Fico intrigado sem saber onde ele quer chegar. Aproxima-se o Garcia, de farda nº2 e chinelos de enfiar no dedo, o Fabião passa-lhe uma descasca, o Caco não se pronuncia. Fico a saber o que se passa, o Major saca do bolso um papel: era uma carta enviada por um soldado da companhia ao Spínola, queixando-se da comida. O Fabião relata-me por alto o que vem na carta: durante a sobreposição com a 2701, comiam bem e com qualidade, após aquela companhia ir embora a comida era péssima...
Concordei ser verdade, eu próprio já tinha comentado com os meus Furrieis a superior qualidade das ementas no tempo da CCAÇ 2701. Não estive presente durante a sobreposição, mas sabia do que se passava antes de ir para Bambadinca.
O General entra nas casernas-abrigos, onde alguns militares ainda estavam deitados, e vai ouvindo as queixas expostas na carta. Correu todas as casernas, dirigindo-se em seguida ao depósito de géneros. Pede as ementas ao Vaguemestre e, após consulta, diz-lhe:
-O senhor tem pouco jeito para isto. Os recursos são poucos mas falta-lhe imaginação.
Vira-se para o 1º Sargento:
-Explique-me como era possível comerem com qualidade com a outra companhia e terem lucro e agora comem mal e logo no primeiro mês têm um prejuízo de trinta contos?
Responde o 1º Sargento:
-Meu General, não tenho nada a ver com isso. O nosso Capitão disse-me, ainda antes de aqui chegarmos, as contas da alimentação e cantina eram só com ele e com o vaguemestre.
-Estou esclarecido, diz o Caco -. E, virando-se para o Ayala, diz-lhe:
-Toma nota para chamares o Capitão à minha presença no dia do regresso de férias.
Fala pela primeira vez para o Alf Garcia:
-Senhor Alferes, tem dois dias para substituir o vaguemestre. Passa-o para atirador e escolhe um atirador para o render no depósito de géneros. Informe após substituição. Quero o 1º sargento metido nas contas.
Houve melhorias após a visita do Caco.
Paulo Santiago (2)
_____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
(2) O subtítulo deste post é da responsabilidade do editor do blogue: é um verso do refrão da célebre canção de protesto do Zé Afonso, muito em voga na época, Vampiros:
Eles comem tudo,
Eles comem tudo,
Eles comem tudo,
E não deixam nada!
Guiné 63/74 - P1076: Álbum das glórias (4): Eu e o coronel Cunha Ribeiro, o nosso 'major eléctrico' (Mário Beja Santos)
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Fotografia enviada em 24 de Agosto de 2006 pelo nosso camarada Beja Santos.
Cá estou eu, de braço dado com o Coronel Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro (1), de quem guardo afetuosa recordações.
A fotografia foi tirada numa reunião de convívio do pessoal de Bambadinca (1968/71), em Fão, em 1994. A senhora ao lado é a sua mulher.
Do Cunha Ribeiro haverá menção a partir de Setembro de 69 e o seu inesquecível carinho aquando dos trágicos acontecimentos da mina de Canturé (2).
Mário Beja Santos
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
__________
Notas de L.G.
(1) Major do BCAÇ 2852. Substituiu em Setembro de 1969 o major Viriato Amílcar Pires da Silva, transferido por motivos disciplinares (2). Foi vítima de acidente grave com um jipe. Era mais conhecido, na caserna - e nomeadamente pela malta da CCAÇ 12 - como o 'major eléctrico', devido à sua energia...
(2) O major Pires da Silva era de operações, sendo comandante do BCAÇ 2852 o tenente-coronel Pimentel Bastos: vd. posts de:
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
1 de Agosto de 2006> Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo!) (Luís Graça)
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)
Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)
Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912 - CCAÇ 1686, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969)
O soldado desconhecido de Mansoa
Como o Mundo é pequeno!!
Quem diria, Caro Dr. Beja Santos, que o soldado Fernandes tinha ido parar ao seu querido destacamento de Missirá!! ! (1)
O soldado Fernandes pertenceu à minha Companhia, a CCAÇ 1686. Tinha a alcunha de Atleta e foi sem dúvida o soldado mais conhecido de Mansoa.
Pelas suas características psíquicas, não devia ter sido apurado para todo o serviço militar e muito menos ter sido enviado para a Guiné integrado numa companhia de Caçadores. Mas foi. Era um homem muito estranho, afável, disciplinado e tinha inteligência embora não parecesse.
Fez a guerra à sua maneira, ganhou um estatuto especial na hierarquia e teve sorte, muita sorte. Fez todas as Operações, fazia questão de ir sempre na frente e era bom a combater, um pouco temerário, por vezes.
Nos almoços [de convívio do BCAÇ 1912] que fazemos todos os anos, o Atleta é sempre o primeiro a chegar, seja onde for o almoço, de bicicleta, a pé, à boleia, nunca falta.
É hoje uma espécie de mascote do Batalhão e fazemos sempre uma colecta que rende algumas centenas de Euros que lhe são entregues, o que o faz muito feliz, pelo menos por uns dias.
Sobre a ida até Bambadinca e outras aventuras, escreverei noutro dia. Por hoje chega. A velhice de Mansoa cá continua sentada.
O próximo Post que enviar, incluirá uma estória do Paulo Raposo (2) que terá por título A Geladeira. Ele que se cuide.
Um abraço.
Aires Ferreira
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido
(...) "Estávamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusive tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?" (...)
(2) Recebemos ontem um e-mail do Paulo Raposo, sobre o "soldado desconhecido de Mansoa", que rezava assim:
Olá, rapaziada!
Não tenho ideia deste assunto.
A nossa CCAÇ 2405, a Gloriosa, "se tivéssemos estado mais tempo na Guiné, tínhamos acabado com a guerra", era limpinho.
Esteve em Mansoa de Agosto a Dezembro de 1968. O BCAÇ 1911 ainda ficou por lá, julgo que sentados.
No entanto vou pedir ao meu cripto para mandar um rádio, cifrado, a pedir informações ao Felício (Barão de Montanelas) e ao David (Visconde de Vale de Cavalos), pois talvez saibam de alguma coisa, que duvido, pois a esclerose deles é do tamanho da minha.
Um quebra-costelas do Almançor
O soldado desconhecido de Mansoa
Como o Mundo é pequeno!!
Quem diria, Caro Dr. Beja Santos, que o soldado Fernandes tinha ido parar ao seu querido destacamento de Missirá!! ! (1)
O soldado Fernandes pertenceu à minha Companhia, a CCAÇ 1686. Tinha a alcunha de Atleta e foi sem dúvida o soldado mais conhecido de Mansoa.
Pelas suas características psíquicas, não devia ter sido apurado para todo o serviço militar e muito menos ter sido enviado para a Guiné integrado numa companhia de Caçadores. Mas foi. Era um homem muito estranho, afável, disciplinado e tinha inteligência embora não parecesse.
Fez a guerra à sua maneira, ganhou um estatuto especial na hierarquia e teve sorte, muita sorte. Fez todas as Operações, fazia questão de ir sempre na frente e era bom a combater, um pouco temerário, por vezes.
Nos almoços [de convívio do BCAÇ 1912] que fazemos todos os anos, o Atleta é sempre o primeiro a chegar, seja onde for o almoço, de bicicleta, a pé, à boleia, nunca falta.
É hoje uma espécie de mascote do Batalhão e fazemos sempre uma colecta que rende algumas centenas de Euros que lhe são entregues, o que o faz muito feliz, pelo menos por uns dias.
Sobre a ida até Bambadinca e outras aventuras, escreverei noutro dia. Por hoje chega. A velhice de Mansoa cá continua sentada.
O próximo Post que enviar, incluirá uma estória do Paulo Raposo (2) que terá por título A Geladeira. Ele que se cuide.
Um abraço.
Aires Ferreira
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido
(...) "Estávamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusive tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?" (...)
(2) Recebemos ontem um e-mail do Paulo Raposo, sobre o "soldado desconhecido de Mansoa", que rezava assim:
Olá, rapaziada!
Não tenho ideia deste assunto.
A nossa CCAÇ 2405, a Gloriosa, "se tivéssemos estado mais tempo na Guiné, tínhamos acabado com a guerra", era limpinho.
Esteve em Mansoa de Agosto a Dezembro de 1968. O BCAÇ 1911 ainda ficou por lá, julgo que sentados.
No entanto vou pedir ao meu cripto para mandar um rádio, cifrado, a pedir informações ao Felício (Barão de Montanelas) e ao David (Visconde de Vale de Cavalos), pois talvez saibam de alguma coisa, que duvido, pois a esclerose deles é do tamanho da minha.
Um quebra-costelas do Almançor
Guiné 63/74 - P1074: O Paulo Raposo, o Padre Mário e o Batalhão de Caçadores 1912, Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686)
Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas (CCAÇ 1686, BCAÇ 1912, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969)
Caro Luís Graça e Camaradas da Tertúlia:
Sou muito periquito por aqui. Solicitei a minha inscrição no Post 1002 (1) e não voltei a intervir. Não sei se por causa das férias, se por ter diminuído o entusiasmo inicial.
Enfim, seja como for, cá estou de novo e começo por fazer duas pequenas observações:
(i) A primeira é para o Paulo Raposo que se refere sempre ao Batalhão de Mansoa como sendo o 1911, o que não é verdade. O 1911 fez a viagem connosco no UIGE e fez a sua comissão em Bula. (Salvo erro).
O Batalhão de Mansoa foi o 1912, desde 13 de Maio de 1967 até 13 de Maio de 1969. O seu a seu dono.
(ii) A segunda é para o Luís Graça e reza assim: Não foi o 1912 que expulsou o Padre Mário (2) do seu seio. Penso que nem tinha autoridade para o fazer. O que aconteceu, foi que o Padre Mário politizou fortemente as homilias das missas dominicais na Igreja Paroquial de Mansoa e isso criou problemas ao Comando do Batalhão. Além disso, a PIDE tinha em Mansoa um funcionário com escritório aberto.
Sei que o Comando foi por várias vezes chamado a Bissau e por fim o Padre Mário saiu de Mansoa.
Estávamos em 1967, éramos todos muito jovens e acho que faltou uma pitadinha de bom senso ao Padre Mário, para levar a água ao seu moinho. Ele que me perdoe, mas foi o que pensei na altura.
Aires Ferreira
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)
(2) Eu tinha escrito o seguinte: "Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante [na nossa tertúlia] do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio"... Vd. outros posts sobre o Padre Mário, capelão do BCAÇ 1912 por 4 meses...
Vd. posts de:27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )
Caro Luís Graça e Camaradas da Tertúlia:
Sou muito periquito por aqui. Solicitei a minha inscrição no Post 1002 (1) e não voltei a intervir. Não sei se por causa das férias, se por ter diminuído o entusiasmo inicial.
Enfim, seja como for, cá estou de novo e começo por fazer duas pequenas observações:
(i) A primeira é para o Paulo Raposo que se refere sempre ao Batalhão de Mansoa como sendo o 1911, o que não é verdade. O 1911 fez a viagem connosco no UIGE e fez a sua comissão em Bula. (Salvo erro).
O Batalhão de Mansoa foi o 1912, desde 13 de Maio de 1967 até 13 de Maio de 1969. O seu a seu dono.
(ii) A segunda é para o Luís Graça e reza assim: Não foi o 1912 que expulsou o Padre Mário (2) do seu seio. Penso que nem tinha autoridade para o fazer. O que aconteceu, foi que o Padre Mário politizou fortemente as homilias das missas dominicais na Igreja Paroquial de Mansoa e isso criou problemas ao Comando do Batalhão. Além disso, a PIDE tinha em Mansoa um funcionário com escritório aberto.
Sei que o Comando foi por várias vezes chamado a Bissau e por fim o Padre Mário saiu de Mansoa.
Estávamos em 1967, éramos todos muito jovens e acho que faltou uma pitadinha de bom senso ao Padre Mário, para levar a água ao seu moinho. Ele que me perdoe, mas foi o que pensei na altura.
Aires Ferreira
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)
(2) Eu tinha escrito o seguinte: "Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante [na nossa tertúlia] do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio"... Vd. outros posts sobre o Padre Mário, capelão do BCAÇ 1912 por 4 meses...
Vd. posts de:27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )
Guiné 63/74 - P1073: Álbum das glórias (3): A equipa de futebol de Missirá (Mário Beja Santos)
Texto e foto: © Beja Santos (2006)
Esta fotografia é da equipa que veio de Missirá [a Bambadinca], perdeu 11-1 não sei com quem. Felizmente posso identificar toda a gente:
(i) De joelhos, Ieró Djaló, um soldado das mílicias, que de vez em quando circulava sozinho entre Missirá e Finete, ao arrepio de todas as regras de segurança; depois o Furriel Casa Nova, eu, o Teixeira das transmissões, o Barbosa da boina verde e depois o Samba;
(ii) de pé, Mamadu Soncó, de quem iremos falar no final da minha comissão, Tribene (é o único Tribene que eu conheço), 1º Cabo Veloso, Mamadu Camará (1), Zé Pereira, Domingos da Silva, Bacari Djassi (de quem falaremos, quando o brigadeiro Spínola visitar Missirá em Fevereiro de 1969).
(iii) Por último, e ainda na segunda fila, o actual régulo do Cuor, Bacari Soncó. É um dos meus mais queridos amigos e rezo por ele todos os dias. Era 2º Comandante da Mílicia de Finete, militar muito devotado, um cavalheiro cujas gentilezas revelou enquanto vivi no Cuor. A última vez que combatemos juntos foi na Operação Anda Cá (2).
Os Soncó do meu tempo estão reduzidos a dois irmãos e filhos do régulo Malan Soncó restam dois: Túmulo, que é comerciante nos mercados de Bissau, e Abudu que trabalha num hotel do Algarve e que veio para Portugal em 1996.
Mário Beja Santos
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1068: O álbum das glórias (Beja Santos) (2): Misérias e grandezas de Mamadu Camará
(2) Antecedeu a Op Tigre Vadio, realizada um ano depois, em 1970: vd. de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(...) "O relatório da Op Nada Consta será publicado em breve. Nela participou o nosso camarada Beja Santos, na altura comandante do Pel Caç Nat 52. O seu prisioneiro-guia estava confiado à guarda dos homens desta unidade, destacada em Missirá. Nesta operação realizada em Março de 1970, a Op Tigre Vadio, o comandante das forças terrestrs também foi, prática, o Alf Mil Beja Santos. Esta era, de resto, a sua zona de acção e era de Madina/Belel que, quase sempre, vinham as forças de guerrilha atacar Missirá e outros objectivos das NT" (...)
quinta-feira, 14 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1072: Uma comunidade de afectos: relembrando o Furriel Branquinho (Pel Caç Nat 63) (Jorge Cabral)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > Março de 1970 > Dois amigos, o Alf Mil Jorge Cabral, e o Fur Mil Branquinho.
Foto: © Jorge Cabral (2006)
Companheiro Luis,
Também graças ao blogue, estou a recordar os Amigos do Pelotão. Hoje é a vez do Branquinho.
Um grande Abraço
Jorge
Os Amigos
Todas as minhas estórias, aventuras e desventuras, foram vividas colectivamente, entre Amigos, no meu Pelotão, que constituía, acima de tudo, uma Comunidade de Afectos.
De todos, furriéis, cabos, soldados, guardo as mais gratas recordações, mas hoje quero realçar, porque é de Justiça, o meu Amigo Branquinho.
Ao longo da vida conheci e trabalhei com muita gente, mas jamais encontrei alguém tão leal. Entre nós, logo desde o início, estabeleceu-se uma tal cumplicidade, que nem sequer necessitávamos de palavras para nos entendermos. Juntos estivemos vinte e um meses, e nunca surgiu a mais leve desavença. O Branquinho, mais do que o meu braço direito, foi sempre o Amigo Certo, na Alegria e na Tristeza.
É tempo de te dizer, Branquinho, Obrigado! Pela quotidiana, sã e total fraternidade!
Às vezes eu próprio me interrogo. Saudades da guerra? De quê? Dos Amigos! E de entre eles, do Branquinho. De poder contar com um Amigo como ele, nesta época de compadrios, interesses e troca de favores, sim, faz-me sentir saudades!
Jorge Cabral
Guiné 63/74 - P1071: Historiografia da presença portuguesa em África (3): Mandingas soninqués, animistas, islamizados à força (Paulo Santiago / Beja Santos)
René Pélissier - História da Guiné: Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936. Lisboa: Editorial Estampa. 2 volumes, c. 600 pp. Preço de capa de cada volume: 14,27 € (mais IVA) .
Foto das capas: Editorial Estampa (2006) (com a devida vénia)
1. Mensagem do Paulo Santiago, enviada ao Beja Santos:
Camarada:
Escrevias há dias, no blogue, que estiveste como cooperante na Guiné, com alojamento na Cicer. Assim, deves ter conhecido o meu irmão mais negro, o Domingos Pereira, director daquela cervejeira.
Costumo ler alguns artigos teus na Soberania do Povo (1) que, ultimamente, com as mudanças que teve, está a pasquinizar-se, é a minha opinião.
Como conseguiste pôr Mandingas a cozinhar carne de porco ?
Um abraço
Paulo Santiago
(ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)
2. Resposta do Beja Santos, ex- Alf Mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70):
Caro Paulo, obrigado pela tua mensagem. Encurtando razões, fui cooperante em 1991 nos termos de um protocolo entre Portugal e Guiné-Bissau na área do Ambiente e da Defesa do Consumidor. Estive lá cerca de 5 meses na tentativa vã de criar a Comissão Interministerial da Defesa do Consumidor.
Eu estava pago com ajudas de custo como se estivesse em território nacional, pago pelo nosso governo, a Guiné-Bissau dava-me a pernoita e um motorista para as voltas de serviço. Naquele tempo ainda era possível jantar na Pensão da Berta (mesmo ao lado da Sé Catedral) e vir a pé até à Cicer (hoje corre-se o risco de ser esquartejado).
As minhas recordações na Cicer ficaram confinadas ao espaço agradável do meu quarto e aos frequentes cortes de luz quando estava a fazer relatórios ou escrever à família. Juro que não conheci o teu irmão mais negro. Já naquela altura a miséria era pungente e recordo que o guarda me pedia as giletes usadas, restos de sabonete, meias, toalhas...
Ficas a saber que a China Popular ofereceu à Guiné um estádio desportivo modelar que as autoridades não souberam manter e eu passava todas as noites por um gigantesco estádio reduzido ao silêncio e à inoperância (a luz não funcionava, a relva crescia desordenadamente, pilhava-se o vidro das portas...).
Ainda hoje tenho vertigens quando penso que o país que fez mudar a história de Portugal está de cócoras.
Sobre os mandingas islamizados, há muita coisa que nós não sabíamos na Guiné. Se puderes, compra a História da Guiné, por René Pélissier, em dois volumes (Editorial Estampa, 1989) (2). Ali ficarás a saber que os mandingas soninqués (mandingas do Oio ou Oincas) eram profundamente animistas e foram islamizados à força na segunda metade do século XIX. Daí que os meus fulas e mandingas viviam cheios de contradições entre o vinho e a carne de porco.
Mesmo antes de eu chegar, o porco de mato (eles diziam sim-sim) era comprado pelo vagomestre. Não esqueças ainda que só os arranchados é que comiam na Messe (oficial, furriéis, cabos portugueses, malta dos morteiros, desempanadores, etc.) e todos os outros comiam a bianda na tabanca. Que havia bebedeiras, havia pois uma noite um 1º cabo Papel entrou-me no abrigo completamente etilizado e perguntou-me se não queria dançar com ele e as bajudas que estavam no baile...
Espero ter satisfeito a tua curiosidade. Escreve sempre e espero ver-te na tal reunião anual que se prevê ter lugar em Dezembro (3).
Abraços do Tigre [de Missirá].
____________
Notas de L.G.
(1) Semanário de Águeda, o mais antigo do país, com 126 anos
(2) Vd. post de 7 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P944: Historiografia das guerras de África: colaboradores, precisam-se (Nuno Rubim)
(3) O Beja Santos não poderá estar, em princípio no nosso primeiro encontro, agendado para 14 de Outubro próximo, em Montemor-o-Novo, na Herdade da Ameira, por sugestão e iniciativa do Paulo Raposo. Para ele, o mais conveniente seriam as férias de Natal...
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Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Pel Caç Nat 52 > O improvisado padeiro, Jobo Baldé, a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca.
Capa do livro Agatha Christie, Poirot desvenda o passado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 1). tr. do inglês, Five Little Pigs). Ilustração de inspiração surrealista do artista Cândido Costa Pinto.
Texto e fotos: © Beja Santos (2006)
Mensagem do Beja Santos, com data de 1 de Setembro de 2006:
Caro Luís, segue mais colaboração e por muito que te surpreendas o que aqui se relata no essencial aconteceu. Espero que tenhas tido umas belissimas férias. Como se aproxima o ano lectivo decidi ir gozar uma última semana no meu casebre no concelho de Pedrogão Grande. Lá estarei até 11 de Setembro, depois de fazer os últimos exame na tarde de 4.
Atendendo a que estou a desenhar um rol de memórias que poderá ter uma extensão apreciável, tendo em conta tudo aquilo que li dos depoimentos dos nossos camaradas em que nada se aproxima deste projecto de longo fôlego, para evitar susceptilidades ou mal entendidos quanto à natureza deste cometimento, talvez valha a pena eu dispor da tua opinião sincera da melhor estrutura e uso no espaço e no tempo dentro do blogue. Quando tu quiseres, a partir de 12 de Setembro, conversamos à mesa ou por telefone.
Um abraço do Mário.
Comentário de L.G.:
Obrigado, Mário, por quereres e poderes partilhar connosco as tuas memórias do Cuor - para além da tua grande sensibilidade e cultura -, uma região da Guiné que nos fascinou a todos, e onde passámos bons e maus momentos... Por mim tens autoestrada e via verde para seguires em frente. O resto da tertúlia dirá da sua justiça e do seu agrado em relação aos teus posts. A reacção tem sido positiva, como sabes. Espero que os camaradas e amigos nos escrevam, deixando as suas críticas, aplausos e pateadas, observações, informações complementares, etc.
Deixa-me que te diga que esta estória é fantástica: refiro-me ao episódio rocambolesco que hoje contas, do 'soldado desconhecido' do Batalhão de Mansoa que foi parar ao teu prato da sopa... O tal Fernandes (se a tua memória de elefante não te atraiçoa, quase 40 anos depois) deveria ser do tempo do Paulo Raposo, que esteve cinco meses em Mansoa, com a companhia dele (CCAÇ 2405) antes de ir para o leste… Presumo que o tipo fosse do BCAÇ 1911. Será que o Paulo (ou alguém mais, da nossa tertúlia) ouviu falar desta estranha estória ? Um abração. LG
Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)(1)
A visita do soldado desconhecido
por Beja Santos
Nada previa que não fosse um fim de tarde como todos os outros. Como num ritual bem encenado, por volta das 18:30 Umaru Baldé, o segundo cozinheiro, avisava-me que todos estavam à mesa à minha espera. A essa hora, a escala de serviço estava a ser cumprida, um longo e progressivo silêncio ia tomando conta de Missirá.
Banhado e escovado, fazia a ronda pelos petromaxes, olhava para o exterior dos 5 postos de vigia como estivesse garantida uma noite de paz, e entrava num espaço que com muita imaginação se chamava a messe: uma divisão que o Teixeira das transmissões cimentou a preceito, uma mesa coberta com oleado, havia três bancos, algumas cadeiras de vime e um armário que se limpava todos os dias para remover as poeiras que queriam tomar conta de pratos, copos e talheres. É num dos cantos desta divisão que se irá instalar no próximo Natal o Presépio de Chicri.
A messe era encimada por um petromax, e aí por Outubro o Barbosa com ajuda de dois camaradas fez uma porta de mosquiteiro. Os soldados tanto do Pel Caç Nat 52 como das Milícias estavam desarranchados e comiam com as suas famílias. Mesmo com muita dificuldade, muitas vezes acocorei-me a comer em grupo a bianda e o respectivo chabéu metendo a mão na cabaça e levando à boca... era horrível em termos higiénicos mas selava solidariedade das instaladas.
Sentavam-se pois à mesa o oficial, os furrieis e as praças num total que variava entre seis e onze pessoas. Era neste espaço que de vez em quando eu convidava Lânsana Soncó, o marabu, para tomar chá e comer pão fresco feito por Jobo Baldé. Guardo uma fotografia do Jobo a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca (vd. foto acima).
Ora aquela noite foi igual a tantas outras: o inevitável bacalhau cozido para fugir às carnes horríveis que nessa altura o Doutor (2) ainda preparava na sua santa inocência (mais tarde tornou-se exigente, estou convencido que se julgava um Chef, fizemos uma grande amizade que se reforçou quando ele pelas 6h da manhã de 1 de Janeiro de 1970 enfiou acidentalmente seis tiros em Uam Sambu, quando regressávamos de uma emboscada); comentaram-se as trivialidades do dia a findar e fez-se uma conversa mole à volta das coisas a fazer no dia seguinte. Findo o repasto (a que não faltava fruta da região ou em lata) seguia-se um período de sociabilidade lúdica, onde o loto a feijões era o rei da festa.
Como se fosse hoje e neste instante, eu olho do petromax para a porta enquanto ponho o nº 6 no respectivo cartão e vejo emergir nas sombras da parada e estacar no limiar da entrada com uma expressão alucinada um ilustre militar desconhecido (e digo militar porque ele vinha fardado com o camuflado português) e gritar como se estivesse em delírio:
- Onde é que eu estou, quem são vocês, quem me dá de comer?
E, lançada esta súplica, caiu redondo no chão. Como num filme em câmara lenta, pusemo-nos de pé, voltei-me para o Saiegh e disse-lhe:
- Ou vamos ser atacados, ou este tipo é um desertor ou temos tropas nossas aqui perto com a originalidade de nos mandar com todos os riscos este informador!
Em escassos segundos, foram tomadas algumas decisões: todos os civis iriam obrigatoriamente para os abrigos, os militares para os seus postos, a segurança reforçada. O militar desconhecido, em padiola e inanimado, seguiu para um abrigo onde eu quis interrogá-lo; à cautela, o Doutor preparou uma porção de arroz e abriu uma lata de salsichas, mais cerveja e fruta. No abrigo, o militar desconhecido abriu os olhos e virou-se para o outro lado.
Julguei imprudente enviar uma mensagem para Bambadinca a informar a chegada do visitante sem saber os pormenores ou, pelo menos, conhecer-lhe a versão da visita. Só passado meia hora ele recobrou o ânimo e atirou-se sofregamente a seis pares de salsichas, ao tarro de arroz branco, bebeu dois litros de cerveja e pediu mais, satisfez-se silenciosamente com papaia. À sua volta, esperavamos pacientemente a revelação da inusitada visita. Bem comido , e quando insisti em conhecer-lhe a identidade, encostado a um cadeirão de vime ele anunciou:
- Sou o Fernandes, pertenço ao Batalhão de Mansoa (3), fui raptado há não sei quanto tempo pelos turras quando tomava banho numa bolanha, levaram-me para um quartel deles, logo que pude fugi, desatei a correr pelo mato e aqui há um bocado vi as luzes, entrei sem perguntar nada a ninguém e aqui estou. Vocês não me vão matar, pois não?
Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, esteve cinco meses em Mansoa, antes de partir para a zona leste, o sub-sector de Gamolaro. A placa indica que a distância por estrada (interdita) de Mansoa a Bafatá, passando por Missirá, era de 96 Km
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Estavamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusivé tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?
Enquanto se mantinha o dispositivo de segurança, enviei uma mensagem para Bambadinca. E como não havia mais nada de verdadeiramente útil para fazer, deixei o dito Fernandes a dormir vigiado por um militar armado. Fomos descansar, aproveitei para ler até chamar o sono, a resposta chegou via rádio ao princípio da manhã: o batalhão de Mansoa confirmava a existência do Fernandes que fora tomar banho imprevidentemente numa bolanha sozinho e que não voltara a aparecer. Bambadinca pedia a presença do Fernandes. O soldado desconhecido acordara retemperado, fez a sua higiene e perguntou como era a vida ali. A certa altura descobriu que o Veloso era um quase patrício. E depois do mata-bicho até me perguntou candidamente:
- Ó meu alferes, isto até parece malta porreira, acha que eu posso pedir transferência para aqui?
E rumámos para Finete, contei ao Basilo e Bacari Soncó esta história, Finete em peso veio conhecer o ressuscitado. O mesmo se iria passa em Bambadinca onde o militar desconhecido conversou amenamente com meio mundo. Na tarde desse mesmo dia, confirmados todos os pormenores desta súbita aparição em Missirá, uma DO levou o Fernandes para Mansoa. Como é próprio destas coisas, o episódio foi esquecido embora deva constar de algum relato. Espero que o Fernandes esteja bem e, caso alguém o conheça, venha aderir ao nosso blogue.
Embora corra o risco de tornar este relato sofisticado e ainda mais surreal, guardei recordação do livro que estava então a ler. Assim como irei escrever que a 6 de Setembro de 1968 quando Missirá foi flagelada eu estava a ler As Sandálias do Pescador, de Morris West, peço que acreditem que quinze dias antes quando o Fernandes dormia a sono solto em Missirá eu relia um dos livros da minha vida: Poirot desvenda o passado, de Agatha Christie (vd. foto da capa, acima).
Foi o livro que me fez ganhar gosto pela intriga policial. Sabiamente construido numa trama clássica de investigação, relata uma reposição da verdade a partir de uma cliente que pede ao célebre detective belga que investigue o envenenamento e a morte do seu pai 15 anos antes. A sua mãe fora julgada e condenada por homicídio. Antes de morrer na prisão escrevera à filha confessando-lhe a sua total inocência. Poirot vai falar em primeiro lugar com os protagonistas da defesa e da acusação, depois com a polícia, depois com a família e os amigos, todos aqueles que viveram um episódio dramático. Como era habitual na estrutura novelística de Agatha Christie, a revelação final pesa no esplendor da sua descodificação, esmagando-nos com a revelação do assassino. E, claro está, Poirot brilha ao desmontar os factos completamente omitidos no processo judicial.
Muito mais tarde, em Lisboa, comprei um reedição deste nº 1 da Colecção Vampiro. Guardo como relíquia mas também por outra razão: a capa é deslumbrante. Um grande artista surrealista, Cândido da Costa Pinto, trabalhava para Livros do Brasil e para quem duvida da grande importância das artes gráficas e da importância do design na apresentação de uma obra, peço que vejam ao pormenor os primeiros cem livros da Vampiro. Felizmente que já se prestou a devida homenagem ao talento do Cândido, naquelas noites de Missirá ele foi um bom companheiro e contribuiu para intensificar o prazer que tenho no design gráfico.
Aproveitei aquela coluna inesperada a Bambadinca para trazer materiais de construção para melhorar a segurança do quartel de Finete. E decidi passar uma semana nesta povoação onde à noite via o bruxelear das luzes de Bambadinca e ouvia os ruídos do Geba. Foi nessa altura que nasceu a minha profunda amizade por Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Eu vou contar.
______
Notas de L.G.
(1) Vd. último post, de 8 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt
(2) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P0157: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá
(...) "O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso" (...).
(3) Possivelmente o BCAÇ 1911, que estava sedeado em Mansoa em meados de 1968 quando a CCAÇ 2405 (do BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca) e o Paulo Raposo lá estiveram: vd. posts do Paulo Raposo
7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa~
8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo
11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste
Capa do livro Agatha Christie, Poirot desvenda o passado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 1). tr. do inglês, Five Little Pigs). Ilustração de inspiração surrealista do artista Cândido Costa Pinto.
Texto e fotos: © Beja Santos (2006)
Mensagem do Beja Santos, com data de 1 de Setembro de 2006:
Caro Luís, segue mais colaboração e por muito que te surpreendas o que aqui se relata no essencial aconteceu. Espero que tenhas tido umas belissimas férias. Como se aproxima o ano lectivo decidi ir gozar uma última semana no meu casebre no concelho de Pedrogão Grande. Lá estarei até 11 de Setembro, depois de fazer os últimos exame na tarde de 4.
Atendendo a que estou a desenhar um rol de memórias que poderá ter uma extensão apreciável, tendo em conta tudo aquilo que li dos depoimentos dos nossos camaradas em que nada se aproxima deste projecto de longo fôlego, para evitar susceptilidades ou mal entendidos quanto à natureza deste cometimento, talvez valha a pena eu dispor da tua opinião sincera da melhor estrutura e uso no espaço e no tempo dentro do blogue. Quando tu quiseres, a partir de 12 de Setembro, conversamos à mesa ou por telefone.
Um abraço do Mário.
Comentário de L.G.:
Obrigado, Mário, por quereres e poderes partilhar connosco as tuas memórias do Cuor - para além da tua grande sensibilidade e cultura -, uma região da Guiné que nos fascinou a todos, e onde passámos bons e maus momentos... Por mim tens autoestrada e via verde para seguires em frente. O resto da tertúlia dirá da sua justiça e do seu agrado em relação aos teus posts. A reacção tem sido positiva, como sabes. Espero que os camaradas e amigos nos escrevam, deixando as suas críticas, aplausos e pateadas, observações, informações complementares, etc.
Deixa-me que te diga que esta estória é fantástica: refiro-me ao episódio rocambolesco que hoje contas, do 'soldado desconhecido' do Batalhão de Mansoa que foi parar ao teu prato da sopa... O tal Fernandes (se a tua memória de elefante não te atraiçoa, quase 40 anos depois) deveria ser do tempo do Paulo Raposo, que esteve cinco meses em Mansoa, com a companhia dele (CCAÇ 2405) antes de ir para o leste… Presumo que o tipo fosse do BCAÇ 1911. Será que o Paulo (ou alguém mais, da nossa tertúlia) ouviu falar desta estranha estória ? Um abração. LG
Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)(1)
A visita do soldado desconhecido
por Beja Santos
Nada previa que não fosse um fim de tarde como todos os outros. Como num ritual bem encenado, por volta das 18:30 Umaru Baldé, o segundo cozinheiro, avisava-me que todos estavam à mesa à minha espera. A essa hora, a escala de serviço estava a ser cumprida, um longo e progressivo silêncio ia tomando conta de Missirá.
Banhado e escovado, fazia a ronda pelos petromaxes, olhava para o exterior dos 5 postos de vigia como estivesse garantida uma noite de paz, e entrava num espaço que com muita imaginação se chamava a messe: uma divisão que o Teixeira das transmissões cimentou a preceito, uma mesa coberta com oleado, havia três bancos, algumas cadeiras de vime e um armário que se limpava todos os dias para remover as poeiras que queriam tomar conta de pratos, copos e talheres. É num dos cantos desta divisão que se irá instalar no próximo Natal o Presépio de Chicri.
A messe era encimada por um petromax, e aí por Outubro o Barbosa com ajuda de dois camaradas fez uma porta de mosquiteiro. Os soldados tanto do Pel Caç Nat 52 como das Milícias estavam desarranchados e comiam com as suas famílias. Mesmo com muita dificuldade, muitas vezes acocorei-me a comer em grupo a bianda e o respectivo chabéu metendo a mão na cabaça e levando à boca... era horrível em termos higiénicos mas selava solidariedade das instaladas.
Sentavam-se pois à mesa o oficial, os furrieis e as praças num total que variava entre seis e onze pessoas. Era neste espaço que de vez em quando eu convidava Lânsana Soncó, o marabu, para tomar chá e comer pão fresco feito por Jobo Baldé. Guardo uma fotografia do Jobo a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca (vd. foto acima).
Ora aquela noite foi igual a tantas outras: o inevitável bacalhau cozido para fugir às carnes horríveis que nessa altura o Doutor (2) ainda preparava na sua santa inocência (mais tarde tornou-se exigente, estou convencido que se julgava um Chef, fizemos uma grande amizade que se reforçou quando ele pelas 6h da manhã de 1 de Janeiro de 1970 enfiou acidentalmente seis tiros em Uam Sambu, quando regressávamos de uma emboscada); comentaram-se as trivialidades do dia a findar e fez-se uma conversa mole à volta das coisas a fazer no dia seguinte. Findo o repasto (a que não faltava fruta da região ou em lata) seguia-se um período de sociabilidade lúdica, onde o loto a feijões era o rei da festa.
Como se fosse hoje e neste instante, eu olho do petromax para a porta enquanto ponho o nº 6 no respectivo cartão e vejo emergir nas sombras da parada e estacar no limiar da entrada com uma expressão alucinada um ilustre militar desconhecido (e digo militar porque ele vinha fardado com o camuflado português) e gritar como se estivesse em delírio:
- Onde é que eu estou, quem são vocês, quem me dá de comer?
E, lançada esta súplica, caiu redondo no chão. Como num filme em câmara lenta, pusemo-nos de pé, voltei-me para o Saiegh e disse-lhe:
- Ou vamos ser atacados, ou este tipo é um desertor ou temos tropas nossas aqui perto com a originalidade de nos mandar com todos os riscos este informador!
Em escassos segundos, foram tomadas algumas decisões: todos os civis iriam obrigatoriamente para os abrigos, os militares para os seus postos, a segurança reforçada. O militar desconhecido, em padiola e inanimado, seguiu para um abrigo onde eu quis interrogá-lo; à cautela, o Doutor preparou uma porção de arroz e abriu uma lata de salsichas, mais cerveja e fruta. No abrigo, o militar desconhecido abriu os olhos e virou-se para o outro lado.
Julguei imprudente enviar uma mensagem para Bambadinca a informar a chegada do visitante sem saber os pormenores ou, pelo menos, conhecer-lhe a versão da visita. Só passado meia hora ele recobrou o ânimo e atirou-se sofregamente a seis pares de salsichas, ao tarro de arroz branco, bebeu dois litros de cerveja e pediu mais, satisfez-se silenciosamente com papaia. À sua volta, esperavamos pacientemente a revelação da inusitada visita. Bem comido , e quando insisti em conhecer-lhe a identidade, encostado a um cadeirão de vime ele anunciou:
- Sou o Fernandes, pertenço ao Batalhão de Mansoa (3), fui raptado há não sei quanto tempo pelos turras quando tomava banho numa bolanha, levaram-me para um quartel deles, logo que pude fugi, desatei a correr pelo mato e aqui há um bocado vi as luzes, entrei sem perguntar nada a ninguém e aqui estou. Vocês não me vão matar, pois não?
Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, esteve cinco meses em Mansoa, antes de partir para a zona leste, o sub-sector de Gamolaro. A placa indica que a distância por estrada (interdita) de Mansoa a Bafatá, passando por Missirá, era de 96 Km
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Estavamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusivé tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?
Enquanto se mantinha o dispositivo de segurança, enviei uma mensagem para Bambadinca. E como não havia mais nada de verdadeiramente útil para fazer, deixei o dito Fernandes a dormir vigiado por um militar armado. Fomos descansar, aproveitei para ler até chamar o sono, a resposta chegou via rádio ao princípio da manhã: o batalhão de Mansoa confirmava a existência do Fernandes que fora tomar banho imprevidentemente numa bolanha sozinho e que não voltara a aparecer. Bambadinca pedia a presença do Fernandes. O soldado desconhecido acordara retemperado, fez a sua higiene e perguntou como era a vida ali. A certa altura descobriu que o Veloso era um quase patrício. E depois do mata-bicho até me perguntou candidamente:
- Ó meu alferes, isto até parece malta porreira, acha que eu posso pedir transferência para aqui?
E rumámos para Finete, contei ao Basilo e Bacari Soncó esta história, Finete em peso veio conhecer o ressuscitado. O mesmo se iria passa em Bambadinca onde o militar desconhecido conversou amenamente com meio mundo. Na tarde desse mesmo dia, confirmados todos os pormenores desta súbita aparição em Missirá, uma DO levou o Fernandes para Mansoa. Como é próprio destas coisas, o episódio foi esquecido embora deva constar de algum relato. Espero que o Fernandes esteja bem e, caso alguém o conheça, venha aderir ao nosso blogue.
Embora corra o risco de tornar este relato sofisticado e ainda mais surreal, guardei recordação do livro que estava então a ler. Assim como irei escrever que a 6 de Setembro de 1968 quando Missirá foi flagelada eu estava a ler As Sandálias do Pescador, de Morris West, peço que acreditem que quinze dias antes quando o Fernandes dormia a sono solto em Missirá eu relia um dos livros da minha vida: Poirot desvenda o passado, de Agatha Christie (vd. foto da capa, acima).
Foi o livro que me fez ganhar gosto pela intriga policial. Sabiamente construido numa trama clássica de investigação, relata uma reposição da verdade a partir de uma cliente que pede ao célebre detective belga que investigue o envenenamento e a morte do seu pai 15 anos antes. A sua mãe fora julgada e condenada por homicídio. Antes de morrer na prisão escrevera à filha confessando-lhe a sua total inocência. Poirot vai falar em primeiro lugar com os protagonistas da defesa e da acusação, depois com a polícia, depois com a família e os amigos, todos aqueles que viveram um episódio dramático. Como era habitual na estrutura novelística de Agatha Christie, a revelação final pesa no esplendor da sua descodificação, esmagando-nos com a revelação do assassino. E, claro está, Poirot brilha ao desmontar os factos completamente omitidos no processo judicial.
Muito mais tarde, em Lisboa, comprei um reedição deste nº 1 da Colecção Vampiro. Guardo como relíquia mas também por outra razão: a capa é deslumbrante. Um grande artista surrealista, Cândido da Costa Pinto, trabalhava para Livros do Brasil e para quem duvida da grande importância das artes gráficas e da importância do design na apresentação de uma obra, peço que vejam ao pormenor os primeiros cem livros da Vampiro. Felizmente que já se prestou a devida homenagem ao talento do Cândido, naquelas noites de Missirá ele foi um bom companheiro e contribuiu para intensificar o prazer que tenho no design gráfico.
Aproveitei aquela coluna inesperada a Bambadinca para trazer materiais de construção para melhorar a segurança do quartel de Finete. E decidi passar uma semana nesta povoação onde à noite via o bruxelear das luzes de Bambadinca e ouvia os ruídos do Geba. Foi nessa altura que nasceu a minha profunda amizade por Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Eu vou contar.
______
Notas de L.G.
(1) Vd. último post, de 8 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt
(2) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P0157: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá
(...) "O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso" (...).
(3) Possivelmente o BCAÇ 1911, que estava sedeado em Mansoa em meados de 1968 quando a CCAÇ 2405 (do BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca) e o Paulo Raposo lá estiveram: vd. posts do Paulo Raposo
7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa~
8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo
11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste
quarta-feira, 13 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?
Foto: © Paulo Salgado (2006)
Foto: © Paulo Salgado (2006)
Texto de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Cav, CCAV 2712, Olossato e Nhacra, 1970/72; administrador hospitalar, actualmente cooperante em Bissau)
Meu Caro Luís Graça, Amigos (Camarigos):
Insatisfação ou discordância com a Tertúlia? Muitas vezes terá acontecido de tudo um pouco - não nego. Produziu-se tanto trabalho com nível que não me deixou indiferente e muito menos insatisfeito. Discordante, muitas vezes, e disso dei conta há meses atrás...
Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:
- Por que razão não bombolaste? (1)
E eu:
- Consolei-me com as discussões à volta dos temas mais preferidos dos camaradas tertulianos:a guerra - certamente aquilo que mais sentem hoje, e ainda, na carne e na alma (2)...
Li as prosas do Marques Lopes, as críticas do Didinho (outsider muito crítico). Maravilhei-me com as palavras saborosas e sentidas do Beja Santos (que revi, em Bissau, aqui em 1991), andava ele preocupado com a limpeza e higiene dos alimentos .
Um dia entrou-me no gabinete:
- Você é que é o Paulo Salgado?
E depois fomos visitar o Coronel Jaquité... Lembras-te, Beja Santos, e do pôr-do-sol no Cumeré, depois da visitação e reencontro com esse inimigo amigo?
Pois é:
Já correm de novo as águas violentas no Saltinho;
Já ardeu a casa do Pansau em Uaque (ele, coitado, fugiu para Cabo Verde à procura de melhores dias - oxalá que não se tenha metido nos barcos para as Canárias...) (3);
Já andam a transplantar o arroz de novo;
Os putos brincam com carrinhos de papelão nos regatos das chuvas
e as bajudas lavam os corpos debaixo da chuva abençoada;
e o povo sempre com esperança...
As ONG proliferam (algumas têm valor, claro, outras, nem tanto...valha-me Deus, um qualquer)
e o Banco Mundial aperta. É a roda que roda...
Trabalho?
Sim, imenso.
Naquele perímetro hospitalar, nada de novo, infelizmente para mim, infelizmente - sobretudo - para os doentes;
E a cooperação é feita aos repelões...
Desculpa não falar da guerra,
das emboscadas que nos fizeram,
do Sebastião que morreu sem saber que estava numa guerra...
Do Horácio: - Meu alferes, eu tenho que apanhar uma hepatite para ser evacuado...
Desculpa, Luís.
Mas sabes:
Este ano ainda não chegou a cólera;
Valha-me Deus, é melhor nem pensar, pois aquele hospital está tão carenciado...
Já temos o que chegue e o que não chega:
- Olha, olhai: uma vez fizemos um golpe de mão e fomos deslocados para o objectivo em heli.
Sabes o que vimos? Tabancas ardidas pelos Fiats (não era assim que se chamavam os caças?) Velhas e velhos esbaforidos. E putos assustados. E encontrámos papéis espalhados no caminho: Soldados, desertai, esta guerra não serve ninguém... Bom, não me lembro se eram estas as palavras, mas os panfletos continuam numa gaveta em casa.
As cartas de amor/carinho/paixão/ - miudinhas, às vezes com minudências nuas cruas suaves - mas tão curiosas - do Lobo Antunes (4)- deixaram-me a pensar e a reflectir na grandeza e na pequenez que nós somos (quando a minha mulher mas lê ao fim destas tardes chuvosas de Agosto e Setembro - eu tinha-as trazido porque era do LA que se tratava).
- Ainda bem, dirás tu, com a tua benevolência. Ainda bem que somos grandes e pequeninos.
Esteve cá um parasitologista do INSA - Porto (5). Ficou admirado. Cientificamente, claro. O caso não era para menos:
- Há tantos parasitas.
E eu disse-lhe:
- Venha passar aqui uns mesitos e vai ver as troponossomíases, as bilharzioses, as filiarises (não sei se se escrevem assim estas doenças) e outras...
Sabes, Luís, anda aqui tanta gente: franceses, suecos, espanhóis, americanos, senegaleses, que sei eu? Até aconteceu a reunião da CPLP. E eu sem dar notícias...O bombolom não ecoou...
Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar?
Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?).
Se calhar foi porque me chegou às mãos Para Quando África, entrevista de René Holenstein a Joseph Ki-Zerbo, edição do Campo das Letras (Porto, 2006, c. € 14). Polémico, é certamente. Mas muito profundo.
Mantenhas pa tudus
Paulo Salgado
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. o último 'bombolom' do Paulo Salgado, com data de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato
(2) Julgo que o último post assinado pelo Paulo Salgado foi de 3 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: Do Porto a Bissau (13): Notícias do Paulo Salgado Insatisfação ou discordância com a Tertúlia? Muitas vezes terá acontecido de tudo um pouco - não nego. Produziu-se tanto trabalho com nível que não me deixou indiferente e muito menos insatisfeito. Discordante, muitas vezes, e disso dei conta há meses atrás...
Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:
- Por que razão não bombolaste? (1)
E eu:
- Consolei-me com as discussões à volta dos temas mais preferidos dos camaradas tertulianos:a guerra - certamente aquilo que mais sentem hoje, e ainda, na carne e na alma (2)...
Li as prosas do Marques Lopes, as críticas do Didinho (outsider muito crítico). Maravilhei-me com as palavras saborosas e sentidas do Beja Santos (que revi, em Bissau, aqui em 1991), andava ele preocupado com a limpeza e higiene dos alimentos .
Um dia entrou-me no gabinete:
- Você é que é o Paulo Salgado?
E depois fomos visitar o Coronel Jaquité... Lembras-te, Beja Santos, e do pôr-do-sol no Cumeré, depois da visitação e reencontro com esse inimigo amigo?
Pois é:
Já correm de novo as águas violentas no Saltinho;
Já ardeu a casa do Pansau em Uaque (ele, coitado, fugiu para Cabo Verde à procura de melhores dias - oxalá que não se tenha metido nos barcos para as Canárias...) (3);
Já andam a transplantar o arroz de novo;
Os putos brincam com carrinhos de papelão nos regatos das chuvas
e as bajudas lavam os corpos debaixo da chuva abençoada;
e o povo sempre com esperança...
As ONG proliferam (algumas têm valor, claro, outras, nem tanto...valha-me Deus, um qualquer)
e o Banco Mundial aperta. É a roda que roda...
Trabalho?
Sim, imenso.
Naquele perímetro hospitalar, nada de novo, infelizmente para mim, infelizmente - sobretudo - para os doentes;
E a cooperação é feita aos repelões...
Desculpa não falar da guerra,
das emboscadas que nos fizeram,
do Sebastião que morreu sem saber que estava numa guerra...
Do Horácio: - Meu alferes, eu tenho que apanhar uma hepatite para ser evacuado...
Desculpa, Luís.
Mas sabes:
Este ano ainda não chegou a cólera;
Valha-me Deus, é melhor nem pensar, pois aquele hospital está tão carenciado...
Já temos o que chegue e o que não chega:
- Olha, olhai: uma vez fizemos um golpe de mão e fomos deslocados para o objectivo em heli.
Sabes o que vimos? Tabancas ardidas pelos Fiats (não era assim que se chamavam os caças?) Velhas e velhos esbaforidos. E putos assustados. E encontrámos papéis espalhados no caminho: Soldados, desertai, esta guerra não serve ninguém... Bom, não me lembro se eram estas as palavras, mas os panfletos continuam numa gaveta em casa.
As cartas de amor/carinho/paixão/ - miudinhas, às vezes com minudências nuas cruas suaves - mas tão curiosas - do Lobo Antunes (4)- deixaram-me a pensar e a reflectir na grandeza e na pequenez que nós somos (quando a minha mulher mas lê ao fim destas tardes chuvosas de Agosto e Setembro - eu tinha-as trazido porque era do LA que se tratava).
- Ainda bem, dirás tu, com a tua benevolência. Ainda bem que somos grandes e pequeninos.
Esteve cá um parasitologista do INSA - Porto (5). Ficou admirado. Cientificamente, claro. O caso não era para menos:
- Há tantos parasitas.
E eu disse-lhe:
- Venha passar aqui uns mesitos e vai ver as troponossomíases, as bilharzioses, as filiarises (não sei se se escrevem assim estas doenças) e outras...
Sabes, Luís, anda aqui tanta gente: franceses, suecos, espanhóis, americanos, senegaleses, que sei eu? Até aconteceu a reunião da CPLP. E eu sem dar notícias...O bombolom não ecoou...
Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar?
Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?).
Se calhar foi porque me chegou às mãos Para Quando África, entrevista de René Holenstein a Joseph Ki-Zerbo, edição do Campo das Letras (Porto, 2006, c. € 14). Polémico, é certamente. Mas muito profundo.
Mantenhas pa tudus
Paulo Salgado
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. o último 'bombolom' do Paulo Salgado, com data de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato
(3) Vd. post de 30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXV: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (10): ontem e hoje em Uaque
(...) Hoje, ao fim de tarde, no troço desta picada faz-se tarde e todos sabem que a noite está aí, negra: o rapazio, ao som dos últimos assobios em toscos mas belos instrumentos de lama fabricados, empurra as vacas para o redil junto das tabancas, as mulheres recolhem as crianças e as galinhas, o Pansau acaba de entaipar as entradas da casa que planificou e construiu (tenho o filme de meses de trabalho) para evitar a devassa enquanto não tiver o telhado feito de cibes, e o capim respectivo, uma mulher puxa o último balde do fundo do poço para prevenir uma noite longa, o Martinho já passou por mim há uns minutos com meia dúzia de peixes que apanhou na armadilha de um riacho que enche na maré cheia, uma mulher nova com os filhos às costas troca um chau comigo e logo dois meninos: chau" (...).
(4) Referência ao último livro de António Lobo Antunes > D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra. Organização e prefácio Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2005.
(5) Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge
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