IN MEMORIAM
António Lúcio Coutinho Vieira (1943-2020)
ex-Fur Mil Cav da CCAV 788/BCAV 790
1. Em mensagem de hoje, 5 de Junho de 2020, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), traz-nos a triste notícia do falecimento do António Lúcio Vieira, membro da Tabanca Grande desde 2 de Agosto de 2019. [Tem oito referências no nosso blogue.]
Faleceu ontem, 04 de Junho de 2020, o nosso Camarigo e Grã-Tabanqueiro António Lúcio Coutinho Vieira.
Foi para mim um dia muito difícil e não tive condições para alinhavar umas palavras em sua homenagem. Tenho imensos trabalhos que ele ao longo dos anos foi partilhando comigo, sendo que muitos deles são inéditos e nunca publicados. Apesar do dia ser triste, até porque não se sabe ainda quando é o funeral e em que condições, vasculhando os seus trabalhos, encontrei o único que ele escreveu sobre a Guiné, mas em conto que um dia terá compilado para aliviar os fígados e as preocupações da vida de um combatente.
É um conto, anedótico, mas é interessante até porque revela mais uma vez a sua forma correcta de escrever bem.
Se o Miguel ou o Carlos Vinhal, ou os dois, entenderem por bem publicar este conto em homenagem à memória do nosso amigo, acho que fazem uma boa acção. Se entenderem de outra forma, também compreenderei. Mas se assim for, envio, em alternativa, um poema sobre a sua, e minha, terra Alcanena.
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António Lúcio Vieira, síntese curricular, por Américo Brito
António Lúcio Coutinho Vieira
Poeta, Dramaturgo, Encenador, Investigador e Jornalista
Após os estudos académicos concluiu, anos mais tarde, um curso intensivo no Centro de Estudos Psicotécnicos, em Lisboa e, posteriormente, um outro de Relações Públicas.
Foi responsável, ao longo de treze anos, pelo departamento de Comunicação e Relações Públicas do CEP 4 ( ex-Rodoviária Nacional ).
Em paralelo com as funções profissionais, das quais nunca se afastou, desenvolveu, ao longo dos anos, uma vasta actividade, nas áreas da cultura e da comunicação, principalmente nos sectores do Teatro, do Jornalismo, do Audiovisual e da Rádio.
Ocupou o cargo de Vice-Presidente do Cineclube de Torres Novas, o de director-encenador no Centro de Juventude e, posteriormente, na Casa de Cultura da cidade, ambos na área do Teatro.
Fundou e dirigiu o Grupo de Jograis da USTN, o Grupo Cénico Claras, o TET-Teatro Experimental Torrejano e o Teatro Estúdio, nos quais, ao longo de vários anos, encenou textos de autores portugueses e estrangeiros, em cuja lista se incluem, para além do próprio autor, entre outros os nomes de Gil Vicente, Miguel Torga, Luís-Francisco Rebello, Carlos Selvagem, Jaime Salazar Sampaio, Luís de Sttau-Monteiro, Sófocles, Molière, Marivaux.
Das várias montagens que assinou, algumas em obras de sua autoria, destacam-se a estreia universal da farsa de Jerónimo Ribeiro, Auto do Físico (Séc. XVI), uma arrojada versão da Antígona, de Sófocles e a célebre farsa de Luís de Sttau Monteiro, "A Guerra Santa", que haveria de marcar politicamente, em Portugal, o Verão de 1977 e a farsa trágica, "Dulcinea ou a Última Aventura de D. Quixote", de Carlos Selvagem.
Adaptou obras teatrais, clássicas e contemporâneas e é autor de vários originais de teatro, alguns para o público infanto-juvenil.
Iniciou, na SPA-Sociedade Portuguesa de Autores, as 1ªs. Jornadas de Interpretação Teatral, onde pontuaram actores como Rogério Paulo e Canto e Castro, entre outros. A sua peça "Aldeiabrava" – 2.º lugar "exaequo", no concurso nacional promovido pela ATADT ( 1967 ) - viria a ser escolhida pela SPA, para representar o teatro português, numa mostra de livros portugueses em Moscovo.
Ao longo dos anos, vários títulos haviam de integrar a lista de obras dramatúrgicas do autor: "A Flor Mágica do Sábio Constelação" e "A Ilha das Maravilhas" – ambas destinadas ao público infanto-juvenil -, "O Vértice", "Aldeiabrava" (com prefácio de Luíz-Francisco Rebello). Ou a "Odisseia", "A 7.ª Guerra Mundial", "SOS - Sistema Optimizado de Saúde", ou o monólogo "Eu, Sofredor me Confesso", são alguns desses títulos.
Destinado a estudantes do ensino secundário surgiu, recentemente, uma colectânea de curtas peças, sob o título genérico de “Pequeno Teatro Académico”.
No prefácio à sua peça "Aldeiabrava", o então presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, teatrólogo e dramaturgo, Luiz-Francisco Rebello, amigo pessoal do autor, compara essa sua obra, nos aspectos temático e de conteúdo, a "O Exército na Cidade", de Jules Romains, a "Numancia", de Cervantes e a "Fuenteovejuna", de Lope de Vega.
É autor de vasto número de letras de canções e fados, principalmente de parceria com Paco Bandeira e com o maestro António Gavino e de vários temas da banda sonora da telenovela "Filhos do Vento" (RTP-1997). Para além de Paco Bandeira, gravaram igualmente os seus poemas, António Mourão, Vasco Rafael, Margarida Bessa, Maria Amélia Proença, os solistas das Orquestras Típicas, Scalabitana e de Rio Maior, entre outros.
No prefácio que dedicou ao seu livro de poemas "Re Cantos", outro velho amigo do autor, Pedro Barroso, deixa escrito que, lendo-se a sua poesia “sentimos o fulgor de uma enorme explosão de beleza pessoal; passa por ali o génio dos grandes” (...) “este livro fica aí para ler-se toda a vida como consultor e conselheiro. Como terapeuta das horas e breviário dos sentidos (...)”.
Já o Prof. António Matias Coelho, presidente da Associação Casa-Memória de Camões, em Constância e membro do júri que elegeria como vencedora a obra “25 Poemas de Dores e Amores”, diria a propósito deste seu último livro: “(…) Senti que lia um grande poeta. Esta é da melhor poesia que já li (…)”
Foi redactor principal no semanário "O Almonda", publicou reportagens na revista "Domingo Magazine", do diário "Correio da Manhã" e colaborou, ao longo dos anos, com vários jornais regionais.
É autor do script e da realização de curtas-metragens de cinema de ficção para a Equipa Fotograma e de vários documentários em vídeo. Foi director de estação e director de programas, em diversas estações regionais de rádio.
Vencedor de alguns festivais de canção de âmbito regional, obteve o 2.º lugar no Festival Nacional da Canção de Leiria ( 1987 ), possui prémios de rádio (programa Auditório – RCL ) e de teatro: "Aldeiabrava" viria a obter o 2.º lugar, "ex-aequo", no Concurso Nacional da ATADT (Portugal) vencendo o Festival de Teatro Português de Toronto (Canadá) em 1990.
António Lúcio Vieira foi distinguido, em 1997, com os diplomas de Mérito e de Louvor, pela Casa do Ribatejo, em Lisboa.
Em 2015 o Município de Alcanena atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Cultural.
É Prémio de Poesia “Médio Tejo Edições” ( 2017) para “25 Poemas de Dores e Amores”.
É membro da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores.
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SUBMARINO À VISTA
Por António Lúcio Vieira
Esta é uma estória realmente surreal. Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias. Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência, aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela.
Chega.
Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960.
Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos.
Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da Marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água. Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço. Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária.
Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores-bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário. Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar. Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede, habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento.
De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre, do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda. Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa. E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos. Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser - quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante. Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira. Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia. No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial.
Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente. Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso. Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta. Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito.
E tudo ali então se precipitou. De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!” Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra.
Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”. Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros. “Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação. “Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia.
O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante. Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte. Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito. O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do Palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando Chefe de Estado, uma qualquer Comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos. Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar. Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, por ventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia! Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações. “Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo.
Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio. À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?” Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira. “Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã. E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”. Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações. Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar. Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial. Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano. As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio.
As honrarias, as comendas, os jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome. Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné. Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, com os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida. Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias.
No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada. O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…” Perdão; tecia.
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Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar.
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20879: In Memoriam (364): Dos sete militares chacinados pelo PAIGC no “Chão Manjaco”, mártires da sua fé na autodeterminação e na consagração do direito do Povo da Guiné- Bissau ao poder (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)