1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro 2019:
Queridos amigos,
Devemos ao Coronel Fernando Policarpo a única obra divulgativa sobre a Guerra da Guiné. A estrutura da súmula é escorreita, mas hoje é duvidoso que as grandes linhas que ele enuncia tenham a consistência que manda o rigor histórico.
Primeiro, sabe-se hoje mais sobre os acontecimentos que antecederam o ataque ao quartel de Tite, em 20 de janeiro de 1963, a subversão, mesmo na sua fase armada, já existia.
Segundo, manter uma linguagem profundamente crítica para o período da governação Schulz, e quase que abençoando toda a governação Spínola, mais do que uma deformação dos acontecimentos é não apreciar os meios de que um e outro dispuseram e muito menos ter em conta a gradual qualidade de armamento do PAIGC. Oxalá o Coronel Fernando Policarpo reveja o seu livro, é indispensável que os leigos disponham de uma obra clara e sintética à mão, coisa que hoje as livrarias não dispõem para oferecer.
Um abraço do
Mário
As duas edições da Guerra da Guiné pelo Coronel Fernando Policarpo
Beja Santos
A 1.ª edição da "Guerra da Guiné", da autoria do Coronel Fernando Policarpo é de 2006, Quidnovi, faz-se igualmente menção à Academia Portuguesa de História.
É uma obra com bom grafismo, ilustrações a propósito, elaborada para grande divulgação, contempla dados essenciais e em extratexto apresenta referências a personalidades que têm a ver com a História da Guiné como Honório Barreto ou Teixeira Pinto, Marcello Caetano e Spínola, Alpoim Calvão e Marcelino da Mata, Raúl Folques e Carlos de Azeredo, Carlos Fabião, há menções à Casa Gouveia, ao Massacre do Pidjiquiti, a Amílcar Cabral, Luís Cabral, Nino Vieira, Rafael Barbosa, a Guiné como berço do MFA.
Fernando Policarpo, atendendo à natureza do projeto divulgativo, soube atender ao essencial: Conferência de Berlim, a partilha de África e os desafios postos ao Governo Português; a ascensão dos nacionalismos africanos e o papel da ONU ao longo de todo este grande combate político; o essencial da História da Guiné, as caraterísticas físicas do território, a sua economia, as suas etnias; a fundação do MFA e o percurso de Amílcar Cabral, organização das forças de guerrilha; o autor estabelece duas fases para o conflito: de 1963 a 1968, de 1968 a 1974, hoje sabe-se que esta arrumação é alvo de controvérsia; explica-se o elementar das manifestações da subversão, a principal implantação do PAIGC no interior do território e a resposta das Forças Armadas; a narrativa é linear se bem que por força da condensação o autor não destrinça a fase preparatória da subversão na natureza da ocupação e o arranque da beligerância, acontece que a passagem de Louro de Sousa para Arnaldo Schulz é feita e precisa de ser clarificada de acordo com os meios disponíveis e pela situação, de um modo geral obliterada, da divisão das populações e até da diáspora para os países limítrofes, redesenhou-se um território e em função dele, com população fixada ou por razões meramente de estratégia militar, criaram-se destacamentos, ao longo de todo este período como na chamada segunda fase do conflito, enquanto se manteve uma grande constância no equipamento usado pelas forças portuguesas os guerrilheiros foram gradualmente sendo dotados de melhor equipamento, tudo se ia complicando pelo poder de iniciativa das forças guerrilheiras, aos poucos, as forças fixadas no solo foram sendo obrigadas a uma rotina desgastante e a uma vigilância perpétua, o que condicionava largamente o seu poder de iniciativa.
Podem tecer-se comentários às respostas estratégicas de Louro de Sousa e Arnaldo Schulz face à pulverização das populações, ao separar das águas, mas não é correto dizer-se que os comandos militares, até 1968, cederam sempre a iniciativa aos guerrilheiros, deixando-se ir a reboque da sucessão de incursões bem sucedidas, permitindo a criação de bases avançadas permanentes, denunciando ao inimigo uma incontornável incapacidade de lidar com a nova realidade militar; a Comissão para o Estudos das Campanhas de África tornou pública em 2016 a Resenha Histórico-Militar referente aos aspetos da atividade operacional na Guiné, aí fica bem claro que houve iniciativas ofensivas, de pendor dissuasor, havia que proteger populações, itinerários, deu-se a resposta compatível com os meios, provavelmente sem o toque de asa que pode levar a guerrilha a ceder; esta contextualização só virá a ficar elucidada quando se proceder à investigação científica do que foram os quatro anos do mandato de Arnaldo Schulz.
O Coronel Fernando Policarpo enfoca a segunda fase do conflito e a orientação de Spínola, não deixa de informar que se multiplicaram os meios e os efetivos de tropas especiais e que apareceu dinheiro para aldeamentos estratégicos, alargou-se a propaganda, etc. O autor fala da procura da solução política, da operação Mar Verde, da progressiva africanização da guerra (há um grande mito sobre esta africanização, como se não viesse do passado um CIM – Centro de Instrução Militar que em Bolama fabricava unidades de caçadores nativos e milícias, procedeu-se à reciclagem da polícia administrativa, o que se seguiu foi a formação de companhias de caçadores e, separadamente, a formação de companhias de comandos e fuzileiros).
Em 1971, escreve o autor, a política de concentração da população nos aldeamentos estratégicos tinha provocado a desertificação de áreas geográficas consideráveis, mas fora do arame farpado a insegurança era total. Contudo, bem vistas as coisas, esta insegurança já vinha do passado, fora do arame farpado, regra geral, era terra de ninguém, a insegurança tocava a guerrilha e a contraguerrilha. E diz também o autor que recrudesciam as flagelações e que os militares apresentavam um elevado grau de desgaste físico e psicológico (como se no passado este quadro não fosse semelhante).
E diz igualmente o autor que, contrariamente ao desgaste e lassidão evidenciados pelas tropas portuguesas, o PAIGC demonstrava enorme pujança operacional. Fica-se sem entendimento de quais os milagres produzidos pela estratégia de Spínola. Este desentende-se com Marcello Caetano, dá-se o assassinato de Amílcar Cabral, a guerra recrudesce, entram os mísseis terra-ar em ação. E assim termina o autor:
“Não nos parece polémico concluir que no caso concreto do teatro de operações da Guiné a revolução ocorrida em Portugal, no dia 25 de Abril, foi providencial pois, tendo em conta a progressiva degradação da situação militar, era previsível o colapso do exército português num período relativamente curto, que poderia oscilar entre seis meses a um ano, dependendo essa incerteza apenas do facto do Comando-Chefe ignorar se o PAIGC iria, ou não, introduzir no teatro de operações novos sistemas de armas e meios de mobilidade que permitissem evoluir para operações do tipo convencional, como já Spínola antevira um ano antes”.
A nova edição da obra data de 2010, é também da Quidnovi e da Academia Portuguesa de História, é seguramente o mesmo texto com muito menos imagens, infelizmente a revisão deixou passar muitas gralhas, e não atualiza a bibliografia.