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terça-feira, 1 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23042: Pequeno resumo dos dois anos em que estive na guerra (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 / BCAÇ 619, Empada, 1964/66) - Parte II: 1964: O ataque ao quartel e às tabancas, na noite de 16 de julho


Joaquim Jorge, Ferrel, Peniche.
Foto: Luís Graça  (2015)




Brasão da CCAÇ 616 (Empada, 1964/66).
A divisa, em latim, "Super Omnia", quer dizer "acima de tudo".
Foto do álbum do Francisco Monteiro Galveia
(ex-1º cabo op cripto, vive em Fronteira)


CCAÇ 616 > Empada, 1964/66 > Pequeno resumo dos dois anos
em que estive na guerra (*)

por Joaquim Jorge

 
Parte II - 1964: O ataque ao quartel e às tabancas, 
na noite de 16 de julho


Estávamos há quinze dias no nosso sector de actuação,12 de Abril de 1964, quando fomos atacados pela primeira vez. O inimigo manifestou-se com tiros de pistola metralhadora, espingarda e pistola. 

No dia 20 de Abril, portanto oito dias depois, voltaram a flagelar o aquartelamento e a população, tendo sido novamente obrigados a retirar precipitadamente. 

Na noite de 30 de Maio, à qual já anteriormente me referi e descrevi, eles cercaram-nos completamente e atacaram em força e intensidade e mais uma vez conseguimos levar a melhor. Foram muito importantes para o futuro da nossa Companhia estes três primeiros êxitos. Deram-nos confiança e impusemos respeito aos nossos opositores.

Entretanto, 'Nino' Vieira, acabara de ser nomeado pelo PAIGC comandante chefe militar da região sul da Guiné dos guerrilheiros e, por informações secretas, nós sabíamos que o seu primeiro objectivo, no seu novo alto cargo, era conseguir a destruição total de Empada e da CCAÇ 616, fazendo o maior número possível de mortos e prisioneiros.

Fomos fazendo patrulhamentos diários, fomos montando emboscadas noturnas, fomo-nos preparando cuidadosamente, fomos esperando e…

Na noite de 16 para 17 de Julho de 1964, foi toda a área abrangida pelo quartel e tabancas de Empada alvo de um ataque bem urdido e em força por parte do inimigo:


Fase inicial do ataque: 

Precisamente ao soar das 22h00, foi lançado um "very-ligth"  duma posição estimada a 800 metros do quartel, na direcção leste, junto à estrada que vai para Buba e para Catió.

 Imediatamente foram ouvidas, partindo sensivelmente do mesmo local, oito detonações características de morteiro, cujas granadas, passando sobre a área do quartel e tabancas, foram explodir a cerca de 250 metros da última tabanca do lado oeste, todas perto umas das outras. 

Após essas granadas, começaram a “cantar” as metralhadoras, pistolas metralhadoras e pistolas inimigas, com uma ou outra granada de mão, fazendo um ruído ensurdecedor. Depois das referidas granadas de morteiro, este não mais se fez ouvir. Durante a primeira hora do ataque o inimigo revelou um enorme poder de fogo, que diminuiu sensivelmente nas horas seguintes até ao final do ataque.

Dispositibo e progressão do inimigo: 

O dispositivo de ataque do inimigo foi o seguinte: Cerco completo à área populacional embora tenha empregado maior número de pessoal e armas nos lados Norte e Leste. Porém também foram referenciadas pistolas metralhadoras e pistolas a sul e a oeste, denunciando a intenção inimiga de fechar todas as saídas do quartel para evitar a reacção por parte das nossas tropas e dos voluntários. Portanto, um dispositivo de cerco conjugado com ataque de forte intensidade de norte e de leste. 

O inimigo, a coberto da sua grande potência de fogo inicial, foi-se aproximando progressivamente das tabancas dos Fulas (Leste) e dos Bijagós (Nordeste). Pelas 00h00 (meia-noite), um grupo de seis inimigos tinha conseguido instalar a sua metralhadora a coberto de uma árvore (poilão) existente a cerca de 10 metros da rede de arame farpado e a 20 metros da primeira tabanca bijagó. 

Desse grupo destacaram-se dois homens que conseguiram, cortando estacas e troncos, derrubar parte do arame farpado ao mesmo tempo que, com terra, apagavam os candeeiros improvisados a petróleo que orlavam a cerca de arame farpado. E foi precisamente no momento em que esses homens, transportando a metralhadora e munições, penetraram na zona interior da tabanca dos Bijagós, que foram abatidos com uma “bazucada”, conforme descreveremos mais à frente. 

Do lado da tabanca fula, a situação, pelas 00h00 (meia-noite), era idêntica à anteriormente descrita. Uma metralhadora pesada, instalada a poucos metros da rede de arame farpado, “cantava” incessantemente. Essa metralhadora foi também calada pela nossa esquadra da “bazooka”, conforme relataremos mais à frente. 

No porto velho (Rio de Empada) atacava outra esquadra de metralhadora inimiga que foi também “calada” pela mesma nossa “bazooka” e pelos morteiros, assim como uma que se encontrava a cerca de 900 metros do quartel, junto à estrada de Buba. 

Pelas 02h00 da manhã o inimigo estava derrotado e começou a retirar-se, ouvindo-se apenas uns tiros isolados e à distância até às 03h00 da manhã, a partir do que nada mais se ouviu, a não ser os lúgubres uivos das hienas denunciando que havia mortos do lado de fora do quartel e da população.

Reacção das nossas tropas e dos voluntários:

Durante a primeira fase do ataque as nossas tropas (atiradores) pouparam inteligentemente as suas munições, tendo cumprido à letra as ordens que lhes tinham sido dadas de só fazerem tiro “ao vulto”. 

Respondemos principalmente com tiros de morteiro 60, morteiro 81 e de Lança Granadas Foguete (Bazooka) dirigidos para os locais onde se faziam ouvir as metralhadoras e os morteiros do inimigo. Com essa acção inicial conseguimos “calar” duas metralhadoras pesadas. 

Na segunda fase do ataque, que distinguirei da primeira pelo início da nossa reacção, enviámos uma esquadra de Bazooka com mais um Furriel e dois radiotelegrafistas ( 5 praças e um furriel) para a tabanca dos Bijagós donde nos tinham mandado dizer que o inimigo já se encontrava a tentar abater a rede de arame farpado. Rapidamente os 5 homens enviados se aproximaram da tabanca dos Bijagós, tendo chegado no momento preciso em que o inimigo destruía a rede e entrava na tabanca, apagando previamente a fraca luz existente no local. 

Aí juntaram-se-lhes mais dois chefes dos nossos voluntários nativos. Dando rapidamente conta da crítica situação, o furriel mandou instalar os seus homens no local mais conveniente e ordenou ao apontador da bazooka que fizesse fogo para o grupo inimigo que se encontrava apenas a cerca de 10 metros à frente. Beneficiando de uma árvore e seus ramos que se encontrava à frente entre esses homens e o grupo inimigo, o apontador e o municiador da bazooka rastejaram uns 3 ou 4 metros na direcção do inimigo, enquanto os outros nossos 5 homens os protegiam pelo fogo. 

Pondo-se rapidamente de pé, o apontador da bazooka disparou sobre o grupo inimigo que constituía uma esquadra de metralhadora pesada, matando 4 homens e capturando a metralhadora e uma pistola metralhadora, após o que veio reunir-se aos outros homens. 

Seguidamente o furriel ordenou aos seus homens que o acompanhassem à tabanca dos Fulas, no lado leste, onde se ouvia “cantar” uma metralhadora inimiga, já muito perto da rede de arame farpado. Aí chegados, o apontador da bazooka lançou mais duas granadas na direcção da metralhadora, calando-a definitivamente. Em seguida o furriel ordenou ainda aos seus homens que o acompanhassem em toda a volta do quartel e tabancas, tendo o apontador da bazooka feito fogo para vários locais suspeitos, conseguindo-se desta forma calar mais armas inimigas, com especial relevo uma metralhadora instalada no cais do porto velho, a qual também se calou definitivamente. Nesse local, ao amanhecer, foi encontrado mais um cadáver do inimigo com uma pistola que foi capturada. 

Após este raide, o inimigo começou a retirada, fazendo, no entanto, alguns tiros mais longínquos que cessaram definitivamente pelas 03h00 da manhã.

Pessoal que se distinguiu:

Toda a companhia actuou de molde a merecer elogios. Porém a acção, verdadeiramente excepcional e corajosa de um punhado de homens, transformou a situação desesperada num êxito retumbante. Foram eles:

- Furriel Miliciano Álvaro da Assunção Rodrigues Pontes   (**)

- 1º Cabo nº 2517/63 Vital Martinho (Apontador de bazooka)

- 1º Cabo nº 2514/63 Fernando das Neves Ferreira

- Soldado nº 3359/62 Eduardo Gonçalves Santos Rocha

- Soldado nº 2524/63 Luís Antunes Mendes

- Chefe Caçador Auxiliar Dauda Cassama (Beafada)

- Chefe Caçador Auxiliar Nhobo Baldé (Fula)



Guiné > Carta da província (1961) > Escala  1/500 mil  >  Pormenor: posição relativa de Empada, Bolama, Buba,  Catió e Bedanda. Bolama e Catió eram sedes de concelho ou circunscrição, as restantes localidades eram sede de posto administrativo.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

(**) Morava em Estarreja; faleceu em 9 de outubro de 2018, aos 77 anos. (Fonte: União das Freguesias de Beduído e Veiras, concelho de Estarreja)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23041: Notas de leitura (1424): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
É vasta a linhagem de grandes historiadores que se debruçaram sobre os Descobrimentos, basta pensar em Duarte Leite, Damião Peres, Fontoura da Costa, Teixeira da Mota, Vitorino de Magalhães Godinho e Luís de Albuquerque. O trabalho de cúpula deste último foi um conjunto de seus volumes intitulado "Portugal no Mundo", editado pelas Publicações Alfa poucos anos antes do seu passamento. Faz-se aqui referência ao segundo volume deste importantíssimo trabalho, pedindo a atenção do leitor para as viagens de reconhecimento de Fernão Gomes e os primeiros contactos com os povos da Guiné, historiograficamente ainda há muitos pontos em dúvida mas parece claro que depois de um período de puro assalto e captura, que acarretou uma profunda hostilidade dos autóctones, o Infante D. Henrique e os seus sucessores entenderam que a única via era a negociação com os potentados, o que aconteceu e assim se lançaram as bases da presença portuguesa na costa ocidental africana.

Um abraço do
Mário


Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (1)

Beja Santos

Em 1989, as Publicações Alfa deram à estampa o maior empreendimento editorial da responsabilidade desse grande historiador dos Descobrimentos que foi Luís de Albuquerque, falecido em 1992. Foram seis volumes que abonam a sapiência deste investigador e revelam a sua portentosa capacidade de coordenar projetos científicos de grande envergadura. É precisamente no segundo volume que Luís de Albuquerque e prestigiados colaboradores referem a contextualização histórica do primeiro período da presença portuguesa na Senegâmbia. Começa por dar especial relevo ao arrendamento do comércio da costa ocidental africana ao mercador Fernão Gomes, enquanto as viagens prosseguem para Sul. E escreve: 

“Dá-se por apurado, mas não é seguro, que entre 1462 e o contrato assinado pela Coroa com Fernão Gomes, em 1469, se suspenderam as navegações; isto é tanto mais incrível quanto é certo que então já tinham sido estabelecidos entrepostos comerciais entre a costa atlântica de África, sendo o da feitoria de Arguim um dos mais ativos”.

E, mais adiante: “Este período da colonização portuguesa inicia-se com uma decisão de certo modo estranha: o contrato que entregou o comércio da Guiné a um empresário privado, contra o pagamento de uma determinada renda anual que implicavam atividades marítimas”

E passa a descrever a narrativa das duas viagens de Cadamosto acrescida do relato de uma navegação de Pedro de Sintra, que se realizou entre novembro de 1470 e a segunda metade do ano imediato. Falecido o Infante D. Henrique, sucede-lhe o Infante D. Fernando, filho adotivo do Navegador e seu herdeiro, deu-se o achamento do grupo ocidental das ilhas cabo-verdianas. Há registo de expedições no rio Zâmbia e depois Luís de Albuquerque fala-nos de Fernão Gomes:

“Gomes não era um inexperiente no comércio com a África; na chancelaria de D. Afonso V conserva-se um documento com data de 1457 e já divulgado, em que este cavaleiro é autorizado ‘a mandar as suas mercadorias a Safim e à sua costa’. Quanto ao contrato de 1469, é desconhecido o diploma legal que lhe deu forma jurídica, mas sabe-se por João de Barros o que terá sido estipulado na sua redação inicial e por um instrumento autêntico da chancelaria de D. Afonso V as alterações, decerto vantajosas para os dois contratantes. Que motivos levariam o rei a tomar esta decisão? Não há resposta satisfatória. Esclareça-se que a medida de estabelecer uma área de costa para o comércio exclusivo dos habitantes de Cabo Verde – naturalmente, os habitantes vindos da Europa – foi tomada para incentivar o povoamento e a colonização e deve ter alcançado os resultados pretendidos. Fernão Gomes honrou os seus compromissos, e em particular quanto à cláusula que o obrigava a prosseguir os Descobrimentos"

E elenca o conjunto dessas viagens durante o reinado de D. Afonso V.

Passamos agora para o capítulo “Os primeiros contactos com os povos da Guiné”, também redigido por Luís de Albuquerque. Damos-lhe a palavra:

“Para abrir e depois incentivar as relações com os povos locais, o infante procurou por todos os meios ao seu alcance captar a boa vontade de alguns raros naturais daquelas regiões que decidiram embarcar nos navios portugueses para o visitar. A par deste procedimento, esforçou-se igualmente por motivar alguns dos que se afoitavam a fazer a viagem até à costa da atual Mauritânia. A viagem de rotina realizada por Antão Gonçalves em 1445 foi pouco rendosa em termos materiais. Gonçalves trouxe consigo para o reino um ‘mouro velho’ que manifestara grande vontade de se encontrar com o infante; satisfeito esse desejo, diz Zurara que foi devolvido à sua terra. Além disso, entre os companheiros do navegador contava-se um João Fernandes que andou sete meses pelo interior da África Ocidental, familiarizando-se com os costumes, a língua e o comércio dos seus habitantes, tendo depois regressado ao Reino, e sem dúvida com preciosas notícias. Zurara parece dar a entender que a exploração de João Fernandes foi consequência de uma decisão subitamente tomada pelo aventureiro, mas é mais de crer que ele agisse por indústria de D. Henrique ou de D. Pedro. Não obstante as informações trazidas por este homem, o comércio não recebeu de imediato qualquer impulso notável; os navios henriquinos progrediam para Sul e continuavam a trazer escravos e algumas mercadorias de menor valia (excetua-se, naturalmente, o ouro, que era obtido em pequeníssimas quantidades), mas não se lograva estabelecer entrepostos certos ou relações perenes com mercadores árabes ou azenegues”.

Diz Albuquerque não ilude o problema das fontes dos primeiros contatos dos portugueses na Guiné bem como o limite da costa que deve ser entendida por Guiné. Refere a Crónica de Zuzara, a Relação de Diogo Gomes e o Relato de Luís Cadamosto. Quanto ao entendimento do que era a Guiné, várias respostas são possíveis.

“Para Zurara, o topónimo parece abranger uma vasta área; do mesmo título do seu livro pode-se, sem forçar o seu alcance, inferir que o cronista entendia sobre essa designação toponímica tudo o que fora reconhecido no litoral africano sob a direção de D. Henrique; e como os limites das terras incluídas sob tal nome se não encerram com o falecimento do infante, teríamos assim que a Guiné se estendia desde o Cabo Bojador até ao Cabo Lopo Gonçalves, onde se pode considerar que termina o golfo do mesmo nome; a orla marítima ficaria assim definida pelos reconhecimentos feitos ao longo de quarenta anos (1434-1474), mas resta-nos ainda delimitar a zona da Guiné para o interior, tarefa que consideramos impossível, sem um estudo de fontes geográficas não portuguesas”.

Para Luís de Albuquerque não cabe o direito de restringir o topónimo Guiné ao território e à orla costeira da atual República da Guiné-Bissau e refere o importantíssimo estudo da responsabilidade de Teixeira da Mota sobre a datação do descobrimento da Guiné. O próprio Teixeira da Mota sabia que a palavra Guiné tinha um sentido muito mais vasto. Daí a importância dos trabalhos assinados por Zurara e Cadamosto para se procurar situar esta questão dos limites, Cadamosto é incontornável sobre o território percorrido e o que se pode entender como os seus limites. Trata-se de uma belíssima peça de investigação em que o autor prossegue com a Relação de Diogo Gomes, se bem que esta esteja eivada de defeitos e seja um tanto descosida. 

O historiador esforçou-se por dar ao leitor interessado uma ideia de como os primeiros contatos com os povos da Guiné se processaram, foram muitas vezes recebidos com hostilidade, houve que substituir a rapina à mão-armada e proceder à negociação com os potentados negros. E conclui dizendo que Diogo Gomes e Cadamosto terão sido os grandes diplomatas para a implantação dessa nova maneira de agir. A partir das suas viagens, a costa da Guiné ficava aberta ao comércio português, subia-se o rio Senegal até 800 quilómetros da foz, Diogo Gomes iria da boca do Gâmbia a Cantor, a 400 quilómetros de distância; antes de 1485 atingiram Tombuctu e mais tarde a região do Songo. 

“A vasta área da Guiné abria-se assim, até ao final do século XV, à colonização portuguesa, que foi eficiente durante aproximadamente um século. Depois foram a pouco e pouco chegando os concorrentes e passou-se também a um comércio indiscriminado e indisciplinado, que não olhava a meios para obter lucros”

Em próximo artigo vamos dar atenção a um trabalho de Maria Emília Madeira Santos sobre os “lançados”.

(continua)


Tombuctu
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23029: Notas de leitura (1423): “Pequenos Grandes Navios na Guiné” nos Anais do Clube Militar Naval, número de Janeiro/Março de 1998 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23040: Pequeno resumo dos dois anos em que estive na guerra (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 / BCAÇ 619, Empada, 1964/66) - Parte I: 1964: 30 de maio, um ataque de seis horas!


Foto n.º 1 > Alguns dos ainda aspirantes a oficiais milicianos, do BCAÇ 619 , poucos dias antes do embarque para a Guiné: o 1.º da esquerda, sou eu, da CCaç 617; o 6.º é o médico da CCaç 617, Folhadela de Oliveira, o 7.º é o Montes, da CCaç 618 , o 8.º (e último), é o Joaquim da Silva Jorge, da CCaç 616.



Foto n.º 2 > Guiné > Bissau > Janeiro de 1964 > Alguns oficiais milicianos do BCAÇ 619: o 2.º sou eu e o 3.º é o Joaquim Jorge, assinalado com cercadura a amarelo.

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Joaquim Jorge, Ferrel, Peniche. 
Foto: LG (2015)


1. Mensagem de Joaquim [da Silva] Jorge, régulo da Tabanca de Ferrel / Peniche, ex-alf mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66, BCAÇ 619, Catió, 1964/66), bancário reformado, ex-autarca e ativista comunitário; tem 17 referências no blogue; entrou para a Tabanca Grande em 2015:




Brasão da CCAÇ 616 (Empada, 1964/65).
A divisa, em latim, "Super Omnia", quer dizer "acima de tudo". 
Foto do álbum do  Francisco Monteiro Galveia 
(ex-1º cabo op cripto, vive em Fronteira)  (*)


CCAÇ 616 > Empada, 1964/66 > Pequeno resumo dos dois anos 
em que estive na guerra 

por Joaquim Jorge

Parte I - 1964: 30 de maio, um ataque de seis horas!


Quando chegámos ao “mato”, a Empada, para rendermos a companhia de caçadores 417 (**), encontrámos, primeiro por conversas com os camaradas que iam embora e depois pelos acontecimentos que se seguiram, encontrámos, dizia eu, uma situação deveras alarmante não só na questão operacional como também no tocante à precária condição de existência dos três mil nativos que compunham a população local. 

Não quero dizer com isto que tenha havido negligência por parte dos nossos antecessores. Eles fizeram a sua obrigação; portaram-se como todos os outros e como nós, pois não éramos diferentes, mas a guerra tinha começado ainda não havia um ano e o número de inimigos crescia. 

Foi com séria apreensão que encetámos a nossa campanha em Empada, uma pequena “vila” no sul da Guiné. Sabíamos que mais dia, menos dia teríamos de nos encontrar com os nossos inimigos ou teríamos a sua visita sempre aborrecida pelas consequências que daí advinham para o nosso reduto, o que equivale a dizer para a “tabanca” de Empada. 

E o certo é que nossa apreensão inicial não foi iludida… Estávamos lá há quinze dias quando o inimigo deu o primeiro sinal de que não queria deixar, de pé para a mão, de pensar em destroçar pessoal ou palhotas (moranças) de Empada. 

Talvez por não terem sido bem sucedidos nesta primeira incursão vissem que da maneira como tinham actuado não podiam ter o êxito desejado; então reorganizaram-se, pediram reforços a outros locais seus afectos e na noite de trinta de Maio tentaram aquilo que eles consideravam o fim de Empada. 

Nós nessa altura éramos um tanto inexperientes, “maçaricos” como se dizia na gíria militar; a maior parte dos militares da companhia ainda não tinha tido o chamado, na guerra, “baptismo de fogo” e nas primeiras horas (pois o ataque durou seis!!!),  andámos confundidos no meio de tiroteio infernal. 

Graças a Deus não houve muito perigo para nós, pois além de estarmos entrincheirados nos abrigos ao redor do quartel, o fogo inimigo passava muito alto e, além disso, tínhamos em redor das “tabancas” um grande número de voluntários nativos armados que aguentavam a pé firme os primeiros embates. 

Raiava o último dia do mês quando tudo sossegou… E até meados de Julho deixaram-nos viver com relativo sossego, sossego esse aproveitado por todos nós, (oficiais, sargentos e praças) para ajudarmos a população na reconstrução da sua vida normal, interrompida pela constante aflição e preocupação no tempo dos nossos antecessores, pois não lhes era permitido ausentarem-se da “tabanca” para procurarem os alimentos e daí pode calcular-se a miséria que grassava em Empada…

Cheguei a contar numa refeição duzentas e cinquenta crianças, todas nuas, de lata na mão, a irem ao encontro da “vianda” (comida), feita pela Companhia propositadamente para elas… Era a psico-social em funcionamento e a recuperação da confiança em todos os nativos. Escoltas para manter a segurança aos civis nativos que iam ao cajú e à manga, frutos preponderantes na sua alimentação, e autênticas rusgas a oito e nove quilómetros de Empada para colheita de cola, elemento essencial na riqueza da Guiné, foram levadas a cabo para tentarmos amenizar a fome. 

Como já atrás referi, o inimigo “deixou-nos” mais ou menos e com algum condicionalismo trabalhar nesta missão civilizadora até ao dia dezasseis de Julho, altura em que tentaram por todos os meios e em força invadir e destruir a “tabanca” e o quartel de Empada, matando a população e os militares. Eram estes os seus objectivos. 

O anterior ataque de trinta de Maio ensinou-nos muito; fizemos em conjunto uma análise a tudo o que se passou nessa noite e agora estávamos mais experientes e preparados e tínhamos tudo organizado para os “receber”. Não tiveram qualquer espécie de sorte pois viram desaparecer do rol dos vivos mais de quatro dezenas de homens, além da perda de armas e munições. Foi, diga-se, o remate psicológico nas pretensões do inimigo pois pode considerar-se que não mais tentaram penetrar em Empada. 

Não quero dizer com isto que eles deixaram de nos “visitar”. Nada disso. Simplesmente quando iam era só com intenção de flagelar, e de longe, para não sofrerem de novo os reveses sofridos na heroica (para nós) noite de dezasseis para dezassete de Julho. Até aí e sempre nunca descurámos os patrulhamentos pelas redondezas, estranhando que “eles” não se atravessassem no caminho com emboscadas ou implantações de minas traiçoeiras na terra mole dos caminhos. Também mantínhamos o cuidado constante de cortar o capim e o mato ao longo dos caminhos para dificultar ao inimigo a montagem de emboscadas. Tudo tínhamos planeado para garantir a segurança da população e a resolução do problema da sua subsistência. 

E trabalhámos arduamente para a resolução destes dois problemas. Não saía do nosso pensamento a ideia da criação e organização de uma companhia de milícias com os homens e jovens de Empada. Como comandante de Companhia expus esta ideia ao comandante de Batalhão e ao Governador e Comandante-Chefe da Guiné General Arnaldo Schultz que me apoiaram plenamente. 

Numa população de cerca de três mil pessoas conseguimos a adesão de cerca de duzentos voluntários que durante os meses de Novembro e Dezembro receberam instrução militar dada pelos oficiais e furriéis da Companhia e conseguimos organizar duas companhias: a 6.ª Companhia de Milícias comandada por Dauda Cassama e a 7.ª Companhia de Milícias comandada por Malan Sambu que seguiu para Jabadá para apoiar o Batalhão sediado em Tite. Connosco em Empada ficou a 6.ª Companhia. Os comandantes de companhia Dauda e Malan bem como os comandantes de pelotão foram promovidos a “Alferes de Segunda Linha”. 

Todos os elementos da companhia de Milícias ou “Voluntários”, como nós lhes chamávamos, passaram a receber seiscentos e setenta e cinco escudos por mês  e nos dias em que faziam patrulhamentos ou outros tipos de operações militares tinham direito a alimentação. [675$00, em dinheiro da metrópole, em 1964, equivaleria hoje a 277,92 €;  na Guiné, o escudo ou o peso, sofria ums desvalorização de 10%. LG ]

Sem dúvida que a constituição das companhias de milícias veio alterar, por completo, a vida das gentes de Empada, pois o ordenado fixo mensal veio dar possibilidades à resolução do problema há tanto tempo em causa: o problema da fome. Subiu o nível de vida do nativo, embora alguns não tenham sabido aproveitar completamente essa ascensão.

(Continua)


Guiné > Região de Quínara > Carta de Empada (1961) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Empada e, a sudeste, Ualada, onde a CCAÇ 616 tinha um pelotão destacado, (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 14 de fevereiro de  2019 > Guiné 61/74 - P19495: Consultório militar do José Martins (39): Ficha do Batalhão de Caçadores 619 (Catió, 1964/66)

(**) Vd. poste de 22 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15780: Consultório militar do José Martins (18): Forças Militares Portuguesas que passaram por Empada

Guiné 61/74 - P23039: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (12): Murcus (aquele que cortava o dedo polegar para se isentar do serviço militar) poderá estar na origem da palavra morcão


Capa do livro de Teófilo Braga (Ponta Delgada, 1843- Lisboa, 1924), "O Povo Português nos seus Costumes, Crença e Tradiçºoes", Vol I (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, Colecção "Portugal de Perto", 10) ( a edição original é de 1885) (Obra esgotada)


1. Já tínhamos (e ainda temos) a pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Vai fazer dois anos, no princípio de março, que apareceram os primeiros casos em Portugal... Provocou até há data 3,25 milhões de casos (infecções) e mais de 21 mil mortos, apesar de tudo dez vezes menos que a pandemia da "pneumónica" que matou 2% da população portuguesa em 1918/19. (Éramos então 6 milhões.)

Quase 8,9 milhões de portugueses receberam até agora a vacinção primária completa... No mundo morreram já cerca de 6 mlhões de pessoas e o número de casos aproxima-se dos 435 milhões... A Covid-19, doença respiratória cujos primeiros casos apareceram no final de 2019 na cidade chinesa de Wuhan, ainda estará longe de se tornar endémica (localizada)....

Já tínhamos a pandemia, faltava-nos agora a maldita guerra na velha Europa... e o pesadelo do terror nuclear. Portanto, o ano de 2022 vai continuar a ser um "annus horribilis"... E daí mantermos em aberto esta série dos "Usados & Achados" (*)...

2. Há dias, ao relermos o Teófilo Braga (Ponta Delgada, 1843-Lisboa, 1924), "O Povo Português nos seus Costumes, Crença e Tradições", Vol I (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, Colecção "Portugal de Perto", 10) (a edição original é de 1885), demos com um apontamento interessante sobre guerra e guerrilha, no capítulo II (Rudimentos da actividade espontânea), que inclui ainda temas como a caça, a pesca, bm como as hostiliades nacionais, locais e individuais...

Aqui vai, expurgada das referências bibliográficas, sempre pesadas, uma primeira parte do texto, sobre a "guerra defensiva" (pp. 84/85). Não fica mal em segunda feira de Carnaval, sempre de má memória para mim e os meus camaradas da CCAÇ  12.

(...) A guerra defensiva. – Um capitão do nosso exército, falando do recrutamento num jornal, confessou que a ninguém repugnava tanto o serviço militar como aos Portugueses. De facto, para não ser soldado o aldeão ainda corta os dedos da mão com o machado, para não poder puxar o gatilho da espingarda; este costume acha-se entre os Gauleses, que davam o nome de Murcus àquele que cortava o dedo polegar para se isentar do serviço militar. (...)

No Minho temos ouvido a palavra Murcão empregada como injúria à pessoa desajeitada; de facto, o murcus não podia sustentar a besta. 

Com este carácter os povos antigos da Lusitânia recorriam à guerra como defesa, dando-lhe a forma de emboscadas; a nacionalidade portuguesa, acabado o período das guerras defensivas da sua independência, acentuou-se na História pela actividade das grandes navegações.

Nenhum povo se soube defender com mais bravura do que o português, repelindo a ocupação espanhola e a invasão francesa. Diz Estrabão: «Os Lusitanos, segundo contam, são excelentes para armar emboscadas e descobrir pistas; são ágeis, rápidos, dextros. Armam-se de punhal ou grande faca; alguns servem-se de lanças com pontas de bronze ...» Eram assim os chuços na época da invasão francesa. A guerra defensiva apresenta uma forma peculiar.

A forma das batalhas por meio de guerrilhas, que tanto tem distinguido o povo espanhol e português nas lutas pela sua independência, é um costume das primitivas tribos germânicas. César nos seus Comentários diz destas escaramuças: «Género de combate no qual os Germanos alcançaram uma grande habilidade.» (...)

Por outro lado, o costume das almenaras, ou fogos de aviso, já se encontrava também nos costumes da milícia romana; diz César, nos seus Comentários: «Do nosso lado, tendo-se dado o alarme por grandes fogueiras, que era o sinal prescrito e acostumado". (...)

Por estes dois factos se conhecem os caracteres do romano-gótico nos costumes peninsulares. Mas nos usos consuetudinários, o fogo é sinal de paz, tal como se acha no provérbio jurídico Fogo e logo; também nos monumentos egípcios, nas esculturas das batalhas, o fogo é o sinal da fortaleza sitiada quando pede paz; é portanto o mais antigo, e de origem turaniana." (...) (Teófilo Braga, op cit., pp. 84/85).


3. Chamou-me a atenção a palavra Murcão. Que não vem grafada nos dicionários como tal, mas sim como Morcão, de resto muito utilizada no Norte (, a começar por Candoz...). Fomos ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, e encontrámos esta consulta, que reproduzimos para os nossos leitores, com a devida vénia:

Pergunta: 

Sei que a palavra ‘murcus’, em latim, significa «palerma» ou «estúpido» (Santo Agostinho usa o termo na Cidade de Deus, no quarto livro, capítulo 16). Já li aqui no Ciberdúvidas que a única etimologia registada do regionalismo morcão, com o significado de indivíduo estúpido ou mandrião, é "morcón", do castelhano, referente a «morcela». No entanto, parece-me uma coincidência demasiado grande para ser ignorada. Seria possível contactar algum etimologista que verificasse esta conjectura?

Manuel Anastácio  Professor do ensino básico  Guimarães, 

Resposta:

Morcão parece, de facto, assentar directamente no espanhol “morcón”, baseado num latim mǔrcōne. Isto não é impedido, na realidade, por existir em latim murcus, no sentido de «cobarde» e de «preguiçoso», cuja terminação em -cus ocorre em certos adjectivos que marcam defeitos físicos. Os dois vocábulos latinos parecem, sim, intimamente relacionados.

F. V. Peixoto da Fonseca  31 mar. 2006

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-origem-da-palavra-morcao/17410 [consultado em 27-02-2022]
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22999: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (11): em dia de namorados, relembrando uma peça do falar alentejano que é uma obra-prima de marotice e de saudável bom humor... (Manuel Gonçalves, ex-alf mil manut, CCS/ BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73)

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23038: Efemérides (363): Há meio século, nestes dias 26 e 27 de Fevereiro, sábado e domingo, foi levada a cabo a Operação Juventude V na zona Caboiana/Churo (Ramiro Jesus, ex-Fur Mil Cmd, 35.ª CComandos, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)

© Infografia da Carta de S. Domingos, 1:50.000 - Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem do nosso camarada Ramiro Jesus (ex-Fur Mil Comando da 35.ª CComandos, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73), com data de 8 de Fevereiro de 2022:

Boa tarde, camaradas d'armas

Nestes dias, em que quase só se escreve e só se ouve falar de guerra, vinha também recordar o dia mais trágico e doloroso da minha comissão na Guiné.

Pois é, foi em 26 e 27 de Fevereiro de 1972 que o meu grupo e outro, da nossa 35.ª CC, fomos incumbidos de levar a cabo a operação "Juventude V", na região da "famosa" Caboiana / Churo.

Saímos já noite dentro, entrámos de madrugada, por uma zona de bolanhas, onde não "lembrava ao diabo" passar - para surpreender - e desde a manhã de 27 que estivemos constantemente em escaramuças e a destruir equipamentos e moranças, depois de termos capturado sete elementos.
Até que, pela hora de almoço/início da tarde, desembocámos numa lavra enorme e, portanto, uma zona quase desmatada, onde nos esperava um enorme "contingente", que se tinha reunido naquele ponto estratégico e que nos deu tanto trabalho que quase esgotámos todos os tipos de munições, para as várias armas que utilizávamos.

Alertado o Comando do nosso CAOP1 - que estava no ar, no DO - fomos reabastecidos e aconselhados a seguir determinado rumo, para sair daquele inferno, já que tinham verificado que estávamos perante um grupo enorme de combatentes, mas o nosso capitão, mais uma vez, desobedeceu, respondeu ao coronel Durão que «cá em baixo mando eu» e pôs-nos em perseguição do IN, talvez na esperança de que, também eles, estivessem com escassez de material.
Só que, passadas poucas centenas de metros, uma rajada e um disparo de RPG7 e... tinham morto o nosso 1º Cabo João Carlos Conceição Ferreira e quase decepado o braço esquerdo do Capitão Ribeiro da Fonseca, o (por muitos conhecido, em Mafra) bala real.

Então, com duas macas improvisadas (com o morto e o ferido grave), lá fomos encaminhados para uma zona de evacuação de dificílimo acesso (para sairmos da lavra, dos trilhos de acesso e despistar o IN) e lá conseguimos sair sem mais problemas, embora exaustos.

Quando, com a minha equipa, entrámos no helicóptero, o piloto, com a melhor das intenções, disse - animem porque o Benfica está a ganhar ao Belenenses - ao que respondi, talvez demasiado bruscamente: vá à fava, pois nós estamos a perder. É que, curiosamente, também há cinquenta anos estes dias (26 e 27) eram sábado e domingo.

E ia despedir-me por agora, mas atendendo ao momento e às (más) recordações, gostava de deixar um apelo aos dirigentes do mundo para se perguntarem, cada um deles a si mesmo, se gostariam de estar a viver, com suas famílias, o que se passa hoje na Ucrânia.

Um Abraço
Ramiro Jesus

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22963: Efemérides (362): Faz hoje 49 anos que a CCAÇ 12 e a CART 3494 sofreram uma emboscada em Ponta Varela, Xime, sofrendo um ferido ligeiro e o IN 2 mortos e 1 ferido... E para mim foi o batismo de fogo (António Duarte)

Guiné 61/74 - 23037: Memórias do Chico no império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte V: No campo de férias de um Sovkhoze, a apanhar maçãs, damascos, abóboras... Um 'desastre', que acabou sem diploma de mérito nem contrapartida financeira


Cherno Baldé, em Kiev, Ucrânia, 1989


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte V:  No campo de férias de um Sovkhoze, a apanhar maçãs, damascos, abóboras... Um 'desastre', que acabou sem diploma de mérito nem  contrapartida financeira


por Cherno Baldé (*)


(xvii) No campo de férias de uma Sovkhoze

Aqueles que ficaram [, na Moldávia, durante as férias de verão de 1986, como Chiquinho] (*) foram convidados para integrar as brigadas de trabalho de campo numa Sovkhoze (propriedade agrícola do Estado) (**).

Logo no primeiro dia levaram-nos para a colheita de maçãs. Mal sabiam do erro que tinham cometido. A fruta estava bem madura e bem saborosa, de diferentes cores e tamanhos numa área extensa. Os estudantes assaltaram as árvores como um bando de macacos. Depois do magistral banquete, deitaram-se à sombra. 

Quando os camiões que vinham para o carregamento da fruta chegaram,  ainda nem metade do trabalho estava feito e,  pior ainda, o trabalho não tinha servido de nada, pois no dia seguinte toda a colheita tinha sido deitada fora por causa das manchas pretas provocadas pela brutalidade dos desprevenidos trabalhadores, oriundos essencialmente de países tropicais. As maçãs tinham-se mostrado ser muito mais frágeis do que as frutas que a maioria conhecia na sua terra.

No segundo dia, tentaram corrigir o erro e mandaram-nos para uma plantação de apricots (damascos). Disseram-lhes que no fim, o pagamento seria feito mediante a quantidade de caixotes da fruta que tivessem enchido. A colheita durou alguns dias e tudo parecia bem encaminhado, mas a partir da segunda semana, já cansados da rotina, começaram a procurar uma estratégia de contornar a situação.

Foi um estudante de Bangladesh que deu o mote, e  que rapidamente foi adotado pelo resto do grupo. Colocaram ramos da árvore por baixo dos caixotes, completando a parte de cima com a fruta vermelho rubra. O rendimento tinha aumentado rapidamente, enchendo muitos camiões. Só descobriram o logro no dia seguinte.

Em retaliação desta aldrabice, o grupo foi desmantelado, os seus elementos foram dispersos, engrossando outras equipas. O Chiquinho continuou na companhia do Amin, o genial rapaz de Bangladesh que tinha mostrado claramente que não tinha aterrado naquela terra para se transformar num Kolkhoznik (trabalhador de colectividade agrícola).

Para acabar com a brincadeira, mandaram-nos para a poda de um extenso campo de pés de uvas recém-plantadas. Com o sol a queimar as espinhas no campo aberto, não tardou muito para que a maioria se despistasse à procura de água e de sombra. Quando os vieram buscar, ao fim da tarde do primeiro dia de trabalho, ainda não tinham avançado vinte metros ao longo das fileiras que se estendiam por mais de um quilómetro de comprimento.

Do campo de uvas, foram enviados para a colheita de abóboras verdes, mas os resultados não eram muito melhores, pois os estudantes,  esfomeados, comiam a maior parte das abóboras que encontravam e que eram destinadas aos animais e à indústria da conserva. 

(xix) Valeu-lhes a bola...

No fim deste ciclo de insucessos, acabaram por ser dispensados do trabalho de campo, sem diploma de mérito nem contrapartida financeira.

O campo de férias prolongou-se ainda por mais algum tempo. Dispensados do trabalho, depois de terem demonstrado aquilo que não sabiam fazer,  que era trabalhar, criaram uma equipa de futebol para passar o resto dos dias que lhes restavam antes do regresso a Kichinev onde os esperava a afetação para as cidades onde deveriam continuar os estudos (, que no caso do Chiquinho seria Kiev, capital da Ucrânia,  onde frequentou a universidade estatal nos anos letivos de 1986/87, 1987/88, 1988/89, 1989(1990, tendo se formado em economia; regressou da então URSS em 1990).

[Fixação e revisão de texto / negritos / título e subtítulos: LG] 

Texto original: Poste P8870 (***)

(Contimua)
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Notas do editor:

(**) Sovkhoze (palavra russa) : s. m.  Na ex-U.R.S.S., grande herdade modelo do Estado, com a finalidade de exploração piloto. (Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).  

Também havia o kolkhoze  (palavra russa)  s. m. Na ex-U.R.S.S., cooperativa agrícola de produção, que detinha perpetuamente as terras que ocupava e a propriedade colectiva dos meios de produção.(Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

(***) Vd. poste de 8 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8870: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (28): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte IV) (Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P23036: Parabéns a você (2041): Luís Cardoso Moreira, ex-Alf Mil da CCS/BART 2917 e BENG 447 (Bambadinca, Nhabijões e Bissau, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23032: Parabéns a você (2040): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo MMA da Força Aérea Portuguesa (1979/82)

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23035: In Memoriam (431): Padre Mário de Oliveira (1937-2022): até sempre! (Comentários de Zé Teixeira. José Martins, António Murta e Alice Carneiro)


Mário Pais Oliveira: página do Facebook. Foto de Francisco Chico da Emilinha (Com a devida vénia...)



1. Comentários de quatro membros da Tabanca Grande sobre o Padre Mário de Oliveira (1937-2022), ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68),  cujos restos mortais ficam, doravante, sepultados, em campa rasa, no cemitério de Macieira da Lixa, Felgueiras, conforme era seu desejo:


(i) José Teixeira (*)

Ouvi falar do Padre Mário no tempo em que ele era professor de moral no Liceu D. Manuel II, atual Escola Rodrigues de Freitas, nos anos 64/65.

Congregava à volta dele um grupo de jovens que o tinham como mestre ativo e era muito querido e respeitado no grupo de estudantes. Só voltei a saber dele, já depois de eu regressar da Guiné nos primórdios dos anos setenta, quando foi julgado no Tribunal de S. João Novo, quando ele era pároco de Macieira da Lixa e o Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes o foi defender, dizendo em tribunal que o que se pretendia era julgar o bispo servindo-se do padre.

Pelos vistos, logo de seguida o bispo tirou-lhe o tapete e entraram em conflito, nunca mais sanado.

Sei que ia gente do Porto a Macieira da Lixa: uns para o ouvir e tentar seguir os seus conselhos, outros para gravar as homilias, de modo a puderem atacá-lo, acusando-o de antipatriota, comunista e outras afirmações insinuações e acusações.

Os esbirros da Pide não se dedicavam só ao Padre Mário. Recordo que o mesmo acontecia na Paróquia de Cedofeita onde oficiavam dois sacerdotes holandeses, os quais foram acordados de madrugada e colocados na fronteira.

Na Paróquia de Miragaia, aconteceu o mesmo cenário e até houve um sujeito que estava a gravar a homilia do Pe. Afonso. Não se conteve e tentou fazer uma homilia patriótica, mas foi posto fora da Igreja pelos cristãos que estavam presentes.

O Padre Mário manteve a sua forma de estar, apesar de perseguido pela hierarquia religiosa antes e depois do 25 de Abril, pelas suas posições críticas e radicais. Como não pediu a redução ao estado laical, foi suspenso. Congregou sempre à volta dele um grupo de Católicos que ainda se reúne, e dedicou-se ao jornalismo. Conversei com ele algumas vezes e tenho entre as minhas amizades gente que ainda convive com ele.

Considero o Padre Mário como uma pessoa bem intencionada, que se radicalizou, talvez face às injustiças de que se considera vítima na Igreja e tem sido um estorvo para essa mesma Igreja.
Agora que faleceu, é tempo de recordar os princípios e valores que sempre defendeu, de paz, justiça e defesa dos mais frágeis da sociedade.

Zé Teixeira

(ii) José Marcelino Martins (*)

Faz falta, em especial numa diocese que precisa de ser alertada.

Foi dos que lutou sempre pelo lado de dentro.

Condolências.

(iii) A. Murta (*)

Tinha uma grande admiração e respeito pelo Padre Mário da Lixa. Era por este nome que, ainda adolescente, lhe ouvia referências (de respeito) por parte dos meus pais quando vivíamos no Norte.

Há uns anos contactei várias vezes com ele (por e-mail?) para me ajudar a localizar um outro alferes capelão, mas sem sucesso, pois era demasiado o desfasamento de idades entre eles. Uma simpatia.

Condolências à família e aos seus colaboradores mais chegados.

(iv) Alice Carneiro (**)

Mário: Eu sempre quis acreditar na tua capacidade de resistência. Eu própria dava ânimo aos nossos amigos comuns enquanto tu estavas internado no hospital. Tinha a secreta esperança de te poder dar os parabéns pelos teus 85 anos, que irias completar no próximo dia 8 de março.

Tive o privilégio de poder acompanhar a evolução do teu estado de saúde, que inspirava muitos cuidados, através de uma sobrinha, a enfermeira Susana Carneiro, que trabalhava no serviço de cuidados intensivos.

Ela acompanhou-te diariamente, com todo o desvelo, empenho, competência e dedicação. E eu estou-lhe grata, a ela e aos seus colegas, pelos cuidados que te prestaram.

Para mim, serás sempre o Mário de Oliveira, pároco da minha freguesia, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.

Para mim, foste um grande amigo e sobretudo um cidadão e um cristão que mudaram a minha vida. Estiveste sempre presente ao longo de momentos importantes da minha história de vida. A tua palavra e o teu exemplo tiveram o condão de acrescentar mundo ao pequeno mundo em que nasci. Valores como liberdade, justiça, solidariedade e fraternidade marcaram a minha formação cristã e humana.

Deixa-me lembrar-te que foi na minha terra que começaste a escrever o teu primeiro livro, “Evangelizar os pobres” (publicado em 1969). Retrata muito bem a nossa realidade de então…

Era uma freguesia rural, perdida nos confins da diocese do Porto, onde ainda predominavam no campo as relações de produção pré-capitalistas, a parceria agrícola e a parceria pecuária …Os grandes proprietários rurais da região, donos de muitas quintas, eram tratados, com toda a deferência e submissão, por “fidalgos”. Os rendeiros “desbarretavam-se” e vergavam a cabeça ao cumprimentá-los: “Com a sua licença, meu amo!”...

Tu, Mário, quiseste acabar com esse resquício da sociedade senhorial, exortando os teus paroquianos, rendeiros, meus vizinhos, a reconquistar a sua dignidade: “Não têm que se vergar, levantem a cabeça, os patrões são pessoas iguais a vocês“…

Trouxeste-nos desassossego e mudança, mas também nunca te faltaram a frontalidade e a coragem, física e moral, de quem se põe ao lado dos pobres, dos humildes e dos fracos. Por outro lado, eras um padre jovem e conseguiste mobilizar a juventude da minha terra. Lembras-te de irmos cantar as janeiras de porta em porta, para angariar dinheiro para comprar um duplicador a “stencil” ?… Acabámos por publicar um jornal, tirado a duplicador… Que orgulho, o nosso!

Enfim, toda a gente gostava de ti… Para os jovens, como eu, daquela freguesia, a tua chegada foi uma lufada de ar fresco e, mais do que isso, uma bênção de Deus.

Como amigo a quem eu muito queria, não te poderia esquecer no dia do meu casamento, civil (, o primeiro no meu concelho), em 7 de agosto de 1976. Convidei-te justamente para partilhar a minha/nossa alegria. Estiveste na casa dos meus pais para me desejar boa sorte e saúde na minha nova vida, casada, e a viver em Lisboa, longe do Norte eu tinha as minhas raízes.

Voltámos a encontrar-nos, mais vezes, mas não tantas quantas eu gostaria. Lembro-me de, em Lisboa, ter assistido ao lançamento de um dos teus livros mais queridos, “Novo Livro do Apocalipse ou da Revelação”. Foi em 1 de novembro de 2009 , numa noite de temporal, e numa ambiente muito intimista, no meio de um grupo de leitores e amigos fiéis… Estive agora a reler, com emoção, a extensa dedicatória que me escreveste: “Para a Maria Alice, a de Viadores, com ternura e saudade”…

Tenho vários dos teus muitos livros, que agora prometo reler, com tempo e vagar, retomando o diálogo contigo, numa outra dimensão, já que tu não estás mais fisicamente entre nós… Destaco o livro “Em Memória Delas. Livro de mulheres”, de 2002, em que tu evocas, entre outros, os teus tempos passados na minha freguesia…e homenageias algumas das mulheres da minha terra.

Sei que não queres choros nem homenagens no teu velório e funeral, no dia da tua despedida da “Terra da Alegria” (para usar uma imagem do Ruy Belo, poeta que tu admiravas). Mas faço questão de te lembrar como uma das figuras de referência da minha vida terrena.

Obrigado, Mário, e até sempre!...

Maria Alice
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Notas do editor:

(*) Vd.poste de 24 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23024: In Memoriam (430): Padre Mário de Oliveira (1939-2022), ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68)

Guiné 61/74 - P23034: Companhias e outras subunidades sem representantes na Tabanca Grande (3): CART 2411 (Mansoa, Porto Gole, Bissá, Enxalé, Bissau, 1968/70)


Companhia de Artilharia nº 2411


1. Mais uma subunidade que não tem, até à data, nenhum representante na Tabanca Grande. São também muito escassas as referências no blogue, contrariamente à CART 2410 e à CART 2412.  Tem, todavia, uma página no Facebook (, criada em 2011, inativa desde finais de 2019). Tem poucas fotos.

Daí justificar-se esta ficha de unidade. O brasão, que se reproduz ao lado, com a devida vénia, é da coleção de © Carlos Coutinho (2011).

Identificação: CArt 2411

Unidade Mob: GACA 2 - Torres Novas

Cmdt: Cap Mil Art Manuel da Silva Frasco | Cap Mil Art António Dias Lopes | Cap Mil Art Virgílio Graça Pereira Saganha

Divisa: "Velando em toda a parte"

Partida: Embarque em 11Ag068; desembarque em 16Ag068 | Regresso: Embarque em 18Abr70


Guine > Região do Oio > Sector de Mansoa > Bissá > O António Rodrigues, ex-1º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2587 / BCAÇ 2885 (Mansoa 1969/71), em Bissá, junto do monumento da CART 2411 (1968/70). Foto do álbum do  seu blogue BCAÇ 2885, Guiné, 1969/71,  

Foto (e legenda): © António Rodrigues (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Síntese da Actividade Operacional

Em 26Ag068, seguiu para Aldeia Formosa, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 2834, o qual foi interrompido e continuado em Mansoa, a partir de 04Set68 até 26Set68, então sob orientação do BCaç 1912.

Depois a companhia permaneceu temporariamente em Mansoa, em reforço do BCaç 1912, a fim de tomar parte em operações realizadas nas áreas de Changalana, Inquida, Polibaque e Bindoro, tendo um pelotão sido colocado no destacamento de Bissá, a partir de 22Set68; de 310ut68 a 02N ov68, participou ainda numa operação realizada na região do Morés, sob controlo operacional do BCaç 2851.

Em 07Nov68, rendendo a CArt 1661, assumiu a responsabilidade do subsector de Porto Gole, com destacamentos em Bissá e Enxalé (este até à sua passagem para a zona de acção do BCaç 2852, em 290ut69) e ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1912 e depois do BCaç 2885.

Em 14Mar70, foi rendida no subsector de Porto Gole pela CCaç 2587, sendo colocada em Bissau, onde substituíu a CCaç 2382 no dispositivo do BArt 2866, com vista à segurança e protecção das instalações e das populações da área; destacou ainda um pelotão para o subsector de Nhacra, que se instalou em Safim e João Landim.

Em 16Abr70, foi substituída, temporariamente, no subsector de Bissau por dois pelotões da CArt 2412, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 118 - 2.ª Div/4.ª Sec. do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág 464.
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Nota do editor

Último poste da série > 22 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22931: Companhias e outras subunidades sem representantes na Tabanca Grande (2): CART 2338, "Os Incansáveis" (Fá Mandinga, Nova Lamego, Canjadude, Cheche, Buruntuma, Pirada e Paiunca, 1968/1969)

Guiné 61/74 - P23033: Os nossos seres, saberes e lazeres (493): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (39): Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
O perito em azulejaria Santos Simões considerou que o repositório azulejar da Casa dos Mascarenhas é do maior interesse histórico e artístico. Como escreve um dos familiares dos Mascarenhas, "À exceção de alguns da Galeria dos Reis, que parecem de origem espanhola, possivelmente de Talavera ou Valência, e de uns outros, policromos, na fachada do palácio que deita para o Jardim Grande, de origem holandesa na Sala dos Painéis, os restantes são de fabricação portuguesa". Desconhecem-se os seus fabricantes, o que importa é que nesta casa seiscentista a existência de tantos conjuntos azulejares deve.se a um período de prosperidade, estes conjuntos possibilitam o estudo do gosto da época, tanto as representações profanas, com os painéis alegóricos e a exaltação da estirpe vitoriosa dos Mascarenhas, o que importa é que o azulejo português era pujante e de grande qualidade, e se tem graciosidade própria nos jardins, entrelaça-se harmoniosamente no interior do palácio com os estuques de salas verdadeiramente deslumbrantes. Jardins e palácio, adverte-se os interessados, merecem visitas repetidas, tal e tanta variedade de obras-primas carecem de olhares demorados, de preferência intermitentes. Acresce, como recorda José Saramago, que o que se vê no verão não é o que se vê no inverno e o que se vê em plena luminosidade não é o mesmo em dias baços. Então, votos de bons passeios, começa-se aqui pelo triunfo do azulejo, maior paraninfo para este período de ouro de uma das mais imaginativas artes da decoração não pode haver.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (39):
Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (1)

Mário Beja Santos

Em São Domingos de Benfica, confinando com um fim ao Parque Florestal de Monsanto, de paredes meias com a Quinta dos Marqueses de Abrantes, levantou-se o Palácio dos Marqueses de Fronteira, por todos considerado um dos mais belos de Portugal, um verdadeiro museu de azulejos, de cerâmica, de belo estuque lavrado, fundado pelo 2.º Conde da Torre e 1.º Marquês de Fronteira, D. João Mascarenhas. E se o palácio é um tesouro, os seus jardins não lhe ficam atrás. É deles que vamos mostrar imagens que não iludem as preciosidades que acolhem os visitantes.

No entanto, podemos aduzir sérias dúvidas se há um verdadeiro compartimento estanque entre a beleza azulejar e a graciosidade dos jardins e o que oferece o interior do palácio, o mínimo que se pode dizer é que as estéticas se complementam, mesmo no interior do palácio cruzam-se estuques com painéis de azulejos de brutesco, há mesmo uma sala de painéis com belíssimos azulejos holandeses. Obviamente que há distinções entre palácios e jardins: a decoração interior é do século XVIII enquanto a riquíssima decoração cerâmica dos terraços e jardins são seiscentistas. Mas se o visitante tem a possibilidade de visitar palácio e jardins descobrirá que o diálogo é constante, impensável um viver sem o outro.

Ajuda-nos na itinerância pelos jardins a obra "Jardins em Palácio dos Marqueses de Fronteira", por José Cassiano Neves, Quetzal Editores, 1995. A reter: jardins ao gosto italiano, sumptuosos, com imensos acessos a partir do palácio e por portões de quinta, entrando pela porta do pátio, somos lançados num enorme terraço descoberto, tendo a meio uma escadaria para o Jardim Grande e, de cada lado desta, uma bela balaustrada em mármore de Carrara. Ao fundo do terraço, depois de um corredor, temos duas fachadas e a surpresa de uma fonte com conchas, búzios, vidros de várias cores – é a fonte da Carranquinha.

Entramos, cada conjunto azulejar lembra obras de pinacoteca, há para ali cenas de Corte, muita mitologia à mistura, veja-se o regalo para os olhos.
Quem se delicia com tanta originalidade azulejar não deixa de vez em quando de voltar a cabeça para os jardins, pois são dois, o Jardim Grande, ao gosto italiano, e um outro mais pequeno, mais moderno e em plano superior a este, o Jardim de Vénus. E com a vista indecisa, mirando até uma variedade de estátuas em chumbo, damos com uma fonte do Jardim Grande, encimada pela Galeria dos Reis, impõem-se a disciplina de continuar a ver com o máximo de cuidado estes rodapés e esperar o momento próprio de descer até ao Jardim Grande.
No Jardim Grande, com 65,30 metros de comprido por 57,50 metros de largo, tendo como fundo um grande tanque e lá em cima a Galeria dos Reis, com o seu buxo em tabuleiros geométricos e simétricos, formando ruas, travessas e pequenas praças, com doze estátuas mitológicas e cinco tanques octogonais, junta-se a sumptuosidade ao gosto de imaginar os recantos frescos, os passeios à conversa cercados por paredes revestidos de azulejos, a azul e manganês, representando o ciclo zodiacal e os meses do ano, novo esforço de disciplina, até apetece ir para a Galeria dos Reis e contemplar o Jardim Grande, todo ele italianizante.
Não nos detemos agora na Galeria dos Reis, pejada de bustos, importa dizer que bem formosos são os painéis de azulejos no lago da galeria, aparecem doze cavaleiros de inspiração velazqueana, ou seja, posturas imponentes do aristocrata em cavalos com as patas dianteiras no ar.
Os jardins têm que ser vistos vagarosamente, os azulejos do lago a mesma coisa, são painéis soberbos, apetece agora ir até à Casa do Fresco, mas como recusar o que a vista alcança, não há conjunto azulejar que não timbre pela originalidade, macacos e gatos, cenas de pesca ao coral, aulas de música e barbeiros e uma série infindável de divindades mitológicas, veja-se este Mercúrio rodeado de figuras tão curiosas como aquele pássaro que parece tirado de Jerónimo Bosch e um parzinho no transe da felicidade, isto à beira do relvado. E diz-se isto só para confirmar que a vista exige o máximo de atenção para não deixarmos para trás uma das muitas obras-primas da azulejaria portuguesa que enxameiam estes jardins possuidores de uma atmosfera mágica.
(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23009: Os nossos seres, saberes e lazeres (492): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (31): De regresso à primeira grande obra da arquitetura manuelina (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23032: Parabéns a você (2040): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo MMA da Força Aérea Portuguesa (1979/82)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23026: Parabéns a você (2039): Gumerzindo Caetano da Silva, ex-Soldado Cond Auto Rodas da CART 3331 (Cuntima, 1970/72)