Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 2 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1142: Um dia no mato: parabéns ao Vitor Junqueira pelo seu texto (Raul Albino, CCAÇ 2402)
O Raul Albino, ex-alf mil da CCAÇ 2402 (Có/Pelundo, 1968/70): ontem e hoje...
Fotos: Raul Albino (2006)
Caro Luís,
Como prometido aqui vão em anexo duas fotografias tipo passe com a minha fronha, uma da época militar e uma actual.
O meu próximo contacto incluirá o meu primeiro artigo respeitante à CCAÇ 2402 (1).
Gostei imenso do artigo do Vitor Junqueira (2), especialmente na descrição da vivência dum militar no mato. Senti-me transportado para aquele local e aquela época.
Se bem que eu não tenha estado em Farim e o meu período de permanencia na Guiné tenha sido entre 68/70, a descrição que ele faz é muito fiel para muitos locais, épocas e intervenientes no teatro de guerra da Guiné.
No meu caso terei passado por quase todas as situações que ele descreve, só que numa data imediatamente anterior à dele. Por exemplo, invejei a descrição do armamento que transportavam para o mato, porque dois anos antes a penúria de armas era tal que para os grupos de combate sairem para o mato minimamente apetrechados, o quartel ficava, para sua defesa, com o morteiro 81 e pouco mais e só porque o morteiro 81 era muito pesado.
Em termos alimentares e de rotina, a descrição está um encanto e fez-me sonhar com aqueles tempos. Os meus parabéns pelo texto e pela forma narrativa alegre e bem disposta.
Até breve, se não for antes, Raul Albino.
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)
23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)
(2) Vd. post de 23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)
Guiné 63/74 - P1141: As (des)andanças do TT Niassa em Dezembro de 1971 (Lema Santos)
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2004) (com a devida vénia...)
O nosso camarada Manuel Lema Santos é um enciclopédia viva no que diz respeito a tudo o move na água, em especial os navios (nunca digam barcos, por favor) da nossa gloriosa Armada (1).
Justificando, em tempos (6 de Julho de 2006), algum silêncio (intencional) da sua parte em relação às nossas blogarias, ele escreveu-me o seguinte, a título pessoal:
"Em paralelo com a minha actividade profissional estou a tentar, com outro camarada, levar a cabo uma modesta edição - a possível - sobre a dezena de LFG da Classe Argos (Orion incluída) que ao longo de mais de 56.000 horas de navegação asseguraram as linhas de comunicação fluviais na Guiné - e que outras havia? - coadjuvadas pelas LDG, LFP, LDM, LDP, DFE e CFE.
"Bastarão dois ou três nomes como Mar Verde e Tridente ou, noutra perspectiva, como Cantanhês, Cumbijã, Cafine e Gadamael ou Ganturé, para se ter ideia do que poderá ter representado a participação da Marinha em geral e LFG [lanchas de fiscalização grande] em particular.
"Claro que efectuando pesquisa, recolha de documentos, textos, relatos, etc. de tudo o que existe. É bastante pouco. Sonegado, desaparecido, espoliado, sei lá!
"Continuo a não compreender - até estou a ser repetitivo - como se encara a possibilidade de contribuir para a História recente da Guiné e de Portugal sem a participação da Marinha e da Força Aérea. Instituições diferentes, hierarquias diferentes, filosofias diferentes e até algumas condições diferentes, mas todos igualmente embarcados no mesmo mau navio.
"Em época, local e com conceitos errados, mas pessoas certas e capazes de cumprir as missões para que tinham sido incumbidas ao serviço de um País. Será apenas o futebol que faz cantar a este bom povo o Hino Nacional?"...
Seguramente que não, meu caro Lema Santos. É por isso que nós, que também fazemos parte desse povo, cá estamos no nosso posto, na blogosfera, a fazer o nosso trabalho de casa...
E enquanto tu não acabas o teu (TPC), és bem-vindo e és a pessoa indicada para desfazer umas dúvidas e imprecisões quanto a datas de partidas para (ou chegadas de) a guerra do ultramar (ou guerra colonial, como quiseres)... Não preciso, pois, anunciar que aqui estás tu, galhardamente, a tentar ajudar "com alguns pequenos esclarecimentos", a prestar a felizardos camaradas (Joaquim Mexia Alves, J. Vacas de Carvalho, David Guimarães, entre outros) que, no já longínquo final de 1971, tinham o bilhete de regresso a casa, mas que hoje já trocam o TT Niassa com os Boeing dos TAM. (LG)
Texto do Manuel Lema Santos
1- Em Novembro de 1971 o TT NIASSA foi requisitado pelo Estado e pela O.P.T nº 12.959 foi previsto embarcarem, em 16 de Dezembro, para a Guiné, as seguintes Unidades:
CMD BCAÇ 3872/RI 2 +
CCAÇ 3489/RI 2
CCAÇ 3490/RI 2
CCAÇ 3491/RI 2
CCAÇ 3518/BII 19 (Embarque no Funchal)
CCAÇ 3519/BII 19
CCAÇ 3520/BII 19.
Na viagem de regresso, estava previsto voltarem para o Continente as seguintes:
CCAÇ 2679/BII 19 (Desembarque no Funchal)
CCAÇ 2680/BII 19 (Desembarque no Funchal)
CCAÇ 2681/BII 19 (Desembarque no Funchal)
Pel Can s/r 2199/RI 1
Pel Can s/r 2200/RI 1
Pel Rec Daimler 2202/RC 6
Pel Rec Daimler 2203/RC 6
Pel Rec Daimler 2204/RC 6
Pel Rec Daimler 2205/RC 6
Pel Rec Daimler 2206/RC 6 [o Pelotão do Vacas de Caravalho]
Pel Rec Daimler 2207/RC 6
Pel Rec Daimler 2208/RC 6
Pel Rec Daimler 2209/RC 6
Pel Rec Daimler 2210/RC 6
Pel Rec Daimler 2211/RC 6
Pel Rec Daimler 2202/RC 6
Eq Inst Nat 2224/RI 2
Assinado pelo COR José Herdade Telhada e pelo GEN Barreira Antunes - Director do Serviço de Transportes.
2 - Nada do acima exposto se verificou!
3 - O navio estava em fabricos e por, essa razão, atrasou tudo e foi a partida alterada para 22 de Dezembro de 1971.
(Aditamento à O.P.T. nº 13.179)
Local: Gare Marítima de Alcântara, das 08:00 às 09:30
Pessoal a transportar na ida:
CMD BART 3873/RAP 2
CART 3492/RAP 2 (a Companhia do Joaquim Mexia Alves)
CART 3493/RAP 2 (a Companhia do Manuel Cruz)
CART 3494/RAP 2 (a Companhia do Sousa de Castro)
CART 3521/RAP 2
No regresso o navio veio sem pessoal.
Cap. Bandeira: CFR António José de Matos Nunes da Silva;
Cte. das Forças embarcadas: Ten Cor António Tiago Martins – BART 3873/RAP 2.
Chegada a Bissau em 26 de Dezembro de 1971
Salvo gralha, foi assim a realidade da viagem do Niassa. Espero ter sido útil aos dois e também a toda a tertúlia.
Um abraço,
Manuel Lema Santos
ex-1º Tenente RN [Reserva Naval] (1965/72)
Guiné, NRP ORION, 1966/68
2. Posterior mensagem, dirigida ao Mexia Alves, com data de hoje:
Caro Joaquim Mexia Alves,
Os elementos que vos forneci são rigorosos.
Todos os Transportes de Tropas (TT) eram requisitados por contrato às companhias comerciais e, enquanto ao serviço do Estado, eram enquadrados na hierarquia da Marinha (incluindo obviamente a tripulação), pelo que utilizavam flâmula.
Naturalmente que eram utilizados essencialmente no transporte de FA mas também eram autorizados, a pedido, transporte de familiares, veículos, doentes, prisioneiros, etc. Tudo era tratado entre ministérios.
Para isso era nomeado por portaria um oficial superior da Marinha, denominado capitão de bandeira a quem, sem prejuizo da identidade da própria tripulação e das forças embarcadas, com comando próprio, superintendia o comando do navio do ponto de vista de Marinha.
Como viste na minha mensagem anterior, no TT NIASSA - Lisboa/Bissau, em Dezembro de 1971, não embarcou o Cmd BCAÇ 3872/RI 2, embora tivesse estado programado e não sei porque foi anulado e substituído ou em que transporte foi efectuado, e isto por não ter referências (data de ida ou de regresso e/ou TT).
Um abraço,
Manuel Lema Santos
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXIV: A nossa mobilização para o CTI da Guiné (CCAÇ 12) (Luís Graça)
(2) Vd. posts de:
25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)
22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXI: Terra e Ar 'versus' Mar (Lema Santos)
4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: A Marinha, as LDG e as LFG (Lema Santos)
2 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVI: Boas vindas ao marinheiro Lema Santos (Hugo Moura Ferreira)
21 de Abrl de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos
Guiné 63/74 - P1140: Postais Ilustrados (5): Bajuda manjaca, Ilha de Pecixe (Beja Santos)
Guiné Portuguesa > Postal Ilustrado > Legenda > FF3. Bajuda Manjaca, Pecixe (1). Kodachrome de A. B. Geraldo. Edição da Casa Mendes, Bissau. s/d.
Postal ilustrado enviado, por avião, pelo Alf Mário Beja Santos a uma pessoa sua amiga... Data e local: Missirá [SPM 3378], 18/XII/[1968]. Carimbo do correio de Bissau: 23/12/68. Valor dos selos: 1$80 pesos.
Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)(2).
Escreveu ele neste postal: (...) "O Natal ergue-se desta bruma densa, onde paira a maior parte do dia. Nós todos O sentimos. Talvez com mais força do que aí, pois se sabe se não fizermos uma união autêntica de amizade, todos estão desprotegidos" (...).
____________
Notas de L.G.:
(1) A Ilha de Pecixe fica a leste de Bissau, no estuário do Rio Mansoa, na sua margem direita, frente a Quinhamel.
(2) Vd. post anterior (desta série sobre postais ilustrados da Guiné):
28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1125: Postais Ilustrados (4): Rapaz balanta, cesteiro (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P1139: A fantástica estória do soldado Fernandes, da CCAÇ 1686, Mansoa (Aires Ferreira)
Guiné > Região do Oio > Mansoa > Jugudul > 1969 > O Alf Mil Aires Ferreira, em Jugudul, a 4 Km de Mansoa, na estrada Bissau-Bafatá. A placa quilométrica assinalava as distâncias para os principais povoações, a leste de Mansoa/Jugudul: Bindoro: 10 km; Porto Gole: 25 km; Enxalé: 47 km; Bambadinca: 62 km; Bafatá: 90km... O troço estava interdito pelo menos até Porto Gole...
Fotos: © Aires Ferreira (2006)
Texto do Aires Ferreira, Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas (CCAÇ 1686, BCAÇ 1912, Mansoa, 13 de Abril de 1967/13 de Maio de 1969) (1)
A estranha estória do soldado Fernandes
Camaradas Luís Graça e Beja Santos, a demora na resposta a este assunto, é apenas devida à minha ausência lá para os lados de Ourém/Leiria por motivos profissionais e de, por lá, não ter acesso à Internet. Aqui ficam as minhas desculpas.
O soldado Fernandes pertenceu à CCAÇ 1686 e o Comandante do seu Grupo de Combate foi o Alf Moreira, que por certo se lembrará destas histórias, muito melhor do que eu.
Lá para o fim de 68, quando a Companhia já tinha uns 18 meses de comissão, a sua actividade operacional foi seriamente reduzida, não só porque estava esgotada, mas também porque houve necessidade de assegurar a ocupação dos destacamentos próximos, que pertenciam ao sector.
O soldado Fernandes - que designarei por Atleta, porque era assim que era conhecido - não era homem dado a grandes meditações e não se enquadrava bem na vida algo sedentária da tropa em quadrícula.
Habituado que estava a uma intensa actividade operacional, passou a organizar, ele mesmo, os seus patrulhamentos, sem dar conhecimento a ninguém. Não sei por quantas vezes se ausentou, talvez umas três ou quatro. Andava sempre com a sua G3 e regressava sempre passados uns dias, como se não tivesse acontecido nada. Não falava no assunto e às perguntas que lhe faziam, respondia sistematicamente com um sorriso envergonhado e um encolher de ombros.
Certo dia, chegou ao Batalhão uma informação dizendo que andava ali na zona um cubano
que assediava tudo o que fosse bajuda ou mulher grande. O Atleta é algarvio e muito moreno.
Quando alguém contou isto na messe, houve gargalhada geral e a exclamação:
- O Atleta!!!
Ninguém apresentou queixa e o assunto morreu.
Passados uns tempos, o Atleta desapareceu de novo e acho que ninguém deu importância ao caso, uma vez que já era quase habitual e era convicção geral que ele voltaria, como sempre fez.
Só que desta vez, apareceu sim, mas passado um mês, ou talvez um mês e meio, e em Mansoa nunca se soube por onde tinha andado ou o que lhe tinha acontecido.
Foi passados 38 anos que através dum Post do Camarada Beja Santos (2), fiquei a saber que o Atleta foi parar ao Destacamento de Missirá e devolvido a Mansoa num DO !
Missirá dista de Mansoa uns bons 60 km, pela estrada Mansoa - Porto Gole - Enxalé - Missirá que, pelo menos no troço Mansoa - Porto Gole, estava interdita, só se passando por lá com uma Companhia e com muita atenção.
Esta estrada passava perto da base do Locher/Changalana,que foi destruída várias vezes e sempre reconstruída nas proximidades. Proporcionou-nos magníficos combates, nos quais participou o Atleta, pelo que conhecia bem esta zona e não acredito que se fosse meter sozinho neste vespeiro.
Aquela história que ele contou, do banho na bolanha, captura pelo IN e fuga, não é verosímil, porque em Mansoa não havia necessidade disso, não havia bolanha onde tomar banho e portanto não havia esse hábito.
Por outro lado, era nossa convicção que se o IN o quisesse apanhar à mão, há muito que o teria feito.
Há que considerar uma outra hipótese, que nos pareceu na altura a mais viável. Por aqueles dias esteve atracada no Rio Mansoa, junto à ponte, uma LDM e claro está, o nosso Atleta não se privou de ir confraternizar com a tripulação e certamente arranjar boleia para qualquer sítio, talvez clandestinamente. Acho que esta é a hipótese mais plausível, ir por via fluvial até lá para os lados de Porto Gole ou Enxalé, que ele conhecia duma operação que fizemos à zona de Mato Cão e daí, então sim, ir a pé até Missirá.
O seu regresso a Mansoa foi muito discreto, nunca soubemos por onde tinha andado e o
Comando do Batalhão optou por silenciar o caso porque de facto não servia de nada punir este soldado, que não devia ter sido mobilizado para a Guiné.
Apesar do susto que apanhou e da fome que terá passado, esta não foi a sua última aventura. Houve mais. Sobreviveu, vive no Algarve e em Abril [de 2007], no nosso próximo almoço de confraternização, lá estará seja onde for, em bom convívio com os seus ex-camaradas.
Um abraço a todos os camaradas da Tertúlia.
Aires Ferreira
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)
(2) Vd. posts:
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)
domingo, 1 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1138: 'Siga a Marinha': uma expressão do tempo da República (?) (Pedro Lauret)
Caro Luís,
Sobre a expressão Siga a Marinha penso ser bem mais antiga que a Guerra Colonial (1). Tenho a ideia que surgiu no tempo da implantação da República num incidente militar, dos que então eram frequentes.
Vou tentar saber ao certo, mas posso afiançar que não teve origem na Guiné. Nos anos cinquenta um filme com o Fred Astaire, Follow the Fleet, teve como título traduzido exactamente Siga a Marinha.
Um abraço
Pedro Lauret
______________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1133: Origem da expressão 'Siga a Marinha" (Vitor Junqueira).
Vd. também posts de 1 de Outubro de 2006:
Guiné 63/74 - P1134: A expressão 'Siga a Marinha' , atribuída ao Zé Gaspar, artilheiro, Olossato (Paulo Santiago)
Guiné 63/74 - P1135: A expressão 'Siga a Marinha' e a crise dos capitães (Sousa de Castro)
Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)
Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1971/73 > Pedro Lauret, oficial imediato do NRP Órion (1).
Texto e fotos: © Pedro Lauret (2006)
Dados Biográficos:
Nome - Pedro Manuel Cunha Lauret
Local e data de de nascimento – 23/01/49
1960-1967 – Frequência do Liceu Camões em Lisboa, onde foi dirigente da Acção Católica.
1967-1971 – Escola Naval, onde completa o curso de Marinha. Participa activamente nas acções políticas de apoio à Oposição Democrática, em 1969. Participa nas movimentações em torno do Clube Militar Naval, de 1969 a 1971. É fundador do movimento clandestino de oposição ao regime, de oficiais de Marinha, em 1970.
1971-1973 – É promovido a Guarda-Marinha em Julho de 1971, tendo embarcado para a Guiné, em Setembro de 1971, onde exerceu o cargo de Oficial Imediato do NRP Orion. Na Guiné exerceu intensa actividade operacional em todos os rios e braços de mar navegáveis pelo navio (Cacheu, Geba, Buba, Tombali, Cumbijã, Cacine, Bijagós).
Em Maio de 1973 encontrava-se em missão no Rio Cacheu quando se dão os ataques a Guidage, desembarca o Destacamento de Fuzileiros 8 no Jagali, afluente do Cacheu, após terem sido abatidas duas aeronaves (1 DO e 1 T6); nesse dia seria abatida mais 1 DO. No mesmo mês, no rio Cacine é a primeira unidade a chegar a Gadamael depois da retirada de Guileje, evacua, contra a ordem expressa do General Spínola, um número indeterminado (mais de 300) militares e civis que se encontravam fugidos nas margens do rio.
1973-1975 – Participa activamente no MFA integrando a comissão política que redigiu o seu programa.
Após o 25 de Abril integra o Gabinete do Almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado-Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional. É membro da Comissão Coordenadora do MFA na Armada e integra a assembleia do MFA.
Foi condecorado pelo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, com o grau de grande Oficial da Ordem da Liberdade, pela sua acção no 25 de Abril.
É actualmente Capitão-de-mar-e-guerra na reforma.
Exerceu actividade privada na área da engenharia informática.
Faz parte da Direcção da Associação 25 de Abril.
Actualmente lidera um projecto de investigação Histórica com a designação –´“Marinha: do fim da II Guerra Mundial ao 25 de Abril de 1974”.
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post anterior, P1136.
Guiné 63/74 - P1136: Estórias avulsas (3): G3 ensarilhadas com Kalashnikov, no pós-25 de Abril (Pedro Lauret)
Foto: Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005 (com a devida vénia) (1).
Texto do comandante Pedro Lauret (2)
Caro Luis Graça,
Envio uma pequena história, passada comigo, um pouco diferente do usual no nosso blogue, mas penso que tem algum interesse. Se considerares que é de colocar no blogue, força…
Um abraço e até dia 14 [, na Ameira, em Montemor-O-Novo, no 1º encontro da tertúlia].
Pedro Lauret
Uma história simples… ou talvez não
por Pedro Lauret
Pouco tempo passara do 25 de Abril de 1974, era eu então 2º tenente e prestava serviço no gabinete do Almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado-Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional.
Na Guiné, no fulgor da revolução, marinheiros resolveram fazer uma manifestação nas ruas de Bissau, o que foi justamente considerado inconveniente quando foram as Forças Armadas a tomar o poder e a mudar o regime.
O Almirante determinou que me deslocasse à Guiné pois ainda não fizera um ano que terminara a minha comissão e conhecia bem o meio e o ambiente naval.
A minha missão era explicar a nova situação político-militar e apelar (determinar) para que actos de indisciplina não se verificassem, muito menos tivessem demonstração pública.
Acabei por ser acompanhado pelos meus camaradas, Comandante Almada Contreiras e o Major Melo Antunes, dois bem conhecidos companheiros de conspiração, que se deslocavam a Bissau com uma missão, penso eu, bem mais complexa do que a minha.
Chegado a Bissau cumpri a minha missão, penso que com sucesso e tive o grato prazer de abraçar camaradas que ainda não vira após a revolução.
Antes de regressar, os meus companheiros de viagem desafiaram-me para ir com eles a alguns quartéis do Exército para, igualmente, dar alguma informação sobre o que cá se passava - de notar que nessa altura ainda não havia sido decretado um cessar-fogo formal entre as nossas Forças Armadas e o PAIGC.
Deslocámo-nos a um aquartelamento, não sei precisar exactamente qual, mas penso ter sido nas proximidades de Bula pois atravessámos o [Rio] Mansoa em João Landim.
Aí chegados, não pudemos conter o nosso espanto quando vimos ensarilhadas G3 com Kalashnikov e em franco convívio soldados do nosso Exército bebendo generosas Bazookas (3), com guerrilheiros do PAIGC.
O cessar-fogo estava consumado para lá das determinações dos poderes políticos.
Uma história simples…ou talvez não.
Pedro Lauret
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de 15 de Junho de 2006 :
Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
(...) A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael. (Público, 26 de Junho de 2005)
Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)
(2) vd posts de:
14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73)
20 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P887: Dois novos tertulianos: Pedro Lauret e Beja Santos
(3) Garrafas de cerveja, de 0,6 l.
Guiné 63/74 - P1135: A expressão 'Siga a Marinha' e a crise dos capitães (Sousa de Castro)
A expressão Siga a Marinha também era muito utilizada no meu tempo de Guiné, CART 3494 - Xime e Mansambo (Janeiro de 1972/ Abril de 1974). Foi o nosso primeiro CMDT, Cap Art NM [Número Mecanográfico] 51322811 - Victor Manuel da Ponte Silva Marques, que a utilizava sempre em qualquer circunstância e nós também por arrastamento a utilizávamos.
Siga a Marinha, Sousa de Castro.
PS - Onde digo "o nosso primeiro CMDT" quero dizer que tivemos mais do que um, foram três. Para além do atrás referido, em Agosto de 1972, foi rendido pelo Cap Art NMº 04309164 - António José Pereira da Costa que acabou por ceder o lugar, por castigo, em Novembro de 1972 ao Cap Mil NM 06383765 - Luciano Carvalho Costa.
2. Comentário de L.G.:
Sousa, levantas uma questão interessante e que eu gostaria de ver aqui discutida. A tua companhia teve três capitães numa só comissão.
A CART 2239 - Os Viriatos (Fá Mandinga e Mansambo, Jan Dez 1968/69), a que pertenceceram camaradas nossos de tertúlia como o António Santos Almeida, o Carlos Marques dos Santos, o Ernesto Ribeiro, o Saagum e o Torcato Mendonça - teve nada mais nada menos do que quatro...
A minha própria companhia, a CCAÇ 12, teve também cinco ou seis capitães, embora num espaço mais dilatado, entre 1969 e 1974 (No meu tempo, 1979/71, só teve o Cap Carlos Brito).
Sem querer tirar conclusões precipitadas e infundadas, isto parece sugerir que os nossos capitães (milicianos ou do quadro permanenente) davam-se mal com o clima... Em gestão de recursos humanos, a este fenómeno (de instabilidade, de gente a sair e a entrar ao longo de um ano) chama-se um turnover ou taxa de rotação de pessoal...
Alguém quer falar do turnover dos capitães ? A que se deve o fenómeno ? Por que é ninguém queria ser capitão ? A pergunta pode ser ingénua, mas tem possivelmente
mais do que uma resposta...
(LG).
Guiné 63/74 - P1134: A expressão 'Siga a Marinha' , atribuída ao Zé Gaspar, artilheiro, Olossato (Paulo Santiago)
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1972/73):
SIGA A MARINHA, como diz o Vitor (1), era uma expressão atribuída ao Zé Gaspar, Artilheiro, como gostava de se apresentar. Era o comandante da CART estacionada no Olossato.
Conheci-o em Bissau no dia 6 de Janeiro de 1972, dia em que fiz 24 anos. Apanhou uma monumental bebedeira, o que não era de estranhar. Era um tipo considerado maluco pela hierarquia. Já Major, continuou durante algum tempo como comandante de companhia no Olossato.Veio depois para Bissau como 2º comandante do Agrupamento de Artilharia, ficando célebres as suas partidas ao comandante.
Estranhamente, em 1973, numa reunião de Capitães num monte perto de Évora, o Gaspar estava num carro junto ao Templo de Diana, apontando as matrículas dos carros dos camaradas que iam para a reunião, elaborando uma lista que entregou ao comandante da Região Militar. Morreu pouco tempo após o 25 de Abril.
Paulo Santiago
PS - Estará na altura de falares com o Jorge Neto, para uma conversa ou entrevista, com o Comandante Paulo Malu (3). Posso falar ao Sado. Diz o que achares melhor.
Comentário de L.G.: Vou voltar a contactar o Jorge Neto, que vive em Bissau, a ver se o convenço a entrevistar o Paulo Malu, utilizando os bons ofícios do teu amigo Saldo Baldé. SE o Paulo Malau quiser faklar, terá muitas coisas (e terríveis) para nos contar...
________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (1): Bissau
(2) Vd. post anterior, de 30 de Setembro de 2006 (P1133).
(3) O Paulo Malu terá sido o comandante da força do PAIGC que emboscou as NT na picada do Quirafo, em 17 de Abril de 1972, causando duas dezenas de baixas mortais, entre militares e civis. Vd. posts:
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P955: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (5): O pesadelo da terrível emboscada de 17 de Abril de 1972
20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P975: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (7): ainda as trágicas recordações do dia 17 de Abril de 1972
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
(...) "Como te disse ontem pelo telemóvel, falei com o Sado. Disse-me para o Jorge Neto o procurar na Direcção Geral das Alfândegas, que ele o encaminhará para o Paulo Malu. Esqueci-me de perguntar se já tinha sido promovido, mas não há problema, o Jorge Neto que procure o Major Sado Baldé , ou possivelmente Tenente Coronel. O meu amigo já sabe o motivo para o encontro com o Malu" (...).
sábado, 30 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1133: Origem da expressão 'Siga a Marinha" (Vitor Junqueira)
Foto: © Lema Santos (2006)
1. Mensagem do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Hoje é médico e, segundo julgo saber, vive no Pombal (2).
Caro Luís,
A expressão Siga a Marinha, que utilizo com frequência na abordagem de questões tertulianas, não é da minha autoria.
Embora não me pareça que haja nada desprestigiante quanto à paternidade de tal expressão, ela terá surgido do modo que passo a explicar:
No meu tempo ou pouco antes, terá passado pela zona do Olossato um capitão, comandante de Companhia que possuía uma queda especial para a ironia. Nas comunicações com o QG usava esse seu dom, o que o tornou muito conhecido ao nível mais elevado da hierarquia de então. Parece até que gostavam de o picar e depois... esperar pelo coice!
Um dia, este nosso capitão chegou a ameaçar encerrar a guerra porque estava a ficar sem batatas. Responderam-lhe de Bissau que o Serpa Pinto (3) também fez a guerra sem batatas.
-Então mandem o Serpa Pinto. - retorquiu o bravo capitão.
Noutra ocasião, ter-se-à queixado que era tanta a água acumulada nas poças e charcos em redor do aquartelamento, assim como a chuva que entrava através dos buracos nos telhados, que tornava impraticáveis quaisquer acções militares. Responderam-lhe que também a Marinha operava no meio aquático e não protestava.
-Pois então que siga a marinha. - alvitrou o desempoeirado oficial.
E foi assim que a frase Siga a Marinha entrou na gíria militar do meu tempo com o significado de: embora, vamos a isto, nada de lamentações.
Vitor Junqueira
2. Comentário do editor do blogue (L.G.):
Obrigado, Vitor, por este teu douto, pedagógico e sobretudo oportuníssimo esclarecimento. Há dias, num em-mail que circulou internamente pela nossa tertúlia, a propósito de uma infeliz expressão (rangerices) que ficou consagrada no título de um post (e que eu proponho que se retire, para bem da sanidade mental de todos nós e sobretudo como garantia da nossa leal e sã convivialidade), dizia eu:
"Vamos civilizada e amigavelmente ler e ouvir o que temos a dizer uns aos outros... Vamos esclarecer o que há para esclarecer... E siga a marinha, para usar uma curiosa expressão da autoria do Vitor Junqueira... Sobrevivemos todos à dura guerra da Guiné, não vamos agora massacrar-nos uns aos outros, quarenta anos depois, por questões que de lana caprina"…
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)
(2) Vd. post de 23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)
(...) "A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro carregado de bugalhos: Uzi (3) a tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e, pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares para a sua metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um par de GMD, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras, tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada:- Olhos e ouvidos bem abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho! - São as suas últimas recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda seguir a marinha ". (...).
(3) Serpa Pinto (1846-1900): conhecido explorador e administrador colonial português que percorreu África central e meridional para fazer o reconhecimento do território e efectuar o mapeamento do interior do continente.
(4) Pistola-metralhadora, de origem israelita, cujo desenho e fabrico remonta ao princípio os anos cinquenta. Não era muito vulgar o seu uso na Guiné, pelo menos no meu tempo e na zona leste.
Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)
Foto: © Carlos Marques dos Santos (2005)
Post originalmente publicado em 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma (deve ler-se Udunduma) (1) e agora reformulado:
1. Excertos do Diário de um Tuga (L.G.) (2)
Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971:
De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de Cães Grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivmente da Wermacht nazi.
Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ...
Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.
Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…
A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname.
2. Referência a este episódio na História da CCAÇ 12 (1969/71) (Cap. II. 45):
“Em 1 de Fevereiro de 1971, foram detectados 6 elementos IN a cambar o Rio Udunduma em direcção a Samba Silate. Feito o reconhecimento pelo 2º Gr Comb, verificou-se que o trilho aberto na bolanha conduzia ao reordenamento de Nhabijões.
“A partir de 2, a segurança diária à estrada Bambadinca-Xime passou a constituir uma acção (patrulha com reconhecimento no trilho de Chacali).
“Em 3 de Fevereiro, Sexa General Com-Chefe, de visita aos trabalhos de construção da estrada (cuja importância para a estratégia militar e fomento económico do chão fula é absolutamente nevrálgica), esteve no destacamento da ponte do Rio Udunduma, tendo feito uma pequena alocução às praças africanas do 4º Gr Comb. (….)”.
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Notas de L.G.
(1) Vd. posts anteriores (P1131 e P1130).
(2) Esta leitura de Spínola e da sua entourage está necessariamente datada e é fruto (amargo e amargurado) das circunstâncias. Confesso que não gostava do personagem, não só pelo seu currículo militar como sobretudo pelos seus tiques: quando escrevia sobre ele, no meu diário, tratava-o sempre por Herr Spínola. Sendo antimilitarista (ou pelo menos julgando-me como tal), sobretudo não gostava de Cães Grandes, como eu chamava aos oficiais superiores que, naturalmente, não podiam ser todos metidos no mesmo saco. O coronel (?) que me deu a piçada pelo meu ar selvagem, terá sido porventura o do Agrupamento ou do COP de Bafatá. Creio que já não era o Hélio Felgas, era um seu substituto. O tenente-coronel Polidoro Monteiro, novo comandante do BART 2917, não era, de certeza... Mas para o caso não interessa: não lhe fixei nem o nome nem os galões... E a barba que usava no final da comissão, mais curtinha, veio comigo... e está comigo até hoje.
Como eu não convivi com os oficiais superiores dos batalhões a que esteve AFECTA A ccaç 12 (e eu conheci dois, o BCAÇ 8252 e o BART 2917) - contrariamente aos alferes milicianos que estavam em Bambadinca, sede do Sector L1 da Zona Leste, que partilhavam o mesmo espaço (o bar e a messe de oficiais, separado do bar e messe de sargentos, como mandava a etiqueta militar) - , também não estabeleci laços afectivos com nenhum eles, oficiais superiores. Contrariamente a outros camaradas de tertúlia que já aqui deram o seu testemunho: por exemplo, o Paulo Raposo, o Paulo Santiago, o Beja Santos ou, mais recentemente, o Torcato Mendonça.
Aqui ficam alguns posts já publicados com referências ao nosso Com-Chefe, também conhecido por Caco, Caco Baldé... ou, en passant, aos nossos oficiais superiores.
Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O termo queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, entusiásticos (e desgraçados) aliados de Spínola...
O general também era popular na caserna dos soldados, pela sua imagem de pai justiceiro... Ele era capaz de aparecer de surpresa num aquartelamento nos momentos mais insólitos ou mais dramáticos... Reconheço que as punições de oficiais superiores, incompetentes e impreparados para aquela guerra, deram-lhe uma auréola de homem corajoso, impoluto, determinado, um exemplo de liderança militar que era coisa que os nossos oficiais superiores - a nível de batalhão, pelo menos - não sabiam nem podiam dar, na generalidade dos casos...
Recorde-se que António de Spínola assumira, ainda como brigadeiro, em meados de 1968, os cargos de governador e comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na província portuguesa da Guiné, com a difícil missão de evitar o desastre político-militar que se anunciava: uma derrota das NT na Guiné teria fortes repercussões (psicológicas, morais, militares, polítcas...) nas jóias da coroa imperial, que eram Moçambique e sobretudo Angola.
Já general, e com ambições políticas, abandonou funções de governador e com-chefe em 8 de Agosto de 1973. Em 24 de Setembro, o PAIGC proclama unilateralmente a independência, em Madina do Boé, e a nova República Popular da Guiné-Bissau é reconhecida pela ONU em Novembro. Spínola foi substituído a 25 de Agosto pelo general Bettencourt Rodrigues. Pelo lado português, havia então mais de 40 mil homens em armas no território, que continuaram a lutar até ao fim, em condições cada vez mais duras e dramáticas...
Vd., entre entre outros, os seguintes posts:
2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso Sousa / Serafim Lobato)
29 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIV: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole (David Guimarães)
(...) "Percebemos pouco tempo depois o que ele nos queria a dizer... Tinha-se realizado a Op Abencerragem Candente (Ponta do Inglês, Xime, 25 e 26 de Novembro de 1970, que o Luís e o Humberto já têm aqui evocado várias vezes), com um porrada de mortos e feridos...
"Aí percebemos melhor o discurso do General quando na ordem de serviço veio o seguinte (reproduzo de cor): Segue para a Metrópole o Tenente Coronel de Artilharia M. F. por ser incompetente para comandar um Batalhão... Em seu lugar nomeio João Polidoro Monteiro, Tenente Coronel de Infantaria, etc. etc. etc... Nestas coisas, o Caco Baldé não brincava em serviço, cortava a direito... Não percebo por que é poupou o major A.C. (dizem que foi por ser antigo professor da Academia Militar...).
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)
24 de Detembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCX: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas (João Tunes)
(...) "Apresentei-me e disseram-me para ler umas coisas para me identificar com o serviço, aquilo eram só mapas, mais mensagens e informações confidenciais e secretas sobre o IN, dicas dos pides, combinações em voz baixa, coisa e tal, mais uma data de majores e capitães cagões (por serem da elite do Spínola) e não me esqueço que encontrei lá pessoal que depois foi célebre como o Eanes, o Otelo, o Monge, o Lemos Pires e outros mais, e eu ali na nata das NT.
"Ainda não tinha a manhã acabado aparece um dos majores, todo esbaforido (julgo que foi o Lemos Pires que esteve em Timor na descolonização), a dizer que tinha havido engano e que aquele lugar era para outro alferes (pelo nome, filho de boas famílias) e que eu tinha era que arrumar o saco e seguir de Dornier no outro dia pela fresquinha para Catió que ali é que era o sítio certo para oficiais corrécios e punidos. E desandei dali para fora com as minhas duas horas de serviço de Oficial de Estado Maior com Catió, Cacine, Guileje e Gadamael à minha espera. Lixaram-me o resto da comissão mas não me limpam o currículo. Pois foi aí que eles falavam do pingalim quando se referiam ao General (deviam achar que caco não era próprio do lugar)" (...).
13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá
(...) "Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
-Alfero, Alfero, é Spínola! - gritam os meus soldados" (...)
5 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola
(...) [Spínola] põe-se em frente de mim, cumprimenta-me e eu também e, à queima-roupa diz-me: - Você tem sorte.Eu, sem saber bem o que me esperava, digo muito timidamente: - Porquê, meu Comandante? - Porque quando começar a ouvir os tiros, já está mais perto do chão."Também tinha humor. A meu lado estava o Alferes Felício, que é uma viga, e que a meu lado ainda parece maior. O nosso Comandante Chefe diz-lhe o inverso: - Você que se cuide.
"Realmente, aquele homem com a sua voz rouca e arrastada, de luvas, com monóculo e o pingalim, impressionava qualquer um. A imagem de bravura que transmitia correspondia à sua maneira de ser. Nele tudo era verdadeiro e genuíno" (...)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos
Guiné 63/74 - P1131: Um dia (feliz) na ponte do Rio Udunduma, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (Luís Graça)
Lamentavelmente o editor do blogue cometeu um erro sistemático, replicado em diversos posts: o rio chama-se Udunduma e não Undunduma... Esse erro está agora a ser corrigido, com a republicação desta nova versão do post (1)
Foto: © Humberto Reis(2006)
Comentava, no início do ano de 2006, o Jorge Cabral, com aquela sua desconceratnte ponta de fina ironia, que nós - aqui no blogue - eramos demasiado sérios e que escrevíamos como se a guerra (da Guineé) ainda não tivesse acabado... para nós. Os nossos relatos eram dramáticos. As nossas memórias estavam carregadas da tensão dos dias, do cansaço dos meses e do silêncio dos anos.
Em 1969/71, no tempo da CCAÇ 12, a segurança desta ponte, construída em 1952, era de importância vital para toda a zona leste (regiões de Bafatá e Nova Lamego). Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No ataque em força, a Bambadinca, em 28 de Maio de 1969, os guerrilheiros do PAIGC tentaram dinamitá-la. Embora parcialmente destruída (era de bom cimento armado...), continuou operacional, e por cima dela continuaram a passar inúmeros batalhões...
Já sabemos que a partir daí passou a ser defendida permanentemente por uma força a nível de pelotão, a cargo das unidades do BCAÇ 2852, como foi o caso por exemplo da CART 2339 (Mansambo) (1). A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelo Pel Caç Nat 53 (Bambadinca) (2).
Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas em zê comunicando entre os precários abrigos individuais. O destacamento assentava sobre uma elevação de terreno, sobranceira ao rio e à ponte.
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor em Bambadinca)
"Era o António Dias Santos, de alcunha, não sei porquê, O Bacalhau. Quando estava em Bambadinca normalmente andava pela tabanca ao cheiro das bajudas e quase sempre com uma varinha na mão a imitar um pingalim. Há uns anos, quando organizei um dos primeiros almoços da rapaziada, procurei na lista telefónica o nome dele na zona da Régua, pois sabia que ele tinha sido funcionário da CP e que morava ali. Descobri-o, mas quando falei com a senhora é que fiquei a saber que ela já era viúva do Bacalhau" (HR)
Foto: © Humberto Reis (2006)
Se calhar o Jorge tinha (e continua a ter) razão. Pelo menos, alguma razão. Os nossos sentimentos são contraditórios. Alguns de nós conseguem ter (ou mostrar) uma visão mais diurna e positiva da Guiné do tempo da guerra. São capazes de se encantar com as imagens e as recordações da Guiné. Alguns conseguiram até lá voltar e fazer as pazes com os jagudis ou os sinistros fantasmas que os perseguiam. O Humberto, o Marques Lopes, o Guimarães, o Albano, o Teixeira, o Allen, o Camilo, o Paulo Santiago, o Beja Santos, voltaram lá, em diferentes épocas ... O Paulo Salgado vive lá, como cooperante, com a sua Conceição... O jornalista e professor Jorge Neto vive lá, em Bissau, no Bairro da Cooperação, vizinho dos Salgado... E regressa todos os anos, ao seu Alentejo, de carro, atrvessando o norte de África...
Outros ainda (onde eu muito provavelmente me incluo) querem lá voltar ou andam a arranjar coragem para fazer a viagem de retorno, divididos entre uma certa imagem mítica do passado e o medo (traumático) do desencanto e do pesadelo dos dias de hoje.
Enfim, outros continuarão a ter uma visão mais nocturna e negativa dos acontecimentos que os marcaram: as emboscadas, as minas, os ataques e as flagelações, a morte, a dor, o sofrimento, a solidão, a angústia, o absurdo da guerra que fomos obrigados a fazer...
Foto: © Humberto Reis (2006)
Foto: © Humberto Reis (2006)
Foto: © Humberto Reis(2006)
Foto: © Humberto Reis(2006)
Foto: © Humberto Reis (2006).
Já deixámos, porém, aqui provas do nosso bom humor, já aqui contámos estórias, mais pícaras, mais divertidas ou mais banais, tentando dar cor, cheiro e sabor àqueles 700 ou mais dias das nossas vidas que passámos na Guiné... O próprio Jorge deu o exemplo, deliciando-nos com as suas pequenas estórias que eu chamei cabralianas... O Jorge sempre teve uma maneira muito própria, desalinhada, talvez até marginal, de ser e de estar na tropa e, por extensão, na guerra...
O nosso convívio, na Guiné, era esporádico (quando íamos a Fá ou ele vinha a Bambadinca) mas foi o suficiente para eu o sinalizar como uma das figuras impagáveis me cruzei na Guiné... Felizmente, que o Jorge está de regresso e que podemos relembrar, em conjunto, velhas estórias, e descobrir, encantados, novas estórias saídas da sua talentosa pena...
Luís Graça
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Notas de L.G.
(1) Vd. também post anterior (P1130), com data de 29 de Setembro de 2006.
(2) O Pel Caç Nat 53, que será mais tarde comandado pelo Alf Mil Paulo Santiago, no Saltinho, esteve no Xime, no início da comissão do BCAÇ 2852 (que veio em Agosto substituir o BART 1904), tendo passado para Bambadinca em Outubro/Novembro de 1968 e por lá ficou pelo menos até Agosto de 1969. Em Setembro foi transferido para o Saltinho.
(3) Vd post de Luís Graça, de 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma (leia-se Udunduma)
"Ponte do Rio Undunduma, 3 de Fevereiro de 1971: De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi (...).Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba"...
sexta-feira, 29 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1130: A CART 2339, em socorro de Bambadinca, e na defesa da ponte do Rio Udunduma (Carlos Marques dos Santos)
Na altura cometi um erro e um lapso: (ii) um erro, ao escrever Undunduma, e que passei a replicar sistematicamente; ora o Rio chama-se Udunduma; passei/passámos (eu e o resto dos meus camaradas da CCAÇ 12) muitos dias e muitas noites; (ii) um lapso: o texto não é do editor do blogue, mas sim do Carlos Marques dos Santos... Resolvi, por isso, repescar o post e (re)publicá-lo no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné... com outro título, mas com o mesmo conteúdo e ilustrações... De futuro, serámais fácil fazer pesquisas sobre o famoso destacamento da ponte do Rio Udunduma, e não Undunduma. (LG).
Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > 1968 > "Um grupo de soldados a gralhar junto de uma ponte de cibes".
Foto: © Beja Santos (2006)
Continuação da publicação das memórias de Beja Santos (1), que comandou o Pelotão de Caçadores Nativos nº 52, em Missirá, partir de Agosto de 1968. Neste post, o nosso amigo e camarada aborda, de maneira delicada e elegante, mas também lúcida e corajosa, um dos tabus dos nossos 13 anos de guerra colonial: a solidão e a sexualidade (homo ou hetero) nos quartéis, em geral, e nos nossos aquartelamentos e destacamentos da Guiné, em particular.
É um notável texto, que merece a nossa melhor atenção e reflexão. Fabuloso o título que me é proposto e que eu mantenho integralmente, inspirado num grande poeta, músico e cantor brasileiro Chico Buarque (que está de volta a Portugal no próximo mês de Outubro)... É um post que honra este blogue e enriquece a nossa tertúlia: já aqui quebrámos alguns tabus (como por exemplo os nossos mortos que deixámos enterrrados na Guiné, os nossos queridos nharros que abandonámos e que foram fuzilados pelo PAIGC, a incompetência de muitos dos nossos oficiais superiores, os mitos de certas grandes operações...). Hoje, creio, quebra-se mais um tabu...(LG)
Procurar em vão a nossa alma
por Beja Santos
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... isto é circunstância. Solidão é muito mais do que isto. Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma. (De um poema de Chico Buarque).
Em Bambadinca, a 30 de Agosto [de 1968], de um regresso a uma vigilância em Mato de Cão, tinha um maço de fotografias reveladas à minha espera. Muitas delas ajudam-me agora a reconstituir os estilhaços da memória. Eu no Uige, sozinho e acompanhado. Numa delas estou ao lado do Brandão. Despedimo-nos a 31 de Julho, ele seguia para Bula, eu parti para outra oblíqua, em direcção ao Geba. Ver-nos-emos mais tarde, na Op Anda Cá, em Fevereiro [de 1969][, pela última vez. Brandão, tu eras zombeteiro e caçoavas permanentemente dos acasos da fortuna. Eras um verdadeiro minhoto. Nesta fotografia tu sorris. Na minha recordação, tu levas duas granadas lança-foguete ao ombro quando, a escassos metros dos teus pés, rebenta um fornilho. Com o rebentamento, revolteias numa nunvem de salitre e clamas:
- Meu Deus, estou morto!.
Não ganhaste para o susto. Numa cratera ali ao teu lado um dos teus soldados deixou os ossos triturados e Fodé Dahaba chora mansinho. Mais tarde, por aerograma, um amigo avisa-me:
- O Brandão finou-se. Foi um acidente estúpido, um soldado seguia à frente dele com a G3 no ombro, o cano virado para ele. Foi um acidente estúpido, um arbusto destravou o gatilho, a bala entrou-lhe pela fronte. Mais estúpido de tudo é que no caixão, sossegado, parecia dormir serenamente.
Pego noutra fotografia. Agora, é labor insano. A reconstrução de um abrigo em Missirá. Está lá o Alcino Barbosa, o Cibo, Nhaga Macque, Ussumane Baldé, rolam um tronco de palmeira, ainda a cheirar a corte da motoserra. Ao fundo está Sadjo e também o estou a ver pela última vez. Em Março [de 1969], naquela flagelação que reduzirá a cinzas a nossa Missirá, ele vai cair atravessado pelos estilhaços de um granada de um morteiro, quando enxotava crianças e velhos para um abrigo.
Enfim, albuns de militar em campanha na última guerra de Portugal. Há fotografias de tudo: crianças com espingardas Mauser, soldados com sorriso franco a reparar uma ponte, eu a pegar por uma corda uma surucucu, a tal cobra que os soldados fugiam em pânico na mata. São fotografias a preto e branco de gente, de paisagens, de obra feita e refeita.
À noite acabo a leitura de Rebeca, de Daphne du Maurier. A minha mãe ofereceu-me o seu exemplar antes de eu partir, dizendo:
- É uma obra prima, acredita, aliás tu já viste o filme. - O que era verdade. Já vira num cineclube a Rebecca de Hitchcock, Óscar de Melhor Filme em 1940, o primeiro de Hitchcock na América, com Laurence Olivier e Joan Fontaine nos principais papéis, e Judith Anderson num desempenho magistral da governanta, que lhe valeu o Óscar secundário.
Romance inesquecível que gira angustiantemente à volta de Rebeca, que nunca parece. Obra de mistério e suspense, é uma ficção que resvala para a literatura policial já que há um assassínio que, neste caso, nunca será desvendado. Mais tarde, irei reler assiduamente o livro que tem uma bela capa de Bernardo Marques, um desses artistas magistrais que mudaram o desenho gráfico das edições em Portugal.
É noite adiantada e vou fazer a ronda pelos postos. Como sempre, levo a minha lanterna e procuro itinerários diferentes. Tudo seguro no posto junto ao cavalo de frisa, falo com Gibrilo e peço-lhe para mudar a camisa do petromax. Depois, sigo para o posto virado para a fonte. Aí está o Veloso, e conversamos sobre aprovisionamentos para a próxima coluna a Bambadinca. Envieso e vou entre moranças por onde raramente passo. Embrenho-me e olho demoradamente a Mesquita a pensar no Ramadão que se avizinha. Sigo silenciosamente e é então que oiço vozes sussurrantes, vozes que vão resfolegando e que crescem em ansiedade. Aponto o foco para a zona do murmúrio, a luz que acendo é a luz que me queima o olhar e me tolhe o movimento. O que vi está visto: dois soldados fazem sexo e o foco da lanterna apaga-se no exacto momento em que um homem sentado afasta o outro homem que estava em cima dele.
Em pânico, volto para o meu abrigo e atiro-me pesadamente para a minha cadeira de verga onde leio, escrevo e oiço música. Eu sei e virei a saber que o sexo é uma questão interdita nesta guerra. Há muito calão, muita expressão brejeira, fala-se de amores mas parece que tudo morre no pudor subterrâneo seja dos amores que ficaram em Portugal seja no pacto de silêncio que queremos ver estabelecido com os nossso corpos jovens a quem se procura preservar da intimidade dos outros olhares, dos outros filtros da consciência. Fala-se do sexo mas não se diz nada, é como se fossem frases lançadas como bolas de sabão. Não há consequência nesta comunicação, até porque aquelas frases soltas não estão atadas a afectos. Andamos em tronco nu, endereçamos piadas às bajudas mas nas conversas entre militares, ainda por cima um quartel em que vivemos em abrigos ao lado da população civil, sente-se que não há gravidade neste erotismo epidérmico. As dores do sexo não são transmitidas ao grupo, depois somos portugueses e nesta guerra constituimos um caldeirão de gente que passou pelas universidades, pelo liceu e escolas técnicas, agricultores, operários e estudantes entendem-se na caserna por um denominador comum onde o sexo íntimo não existe nem se comenta.
É por isso que eu estou estuporado com este quadro insólito, conhecendo aqueles homens com quem convivo todos os dias e que acabo de encontrar numa inesperada união homossexual. Procuro aliviar a tensão pondo música barroca no gira-discos e até tentei em vão sossegar os nervos lendo. Oiço o saibro a ser esmagado pelo andar de alguém que se aproxima e me bate discretamente à porta da morança. Mando entrar e segue-se um diálogo em que descobri que era homem capaz de me irmanar com o sofrimento de quem procurava. Nessa noite, sei que tomei decisões acertadas mas procurando em vão a minha alma
- O que é que o meu alferes vai fazer comigo? Diga-me já se nos vai castigar ou contar o que viu.
Olho-o com embaraço e peço-lhe para se sentar:
- Ouve, o que vi faz parte da vossa intimidade e não vejo nenhuma razão para trazermos a público o presenciado. Estou muito embaraçado, porque tivemos todos uma conversa demorada sobre o respeito e a boa convivência que devemos a esta população. Adverti para os perigos de procurar mulheres casadas ou solteiras. Tu tens visto estas cenas em que os soldados nativos se envolvem em amores com as mulheres dos outros e mal cheguei houve aqui uma cena de tiroteio. Quando há adultério, ou coisa parecida, remeto tudo para o régulo Malan. Agora, a situação é nova, um militar da Metrópole envolvido numa relação sexual com um soldado nativo. Não te passa pela cabeça o que seria se vocês fossem vistos pelos vossos camaradas?
O meu visitante, que entrara com uma expressão congestionada, não pareceu serenar com esta minha declaração:
- Meu Alferes, não estou a representar, eu ando de cabeça perdida, desde miúdo que procuro reprimir-me, não sou como os outros, não perco a olhar a raparigas, vou sempre direito a olhar a zona do sexo dos homens, aprecio as formas e uma cara bonita. Se o meu Alferes contar esta história eu juro que me mato, não estou a encostá-lo à parede, eu dou um tiro na cabeça, eu não aguentarei a vergonha de andarem a chamar-me roto ou maricas.
Achei que devia dar uma nova direcção à conversa:
- Camarada, espero que incluas na tua vergonha a sorte do guineense que arrastaste para o teu acto. Não sou padre nem inquisidor, sou o teu comandante e vamos agora tratar do dia de amanhã. O que eu vi, vi. Não haverá, da minha parte, qualquer publicidade ao que vi. Talvez vocês tenham tido muita sorte em não ter sido apanhados por civis ou camaradas. Vais-te entender com o teu amigo sobre o que poderá acontecer se vocês forem vistos a praticar sexo. Não me ameaces com tiros na cabeça, controlas-te como toda a gente pois a vergonha é também uma regra que decorre do autodomínio. A vergonha não é um assunto exclusivo de homossexuais.
O meu visitante, entretanto, quis desabafar:
- Ó meu Alferes, eu não sei se aguento a situação só a bater punheta, eu gosto do meu amigo, esta solidão enlouquece-me. Eu procuro medir as consequências, sabia muito bem que andava a arriscar tudo, estou farto desta guerra, sinto-me muito só, já me basta assobiar às raparigas, como se eu fosse uma pessoa normal. O que é que eu vou dizer ao meu amigo?
Pus-me de pé, endiretei os óculos, controlei a respiração e disparei sem contemplações:
- Antes de mais, lembra-te que esta solidão atinge toda a gente. Este não é o nosso lugar, mas temos que fazer deste território o nosso lugar habitável. Vais dizer ao teu amigo que tem mulher e filhos que falaste comigo, que eu vi o que vi e que lhe peço que se lembre que vocês não podem andar a fazer sexo entre moranças e não venhas agora perguntar aonde é que vocês devem fazer sexo. O teu discurso não pode ser desculpa para novas imprevidências. Procura não ser tão egoísta. Medita bem, se necessitares de mudar de quartelamento, não hesites caso descubras que há uma relação profunda entre ti e ele. Amanhã, ao fim do jantar, vens-me dar conta do que decidiste. Agora, não leves a mal, já passa das 2 da manhã, temos que dormir. Boa noite. O que conversámos fica estritamente entre nós, não os dois mas os três. Explica cuidadosamente tudo ao teu amigo.
No dia seguinte, depois do loto a feijões, avancei para o meio da parada como se fosse ver o abrigo do morteiro. Discretamente, ele seguiu-me e deu-me conta da sua decisão:
- Dou-lhe razão, não posso comprometer o meu amigo, ele seria a principal vítima. Logo que possa, veja se consegue a minha transferência. Agradeço-lhe a sua compreensão.
Chegámos a Setembro, o cacimbo veio mais cedo. Pela primeira vez, participei numa emboscada nocturna, levei mosquiteiro, permanecemos num arrozal até de madrugada. Para quem se recorda, estas emboscadas diante da floresta hermética eram fisicamente duras e punham o nosso moral à prova. Então, ganhando no factor surpresa, na madrugada de 6 de Setembro, o bi grupo de Madina-Belel [, a noroeste de Bambadinca, no Cuor, ] atacou com uma salva de morteiros, bazucas e muita metralha. Como se fosse hoje, recordo o meu baptismo de fogo. Como em todas as outras situações desta natureza, não faltei à regra cometendo os meus dislates. O primeiro foi acender a luz enquanto a metralha serpenteava sobre os céus de Missirá. Convencido que o hábito faz um monge vesti o meu pijama, calcei-me, abri a porta olhei o fogo a toda a volta como se estivesse a ver um filme em cinemascópio, e corri para um abrigo com a G3 na mão. Eu vou contar.
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 26 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1118: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (13): Rebelo, meu rapaz, ninguém nasce soldado!
quinta-feira, 28 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1128: Estórias cabralianas (13): A Micá ou o stresse aviário (Jorge Cabral)
Guiné > Região Leste > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > O Jorge Cabral e as queridas bajudas mandingas... Um homem não é de pau e, às vezes, mete-se em sarilhos de saias, como aconteceu com a Micá desta estória, passada em Vendas Novas...
Foto: © Jorge Cabral (2006)
Mais um short story (1) do nosso amigo e camarada Jorge Cabaral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário, especialista em criminologia).
O Stresse Aviário, das Galinhas aos Morcegos
por Jorge Cabral
Terminada a especialidade de Atirador de Artilharia, permaneci como aspirante, em Vendas Novas, na respectiva Escola Prática. Aí me atribuíram variadas funções, Justiça, Acção Psicológica e Cultural, Revista Literária, etc, etc, pelo que quase nunca fiz nada. Quando me procuravam num lado, estava sempre no outro…
Na Justiça, creio que apenas dei andamento a um processo, enviando uma deprecada para Angola, a perguntar se o Furriel Patacas possuía três mãos. É que uma pretensa vítima de violação havia declarado que o Arguido, com uma mão lhe tapara a boca, com outra lhe agarrara os braços e com mais outra lhe despira as cuecas… Acabei por não receber qualquer resposta mas ainda hoje penso que uma terceira mão seria muito útil em certas ocasiões…
Publiquei na Revista da Unidade alguns poemas, todos objecto da censura do Comandante. Uma vez exigiu que substituísse o verso “um gato a escorregar pelo sexo inteiro”, ordem que cumpri escrevendo “molhando minha pena em teu tinteiro”, opção que o bom do Coronel aplaudiu, dizendo:
- Assim está melhor, lembra a escola.
Dinamizei jornais de parede, mas escândalo dos escândalos, esqueci-me de organizar a romagem dos militares a Fátima, no dia 13 de Maio. E assim pela primeira vez, a EPA - Escola Prática de Artilharia não esteve presente. Tão fatal e laico esquecimento ter-me-á valido a mobilização…
Penso que foi na qualidade de oficial de justiça que conheci Micá, rosada e bem nutrida moçoila, pela qual logo senti um clique de ruralidade erótica. Filha do 1º Cabo R/D Correia, viviam ambos nos confins do Polígono, em instalações do quartel, a uns quinze quilómetros da Vila. Órfã de mãe, Mica tinha muito medo do pai, que praticamente não a deixava sair de casa. Sabedor que o Correia, após sair do serviço, fazia um longo turno na tasca do Velez, só regressando a casa muito tarde e sempre bêbado, aventurei-me, fui procurar a Micá.
Bem barbeado, perfumado e de fatinho novo, lá cheguei. Ainda havia só conversa mas a noite prometia, eis que os cães começam a ladrar e Micá empalidece:
- O meu Pai, o meu Pai mata-me!- grita - Fujo e, sem outra alternativa, enfio-me no galinheiro, e fico quietinho debaixo do poleiro. Sinto o cabo entrar em casa e logo depois sair de caçadeira em punho:
- Será raposa ou raposão ? - clama, na sua voz de ébrio. - Não me mexo, e quase não respiro, enquanto montes de galinhas me picam, me picam, me dejectam.
Só ao raiar da manhã, e pé ante pé, é que abandono o local. No quartel estou uma hora debaixo do chuveiro mas não dissipo o cheiro. Quanto ao fatinho novo, o único remédio foi deitá-lo para o lixo.
Tão traumática experiência deixou profundas marcas. Durante largos meses só sonho com galinhas. Até a Micá surge como galinha-gigante, pondo ovos-granadas que me rebentam no peito.
Só na Guiné e em Fá é que começo a melhorar. Ainda sonho com a Micá, transformada em bajuda, aparecendo também o Cabo Correia, feito turra, que eu mato com a sua caçadeira. Acordo mais aliviado…
Em Missirá, contudo, sofro uma recaída. Não é que todos os dias, o mosquiteiro aparece manchado de uma substância amarelada e mal cheirosa ?! Fezes galináceas, concluo. Voltaram. Inspecciono o tecto, e de galinhas, nada. Regressam os sonhos e agora todos são galinhas, o Comandante, o Major das Operações, o Capitão, o Exército inteiro.
Vou a Bambadinca consultar o Nanque (2), que me pede cem pesos e uma galinha para resolver o assunto. Levo-o a Missirá e ele ao pé da cama, mata a galinha, fazendo escorrer o sangue na minha cabeça. Diz umas palavras, faz piruetas e pronto, afirma estar tudo acabado. Logo no dia seguinte porém, reaparecem as manchas. Estarei a enlouquecer?
Falo então com o Teixeirinha, o nosso cozinheiro, que me havia contado muitas histórias de bruxas. Cheio de importância por o Alferes a ele ter recorrido, o Teixeirinha, já muito bebido, faz rezas, olha, cheira e quase irritado, sentencia:
- Porra, meu Alferes! São os Morcegos que lhe andam a cagar em cima!
Jorge Cabral
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Notas de L.G.
(1) Vd. a última, post de 20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor
(2) Vd. post de 3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro
(...) "Alguns dos que passaram por Bambadinca, certamente se lembrarão de ver o Nanque naquela prisão que parecia um galinheiro (1). Por minha ordem era-lhe fornecida uma cerveja diária, mas nunca lhe consegui arranjar macacos que ele gostava de comer assados (2). Não ficou muito tempo preso, pois calculem, passou a ordenança do Comandante do Batalhão…
"Quando me vim embora despedi-me do Nanque. Abraçando-me, aconselhou-me a seguir o chamamento dos tantãs… O que sempre tenho feito!" (...).
Guiné 63/74 - P1127: Em defesa dos comandos (A. Mendes, 38ª CCmds)
Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Texto do membro da nossa tertúlia A. Mendes , ex-1º Cabo Cmd da 38ª CCmds (Os Leopardos) (Guiné, Brá, 1972/74):
Amigo Luís:
Permite-me uma correcção (1): a 38ª de comandos não foi a última companhia de comandos a ser mobilizada para o TO da Guiné mas sim a CCmds 4041, formada em Lamego e que chegou à Guiné em Maio de 74 e a qual eu ainda dei a fase operacional em Teixeira Pinto.
Se me permites, gostaria de esclarecer o seguinte: trabalhei muito com a 1ª, 2ª e 3ª CCmds Africanos em todas as zonas operacionais da Guiné. Comemos da mesma ração, partilhámos a água do mesmo cantil, sofremos a mesma dor ao chorar os NOSSOS camaradas mortos. Operações duras que obedeciam a directrizes do comando de operações. E por muito duras que fossem, era nossa obrigação levá-las a cabo da melhor forma, seja lá o que isso implicasse.Os Cmds eram voluntários, sabiam ao que iam e para eles a Pátria era algo de sagrado. Empregavam nas operaçõea todo o seu saber que lhe foi ministrado num curso duríssimo.
MAS.....não eram assassinos nem criminosos de guerra, como alguns senhores aqui no blogue tentam dar a entender. De acordo ! Na guerra cometem-se excessos, mas daí a crimes de guerra...
Eu estive em toda a Guiné, do Morés ao Cantanhez.Vivi com a tropa de quadrícula dentro do arame, e também eles no contacto do dia a dia com a população local não eram nenhuns meninos de coro. Por isso, amigos e camaradas de guerra, os Cmds africanos não foram fuzilados por crimes de guerra, mas por ódio! Ódio pelo facto de terem sido fiéis à Pátria numa tropa que fez então ao PAIGC no terreno aquilo que sabia fazer melhor: derrotá-los. Isso nunca foi perdoado pelo sr. Luís Cabral. E, se atentarem bem, o ódio étnico também não esteve ausente.
RESPEITO por quem morreu pela Pátria é a única atitude possível por quem passou pelos campos de guerra.
Amigo Luís Graça, assim que puder vou-te enviar fotos e alguma documentação. Prometo-te que irei ser mais interventivo porque me parece que alguns camaradas, quando aqui escrevem, se esquecem de alguns promenores e acrescentam outros. Aproveito para saudar o amigo Briote (2).
Saudações.
A. Mendes
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)
(2) O que é feito de dele ? O Virgínio Briote continuava blogando, no Tantas Vidas, pelo menos até Julho passado. Um dos posts, que li era uma evocação do IN, feita pelo heterónimo Gil com o respeito que os inimigos de armas merecem, aqui na pessoa no Nino.
Aqui vai um excerto, de um post de 15 de Julho de 2006:
(...) "Nino, sentido, porra! Uma lenda da guerra da independência. No PAIGC desde 1960, responsável por zonas de guerrilha, preso em Catió por um acaso fortuito pelas autoridades coloniais, circulava sem o recibo comprovativo do pagamento do imposto de circulação, não o das viaturas, claro. Os camaradas atentos libertaram-no logo com toda a gente a ver menos os carcereiros. Membro do bureau político do Partido logo em 64, chefiou a resistência no Como ao famoso 490 de cavalaria, foi aqui que os comandos mais antigos experimentaram a sua têmpera, de tal forma que sempre que se falava no nome dele, fosse na instrução, no Hotel Portugal, na casa da Dora, nas casas de meninas, fosse onde fosse, punham-se todos em pé, calados, em sentido. Uma praxe como qualquer outra, claro! Continuou a subir na hierarquia, responsável político-militar da frente sul, responsável nacional das operações militares. Ele próprio, em pessoa, expulsou as NT do aquartelamento de Guileje. Se alguém tinha que ser, ao menos que fosse ele. Após a independência foi comissário de Estado das Forças Armadas, Presidente do Conselho da Revolução, secretário-geral do PAIGC, até correr com o Luís Cabral, o irmão de Amílcar. Em 1999, na sequência dos acontecimentos de Casamansa, outro golpe, mas agora contra ele. Retirou-se para Portugal, Gaia, onde oficialmente residia até há pouco tempo, até que resolveu desmentir quem tinha dito que a carreira político-militar do Nino tinha acabado" (...).