terça-feira, 23 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2207: As Nossas Tropas - Quem foi quem (1): Vasco Lourenço, comandante da CCAÇ 2549 (1969/71) e capitão de Abril


Lisboa > DocLisboa2007 > Culturgest > 19 de Outubro de 2007 > Os coronéis na reforma Vasco Lourenço e A. Marques Lopes, na estreia do filme de Diana Andringa e Flora Gomes As Duas Faces da Guerra. Os dois tugas que estiveram na Guiné, e que participam neste filme, com os seus depoimentos sobre a experiência da guerra. Vasco Lourenço, que comandou a CCAÇ 2549 (1969/71), e foi um dos grandes capitães de Abril, é actualmente presidente da Direcção da Associação 25 de Abril. O nosso camarada e amigo A. Marques Lopes é um dos responsáveis pela Delegação Norte. Infelizmente, não temos nenhum representante da CCAÇ 2549 na nossa Tabanca Grande.

Foto: © Xico Allen / A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados.

Vasco Lourenço (n. 1942), comandante da CCAÇ 2549 (1969/71)

(i) Nasceu em 19 de Junho de 1942, em Lousa (Castelo Branco).

(ii) Ingressou na Academia Militar em 1960.

(iii) Após o tirocínio na EPI em Mafra, foi colocado no RI2 em Abrantes (1964), onde seria promovido a alferes.

(iv) Voltando à EPI em 1965, onde foi instrutor do Curso de Oficiais Milicianos (COM), foi transferido nesse mesmo ano para o RI5, nas Caldas da Rainha.

(v) Promovido a tenente (1966) e a capitão (1968), é mobilizado para a Guiné.

(vi) Na Guiné, comanda a CCAÇ 2549, integrada no BCAÇ 2879, nos anos de 1969/71.

(vii) Regressado da Guiné, foi colocado no BC5 em Lisboa.

(viii) Daí foi para o BRT onde adquiriu a especialidade de Criptólogo, em 1972.

(ix) Fundador do Movimento dos Capitães, coordenou a organização da sua primeira reunião, em 9 de Setembro de 1973.

(x) Membro da Direcção do Movimento dos Capitães e do Movimento das Forças Armadas (juntamente com Vítor Alves e Otelo Saraiva de Carvalho), onde era responsável pela ligação interna e pela área operacional.

(xi) Em 25 de Abril de 1974 encontrava-se colocado no QG da Zona Militar dos Açores, para onde seguira em 15 de Março desse ano, depois de um conturbado processo, que incluiu a oposição do Movimento dos Capitães à sua transferência, a simulação do seu rapto, a sua entrega às autoridades militares e a sua prisão na Casa de Reclusão da Trafaria (10 a 15 de Março).

(xii) Membro da Comissão Coordenadora do Programa do MFA; membro do Conselho de Estado; membro do Conselho dos 20; membro do Conselho da Revolução, durante toda a sua vigência, onde desempenhou a função de moderador das suas reuniões.

(xiii) Para além disso, foi também membro do Conselho da Arma de Infantaria.

(xiv) Desempenhou as funções de Porta-voz do Conselho de Estado, da Assembleia do Exército, da Assembleia do MFA, do Conselho dos 20 e do Conselho da Revolução.

(xv) Foi o primeiro subscritor do Documento dos Nove, em Agosto de 1975.

(xvi) Membro das Comissões que elaboraram os dois pactos MFA – Partidos.

(xvii) A sua nomeação para comandar a Região Militar de Lisboa desencadearia o 25 de Novembro de 1975.

(xviii) Manteve-se como Governador Militar de Lisboa e Comandante da Região Militar de Lisboa, de Novembro de 1975 a Abril de 1978 (para o efeito foi graduado em brigadeiro, 27 de Novembro de 1975, e em general, 11 de Agosto de 1976).

(xix) Nos finais de 1982, terminado o período de transição e extinto o Conselho da Revolução, regressou ao Exército, como major e foi colocado na Cheret, onde foi promovido a tenente-coronel (1984).

(xx) A seu pedido, passou à reserva em 1987; face à posterior alteração da legislação foi passado à reforma em 1994; ao abrigo da lei nº 43/99, foi promovido a coronel, em Abril de 2002, com antiguidade de 1990.

(xxi) Presidente da Comissão Organizadora do 25 de Abril – Dia da Liberdade, em 1979.

(xxii) Presidente da Comissão Instaladora da Associação 25 de Abril.

(xxiii) Obteve o curso de Defesa Nacional, em 1981.

(xxiv) Foi membro da Comissão Executiva das Comemorações Oficiais do 25º aniversário do 25 de Abril.

(xxv) É autor de dois livros: (i) No Regresso Vinham Todos (conta a experiência da guerra colonial na Guiné, em co-autoria com vários militares da CCAÇ 2549); (ii) MFA – Rosto do Povo (entrevista sobre o 25 de Abril de 1974, feita em princípios de 1975). (1)

(xxvi) Possui várias condecorações, de que se destacam a grã-cruz da Ordem da Liberdade e a grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

(xxvii) É casado e tem uma filha.

(xxviii) Presidente da Direcção da Associação 25 de Abril (desde a sua fundação em Outubro de 1982).

Fonte: Adapt. de Avenida da Liberdade > Vasco Lourenço (com a devida vénia...)

Vd. também:

Dossiê Expresso 25 de Abril > O puro dos puros, texto de Clara Ferreira Alves


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Nota dos editores

(1) Vd. post de 12 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CV: Bibliografia de uma guerra (1) (Jorge Santos)

(...) Título: No Regresso Vinham Todos.
Autor: Vasco Lourenço.
Editor: Editorial Notícias.
Ano: 1978.

Resumo:

Mais do que a narração da guerra, este livro, escrito por um dos capitães de Abril, descreve-nos pequenos acontecimentos de uma comissão na guerra colonial, na Guiné (onde foi comandante da CCAÇ 2549), e sobretudo dá-nos conta das emoções, dos sentimentos, dos medos, dos passatempos, que passaram pela mente, pelo coração e pela vivência de um punhado de homens atirados para essa guerra.

No Regresso Vinham Todos é bem um testemunho da forma como a guerra colonial se desenrolou. A maioria dos portugueses que a ela eram obrigados, faziam-na com a ideia fixa no regresso, sãos e salvos, e nunca com a convicção da sua justeza e da sua razão de ser.

Guiné 63/74 - P2206: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (9): Saí do filme muito melhor comigo (Virgínio Briote)

Guiné > Bissau > 1965 > A equipa de comandos do Alf Mil Virgínio Briote desembarca do heli, pronto para a acção.

Foto: © Virgínio Briote (2006). Direitos reservados.

1. Com a autorização do co-editor Virgínio Briote (1), transcreve-se a seguir o mail que ele enviou à Diana Andringa, co-realizadora do filme "As Duas Faces da Guerra":


Gostei muito do vosso trabalho. Do seu e do Flora Gomes (2). Da Diana estou habituado a ver obras empenhadas, sem faltar ao rigor. Do Flora, vi dois filmes que passaram na RTP. Por isso, não foi surpresa, para mim, a qualidade que mostraram.
Das Duas Faces da Guerra, alguém pode dizer que é um trabalho de um face e meia. Porquê? Porque da nossa presença mostra apenas a face da guerra. Não mostra nada do outro trabalho que foi feito junto das populações. Casas, assistência médica, higiene, alimentação. Muitos dizem que em 11 anos de guerra se fez mais pela população que nos séculos anteriores. Mas esse facto também fazia parte da guerra. Fazia parte da chamada psico-social. Não digo aquela que era determinada pelas Neps militares. Era a que os nossos militares, localmente, podiam fazer por eles e para eles e que se estendia à população. Claro que isso não foi muito mostrado. Nem provavelmente era esse o objectivo do documentário e 1 hora e 40 minutos é 1h40', não dá para tudo.

O documentário é belo, saí da lá como gostaria de ter saído. Com mais paz dentro de mim e se fosse possível a gostar ainda mais daquela gente. Saí de lá em 1967. Pertenci a uma força ofensiva, quando íamos para o mato o nosso objectivo era destruir o então chamado IN.

Deixei a Guiné mal comigo. A odiar-me e a procurar esquecer a Guiné e aquelas gentes. Nos anos a seguir, envolvido na minha actividade profissional, quando alguém falava da guerra colonial, o assunto não me dizia respeito. Eu não queria lá ter estado, por isso eu não estive lá. Como se quisesse esconder de mim próprio o facto de ter lutado empenhadamente do lado errado.

Ver aquela gente falar sem rancor, aqueles a quem eu acordava de madrugada com tiros e granadas, foi uma lição para mim. Não me absolveu, mas como escrevo atrás saí de lá melhor comigo.
Que mais posso dizer, Diana? Que gostei, é tudo.

vb
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Nota do editor L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue

Blogue do Virgínio Briote > Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas Guiné. Ir e voltar. 1965 e 1967. Histórias baseadas em factos reais, mas vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu . (Fevereiro de 2006 / Fevereiro de 2007).

Aqui fica um cheirinho de um dos blogues mais intimistas sobre a experiência, humana e operacional, de um oficial miliciano, comando, na Guiné...

Fevereiro 26, 2006

Um guia

22. TRADIÇÃO É PARA QUEBRAR TAMBÉM!

Tinha sido capturado numa emboscada que a tropa fizera junto a Mantida. Ouvira um tuga, branco de barba preta, dizer a outro, amarra o gajo, amarra-o já, eu vou-me àquele. Nem sentira as cordas que lhe prenderam nas mãos, que as pernas não precisavam. Deitaram-no numa maca, camisa e calças em sangue, atordoado, só se lembrara que caíra para trás, sem forças. Deram-lhe uma injecção, nem sentira, só vira a seringa na mão do soldado de cigarro na boca, cinza a cair por ele abaixo. Adormecera logo, mal o transporte arrancou. (...)


(2) Vd. post anteriores:

22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2202: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (8): Voltei a Cufar e a chafurdar nas bolanhas e rios de maré (Mário Fitas)

22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2200: A nossa Tabanca e As Duas Faces da Guerra (7): Comentário de Inácio Silva, da CART 2732, Mansabá, 1970/72

21 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2199: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (6): A crítica de Leopoldo Amado

21 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2198: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (5): Agradecimento de Diana Andringa

20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2196: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (3): Para a petite histoire do filme (Diana Andringa)

18 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2189: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (2): Febre de guerra ? Espero pelo filme em DVD (Torcato Mendonça)

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2187: A nossa Tabanca Grande e o filme As Duas Faces da Guerra (1): Estou interessado em comprar o DVD (Fernando Inácio)

Ver ainda:

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2194: Pensamento do dia (13): É na guerra que se revela o pior e o melhor das pessoas (Diana Andringa, Visão, nº 763, de ontem)

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2186: Uma guerra, duas vitórias: entrevista de Diana Andringa à RTP África (Luís Graça)

8 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2165: As Duas Faces da Guerra, filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, no DocLisboa2007 (18-28 Outubro 2007)

Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (Abril de 1968/Janeiro de 1969) > Um pequeno luxo, no aquartelamento em construção (e rapidamente abandonada meses depois, em Janeiro de 1969): a messe de oficiais... No chão, assinalado a vermelho, o famigerado repelente contra os mosquitos...


Foto: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.

1. Damos hoje início a uma nova série: Humor de caserna. Será iniciada com a reprodução do post de 9 de Novembro de 2004 > Portugas que merecem as nossas palmas - XII: António Lobo Antunes (Luís Graça)


É seguramente muito melhor a escrever livros do que a dar entrevistas. O gajo (o senhor gajo...) não se sente bem no papel de entrevistado: é desconfortável lê-lo, dá a ideia de que anda com papelinhos amarelos no bolso, daqueles de tipo autocolante, com citações de gajos tão ou mais famosos do que ele, com frases feitas, e pequenas histórias prontas a servir...

Achei-o mais piegas, mais ternurento, menos cínico, mais portuga, na entrevista que deu hoje ao Adelino Gomes, no Público. A pretexto da homenagem que lhe estão a fazer, a esta hora, em Lisboa. E do seu último romance, Eu hei-de amar uma pedra (Lisboa: D. Quixote, 2004, 616 pp., 19 euros no hipermercado mais próximo de si; se for adolescente e não tiver graveto, faça um choradinho junto do autor, numa sessão de autógrafos, de preferência na presença do editor).

A homenagem é a dos seus vinte e cinco anos de carreira literária. E a da sua consagração de escritor de nível mundial. Vão cá estar grandes críticos literários: a portuguesa Maria Alzira Seixo, a espanhola Maria Luisa Blanco, o sueco Mats Gellerfelt, o alemão Wolfram Schütte. Ele, António Lobo Antunes, o melhor escritor de língua portuguesa da actualidade, podia já dar-se ao luxo de fazer birras, de mandar os portugas à merda, de cobrar a factura por ser mal amado na sua terra e no Hospital Miguel Bombarda. Mas não, ele faz o frete de ir ao Teatro Muncipal São Luís, de dar entrevistas, de autografar livros, de mostrar um sorriso amarelo aos leitores que lhe compram os livros e o lêem.

Com a idade e a fama, o nosso António está a ficar mais consensual, mais nacional, mais bem comportado. A sua ferida narcísica está melhor. Ou, pelo menos, não está pior. E os portugas rendem-se à evidência do êxito e, mesmo se o não lêem nem o entendem, tiram-lhe o chapéu. É um dos nossos poucos produtos de exportação. É, pá, o gajo (o senhor gajo...) tem mesmo de ser bom, para ter o êxito que tem na estranja, na Alemanha, na Suécia, na França, nos States... Esse argumento convence o papalvo, e o portuga pode ser saloio mas não é parvo.

E o Sampaio, que é da geração dele, e amigo dele e da família dele, achou por bem dar-lhe a grã-cruz-de-não-sei-quê. Espero que não tenha sido o Sampaio, o irmão do Daniel Sampaio, mas o Presidente, o Presidente de todos os portugas.

Este país é pequeno (em latim, parvulu, que deu parvo). E há vizinhos e amigos por todo o lado. Este país continua a ser o Bairro de Benfica dos anos cinquenta e sessenta. A Benfica das hortas e dos quintais, da couve portuguesa e dos coentros. E depois temos a lágrima fácil ao canto do olho.
Eu gosto do António, do escritor, que não do homem (que não conheço, vi-o uma vez na Feira do Livro, com o ar de quem estava ali a fazer um grande frete, contrariamente ao Zé Cardoso Pires, que era a humanidade em pessoa, um e outro autografando livros aos meus filhos, a Joana e o João). Confesso que não sou um serial reader do António, mas quando pego num livro do gajo lei-o de rajada.

Não resisto a fazer copy and paste desta carta que ele mandou de Angola a um dos manos mais novos, quando esteve no cu de Judas [, Era então alferes miliciano médico, tinha 28 anos, e estava recém-casado.] Vem hoje no Público.

O estilo é o da Guidinha, do saudoso Stau Monteiro. Presumo que a carta seja autêntica, e que o original, agora desenterrado do baú, esteja nas mãos do irmão. Reconheço nele (e nela, a carta) o estilo desalinhado e irreverente do futuro grande escritor. Um gajo como ele não precisa de ser adjectivado nem muito menos da grã-cruz-de-não-sei-quantas. O Portugal que o viu nascer é que precisa de homanegeá-lo. Acredito que ele não se sinta bem na sua pele, ao ser hoje apaparicado por tanta gente, no São Luís. E de ter honras de telejornal. Ele, no fundo, gosta, diz que não gosta, mas gosta, como qualquer primata social...

A vaidade é própria dos primatas, que são animais sociais, territoriais e... predadores. E vai gostar de ainda, um dia destes, receber o Nobel. É ele e nós. Com ele há uma parte de nós, dos portugas, que é apaparicada. E nós estamos mesmo com necessidade e desejo de sermos apaparicados.

Tivemos o Saramago, outro mal amado; temos agora o António, que está de reserva. Ainda o temos o eterno Manuel de Oliveira, que já está no Guiness por ser o realizador mais velho do mundo ainda a trabalhar... Não temos muito mais, talvez o Siza Vieira, talvez a Paula Rego, talvez o António Damásio, talvez o Figo, talvez até o Francis Obikwelo e o Deco, outros dois portugas de corpo inteiro...

Não vou dizer que o gajo, o António, o Lobo Antunes (1), é um génio e escreve bem, que isso ele já sabe, a gente já sabe. A crítica reconhece-o. Mas palmas, pelo menos, apetece-me dar-lhas e mandar-lhas neste dia. O António é um dos portugas que merece as minhas, as nossas palmas. Não fui à tua festa, pá, mas fiz-me de certo modo representar por cinquenta por cento dos meus genes. Já comprei o teu último romance e tenho-o à mesa de cabeceira: prometo lê-lo por estes dias de Outono.

Luís Graça

PS - Este escrito está datado. É de 2004. E pretendia ser uma pequena, singela, ternurenta, homenagem ao escritor António Lobo Antunes, por parte de um dos seus leitores. Hoje, passados três anos, há mais razões para estender essa homenagem ao homem (e ao nosso camarada), que sorriu à morte com meia cara... Quem se olha ao espelho e vê a morte, como muitos de nós que estivemos na guerra, tem muito respeito por quem a enfrenta com coragem, à morte, à adversidade, à doença... António, viveremos até aos cem anos, para continuar a ler as tuas fabulosas crónicas e perdermo-nos nos labirintos dos teus romances e das nossas vidas... Desculpa o tratamento por tu, mas aqui na nossa Tabanca Grande todos somos iguais, somos camaradas. Além disso, ainda não te puseram no Panteão Nacional, com a bandeira verde-rubra por cima!... Figas, canhoto!... E obrigado pela sopa que nos tens dado.

2. Humor de caserna > A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (2)

Carta da Guerra em Angola Enviada por Lobo Antunes ao Irmão Mais Novo
Público, Terça-feira, 9 de Novembro de 2004 (com a devida vénia...)

Remetente:
António Lobo Antunes
Alferes-médico SPM 2676

Ex.mo Sr. Manuel Lobo Antunes
Travessa dos Arneiros, 14
Lisboa 4
Metrópole

Redação: A Sopa
27-04-1971, em Ninda

Querido Manuel,

Eu estou em Angola. Eu gosto muito de Angola. Eu vim para Angola num barco muito grande, com muitos soldados. Eu vou voltar de avião. Eu vou aí em Setembro. Eu tenho patilhas. Eu tenho cabelo rapado. Eu tenho muitas saudades de todos, tais como da Margarida. Angola é em África. África tem leões, macacos, gazelas, elefantes, pacaças, palancas e muitos pretos. Os pretos tem um cabelo com muitos caracóis e dentes brancos. Os pretos não falam português, falam preto. A gente não percebe os pretos a falar preto. Os pretos às vezes falam português. Os portugueses nunca falam preto. Em Angola há muito calor todo o dia. Eu tenho uma espingarda mas ainda não matei ninguém. Eu visto farda. Farda é um fato igual para todos. Eu como coisas que não gosto de comer mas como porque há muita gente com fome e não devemos desperdiçar. A colher fica em pé na sopa de tal maneira a sopa é grossa. A sopa serve também para pegar tijolos uns aos outros. Há casas que foram feitas graças à sopa. A sopa tem muitas coisas dentro, que a gente tem de mastigar, e às vezes corta-se a sopa com a faca. A sopa é mais dura do que um bife muito duro. As colheres de sopa caiem no estômago da gente com um barulho parecido com pedras a cair num poço. Eu não gosto de sopa. Eu nunca mais como sopa. Já me nasceram dentes na barriga para moer a sopa, e os meus intestinos, a fazerem a digestão da sopa, parecem mesmo um motor de traineira. Quando me sento à mesa e vem a sopa tenho medo porque a sopa parece cimento. Eu estou forrado de sopa por dentro. Quando me assoo sai sopa do nariz. Quando espirro espirro gotinhas de sopa. Outro dia tiraram-me sangue e um talo de couve saiu-me da veia e entupiu a agulha. De vez em quando, quando há feridos, fazem-se transfusões de sopa, e a gente vê o grão e o feijão da sopa a saírem de um para entrarem no outro. Quando há feridas é preciso desinfectar a sopa que sai da ferida. Se se espreme uma borbulha aparecem logo bagos de arroz de sopa. A sopa é o nosso pior inimigo, a espiar a gente do fundo das panelas duas vezes por dia, ao almoço e ao jantar, a sopa ataca-nos. A sopa já fez muitas baixas. Às vezes a sopa traz brindes como os bolos-reis tais como baratas, insectos, borboletas, que morreram envenenados pela sopa. De maneira que a gente vai começar a usar a sopa como remédio para os ratos. Os americanos já nos pediram para a gente mandar sopa para o Vietname, porque os comunistas morrem todos se a comerem. Eu gostava muito de dar sopa à sopa. Eu vou acabar. São horas de comer a minha sopa.

António Lobo Antunes
Vítima nº 07890263 da sopa
Morto no campo de batalha do refeitório com um ataque agudo de sopa

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

(2) A bianda, o tacho, a comes-e-bebes, o rancho, além do álcool, era talvez a principal preocupação do tuga na Guiné... O supremo luxo era um bifinho com batatas fritas e ovo a cavalo, em Bissau, Bafatá, Nova Lamego, regado com vinho verde ou com umas bazucas... Veja-se, nos nossos cancioneiros, como o fantasma da fome, a pulsão da comida (e da bebida), inspirava os nossos poetas e humoristas de caserna. É apenas uma amostra... Também deveria fazer parte de qualquer filme-documentário sobre o qutodiano das NT, nos buracos (aquartelamentos e destacamentos) em que vivia... Esta também é outra face da guerra. Talvez um dia alguém a consiga passar para o garnde écrã. Como diz o Jorge Cabral, a 'nossa' guerra nãi teve apenas duas faces, era caleidoscópio...

(...) A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê
É preciso protecção.

(...) Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!

Hino de Gandembel


(...) Quando cheguei a Bolama
Muita fome lá passei
De fome julguei morrer
Mas desta ainda escapei.

(...) De noite cheguei a Empada
Estava tudo iluminado,
De manhã fui passear,
Fiquei decepcionado.

Comecei a comer melhor
Depois que cá cheguei,
Mas foi à minha custa,
Pois cá me desenrasquei.

Houve cabritos e cabras,
Mortos a tiro e paulada
Que para matar a fome
Não nos custava nada.

Neste rol de matança
Também há porcos e leitões
Que para nós mais tarde
São grandes recordações. (...)

Cancioneiro de Empada


CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês.
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

MANUEL VIEIRA MOREIRA.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968

Cancioneiro do Xime

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2204: Estórias cabralianas (27): Turra desenfiado encontra Alferes entornado (Jorge Cabral)

Guiné > Algures em zona controlada pelo PAIGC > 1970 > Guerrilheiro, armado de Kalash...

Foto: Foto Bara (com a devida vénia...)


1. Mensagem de hoje, enviada pelo Jorge Cabral, nosso querido amigo e camarada, que foi Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, primeiro em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71. É autor da série Estórias Cabralianas (1) cuja publicação em livro tem vindo a ser insistentemente reclamada pelos/as seus/suas inúmeros/as fãs...


Querido Amigo,

O Comentário fica para amanhã. Faces da Guerra? Só duas?

Sexta-feira (1) tive o prazer de conhecer e conversar com o Marques Lopes, o qual também aprecia as minhas estórias. Confessei-lhe que ia mandar esta. E aí vai.

Abraço Grande
Jorge Cabral


PS. 1) Devo a possibilidade de me ter recordado do episódio ao Ex-Alf Mil Jaime Pereira, da CCAÇ 12 (1971-73) que me enviou uma afectuosa mensagem.

PS. 2) Quando me vim embora, vendi por mil pesos ao Reis – Alferes do Pel Caç Nat 52 – que, me substituiu em Missirá, um belo armário com todo o seu recheio, incluindo a Obra Paroles, da qual faz parte o Poema (1).

Estórias cabralianas > Turra desenfiado encontra Alferes entornado...
por Jorge Cabral


Já é noite cerrada e o Alferes de Missirá continua em Bambadinca. Numa mão o copo, na outra, o pingalim, encostado ao balcão do Bar, declama. Trata-se do longo poema de Jacques Prévert, “L’orgue de Barbarie” (2). É interrompido, engana-se, esquece-se, volta atrás, mas não desiste.

Moi je joue du piano
Disait un
Moi je joue du violon
Disait l’autre...
(3)

Aborrecido com a situação, o Polidoro Monteiro (4) chama o Alferes Jaime da CCAÇ 12 e ordena-lhe que leve o Cabral, e só o largue dentro do Sintex, a caminho de Missirá. O Jaime cumpre, mas ao regressar ao Quartel, encontra o Comandante furioso.

O declamador voltou ao Bar e continua dizendo que está quase a acabar.

Moi je jouais au cerceau
À la balle au chasseur
Je jouais à la marelle
Je jouais avec un seau...
(4)

Então o Tenente-Coronel mete-o no seu jipe, e transporta-o ao cais. É muito tarde porém, e o Sintex já não funciona. Como fizera em outras ocasiões, o Alferes vai acordar o barqueiro da piroga que, a troco de alguns pesos, lá o atravessa.

Em Finete, os Milícias querem impedi-lo de prosseguir, mas ele está determinado, e deixa-os estupefactos, falando-lhes em francês:

Et l’homme prit la petite fille par la main
Et ils s’en allèrent dans les villes
Dans les maisons dans les jardins...
(5)

Continua o seu percurso, rememorando os versos, até que subitamente lhe surge pela frente um homem. É jovem, traz uma arma em bandoleira, e uma carga à cabeça. Sem dúvida um turra desenfiado, que acaba de passar um bom bocado amoroso em Mero (6), pensa o Alferes, que lhe grita:


Et puis ils se mirent à parler parler
Parler parler parler
on n’entendit plus la musique
et tout fut à recommencer! (
7)


Assustado o bom do turra desatou a fugir, metendo-se mato dentro. Quanto ao Alferes ficou radiante. Finalmente terminara de declamar o Poema…

Jorge Cabral
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Notas de L.G.:

(1) Vd. último desta série > 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)

(2) Paroles [Palavras], livro de poemas, publicado em 1946, do grande poeta surrealista francês, muito popular, Jacques Prevért (1900-1977).


Também foi argumentista de cinema.


O título do poema recitado pelo J.C. era, em português, O órgão da barbárie.


(3) Tradução de L.G.:

Eu toco piano,
Dizia um,
Eu toco violino
Dizia outro.


(4) Último comandante do BART 2917. Considerado um oficial superior spinolista, corajoso, competente, desassombrado, truculento, usando e abusando da linguagem de caserna. O único, de resto, que vi, de arma na mão, a meu lado, no Sector L1, entre Julho de 1969 e Março de 1971... Já morreu. Era amigo de alguns dos nossos tertulianos: O Jorge Cabral, mas também do Paulo Santiago… Há vários posts publicados, fazendo referência ao Ten Cor de Infantaria João Polidoro Monteiro.

(5) Tradução de L.G.

Eu, eu brincava ao arco,
À bola, ao caçador,
Eu jogava à malha,
Eu brincava com um balde…


(6) Mero: Aldeia, balanta, considerada sob duplo controlo. Fica(va) a norte de Bambadinca, e a oeste de Fá Mandinga, na margem esquerda do Rio Geba (Estreito). Vd. post de 18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

(7) Tradução de L.G.:

E o homem pegou a rapariga pela mão,
E partiram dali para as cidades,
Para as casas, para os jardins...


(8) Tradução de L.G.:

E depois puseram-se a falar,
A falar, falar, falar,
Já não se ouvia mais a música
E tudo teve que recomeçar.

Guiné 63/74 - P2203: Artistas guineenses (2): José Carlos Schwartz (Didinho/V.Briote)


Na procura de informação sobre quem foi José Carlos Schwartz, escrevi ao Fernando Casimiro:
(...) Sou um dos co-editores de um blogue sobre a guerra da Guiné, o http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/ . Estou a colocar no blogue os principais (pelo menos os que a história e a lenda registou) protagonistas da luta. Visitante do seu Contributo, vi um trabalho muito interessante sobre o José Carlos Schwartz. Autoriza-me a citar o seu trabalho?
E onde posso recolher mais informação sobre o Pansau Na Ina, o Domingos Ramos, o Pedro Ramos e outros? Será que o PAIGC tem algum site onde tenha as biografias dos combatentes? (…)

Prontamente recebi a resposta:

Caro V. Briote,
(…) Sobre o trabalho em relação ao José Carlos Schwarz, é claro que pode reproduzi-lo da forma que achar melhor. Agradecemos isso, até porque vai no sentido da divulgação e valorização das nossas referências! Quero dizer-lhe que tem toda a liberdade para reproduzir o que entender em relação aos trabalhos que estão, ou estiverem no site http://www.didinho.org/ bastando uma pequena referência sobre o site.
Em relação aos nossos heróis nacionais, Pansau Na Isna e Domingos Ramos bem como ao Comandante Pedro Ramos, não há nenhum site que fale deles, nem doutros heróis ou antigos guerrilheiros. As referências que poderá encontrar sobre estas personalidades, estão relatadas, superficialmente, no livro “Crónica da Libertação” do antigo presidente Luís Cabral, um livro há muito esgotado, publicado em Julho de 1984 pela Editora “O Jornal”. Espero que consiga encontrar um exemplar desse livro, mas se não tiver essa sorte, eu poderei emprestar-lhe o exemplar que tenho e que me foi oferecido há cerca de 1 ano pelo autor.
Cumprimentos,
Didinho
__________

Série Artistas guineenses (*)
Quem foi José Carlos Schwartz: o testemunho de quem o acompanhou
TESTEMUNHOS DE UMA CONVIVÊNCIA
Norberto Tavares de Carvalho, o "Cote"
Genebra, 6 de Dezembro de 2006

Existem pelo menos duas possibilidades de definição do período aproximado da chegada à Guiné do avô paterno do José Carlos Schwarz. A primeira, estaria ligada à cronologia presencial de famílias de origem alemã que se instalaram no nosso país actual. O Arquivo Histórico do Ultramar, por exemplo, situa a chegada da família Schacht (Otto Schacht), no século XIX ou seja nos anos 1800.
A instalação, na Guiné Portuguesa, do avô do José Carlos poderia também situar-se mais ou menos nesse periodo.
A segunda hipótese estaria relacionada com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que levou a ruína, a fome e as doenças à Alemanha. Muitos cidadãos resolveram abandonar esse país. Poderia ser neste segundo contingente que um tal Schwarz desembarcou na Guiné. Mas é possível ainda que hajam outros cenários.
Naquela época, sendo Bolama a capital, era aí que se concentrava a maior parte da camada estrangeira. Instalado na Guiné, o exilado alemão teve pelo menos um filho a quem deu o nome de Carlos Schwarz. Este, por sua vez, viria a constituir família.
O José Carlos nasceu em Bissau num dia como hoje: 6 de Dezembro de 1949, da união de Carlos Schwarz e da Dona Fidjinha (Nha Fidjinha), de origem caboverdeana.
Eis o resumo do que consegui na preparação deste pequeno memorial dedicado ao aniversário natalício do saudoso José Carlos.
Logo que o seu filho atingiu a idade escolar, o Senhor Carlos Schwarz tratou de o pôr na escola. Assim, o José Carlos fez os estudos primários na sua terra e secundários em Dakar, Mindelo e Lisboa.
Segundo um dos seus próximos, o José Carlos interessou-se cedo pela leitura. A revista Readers Digest era distribuída em Bissau e pensa-se que foi através dela que o jovem centro-urbanista deu os seus primeiros passos na literatura. (...)´.
Em meados dos anos 60, o irmão mais velho do José Carlos, o Tony Schwarz instalou-se em Dakar, no Senegal. José Carlos viveu um certo período (1965-1967 ?), sob os seus cuidados.
Tony estava empregado na Perissac, Oficina Peugeot. Inscreveu o seu irmãozinho no curso de francês da Aliança Francesa, (ou numa escola similar). O Tony Schwarz tinha em Dakar uma posição social relativamente estável e cedo o José Carlos viria a provar as alegrias das noites quentes da capital senegalesa.
Nas discotecas, a salsa cubana estava em voga e Laba Sosseh era o seu mais fiel porta-voz.
Dakar, a sua sociedade, a sua cultura e as suas múltiplas perspectivas, ali bem pertinho de Bissau, era uma outra realidade, um outro universo, uma metrópole africana que não escapara à atenção do jovem prodígio. De regresso a Bissau, José Carlos não resistiria a frequentar as festas organizadas no Cupelom de Baixo, por um certo Benjamin de Almeida, comerciante (Djila) que fazia o seu negócio entre Bissau e Dakar e que era um conhecido do Tony Schwarz.
Esse Benjamin seria originário de Geba misturado com o wolof. Indivíduo selecto, distinguia-se pelo seu fato aberto sem gravata e seu chapéu de palha. No meio da festa, o Benjamin mandava abrir o campo para deixar o jovem salseiro exibir os seus dotes de dançarino.
José Carlos então, com aprumo, sapatos de couro de bicos compridos, tomava lugar no meio da sala e ao ritmo das músicas afro-cubanas, com entre-pernas e outras reviravoltas, dava um verdadeiro espectáculo no meio de intermináveis aplausos. Nos dias seguintes, nas ruas de Santa Luzia onde morava com os seus pais, era de novo um verdadeiro cavaleiro que se via no dorso do "Gaúcho", o seu cavalo, com uma corja de crianças atrás dele. Aí nasceria o primeiro mito do "José Cabalo".
Um encontro fortuito, ou o retomar de uma velha amizade, liga o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, dava noites musicais de gala no "Chez Toi ", um dos primeiros night club de Bissau. Zeca era já considerado um bom guitarrista. Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão.
Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo "Roda Livre" e ao conjunto musical "Sweet Fanda".
Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho do lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe apresentaram. Em 1968, foi destacado para a Guiné um novo Governador, o Brigadeiro António de Spínola, que substituiu no cargo Arnaldo Schultz. Spínola lançou então a politica da « Guiné melhor » à volta da Acção Nacional Popular.
Na altura, alguns emigrantes guineenses, residentes no Senegal, reunidos à volta da Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING), estabeleciam contactos pontuais com o então Governo Colonial Português. As cabeças pensantes mais conhecidas naquele tempo em Dakar eram os Senhores Benjamin Pinto Bull, Jonas Fernandes, François Cancola, etc.
O Tony Schwarz, que nunca escondera a sua hostilidade para com o PAIGC, pelo seu líder Amílcar Cabral e pelo seu programa da unidade entre a Guiné e as Ilhas do Cabo-Verde, (não se trata aqui de um julgamento, o Tony tinha de certeza argumentos para tal) embora mantivesse uma certa discrição à volta dos debates políticos daquela era, teria exercido uma certa influência nesse sentido sobre o seu irmão cadete. Não se trata aqui duma afirmação absoluta …
Entretanto, também regressa a Bissau o Everimundo José da Silva, filho do Nhu Musante, do bairro do Chão do Papel. Jovem instruído, Everimundo tinha fugido de Bissau indo reunir-se aos combatentes do PAIGC em Conacri. Daí teria beneficiado de uma bolsa de estudos para um dos países do Leste (Bulgária, RDA ?). Algum tempo depois, teria abandonado os estudos passando à RFA (República Federal da Alemanha). Sem a autorização de estadia na RFA, vivendo numa perfeita clandestinidade, Everimundo teria sido controlado numa discoteca, pela polícia alemã e recambiado para Portugal onde teria sido entregue à PIDE/DGS.
A organização secreta do então Governo Colonial Português tê-lo-ia metido na prisão, interrogado, torturado, e, de novo, recambiado para a Guiné.

Em Bissau, Everimundo teria sido imediatamente integrado na Acção Nacional Popular. Não se sabe exactamente quando é que conheceu o José Carlos Schwarz. Mais adiante poderão perceber a razão porque o caso do Everimundo José da Silva é citado nestas linhas.

Por volta de 1969, cerca de um ano depois da chegada à Guiné do Governador António de Spínola, um grupo de deputados da Acção Nacional Popular (ANP) parte para uma visita a Portugal no quadro do programa "Por uma Guiné Melhor", promovido pelo Brigadeiro. O Governo Colonial Português, na sua propaganda anti-nacionalista, deu uma grande cobertura à visita. No filme realizado, via-se o José Carlos Schwarz no meio da delegação da ANP na Fábrica de Explosivos e Munições Braço de Prata, na região de Lisboa.
Paradoxalmente, graças a essa mesma visita, o jovem de vinte anos na altura, iria ser confrontado com as suas próprias responsabilidades no contexto político-colonial. Este exercício identitário, inteiramente pessoal e profundamente interior deve-se ao seu encontro, em Lisboa, com um certo Filinto de Barros, "De Gaulle". Isto toda a gente sabe pelo que não constitui segredo nenhum. José Carlos teria recebido do "De Gaulle"os primeiros ensinamentos do nacionalismo africano, com exemplos da particularidade guineense.
O seu interlocutor, que na altura era estudante em Lisboa, conseguira convencer o José Carlos de que o seu papel não era ao lado do poder colonial. O encontro de Lisboa, com o Filinto de Barros constituiria o despertar de consciência do jovem pequeno burguês.
Quando o filme da visita a Portugal foi difundido na Guiné, no programa "Por uma Guiné Melhor", um dos actores do filme já não era o mesmo. O feitiço virara-se contra o feiticeiro.

O Everimundo José da Silva não teve a mesma chance de se cruzar com um Filinto de Barros. Foi precipitadamente executado logo depois do 25 de Abril de 1974. Oficialmente, o PAIGC ainda se encontrava em Conacri e nas regiões libertadas mas a sua ponta-de-lança já operava em Bissau.
De Readers Digest e outras, o nosso herói passou a interessar-se por outros tipos de literatura. Em Bissau, a Pide/DGS controlava de uma certa maneira a circulação de revistas subversivas. A "Vida Mundial", que dava valiosas informações de política internacional, não fazia parte da restrição. José Carlos fez dela a sua nova leitura de cabeceira.
Depois do Duco Castro Fernandes e do Filinto de Barros, um terceiro encontro, também decisivo, iria marcar uma nova reviravolta na evolução política e cultural do jovem rebelde, afinando ainda mais a sua definitiva opção. Seu nome: Aliu Barry.
À priori músico tradicional, Aliu evoluíra do seu lado, entre os dois Cupeluns. Exprimia-se perfeitamente com a viola ao contacto dos seus exímios dedos de ritmista. Uma grande amizade os reuniria e estaria na base da fundação de um dos primeiros conjuntos modernos de música crioula guineense, o "Cobiana Jazz" (1).
"Cobiana" instalar-se-ia na cena musical guineense fazendo leal concorrência à "Juventude 71" que já se implantara sobretudo no meio estudantil (...). Naquela época o Ernesto Dabó evoluia nos "Náuticos", e o Sidónio Pais Quaresma, o "Sidó", preparava-se para encapotar as suas "Capas Negras". Eis os conjuntos que constituiam as mais ambiciosas perspectivas musicais daquele glorioso periodo juvenil.
"Cobiana Jazz" propagava na sociedade guineense uma mensagem que ia directamente ao encontro das massas populares, conquistando assim uma boa parte da juventude urbana que passou a ter a possibilidade de pensar e de agir a partir da definição de uma nova base contextual.

O fenómeno "Cobiana Jazz" releva também o que Amilcar Cabral postulava a propósito das revoluções, a saber que só a pequena burguesia tinha a capacidade de as conduzir. Quanto à tese de Cabral relativo ao « suicídio » desta classe após a revolução, isso já pertence a um outro capítulo.
Sociologicamente falando, o José Carlos Schwarz era o único elemento da pseudo-burguesia, presente no grupo. Esta constatação não afasta em nada os outros valores do grupo, é simplesmente uma questâo de referência ideológica, cuja evolução, como referi anteriormente, pode ser dicutível.
Com o "Cobiana Jazz", o José Carlos Schwarz, o Aliu Barry e as suas retaguardas musicais, entram de rompante no conflito colonial, mudando forçosa e radicalmente uma parte dos peões avançados pelo Spínola, que constituiam, em grande parte, os alicerces da nova política colonial de alienação e submissão da juventude e da massa popular.
Confiantes nas suas acções mobilizadoras, os dois líderes resolvem participar, de maneira frontal, nas actividades da "Zona Zero", a principal antena do PAIGC em Bissau, dirigida por Rafael Barbosa.
No auge das suas actividades contra o Governo Colonial, José Carlos e Aliu Barry decidiram colocar uma bomba na própria delegação da PIDE/DGS em Bissau. Partiram de motorizada que deixaram banalizada nos arredores, atravessaram o portão principal e foram depositar o engenho na porta de grelhas, envidraçada do lado de dentro. Tratava-se de um potente explosivo de comando por relógio. Uma bomba-relógio!
Seguiu-se depois uma violenta explosão que fez voar em pedaços as grelhas e os vidros da porta da PIDE. José Carlos e Aliu tinham ousado desafiar o inimigo numa das suas mais protegidas fortalezas.
A fama do "Cobiana Jazz" percorrera praticamente toda a Guiné. José Carlos que entretanto fora chamado à tropa, bem como o Aliu Barry, viu-se afectado como condutor de camião em Fá Mandinga onde os Comandos Africanos recebiam preparação. Poucos meses depois seria o José Carlos convocado a Bissau onde receberia a ordem de prisão da PIDE. Aliu Barry teria a mesma sorte.
Deportados para a Colónia Penal da Ilha das Galinhas, Aliu cumpriu aí a sua sentença de dois anos. José Carlos só passou três meses na Ilha, tendo sido retornado ao Pavilhão de isolamento da Segunda Esquadra em Bissau para aí concluir o resto da sua pena fixada em três anos.
Esta dupla sanção dever-se-ia aos seus presumíveis contactos com a população da Ilha das Galinhas ou ao facto de que, entretanto, a PIDE teria descoberto outros casos em que estaria implicado e o teria reconvocado a Bissau. José Carlos defendia a segunda hipótese. Mas o afecto que dedicava aos Bijagós que constituíam a população da Ilha das Galinhas, era eloquente. Aliás, chegou a reivindicar essa paixão no seu famoso "djiu di Galinha" (2).
Foi quando a PIDE o transferiu da Ilha das Galinhas para Bissau, que o conheci de perto. Pois em Novembro de 1972, na sequência de uma greve de estudantes, precedida de manifestação no Palácio do Governo, tinha sido detido pela PIDE, por ordem do General Spínola.
Ocupei momentaneamente a cela n° 12 do Pavilhão de isolamento. O José Carlos encontrava-se na cela n° 16, a última do corredor. Quando lhe expliquei que fazia parte de um grupo de estudantes que fora reivindincar um tratamento mais condigno no plano dos estudos, entusiasmou-se tanto que pronunciou a frase : "É o segundo Pindjiguiti !"
Fui libertado algumas horas mais tarde em troca duma advertência pronunciada pelo Inspector-Adjunto da PIDE, Raimundo Alas, que não tinha matéria suficiente para me prender: Não é porque o vizinho quer aumentar o seu terreno que vai estendê-lo sobre as margens do outro vizinho.» Confesso que até hoje, não percebi o sentido desta frase.
A sentença caiu sobre mim em Maio de 1973. Quando me empurraram na cela n° 6 e fecharam a porta, senti umas batidas na parede, lembrei-me logo da técnica e respondi batendo na mesma. Uma voz vinda do fundo do corredor inquiriu: "Quem é?" O José Carlos Schwarz encontrava-se ainda na mesma cela de há seis meses atrás !
Estivemos juntos, eu na minha cela e ele na sua, durante cerca de quatro meses. Falamos de tudo e de nada. Fiquei desiludido ao saber que, afinal, havia traição na "Zona Zero".
Nas nossas conversas, contei-lhe uma cena relacionada com a peregrinação da minha mãe a Fátima, em Portugal, cerca de um mês antes de eu ter sido preso. A história divertia-o imenso.
Em Lisboa, a minha mãe tinha sido abordada por uns estudantes com os quais me encontrava ligado. À cabeça do grupo estava o seu neto, o João Nelson Sá Nogueira, “Nuno Quipa”, na altura estudante de Geologia. Disfarçaram na bagagem da minha mãe uma série de livros e revistas subversivas.
Quando a minha mãe regressou a Bissau, chamou-me e ordenou-me que abrisse a sua mala. Pequei nos livros, e enquanto ela vociferava que não me queria ver naquelas relações, eu já tinha ido para o meu quarto maravilhar-me com "A Mãe" de Máximo Gorki, "O Diário do ‘Che’ na Bolívia", "Portugal e o Futuro" do Spínola, etc., etc.
(...) Iniciou-me às regras do Pavilhão. Fiquei surpreendido ao saber que a PIDE colocara em toda a extensão do corredor, um sistema de escuta que lhe permitia controlar as conversas dos prisioneiros através duma central.
Para evitar eventuais salamalécos, cada prisioneiro tinha um nome de código ou era identificado por um assobio. O José Carlos era nato no exercício. A sua identificação inicial era "Djiu", depois passou a ser "Sidi". A mim baptizou-me "N’barrim" (irmãozinho no dialecto mandinga). Havia o "Belankufa", o "Canhuto", o "Zarra" e variadíssimas outras versões que se competiam no Pavilhão.

"Djiu" defendia a tese de que antes de ir para a luta armada ou de efectuar acções de guerrilha urbana, os jovens deveriam antes passar pela prisão da PIDE, provar o castigo, a vida dura, etc. Ele mesmo, preferia que o retornasem à Ilha das Galinhas em lugar de ser libertado. Para ele o castigo era algo de pedagógico que contribuia para a maturidade.
Perdido nos seus argumentos, postulava para mim a deportação para a Ilhas das Galinhas o que naturalmente me dava cabo dos nervos recusando prosseguir a conversa com ele. Fértil em ideias, instaurou no Pavilhão uma escala hiérárquica que consistia em dispensar o merecido respeito aos condenados de três anos, depois aos de dois anos, de um ano, meses, etc. Assim, o recém-chegado era básico na pirámide. Ele era "Comandante", pois tinha a pena máxima (3 anos) assim como o Biéne Na Bion, um guerrilheiro que conhecera na Ilha das Galinhas, que tinha sido libertado meses antes e que fora de novo capturado pelo exército português, condenado desta vez a três anos de prisão.
José Carlos não parava de criticar o guerrilheiro, acusando-o de negligência, de falta de rigor, disto e daquilo. Dizia-lhe assim, "Desta vez vão matar-te". Mas um dia, quando o seu colega "Comandante", apareceu no corredor depois de um intenso interrogatório, com as nádegas completamente inchadas de tanta palmatória levada, lá estava o "Djiu", em primeira linha, a consolar e a animar o combatente.
Meses mais tarde, quando lhe comuniquei que ia ser deportado para os trabalhos forçados na Colónia Penal, por três anos disse-me: "Agora sim, temos a mesma patente!"
Eu que nunca levara aquilo a sério, comecei a interrogar-me se o tempo que passara no isolamento não teria afectado o juízo, pois fiquei com o sentimento de que tinha posto muita convicção na sua frase de despedida.
José Carlos era o "condómino"do Pavilhão. Conseguira a autorização de ser o último a ir tomar banho e fazer as suas toilettes e, o que apreciava muito, passar o pano no corredor e limpar a casa de banho. Deixavam-no sozinho passear no corredor cerca de 15 minutos, o tempo suficiente para ir falar com outros prisioneiros e oferecer-nos frutas e outras guloseimas que recebia de casa.
Durante esse periodo tive o grande privilégio de ser um dos primeiros padrinhos das belas e salientes canções que o José Carlos compôs durante o seu cativeiro. "Minino de criaçon", "Muscuta", "Quê qui minino na tchôra", "Djénabu", "N’djanga" e toda a série que se lhes seguiu. Realizávamos até sessões de discos pedidos: eu animava e ele cantava.
Um dia, os guardas vieram buscar-me e fui transferido para a cela n° 7, do outro lado do Pavilhão. Devíamos estar nos meses de Setembro ou de Outubro de 1973. (A margem de erro é possível.) Conduziram-me ao pátio do Pavilhão onde me fizeram esperar alguns minutos. Cerca de pelo menos três metros do lugar onde me encontrava, jazia um corpo quase inerte em cujas narinas se notavam ainda vestígios de sangue coagulado. Fiquei estupefacto. Mas tive tempo de notar que o indivíduo aí estendido era dotado de uma certa corpulência. De tez negra, relativamente esbranqueada, tronco nu, o homem aparentava um cansaço extremo evidente.
Da minha nova cela, transmiti imediatamente a imagem que gravara na mente. Ninguém conseguiu identificar de imediato o prisioneiro. Alguns dias depois, o "Belankufa" (Duarte Cabral) anunciava ao Pavilhão a morte do Domingos Badinca, um dos responsáveis da rede clandestina do PAIGC de Bolama.
José Carlos, antes de ser preso, fascinara-se com a leitura de "Os condenados da terra", de Franz Fanon que circulava no meio da camada intelectual daquele tempo em Bissau, como o Jorge Ampa Cumelerbo, o Fernando Delfim da Silva, "Djumbo", o Adalberto (o seu apelido escapa-me) o Idrissa Djalló, etc. teria sido o Mumini Embaló quem fornecera um exemplar da obra de Franz Fanon ao José Carlos.
A figura principal da investida do escritor antilhês contra o racismo e a miséria, inspirou o nome do Naman, seu primeiro filho da união com a Teresa Loff Fernandes que teria conhecido em Lisboa. De origem cabo-verdiana e nascida no Senegal, a Teresa era também de ascendência alemã.
Alegre e simpática, a mulher do José Carlos tomava parte activa nas actividades clandestinas da "Zona Zero".
Fã incontestável de Kanté Manfila, o José Carlos admirava a proeza técnica do congolês Franco, as fecundas melodias do Balla e dos seus Balladins e a excelência do Kélétigui Traoré, que tinha a magnificência de combinar nos seus arranjos musicais, o moderno e o tradicional.
José Carlos Schwarz foi libertado em Bissau logo depois do 25 de Abril e foi convidado a pronunciar um discurso que foi difundido na rádio. Antes de ser preso, fizera este sermão: "Juro-vos, que por mais que o pau possa permanecer no mar, nunca se transformará em crocodilo", o que traduzido em linguagem comum significa que tarde ou cedo assistir-se-ia ao fim da opressão colonial. E aí estava ele de novo, numa comunhão perfeita com o seu público, a confirmar a sua ousada profecia.
Da Ilha das Galinhas, ouvi o discurso que iniciou dizendo: "Irmãos!", numa voz terna e carregada de emoção. O Feiticeiro transformara-se em Profeta.

(1) Cobiana era o nome de uma base das FARP-Norte

José Carlos foi solto no início de Maio de 1974. Começou com os concertos diários, mobilizando o maior número possível de pessoas para combater a ideia do referendo.

Logo após a chegada dos camaradas do mato, os choques e conflitos proliferaram entre os combatentes do mato e os camaradas de 2ª classe, que era o que chamavam aos militantes clandestinos que viviam na cidades. Zé Carlos, como tantos outros, estava entre estes. Começou a compor música de crítica social e política. Como o lugar de Director-Geral não calou o seu "espírito cabralista e rebelde" foi quase obrigado a aceitar o cargo de encarregado de Negócios em Cuba (nota de Miguel Pedras, em Contributo).

Na manhã solarenta do dia 27 de Maio de 1977, o avião da Aeroflot que o transportava para as novas funções, procedente de Lisboa com 66 passageiros fazia-se à pista do aeroporto José Marti, em Cuba. Segundo a versão oficial terá tocado num fio de alta tensão. Só houve uma sobrevivente. Fonte Maria Teresa Loff Fernandes (viúva de J. Carlos).
__________
Nota do co-editor: vb
Os nossos agradecimentos ao Fernando Casimiro

Guiné 63/74 - P2202: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (8): Voltei a Cufar e a chafurdar nas bolanhas e rios de maré (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 7763 (1965/66) > Estrada Cufar-Catió> Segurança montada enquanto se levantam as minas A/C.



Foto: © Mário Fitas (2007). Direitos reservados.



1. Mensagem do Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp, CCAÇ 763, Cufar 1965/66, e autor dos dois romances sobre a guerra da Guiné (1):

Animado com a presença e conhecimento pessoal dos camaradas tertulianos da Tabanca Grande, foi, com grande curiosidade e algum nervosismo, que esperei pelo início do filme "As duas faces da Guerra", de Diana Andringa e Flora Gomes (2).

Fiquei estupefacto quando, ao entrar no hall da Culturgest, nos vimos relegados para uma fase lateral - a esposa do Briote, ele próprio, eu, e amigos da ADFA - pois a parte central estava completamente cheia e, para alegria minha e concerteza de todos, com muita gente jovem (em fisionomia, pois nós em mente, ainda estamos aqui prás curvas, desde que não sejam muito apertadas). O que é certo é que com seiscentos e tal lugares, o grande auditório ficou praticamente lotado.

E começou o filme. Voltei à Guerra e revisitei Cufar de outros tempos e chafurdei nos pântanos, bolanhas e rios de maré. Praticamente sem me aperceber, o filme tinha terminado.

Gostei!...Óptimo testemunho histórico!

O filme estará um pouco próximo do espírito da nossa Tertúlia, a sã convivência e lúcida reflexão do que se passou há quatro dezenas de anos.

A linha do filme está proximamente direccionada da nossa palavra de ordem "Não deixes que sejam os outros a contar a tua história", só que pobre da Diana e do Flora, se tivessem de falar com todos os milhões de homens e mulheres que viveram esta Guerra, [nunca mais fariam mais nada na vida!].

O que foi feito, a meu ver, está bem feito! Repito!... um bom documento histórico! "E longa a caminhada, e muito teremos de falar e tentar compreender". Tanto do lado do PAIGC como do Português, há ainda muitas coisas por desvendar.

Um pouco "ainda a quente", volto a frisar que é uma obra de mérito, honesta e sincera. Portanto as minhas felicitações à Diana Andringa e ao Flora Gomes! Continuem a vossa obra.

É claro que terei de rever o filme e dissecá-lo. Não tanto pela realização em si, mas mais pelo conteúdo dos testemunhos efectuados.

Que me desculpe o pessoal da Tabanca, mas nós, entre nós, temos de debater determinados tabus, ou seja varrer todas as teias de aranha. Há muitas coisas de efeitos e causas diferentes.

Reafirmando, "ainda a quente" dos testemunhos efectuados, algumas coisas me ficaram bailando na mente.

Como homem de Operações Especiais e vivendo a Guerra como vivi, terei forçosamente de saber alguma coisa sobre Guerrilha e Contraguerrilha. Assim com responsabilidade posso referir:

(i) Abandono de Guileje: estou cem por cento de acordo! Só quem pisava lama da Guiné e se encontrava no terreno, tinha de ter "tomates", falando portuguêsmente, independentemente do resultado disciplinar, e saber ensinar aos senhores da bota alta engraxada que, se numa guerra convencional há avanços e recuos, na contraguerrilha tudo isso mais acontece.

(ii) Ainda sobre Guiledge, palavras do comandante Pedro Pires (3): Guerra é Guerra... Julgo que foi uma expressão pouco feliz de um homem com as suas responsabilidades.

Desculpem-me todos os camaradas, principalmente o chefe da Tabanca Grande, mas para ficar aliviado, eu teria retorquido ao comandante Pedro Pires:
- Precisamente por Guerra ser Guerra, a CCAÇ 763 em seis meses varreu o seu sector na margem direita do Cumbijã, e saltou para a margem esquerda, Flaque Injã, Cadique, Caboxanque, etc....etc.... agora digo: MERDA DE GUERRA!!!.

(iii) Infelizmente há outras coisas! Um "D" que não foi tocado, a situação dos militares brancos e negros que serviram o Exército Português e cujos problemas se mantêm pior que há quarenta anos.

Desculpem camaradas, mas por vezes teremos de espirrar.

Terminando, pois a Diana não tem culpa destas coisas, por esse motivo lhe peço desculpa.À Diana agradecia que transmitisse ao Flora os parabéns pela obra que realizastes.

Um Abraço

Mário Fitas
___________

Notas dos editores:

(1) Vd. posts de:

12 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2043: Bibliografia de uma guerra (23): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1926: Bibliografia de uma guerra (21): Pami Na Dondo ajuda-nos à reconciliação com a guerrilha (Virgínio Briote / Carlos Vinhal)

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1893: Notícias de Cadique (Mário Fitas, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1884: Tabanca Grande (16): Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

(2) Vd. post de 22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2200: A nossa Tabanca e As Duas Faces da Guerra (7): Comentário de Inácio Silva, da CART 2732, Mansabá, 1970/72

(3) Comandante Pedro Pires (n. 1934): De seu nome completo, Pedro Verona Rodrigues Pires, nasceu em São Filipe, Fogo, Cabo Verde, em 29 de abril de 1934.

Estudou na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Foi aqui que encontrou os futuros líderes dos movimentos de libertação que lutaram pela independência das colónias portuguesas. Foi também alferes miliciano da Força Aérea Portuguesa.

Com o início da luta armada em Angola em 1961, saiu de Portugal no meio de uma leva de estudantes africanos que foi a salto para França (entre eles, estavam os angolanos Iko Carreira, Gentil Viana e Daniel Chipenda e os moçambicanos Joaquim Chissano e Pascoal Mocumbi).

De França seguiu para Marrocos, onde colaborou com o dirigente da Frelimo, o moçambicano Marcelino dos Santos, na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. Em 1963, Pedro Pires já estava em Dacar, Senegal, de onde transitaria depois para Conacri, antes de seguir para Cuba e para a URSS, onde frequentou cursos de guerrilha.

O sucesso da luta do PAIGC, na Guiné, liderada por Amílcar Cabral e Osvaldo Vieira (frente Leste), Luís Cabral e Francisco Mendes (Norte) e ristides Pereira e Nino Vieira (Sul), levou o partido a admitir a hipótese de criar um foco de guerrilha em Cabo Verde, que seria comandado por Pedro Pires, tendo Honório Chantre como adjunto. As ilhas de Santiago e de Santo Antão eram os palcos escolhidos para a actuação da guerrilha, com o apoio de Cuba. A morte de Che Guevara, na Bolívia, em 1968, terá levado Havana (e o PAIGC) a recuar...

Em Janeiro de 1973, é surpreendido, pelo assassínio de Amílcar. Na sequência deste trágico acontecimento, foi um dos protagonistas do II Congresso do PAIGC, que criou uma Comissão Nacional para Cabo Verde. Devido à popularidade que já desfrutava entre os combatentes, foi-lhe atribuída a presidência dessa comissão.

Foi depois escolhido para comissário adjunto (secretário de Estado) das Forças Armadas, quando o PAIGC proclamou a independência da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973. Nessa altura, Pires aparecia como n.º 2 de Nino Vieira, que acumulava as funções de comissário (ministro) com as de presidente da Assembleia Nacional Popular.

Depois da Declaração de Independência de Cabo Verde em 5 de julho de 1975, foi designado ministro-presidente, cargo que ocupou até 1991, quando — como resultado de sua iniciativa junto com outros — o sistema multipartidário foi introduzido no país e o MpD - Movimento pela Democracia, de Carlos Veiga, conseguiu a maioria.

Com o advento da democracia e do multipartidarismo, em 1991, o Comandante Pedro Pires substituiu Aristides na liderança do partido (já designado por PAICV após a cisão de Nino), antes de empreender uma longa travessia do deserto durante a governação do MpD.

Em 2001, apresentou-se finalmente como candidato presidencial contra Carlos Veiga e venceu as eleições com apenas 17 votos de diferença. Em 22 de Março de 2001 foi empossado como sucessor de António Mascarenhas Monteiro.

Fontes consultadas:

Wikipédia
Diário de Notícias

Guiné 63/74 - P2201: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (2): Eu estava lá em 1961 e lá fiquei até 1975 (António Rosinha)

Angola > 1961 > Desfile de tropas > O António Rosinha, furriel miliciano, aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X (1)... O alferes, que vem à frente, e os três furriéis, imediatamente a seguir, empunham pistolas-metralhadoras FBP (Fábrica Braço de Prata) (1)... AS praças, brancas e negras, usam a velha Mauser...

Foto: © António Rosinha (2006). Direitos reservados

1. Texto do António Rosinha (2):

Assunto - RTP: Chover no molhado ou... caça à audìência ? A Guerra (3)

por Antonio Rosinha


Depois de ver pela enésima vez, durante mais de 30 anos, as imagens do primeiro episódio da "NOSSA GUERRA", (mais um nome para a confusão), prometi para mim, que não emitiria opinião sobre o assunto, nem com familiares, muito menos para os tertulianos.

Embora tivesse assistido a uma das cenas em Luanda, pelo menos à manifestação em frente à embaixada da América, perto da minha residência. Estava achegar a casa, vindo do quartel, pois já havia sido re-convocado, a seguir ao célebre 15 de Março de 1961.

Para completar o relato dessa imagem, onde a população deitou o carro da embaixada à baía de Luanda, essa mesma população marchou para uma Igreja da missão adventista, perto do mercado dos Lusíadas, pois já se sabia que fora nessas missões financiadas pelos EUA, (para dilatar a fé e o império, provavelmente), que o caldinho das matanças fora organizado. Essa igreja, mais tarde foi destruída. Claro que o Joaquim Furtado, mesmo em nove epísódios, [não pdoe contar todos estes pormenores,] nem em 90...!

Mas como disse, prometi não falar, mas cá estou a faltar à promessa, tudo porque... eu vi, apalpei, cheirei, respirei, vi o princípio, o meio, e só não vi o fim, porque para mim ainda não terminou a nossa guerra, porra!!! E já saí de Bissau em 1994. No entanto escrevo, porque, outros se anteciparam a mim. O caso do nosso maior, o Homem garandi, o Luís.

E penso que os tertulianos que me lerem, como não me acompanharam no pelotão daquela vida, 1957-1975, me vão desculpar se eu contar algo que nenhum tertuliano testemunhou.

Peço ainda ao Luís ou co-editores que exibam a mesma foto em que o Luís fala da minha FBP.

Primeiro é para dizer que essas FBP estavam inoperacionais em geral, porque as poucas que existiam em Angola eram da instrução, e com tanto "monta e desmonta" as molas de recuperação já não actuavam. Mas a mim não me fez diferença, pois que, tirando a carreira de tiro, nunca fiz fogo a não ser à caça. Nem fiz nem ouvi. Vivi 200 dias por ano em toda a Angola, durante os 13 anos de guerra, menos a tropa, em barracas de campanha.


O 25 de Abril apanhou-me nas terras que Lobo Antunes chamou "Os cus de Judas", numa barraca de campanha, acompanhado por 10 serventes, aparelhos de topografia e um Land Rover em estudo de estradas. Apenas soube do 25 de Abril no Domingo a seguir.

Segundo, é para dizer que a minha vivência em Angola está bem demonstrada nessa foto, pois desde os 3 furriéis até aos soldados recrutas que me acompanham não estão por ordem de altura nem côr, e que profissionalmente e socialmente foi essa a minha vivência e de milhares. Dentro do fabuloso "espírito desorganizativo" peculiar.

O que é que me fez continuar em Angola (conscientemente) depois de ver o efeito daqueles massacres? E depois de o primeiro capitão do quadro vindo da metrópole, que eu conheci de camuflado (Sousa e Silva, ou Silva e Sousa), me ter massacrado durante uma viagem, que estava ali a sofrer, porque nós os que estavamos em Angola, eramos uns ladrões, roubávamos os pretos e maltratávamo-los etc.? (Essa viagem foi numa picada de uma manhã inteira entre Golungo Alto e Cerca em 1961, num Jeep Wyllis). Escrevo isto porque tenho antigos colegas, e hoje já muita gente lê o nosso Blogue.

A principal explicação, ouvimo-la todos na RTP, da boca de Holden Roberto a Joaquim Furtado:
-Vou reivindicar o massacre antes que o MPLA o reclame.

Em Angola todos assimilaram isso e a maioria sabia que o MPLA era URSS e a UPA era EUA. A guerra fria. E um pouco de demagogia enganava aquele povo. Até hoje Angola sofre os efeitos daquele dia. Pois inicialmente, era um movimento só no Congo, e os angolanos não esqueceram durante os últimos trinta e tal anos de guerra, e jamais esquecerão.



Foto do aldo: Embema daUPA (União dos Povos de Angola, vriada em 1954, pot Holden Roberto). Fonte: Wikipédia (Imagem do domínio público)Holden Roberto [1923-2007], cunhado de Mobutu [1930-1997] (e ajudado por ele e pelos EUA), desapareceu durante uns anos, e só apareceu no 25 de Abril, e todos Angolanos ficaram admirados, ao ponto de se dizer que deveria ser outra pessoa, por ele, (propaganda do MPLA?)... Mal falava português, apareceu em Angola com soldados que só falavam francês, e espero que Joaquim Furtado recupere uma das primeiras entrevistas dele após esse reaparecimento, em que perguntado porque o povo não aderiu, ele respondeu, como um bom adventista:
-São coisas diabólicas, sem explicação.

Outras explicações para a minha permanência em Angola, conscientemente, foi que desde a escravatura das Áfricas, até à construção daquelas cidades e fronteiras, aquela vivência sem ordem de alturas nem cores, aquela desorganização, aquele desenvolvimento/atraso, (também conheci o Congo Belga e a Namíbia e a Zâmbia nas fronteiras), nada tinha a ver com políticas Leste/Ocidente, Salazar, etc.... Tinha sim e muito a ver com Portugal e todos os africanos que conheci. E eram independentistas. Treze anos na Guiné vieram-me confirmar a lógica do meu raciocínio e de milhares em permanecer em Angola.

Prometo aos tertulianos que não volto a referir nada que não se refira só à Guiné.

Um abraço
António Rosinha
__________

Notas dos editores:

(1) Sobre a pistola-metralhadora FBP, a Wikipédia diz o seguinte:

(...) A FBP é uma pistola-metralhadora desenhada [, em 1948,] pelo Major Gonçalves Cardoso do Exército Português, que combina as funcionalidades da MP40 alemã e da M3 americana. O resultado foi uma arma de confiança e com baixos custos de produção.

A arma acabou por ser produzida pela Fábrica de Braço de Prata (FBP) em Lisboa, sendo utilizada pelas Forças Armadas Portuguesas durante a Guerra Colonial.

A versão original FBP m/948 apenas permitia o tiro totalmente automático, inconveniente que podia levar ao grande desperdício de munições. Em 1961 começou a ser produzida uma versão aperfeiçoada (FBP m/961) que permitia, além do tiro automático, o tiro semi-automático.(...)


(2) Vd.post de 29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1327: Blogoterapia (7): Furriel Miliciano em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979 (António Rosinha)

(3) Vd. post de 18 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2193: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (1): 18 episódios, às terças feiras (João Tunes / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P2200: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (7): Comentário de Inácio Silva, da CART 2732, Mansabá, 1970/72

1. Comentário do Inácio Silva (1) ao filme-documentário passado na Culturgest, em 19 de Outubro de 2007, da autoria de Diana Andringa e de Flora Gomes, “As duas faces da guerra” (2):

Diana Andringa e Flora Gomes, a par de outros jornalistas consagrados, através de provas dadas, trouxeram, esta noite, a público, a voz, o ver e o sentir dos ex-combatentes portugueses, intervenientes na Guerra decorrida na Guiné, iniciada pelo PAIGC, no ano de 1963.
Com humildade, Diana Andringa, admitiu que muito ficou por contar do que se passou nos onze anos de guerra, impossível de retratar numa película com cerca de 100 minutos.

Valeu a pena ter estado neste evento, fundamentalmente por duas razões:

(i) nos momentos que antecederam a passagem do filme, verifiquei que os sacrifícios porque passaram os ex-combatentes, quase todos com histórias comuns, sedimentaram a camaradagem, o respeito e a amizade entre todos, independentemente do seu posto ou do quartel para onde foram mobilizados;

(ii) ficar a saber aspectos e pormenores da guerra, quer do lado português mas, principalmente, do lado do PAIGC, desconhecidos da maioria dos ex-combatentes.

O documentário começa de uma forma arrepiante ao mostrar um singelo monumento, com o formato de uma pirâmide semidestruída, no qual constam, sulcados e com muito pó, os nomes de combatentes mortos em Geba [, em 1967], em simultâneo com o capim, símbolo de beleza natural, de respeito e de medo porque servia de esconderijo aos beligerantes, de onde, geralmente, surgiam as emboscadas.

Depois, são apresentados relatos de episódios, na primeira pessoa, da vivência da guerra, tanto do lado português, como do lado do PAIGC, geralmente descritos com emoção, alguns com comoção.

Facto relevante e revelador das agruras da guerra foi um excelente excerto das filmagens efectuadas por uma equipa da televisão francesa, autorizada pelo general António de Spínola, a acompanhar, numa operação, uma companhia de militares portugueses que viria a ser atacada, em emboscada [, na região de Có/Pelundo], na qual o soldado Capela perdeu a vida e outros camaradas ficaram feridos. Foi manifesto o sentimento de raiva, de tristeza e de impotência dos camaradas ao verem caído, no solo, sem vida, um seu elemento que poucos minutos atrás estava pujante de vida. Esta operação pretendia demonstrar aos jornalistas franceses que Portugal tinha o controlo da situação...

Talvez o aspecto mais revelador do documentário é a descrição, com algum pormenor, de certas tácticas de guerrilha empregues pelo PAIGC, sendo salientado o recurso frequente aos elementos infiltrados nas tropas portuguesas para obterem informações militares, para futuros ataques. Ao longo dos anos, foi notória a evolução das técnicas de guerrilha, por parte do PAIGC, que, aliadas a um cada vez melhor apetrechamento de material bélico, iam criando crescentes dificuldades às tropas portuguesas, tornando-as, dia a dia, ano a ano, mais vulneráveis.

De salientar, também, um aspecto digno de registo: os guerrilheiros do PAIGC, assumiam uma atitude disciplinar exemplar e de profundo respeito para com o seu comandante Amílcar Cabral. Esta atitude adveio dum facto importante: os guerrilheiros eram recrutados para as fileiras do PAIGC, através de convite, sem nenhuma obrigatoriedade, sendo que, se não a integrassem, teriam que manter segredo relativamente a tal convite e àquilo que lhes foi dado observar.

O documentário refere, ainda, passagens de portugueses que integraram voluntariamente as fileiras do PAIGC, bem como militares que desertaram ou foram capturados, alguns deles acabando por colaborar com a guerrilha. Embora o filme não o refira, verificou-se, igualmente, o apoio dos nativos Guineenses às tropas portuguesas, muitos deles recebendo treino militar e integrando companhias de combate.

Como corolário das enormes dificuldades criadas pelo PAIGC, os militares portugueses ocupantes do Destacamento de Guileje foram obrigados a abandoná-lo, juntamente com a população (ao todo, cerca de 600 pessoas), dirigindo-se para Gadamael, episódio que é relatado pelo último comandante do destacamento de Guileje [ou melhor do COP 5, o major Coutinho e Lima]. De nada serviram os avisos enviados ao General António de Spínola acerca das extremas dificuldades porque estava a passar toda a Companhia. O Presídio Militar foi o destino do Comandante...

Mas a principal e mais importante constatação, que nos rejubila, é a inexistência de ódio ou de ressentimento entre as partes beligerantes.

É com documentários deste tipo que ficam gravados para sempre, que são trazidos à memória dos portugueses – velhos e novos - aqueles tempos, aquele período negro da história de Portugal, vivido com ingentes sacrifícios pelos ex-combatentes. Período que os políticos no poder, depois do 25 de Abril, teimam em fazer de conta que não existiu.

Aconselho, pois, todos os ex-combatentes a publicitarem este documentário e a vê-lo, logo que possível, levando consigo familiares e amigos.

Da minha parte vai toda a minha admiração e agradecimento à equipa que deu luz a este projecto. Bem hajam.

Charneca da Caparica, 20 de Outubro de 2007.

Inácio Silva
_________

Notas dos editores do blogue:

(1) Sobre o Inácio Silva, autor do blogue Relembrar para Não Esquecer, ,madeirense, reformado do Metro, residente na Charneca da Caparica, ex-operacional da CART 2732 (Mansabá, 1970/72),vd. os nossos posts:

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2184: A Guerra do Ultramar no programa Prós e Contras (RTP1, 15 de Outubro de 2007): o debate dos generais (Inácio Silva)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1889: Tabanca Grande (20): Inácio Silva, 1.º Cabo Apontador de Metralhadora, CART 2732 (Mansabá, 1970/72)

(2) Vd. posts de:

8 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2165: As Duas Faces da Guerra, filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, no DocLisboa2007 (18-28 Outubro 2007)

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2186: Uma guerra, duas vitórias: entrevista de Diana Andringa à RTP África (Luís Graça)

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2194: Pensamento do dia (13): É na guerra que se revela o pior e o melhor das pessoas (Diana Andringa, Visão, nº 763, de ontem)

20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

domingo, 21 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2199: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (6): A crítica de Leopoldo Amado

1. Da crónica semanal do Lepoldo Amado, na sua página hi5 Leopoldo:Diário (com a devida vénia...)

Leopoldo Amadao > Crónica de Sábado > As duas Faces da Guerra

20 de Outubro de 2007, 12:12

Assisti ontem à estreia em Portugal do filme “As duas Faces da Guerra”, de Diana Andringa e Flora Gomes. Para além de um documento histórico em si, este filme é, ele próprio, um importantíssimo documentário histórico, independentemente das observações criticas que um filme de natureza histórica possa suscitar – e suscita sempre – tanto mais que este possui intrinsecamente, do nosso ponto de vista, a dupla valia referida, para além também, obviamente, de um respeitável equilíbrio e sentido da história, pese embora o facto de, em certo sentido, ser nele notório um certo escamoteamento das contradições, divergências e confrontos de que esta guerra se rodeou, tanto entre os contendores como no seio de cada uma das partes tomadas separadamente, de resto, uma feliz opção histórico-cinematográfica que acabou neste filme por condicionar uma visão do conhecimento do passado – não tanto como a relação deste com o nosso tempo, na sua complexa teia de rupturas e continuidades – mas privilegiando antes uma abordagem das heranças diversas que produziu, positivas umas, negativas outras.

Outrossim, este filme da Diana Andringa e Flora Gomes – para lá dos tabus que as guerras engendram e sem desprimor para a importância histórica de que igualmente se revestiram as guerras de Angola e Moçambique no âmbito da guerra colonial/guerras de libertação – possui também o condão de reintroduzir a ideia segundo a qual a Guiné teria sido, indubitavelmente, o palco de guerra onde se registaram os maiores e mais violentos confrontos, maiores e mais situações dramáticas, maiores e mais apaixonantes episódios insólitos, mas igualmente a que suscita hoje uma maior profusão de livros, blogues colectivos, memórias diversas, teses académicas, para além de maiores e mais sensatas atitudes de reconciliação e aproximação que se registam hoje entre os antigos contendores, sejam eles europeus e africanos ou africanos entre si, considerando que, na fase terminal da guerra da Guiné, só os efectivos guineenses do Exército português eram cerca de três vezes superior aos do PAIGC.

Mas o que de melhor representa este filme, não é demais repeti-lo, é o seu refinado sentido do equilíbrio e da História, nele sobressaindo, claramente, o cunho individual, também refinado, do alto sentido artístico-histórico tanto de Diana Andringa como o de Flora Gomes. Dir-se-ia, aliás, que um filme com esta qualidade e com a dupla valia referida – para lá da sua indubitável beleza estética – só podia ter sido concebido e conseguido pela feliz parceria de cineastas de reconhecido valor e com provas sobejamente dadas e que, como tal, mostraram-se completamente despretensiosos e abertos à necessidade, quantas vezes adiada e esquadrinhada, de construção de um possível e novo mundo, com base nos ensinamentos e heranças históricas comuns, tanto positivas como negativas.

Parabéns, Diana! Parabéns, Flora!

Leopoldo Amado

Guiné 63/74 - P2198: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (5): Agradecimento de Diana Andringa

1. Mensagem de Diana Andringa, enviada esta madrugada:

Em primeiro lugar, quero agradecer a vossa comparência na estreia do documentário e todas as palavras simpáticas que nos (aos autores do filme) dirigiram.

Em segundo, pedir desculpa se não conversei com todos nem me despedi da maioria - mas, antes da projecção, além do nervoso, estava a tentar receber todos os convidados. E, depois, parei a conversar com alguns e demorei a chegar à saída.

Em terceiro lugar, lamento que o debate não se tenha efectuado ontem, logo a seguir ao filme. Mas os trabalhadores da Culturgest têm direito ao descanso... Para os que quiserem, hoje domingo, às 20, lá estarei, na Culturgest, para o debate.
Finalmente, aguardo as vossas críticas. Que, naturalmente, me interessam muito.

Obrigada outra vez,

Diana

2. Apelo do editor do blogue, L.G.:

Amigos e camaradas:

Agora agora gostava de conhecer a reacção, sincera, espontânea, dos nosssos tertulianos ao filme...

O filme ficou aquém (ou foi além) das vossas expectivas ? E quais eram essas expectativas ? Mexeu convosco, mexeu com as vossas emoções ? Foi (des)confortável ? Gostaram ? Mostrou, de facto, os dois lados da guerra ? Era politicamente (in)correcto ? Foi objectivo e equidistante ? Era mais pro-PAIGC, não foi isento ? Deu mais tempo de antena a uns do que a outros ? Os realizadores escolheram as pessoas certas, de um lado e de outro ? Ignoraram ou escamatearam coisas importantes e polémicas, de um lado e de outro ? Por exemplo, o Congresso do PAIGC em Cassaca,em 1964, ou a invasão de Conacri, pelas NT, em 22 de Novembro de 1970...

Enfim, foi importante ter sido realizado e mostrado este filme aos portugueses, aos guineenses e aos caboverdianos ? Ou foi dinheiro deitado ao lixo ?

Não se esqueçam que nós tínhamos vinte anos e já se passaram 40... E que em matéria de audiovisual há muito pouco para mostrar aos vindouros... Ou será que o exército ainda guarda a sete chaves documentos audiovisuais classificados ? Reparem que os realizadores do filme tiveram que ir buscar, aos franceses, um bocado de uma reportagem de guerra, para mostrar uma cena de uma emboscada do PAIGC com mortos e feridos para o nosso lado...

Fazendo minhas a pergunta e a resposta do meu camarada Humberto Reis:

Onde é que estavam os nossos fotocines, os nossos operadores de cinema militares ? Em centenas e centenas de quilómetros batidos, a pé (!), por nós e pelos nossos nharros da CCAÇ 12, nunca vimos um fotocine... Andavam na propaganda, sempre atrás do Spínola e da sua corte... A guerra, que se travava nas bolanhas e lalas, nas florestas-galeria, na savana arbustiva, nas picadas, no tarrafo, nos rios e braços de mar, nas tabancas, nos destacamentos, nos aquartelamentos do mato.... nada disso foi filmado. Restam as nossas fotos, os nossos testemunhos, o nosso sangue, suor e lágrimas...


Em suma, digam muito sinceramente o que sentiram e viram... Vamos publicar as vossas opiniões (dos que viram o filme)... Eu reservo a minha opinião para mais tarde, não quero inibir bem influenciar ninguém... Só quero que fundamentem as vossas opiniões: gostei ou não gostei do filme, por isto e por aquilo... Não é preciso ser crítico de cinema, para dar opinião sobre um filme... Nós estivemos lá, mesmo que cada nós só tenho visto um face da guerra... Por isso mesmo, juntar a nossa à parte...

Espero ir ao debate, hoje, às 20h, na Culturgest.

Luís Graça

PS - Atenção: É preciso não ignorar o seguinte: este filme foi feito com escassos recursos (humanos, técnicos, financeiros)... Não estamos na América, estamos em Portugal...