Na procura de informação sobre quem foi José Carlos Schwartz, escrevi ao Fernando Casimiro:
(...) Sou um dos co-editores de um blogue sobre a guerra da Guiné, o http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/ . Estou a colocar no blogue os principais (pelo menos os que a história e a lenda registou) protagonistas da luta. Visitante do seu Contributo, vi um trabalho muito interessante sobre o José Carlos Schwartz. Autoriza-me a citar o seu trabalho?
E onde posso recolher mais informação sobre o Pansau Na Ina, o Domingos Ramos, o Pedro Ramos e outros? Será que o PAIGC tem algum site onde tenha as biografias dos combatentes? (…)
Prontamente recebi a resposta:
Caro V. Briote,
(…) Sobre o trabalho em relação ao José Carlos Schwarz, é claro que pode reproduzi-lo da forma que achar melhor. Agradecemos isso, até porque vai no sentido da divulgação e valorização das nossas referências! Quero dizer-lhe que tem toda a liberdade para reproduzir o que entender em relação aos trabalhos que estão, ou estiverem no site http://www.didinho.org/ bastando uma pequena referência sobre o site.
Em relação aos nossos heróis nacionais, Pansau Na Isna e Domingos Ramos bem como ao Comandante Pedro Ramos, não há nenhum site que fale deles, nem doutros heróis ou antigos guerrilheiros. As referências que poderá encontrar sobre estas personalidades, estão relatadas, superficialmente, no livro “Crónica da Libertação” do antigo presidente Luís Cabral, um livro há muito esgotado, publicado em Julho de 1984 pela Editora “O Jornal”. Espero que consiga encontrar um exemplar desse livro, mas se não tiver essa sorte, eu poderei emprestar-lhe o exemplar que tenho e que me foi oferecido há cerca de 1 ano pelo autor.
Cumprimentos,
Didinho
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Série Artistas guineenses (*)
Quem foi José Carlos Schwartz: o testemunho de quem o acompanhou
TESTEMUNHOS DE UMA CONVIVÊNCIA
Norberto Tavares de Carvalho, o "Cote"
Genebra, 6 de Dezembro de 2006
Existem pelo menos duas possibilidades de definição do período aproximado da chegada à Guiné do avô paterno do José Carlos Schwarz. A primeira, estaria ligada à cronologia presencial de famílias de origem alemã que se instalaram no nosso país actual. O Arquivo Histórico do Ultramar, por exemplo, situa a chegada da família Schacht (Otto Schacht), no século XIX ou seja nos anos 1800.
A instalação, na Guiné Portuguesa, do avô do José Carlos poderia também situar-se mais ou menos nesse periodo.
A segunda hipótese estaria relacionada com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que levou a ruína, a fome e as doenças à Alemanha. Muitos cidadãos resolveram abandonar esse país. Poderia ser neste segundo contingente que um tal Schwarz desembarcou na Guiné. Mas é possível ainda que hajam outros cenários.
Naquela época, sendo Bolama a capital, era aí que se concentrava a maior parte da camada estrangeira. Instalado na Guiné, o exilado alemão teve pelo menos um filho a quem deu o nome de Carlos Schwarz. Este, por sua vez, viria a constituir família.
O José Carlos nasceu em Bissau num dia como hoje: 6 de Dezembro de 1949, da união de Carlos Schwarz e da Dona Fidjinha (Nha Fidjinha), de origem caboverdeana.
Eis o resumo do que consegui na preparação deste pequeno memorial dedicado ao aniversário natalício do saudoso José Carlos.
Logo que o seu filho atingiu a idade escolar, o Senhor Carlos Schwarz tratou de o pôr na escola. Assim, o José Carlos fez os estudos primários na sua terra e secundários em Dakar, Mindelo e Lisboa.
Segundo um dos seus próximos, o José Carlos interessou-se cedo pela leitura. A revista Readers Digest era distribuída em Bissau e pensa-se que foi através dela que o jovem centro-urbanista deu os seus primeiros passos na literatura. (...)´.
Em meados dos anos 60, o irmão mais velho do José Carlos, o Tony Schwarz instalou-se em Dakar, no Senegal. José Carlos viveu um certo período (1965-1967 ?), sob os seus cuidados.
Tony estava empregado na Perissac, Oficina Peugeot. Inscreveu o seu irmãozinho no curso de francês da Aliança Francesa, (ou numa escola similar). O Tony Schwarz tinha em Dakar uma posição social relativamente estável e cedo o José Carlos viria a provar as alegrias das noites quentes da capital senegalesa.
Nas discotecas, a salsa cubana estava em voga e Laba Sosseh era o seu mais fiel porta-voz.
Dakar, a sua sociedade, a sua cultura e as suas múltiplas perspectivas, ali bem pertinho de Bissau, era uma outra realidade, um outro universo, uma metrópole africana que não escapara à atenção do jovem prodígio. De regresso a Bissau, José Carlos não resistiria a frequentar as festas organizadas no Cupelom de Baixo, por um certo Benjamin de Almeida, comerciante (Djila) que fazia o seu negócio entre Bissau e Dakar e que era um conhecido do Tony Schwarz.
Esse Benjamin seria originário de Geba misturado com o wolof. Indivíduo selecto, distinguia-se pelo seu fato aberto sem gravata e seu chapéu de palha. No meio da festa, o Benjamin mandava abrir o campo para deixar o jovem salseiro exibir os seus dotes de dançarino.
José Carlos então, com aprumo, sapatos de couro de bicos compridos, tomava lugar no meio da sala e ao ritmo das músicas afro-cubanas, com entre-pernas e outras reviravoltas, dava um verdadeiro espectáculo no meio de intermináveis aplausos. Nos dias seguintes, nas ruas de Santa Luzia onde morava com os seus pais, era de novo um verdadeiro cavaleiro que se via no dorso do "Gaúcho", o seu cavalo, com uma corja de crianças atrás dele. Aí nasceria o primeiro mito do "José Cabalo".
Um encontro fortuito, ou o retomar de uma velha amizade, liga o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, dava noites musicais de gala no "Chez Toi ", um dos primeiros night club de Bissau. Zeca era já considerado um bom guitarrista. Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão.
Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo "Roda Livre" e ao conjunto musical "Sweet Fanda".
Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho do lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe apresentaram. Em 1968, foi destacado para a Guiné um novo Governador, o Brigadeiro António de Spínola, que substituiu no cargo Arnaldo Schultz. Spínola lançou então a politica da « Guiné melhor » à volta da Acção Nacional Popular.
Na altura, alguns emigrantes guineenses, residentes no Senegal, reunidos à volta da Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING), estabeleciam contactos pontuais com o então Governo Colonial Português. As cabeças pensantes mais conhecidas naquele tempo em Dakar eram os Senhores Benjamin Pinto Bull, Jonas Fernandes, François Cancola, etc.
O Tony Schwarz, que nunca escondera a sua hostilidade para com o PAIGC, pelo seu líder Amílcar Cabral e pelo seu programa da unidade entre a Guiné e as Ilhas do Cabo-Verde, (não se trata aqui de um julgamento, o Tony tinha de certeza argumentos para tal) embora mantivesse uma certa discrição à volta dos debates políticos daquela era, teria exercido uma certa influência nesse sentido sobre o seu irmão cadete. Não se trata aqui duma afirmação absoluta …
Entretanto, também regressa a Bissau o Everimundo José da Silva, filho do Nhu Musante, do bairro do Chão do Papel. Jovem instruído, Everimundo tinha fugido de Bissau indo reunir-se aos combatentes do PAIGC em Conacri. Daí teria beneficiado de uma bolsa de estudos para um dos países do Leste (Bulgária, RDA ?). Algum tempo depois, teria abandonado os estudos passando à RFA (República Federal da Alemanha). Sem a autorização de estadia na RFA, vivendo numa perfeita clandestinidade, Everimundo teria sido controlado numa discoteca, pela polícia alemã e recambiado para Portugal onde teria sido entregue à PIDE/DGS.
A organização secreta do então Governo Colonial Português tê-lo-ia metido na prisão, interrogado, torturado, e, de novo, recambiado para a Guiné.
Em Bissau, Everimundo teria sido imediatamente integrado na Acção Nacional Popular. Não se sabe exactamente quando é que conheceu o José Carlos Schwarz. Mais adiante poderão perceber a razão porque o caso do Everimundo José da Silva é citado nestas linhas.
Por volta de 1969, cerca de um ano depois da chegada à Guiné do Governador António de Spínola, um grupo de deputados da Acção Nacional Popular (ANP) parte para uma visita a Portugal no quadro do programa "Por uma Guiné Melhor", promovido pelo Brigadeiro. O Governo Colonial Português, na sua propaganda anti-nacionalista, deu uma grande cobertura à visita. No filme realizado, via-se o José Carlos Schwarz no meio da delegação da ANP na Fábrica de Explosivos e Munições Braço de Prata, na região de Lisboa.
Paradoxalmente, graças a essa mesma visita, o jovem de vinte anos na altura, iria ser confrontado com as suas próprias responsabilidades no contexto político-colonial. Este exercício identitário, inteiramente pessoal e profundamente interior deve-se ao seu encontro, em Lisboa, com um certo Filinto de Barros, "De Gaulle". Isto toda a gente sabe pelo que não constitui segredo nenhum. José Carlos teria recebido do "De Gaulle"os primeiros ensinamentos do nacionalismo africano, com exemplos da particularidade guineense.
O seu interlocutor, que na altura era estudante em Lisboa, conseguira convencer o José Carlos de que o seu papel não era ao lado do poder colonial. O encontro de Lisboa, com o Filinto de Barros constituiria o despertar de consciência do jovem pequeno burguês.
Quando o filme da visita a Portugal foi difundido na Guiné, no programa "Por uma Guiné Melhor", um dos actores do filme já não era o mesmo. O feitiço virara-se contra o feiticeiro.
O Everimundo José da Silva não teve a mesma chance de se cruzar com um Filinto de Barros. Foi precipitadamente executado logo depois do 25 de Abril de 1974. Oficialmente, o PAIGC ainda se encontrava em Conacri e nas regiões libertadas mas a sua ponta-de-lança já operava em Bissau.
De Readers Digest e outras, o nosso herói passou a interessar-se por outros tipos de literatura. Em Bissau, a Pide/DGS controlava de uma certa maneira a circulação de revistas subversivas. A "Vida Mundial", que dava valiosas informações de política internacional, não fazia parte da restrição. José Carlos fez dela a sua nova leitura de cabeceira.
Depois do Duco Castro Fernandes e do Filinto de Barros, um terceiro encontro, também decisivo, iria marcar uma nova reviravolta na evolução política e cultural do jovem rebelde, afinando ainda mais a sua definitiva opção. Seu nome: Aliu Barry.
À priori músico tradicional, Aliu evoluíra do seu lado, entre os dois Cupeluns. Exprimia-se perfeitamente com a viola ao contacto dos seus exímios dedos de ritmista. Uma grande amizade os reuniria e estaria na base da fundação de um dos primeiros conjuntos modernos de música crioula guineense, o "Cobiana Jazz" (1).
"Cobiana" instalar-se-ia na cena musical guineense fazendo leal concorrência à "Juventude 71" que já se implantara sobretudo no meio estudantil (...). Naquela época o Ernesto Dabó evoluia nos "Náuticos", e o Sidónio Pais Quaresma, o "Sidó", preparava-se para encapotar as suas "Capas Negras". Eis os conjuntos que constituiam as mais ambiciosas perspectivas musicais daquele glorioso periodo juvenil.
"Cobiana Jazz" propagava na sociedade guineense uma mensagem que ia directamente ao encontro das massas populares, conquistando assim uma boa parte da juventude urbana que passou a ter a possibilidade de pensar e de agir a partir da definição de uma nova base contextual.
O fenómeno "Cobiana Jazz" releva também o que Amilcar Cabral postulava a propósito das revoluções, a saber que só a pequena burguesia tinha a capacidade de as conduzir. Quanto à tese de Cabral relativo ao « suicídio » desta classe após a revolução, isso já pertence a um outro capítulo.
Sociologicamente falando, o José Carlos Schwarz era o único elemento da pseudo-burguesia, presente no grupo. Esta constatação não afasta em nada os outros valores do grupo, é simplesmente uma questâo de referência ideológica, cuja evolução, como referi anteriormente, pode ser dicutível.
Com o "Cobiana Jazz", o José Carlos Schwarz, o Aliu Barry e as suas retaguardas musicais, entram de rompante no conflito colonial, mudando forçosa e radicalmente uma parte dos peões avançados pelo Spínola, que constituiam, em grande parte, os alicerces da nova política colonial de alienação e submissão da juventude e da massa popular.
Confiantes nas suas acções mobilizadoras, os dois líderes resolvem participar, de maneira frontal, nas actividades da "Zona Zero", a principal antena do PAIGC em Bissau, dirigida por Rafael Barbosa.
No auge das suas actividades contra o Governo Colonial, José Carlos e Aliu Barry decidiram colocar uma bomba na própria delegação da PIDE/DGS em Bissau. Partiram de motorizada que deixaram banalizada nos arredores, atravessaram o portão principal e foram depositar o engenho na porta de grelhas, envidraçada do lado de dentro. Tratava-se de um potente explosivo de comando por relógio. Uma bomba-relógio!
Seguiu-se depois uma violenta explosão que fez voar em pedaços as grelhas e os vidros da porta da PIDE. José Carlos e Aliu tinham ousado desafiar o inimigo numa das suas mais protegidas fortalezas.
A fama do "Cobiana Jazz" percorrera praticamente toda a Guiné. José Carlos que entretanto fora chamado à tropa, bem como o Aliu Barry, viu-se afectado como condutor de camião em Fá Mandinga onde os Comandos Africanos recebiam preparação. Poucos meses depois seria o José Carlos convocado a Bissau onde receberia a ordem de prisão da PIDE. Aliu Barry teria a mesma sorte.
Deportados para a Colónia Penal da Ilha das Galinhas, Aliu cumpriu aí a sua sentença de dois anos. José Carlos só passou três meses na Ilha, tendo sido retornado ao Pavilhão de isolamento da Segunda Esquadra em Bissau para aí concluir o resto da sua pena fixada em três anos.
Esta dupla sanção dever-se-ia aos seus presumíveis contactos com a população da Ilha das Galinhas ou ao facto de que, entretanto, a PIDE teria descoberto outros casos em que estaria implicado e o teria reconvocado a Bissau. José Carlos defendia a segunda hipótese. Mas o afecto que dedicava aos Bijagós que constituíam a população da Ilha das Galinhas, era eloquente. Aliás, chegou a reivindicar essa paixão no seu famoso "djiu di Galinha" (2).
Foi quando a PIDE o transferiu da Ilha das Galinhas para Bissau, que o conheci de perto. Pois em Novembro de 1972, na sequência de uma greve de estudantes, precedida de manifestação no Palácio do Governo, tinha sido detido pela PIDE, por ordem do General Spínola.
Ocupei momentaneamente a cela n° 12 do Pavilhão de isolamento. O José Carlos encontrava-se na cela n° 16, a última do corredor. Quando lhe expliquei que fazia parte de um grupo de estudantes que fora reivindincar um tratamento mais condigno no plano dos estudos, entusiasmou-se tanto que pronunciou a frase : "É o segundo Pindjiguiti !"
Fui libertado algumas horas mais tarde em troca duma advertência pronunciada pelo Inspector-Adjunto da PIDE, Raimundo Alas, que não tinha matéria suficiente para me prender: Não é porque o vizinho quer aumentar o seu terreno que vai estendê-lo sobre as margens do outro vizinho.» Confesso que até hoje, não percebi o sentido desta frase.
A sentença caiu sobre mim em Maio de 1973. Quando me empurraram na cela n° 6 e fecharam a porta, senti umas batidas na parede, lembrei-me logo da técnica e respondi batendo na mesma. Uma voz vinda do fundo do corredor inquiriu: "Quem é?" O José Carlos Schwarz encontrava-se ainda na mesma cela de há seis meses atrás !
Estivemos juntos, eu na minha cela e ele na sua, durante cerca de quatro meses. Falamos de tudo e de nada. Fiquei desiludido ao saber que, afinal, havia traição na "Zona Zero".
Nas nossas conversas, contei-lhe uma cena relacionada com a peregrinação da minha mãe a Fátima, em Portugal, cerca de um mês antes de eu ter sido preso. A história divertia-o imenso.
Em Lisboa, a minha mãe tinha sido abordada por uns estudantes com os quais me encontrava ligado. À cabeça do grupo estava o seu neto, o João Nelson Sá Nogueira, “Nuno Quipa”, na altura estudante de Geologia. Disfarçaram na bagagem da minha mãe uma série de livros e revistas subversivas.
Quando a minha mãe regressou a Bissau, chamou-me e ordenou-me que abrisse a sua mala. Pequei nos livros, e enquanto ela vociferava que não me queria ver naquelas relações, eu já tinha ido para o meu quarto maravilhar-me com "A Mãe" de Máximo Gorki, "O Diário do ‘Che’ na Bolívia", "Portugal e o Futuro" do Spínola, etc., etc.
(...) Iniciou-me às regras do Pavilhão. Fiquei surpreendido ao saber que a PIDE colocara em toda a extensão do corredor, um sistema de escuta que lhe permitia controlar as conversas dos prisioneiros através duma central.
Para evitar eventuais salamalécos, cada prisioneiro tinha um nome de código ou era identificado por um assobio. O José Carlos era nato no exercício. A sua identificação inicial era "Djiu", depois passou a ser "Sidi". A mim baptizou-me "N’barrim" (irmãozinho no dialecto mandinga). Havia o "Belankufa", o "Canhuto", o "Zarra" e variadíssimas outras versões que se competiam no Pavilhão.
"Djiu" defendia a tese de que antes de ir para a luta armada ou de efectuar acções de guerrilha urbana, os jovens deveriam antes passar pela prisão da PIDE, provar o castigo, a vida dura, etc. Ele mesmo, preferia que o retornasem à Ilha das Galinhas em lugar de ser libertado. Para ele o castigo era algo de pedagógico que contribuia para a maturidade.
Perdido nos seus argumentos, postulava para mim a deportação para a Ilhas das Galinhas o que naturalmente me dava cabo dos nervos recusando prosseguir a conversa com ele. Fértil em ideias, instaurou no Pavilhão uma escala hiérárquica que consistia em dispensar o merecido respeito aos condenados de três anos, depois aos de dois anos, de um ano, meses, etc. Assim, o recém-chegado era básico na pirámide. Ele era "Comandante", pois tinha a pena máxima (3 anos) assim como o Biéne Na Bion, um guerrilheiro que conhecera na Ilha das Galinhas, que tinha sido libertado meses antes e que fora de novo capturado pelo exército português, condenado desta vez a três anos de prisão.
José Carlos não parava de criticar o guerrilheiro, acusando-o de negligência, de falta de rigor, disto e daquilo. Dizia-lhe assim, "Desta vez vão matar-te". Mas um dia, quando o seu colega "Comandante", apareceu no corredor depois de um intenso interrogatório, com as nádegas completamente inchadas de tanta palmatória levada, lá estava o "Djiu", em primeira linha, a consolar e a animar o combatente.
Meses mais tarde, quando lhe comuniquei que ia ser deportado para os trabalhos forçados na Colónia Penal, por três anos disse-me: "Agora sim, temos a mesma patente!"
Eu que nunca levara aquilo a sério, comecei a interrogar-me se o tempo que passara no isolamento não teria afectado o juízo, pois fiquei com o sentimento de que tinha posto muita convicção na sua frase de despedida.
José Carlos era o "condómino"do Pavilhão. Conseguira a autorização de ser o último a ir tomar banho e fazer as suas toilettes e, o que apreciava muito, passar o pano no corredor e limpar a casa de banho. Deixavam-no sozinho passear no corredor cerca de 15 minutos, o tempo suficiente para ir falar com outros prisioneiros e oferecer-nos frutas e outras guloseimas que recebia de casa.
Durante esse periodo tive o grande privilégio de ser um dos primeiros padrinhos das belas e salientes canções que o José Carlos compôs durante o seu cativeiro. "Minino de criaçon", "Muscuta", "Quê qui minino na tchôra", "Djénabu", "N’djanga" e toda a série que se lhes seguiu. Realizávamos até sessões de discos pedidos: eu animava e ele cantava.
Um dia, os guardas vieram buscar-me e fui transferido para a cela n° 7, do outro lado do Pavilhão. Devíamos estar nos meses de Setembro ou de Outubro de 1973. (A margem de erro é possível.) Conduziram-me ao pátio do Pavilhão onde me fizeram esperar alguns minutos. Cerca de pelo menos três metros do lugar onde me encontrava, jazia um corpo quase inerte em cujas narinas se notavam ainda vestígios de sangue coagulado. Fiquei estupefacto. Mas tive tempo de notar que o indivíduo aí estendido era dotado de uma certa corpulência. De tez negra, relativamente esbranqueada, tronco nu, o homem aparentava um cansaço extremo evidente.
Da minha nova cela, transmiti imediatamente a imagem que gravara na mente. Ninguém conseguiu identificar de imediato o prisioneiro. Alguns dias depois, o "Belankufa" (Duarte Cabral) anunciava ao Pavilhão a morte do Domingos Badinca, um dos responsáveis da rede clandestina do PAIGC de Bolama.
José Carlos, antes de ser preso, fascinara-se com a leitura de "Os condenados da terra", de Franz Fanon que circulava no meio da camada intelectual daquele tempo em Bissau, como o Jorge Ampa Cumelerbo, o Fernando Delfim da Silva, "Djumbo", o Adalberto (o seu apelido escapa-me) o Idrissa Djalló, etc. teria sido o Mumini Embaló quem fornecera um exemplar da obra de Franz Fanon ao José Carlos.
A figura principal da investida do escritor antilhês contra o racismo e a miséria, inspirou o nome do Naman, seu primeiro filho da união com a Teresa Loff Fernandes que teria conhecido em Lisboa. De origem cabo-verdiana e nascida no Senegal, a Teresa era também de ascendência alemã.
Alegre e simpática, a mulher do José Carlos tomava parte activa nas actividades clandestinas da "Zona Zero".
Fã incontestável de Kanté Manfila, o José Carlos admirava a proeza técnica do congolês Franco, as fecundas melodias do Balla e dos seus Balladins e a excelência do Kélétigui Traoré, que tinha a magnificência de combinar nos seus arranjos musicais, o moderno e o tradicional.
José Carlos Schwarz foi libertado em Bissau logo depois do 25 de Abril e foi convidado a pronunciar um discurso que foi difundido na rádio. Antes de ser preso, fizera este sermão: "Juro-vos, que por mais que o pau possa permanecer no mar, nunca se transformará em crocodilo", o que traduzido em linguagem comum significa que tarde ou cedo assistir-se-ia ao fim da opressão colonial. E aí estava ele de novo, numa comunhão perfeita com o seu público, a confirmar a sua ousada profecia.
Da Ilha das Galinhas, ouvi o discurso que iniciou dizendo: "Irmãos!", numa voz terna e carregada de emoção. O Feiticeiro transformara-se em Profeta.
(1) Cobiana era o nome de uma base das FARP-Norte
José Carlos foi solto no início de Maio de 1974. Começou com os concertos diários, mobilizando o maior número possível de pessoas para combater a ideia do referendo.
Logo após a chegada dos camaradas do mato, os choques e conflitos proliferaram entre os combatentes do mato e os camaradas de 2ª classe, que era o que chamavam aos militantes clandestinos que viviam na cidades. Zé Carlos, como tantos outros, estava entre estes. Começou a compor música de crítica social e política. Como o lugar de Director-Geral não calou o seu "espírito cabralista e rebelde" foi quase obrigado a aceitar o cargo de encarregado de Negócios em Cuba (nota de Miguel Pedras, em
Contributo).
Na manhã solarenta do dia 27 de Maio de 1977, o avião da Aeroflot que o transportava para as novas funções, procedente de Lisboa com 66 passageiros fazia-se à pista do aeroporto José Marti, em Cuba. Segundo a versão oficial terá tocado num fio de alta tensão. Só houve uma sobrevivente. Fonte Maria Teresa Loff Fernandes (viúva de J. Carlos).
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Nota do co-editor: vb
Os nossos agradecimentos ao Fernando Casimiro