1. Mensagem de um nosso camarada que não se assina, mas que julgamos tratar-se de José Silva, com data de 17 de Março de 2009:
Como todos vós fui mobilizado para a Guiné, 1971/73 - Aldeia Formosa, onde cumpri a minha comissão, mau grado os infortúnios que podiam advir no teatro de guerra. Poderei afirmar com toda a veemência que a corrente do destino, se é que há destino, se caudicou ao escolher uma vítima, que já o era antes de ter sido.
Após a recruta e encaminhado para a Especialidade de Transmissões de Infantaria (BCC5) Batalhão de Caçadores 5 em Campolide - Lisboa: foi já no IAO, com duas semanas de campo, se a memória não me falha, que fui acometido de doença súbita, no (Inverno do meu descontentemento), perdoem-me o plágio, que a meningite surge nua e crua, a um jovem militar envaidecido com a sua Especialidade e nas espectativas que na época se empolavam.
Transferido para o (HMDIC), em estado muito grave, foi através de algumas vontades altruístas que fui atendido por uma equipa médica, a quem muito devo e quem dera hoje em dia poder abraçá-los, pelo trabalho que tiveram para me curarem de tal maleita, como se dizia em meias idades e há uns séculos atrás. Pensei na altura e já a caminho de casa para uns dias de recuperação, que talvez essa grave doença inibice qualquer hipótese de mobilização, mas como já referi tal não aconteceu.
Ao afirmar dupla vitimização, incluo como é óbvio a ida para a Guiné, a poucos quilómetros de Conácri e num aquartelamento, que como Comando de Agrupamemto, era um alvo apetecível para o PAIGC, com sequentes ataques ao aquartelamento, que se dividiam ora com mísseis terra-ar e canhoadas ou com grupos suicídas, que se encostavam ao arame farpado com a costureirinha e roquetada prá frente, e isto meus amigos foi um caso muito sério, pois às vezes estávamos debaixo de fogo uma e hora e meia.
Hoje em dia, ataques de pânico depressão crónica e enfisema pulmonar: alguém é servido? Perdoem-me ser mordaz, mas a revolta continua.
Sei que em alguns hospitais há a consulta de Stress Pós-Traumático, mas também sei que a maioria nem um tiro deu e, sem vergonha apresentam-se como vítimas da guerra, tendo estado em locais onde as grandes farras e caçadas erm prato do dia. Espero que alguém ponha fim à farsa e que aos hospitais sejam exigidas políticas de atendimento, de forma a evitar os trapaçeiros. Aqui no Porto não há essa política de verdade, não por culpa dos hospitais, mas por políticas descabidas. Era bem preciso que se pusesse fim ao trapaceirismo que já existe por quem diz ter traumas, com o fito de obter relatórios favoráveis para as juntas médicas.
2. Comentário de CV
Aqui fica o desabafo deste nosso camarada que sofre na pele as mazelas deixadas pela sua estada na Guiné. Sabemos que há pessoas que se aproveitam das possibilidades dadas aos verdadeiros doentes para obterem de forma fraudulenta benesses a que não têm direito. Cabe às autoridades e aos técnicos de saúde separar o trio do joio.
Os que são mesmo doentes devem dirigir-se ao hospital mais próximo, Liga dos Combatentes ou Associação dos Deficientes das Forças Armadas e apresentar o seu problema, fazendo menção à qualidade de ex-combatentes da Guerra Colonial.
Olhando pela sua saúde e procurando ajuda, contribuem para o bem-estar do agregado familiar em que estão inseridos.
A todos os camaradas na situação deste nosso companheiro, José Silva (?), os nossos desejos de rápidas melhoras.
__________
Vd. último poste da série de 14 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4032: Blogoterapia (97): Pois.. Juvenal Amado, Assim não falamos na primeira pessoa (José Brás)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 19 de março de 2009
Guiné 63/74 - P4052: Por que é que, no auge da Op Tridente, não se decapitou o PAIGC em Cassacá, em Fevereiro de 1964 ? (José Colaço)
1. Comentário de José Colaço (*) ao poste de 18 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4047: Resumo das actividades do Pel Mort 912 (OUT63/OUT65) (Fotos) (Santos Oliveira)
Cachil, Como ou Komo, e como eu conheci aquela estância [turística], seu residente entre 23/01/64 e 27/11/64. Onde a ementa nos primeiros 55 dias foi, todos os dias, ração de combate - carne de vaca à jardineira ou feijão branco com chouriço -, para não falar da água que nos primeiros dois dias foi racionada (0,5 litro por dia), as noites mais longas que passei, cerca de 90, a dormir; não a passar sem mosquiteiro, os mosquitos de noite atacavam em força, repelentes não havia, o único meio de protecção que tinha algum efeito era o pano da tenda de campanha, porque cobertores, roupa, aquele ferrão longo e pontiagudo furava tudo até encontrar o pêlo do militar.
As fotos são-me familiares.
Acabo de ver na RTP1 o programa do Joaquim Furtado, A Guerra [, 2ª Série, 11 episódios, às 4ªs feiras]. O congresso do PAIGC realizado em Cassacá, Ilha do Como, 27 de Abril de 1964.
Interrogo-me, depois da Operação Tridente, com tantos meios envolvidos, segundo se consta ter sido a maior operação realizada na guerra do ultramar e com um final feliz para as nossas tropas.
Depois do falhado golpe a Cassacá no início de Abril, nunca mais o comandante chefe general Arnaldo Schultz e o seu ajudante de campo brigadeiro Fernando Louro terem, ao que parece, esquecido completamente toda aquela zona , desde Cassacá, Cauane e Caiar. Chegando ao ponto a partir de certa altura, o comandante da Companhia de Caçadores 557 sediada no subsector do Cachil receber ordens do comando de sector Catió, de BCAÇ 619, para parar com as explorações à mata do Cachil. (***)
Termino, que isto dava era um poste muito extenso e não um comentário.
Um alfa bravo.
Colaço
PS - Uma questão, estes inimigos [mosquitinhos] não terão também culpas no cartório com a sua contribuição na morte de ex-combatentes, embora a longo prazo?
___________
Notas de L.G.:
(*) (*) José Colaço, ex-Sold de Trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65
Vd. postes de:
2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)
20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)
9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)
19 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3334 O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)
(**) (2) SSobre a Op Tridente (ou Batalha do Como), vd. postes de:
28 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2892: A verdade e a ficção (2): Ilha do Como, Op Tridente: Queres vender a tua água ? Dou-te 100, dou-te 200 pesos (Anónimo)
27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2889: A verdade e a ficção (1): Op Tridente, Ilha do Como, Jan / Mar 1964 (Mário Dias)
23 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2874: Um dia na Ilha do Como: Operação Tridente, Fevereiro de 1964 (Valentim Oliveira, CCAV 489/BCAV 490)
15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)
15 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)
23 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2375: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (8): A Batalha do Como (Mário Dias / Santos Oliveira)
17 de Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como
12 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)
1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1907: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (2): A libertação da Ilha do Como (A. Marques Lopes / António Pimentel)
17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)
17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias
17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)
Vd. ainda os vídeos e documentários da RTP, sobre a Operação mais mediática da guerra da Guiné, no sítio Guerra Colonial (1961-1974) > Multimédia > Operações > Operação
Tridente
(***) Sobre a importância do Congresso de Cassacá, o I Congresso do PAIGC, realizado de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, a 15 Km da Ilha do Como, no auge da Batalha do Como (designação usada pelos guerrilheiros) ou da Op Tridente (nome de código dada à operação pelas NT), dv. documentário (em francês), dsiponível em Guerra Colonial (1963-1974) > Multimédia > Vídeos e documentários da RTP > PAIGC - Documentário francês
(...) "O presente documentário trata, de uma forma muito eficaz, toda a estratégia de luta do PAIGC a partir de 1964. Com efeito, tendo como base as declarações de Amílcar Cabral em três blocos, o documentário sublinha e enfatiza com imagens, as grandes linhas de força saídas do Congresso de Cassacá (na proximidade da Ilha de Como e da fronteira com a Guiné-Conacri) realizado em Fevereiro de 1964.
"Este Congresso foi a primeira grande reunião do PAIGC com a presença da quase totalidade dos quadros responsáveis. A grande importância das decisões ali tomadas teve a ver, especialmente, com:
"- a necessidade de definir muito claramente a subordinação da estrutura militar ao poder politico; Amílcar Cabral fez sempre declarações em diferentes ocasiões afirmando explicitamente que o PAIGC era um partido de militantes armados e não de militaristas;
"- a criação de uma nova estrutura militar operacional, os "bigrupos", com uma chefia bicéfala com um comandante militar e um comissário politico; estas unidades eram constituídas por 40 elementos bem armados e em constante movimento, dando assim início a fase da guerra de movimento;
"- a orientação para a organização das zonas libertadas, dotando-as de recursos básicos essenciais, nomeadamente de saúde, educação e justiça, que foi, evidentemente, o projecto mais importante e conseguido para o controlo e apoio das populações" (...).
Cachil, Como ou Komo, e como eu conheci aquela estância [turística], seu residente entre 23/01/64 e 27/11/64. Onde a ementa nos primeiros 55 dias foi, todos os dias, ração de combate - carne de vaca à jardineira ou feijão branco com chouriço -, para não falar da água que nos primeiros dois dias foi racionada (0,5 litro por dia), as noites mais longas que passei, cerca de 90, a dormir; não a passar sem mosquiteiro, os mosquitos de noite atacavam em força, repelentes não havia, o único meio de protecção que tinha algum efeito era o pano da tenda de campanha, porque cobertores, roupa, aquele ferrão longo e pontiagudo furava tudo até encontrar o pêlo do militar.
As fotos são-me familiares.
Acabo de ver na RTP1 o programa do Joaquim Furtado, A Guerra [, 2ª Série, 11 episódios, às 4ªs feiras]. O congresso do PAIGC realizado em Cassacá, Ilha do Como, 27 de Abril de 1964.
Interrogo-me, depois da Operação Tridente, com tantos meios envolvidos, segundo se consta ter sido a maior operação realizada na guerra do ultramar e com um final feliz para as nossas tropas.
Depois do falhado golpe a Cassacá no início de Abril, nunca mais o comandante chefe general Arnaldo Schultz e o seu ajudante de campo brigadeiro Fernando Louro terem, ao que parece, esquecido completamente toda aquela zona , desde Cassacá, Cauane e Caiar. Chegando ao ponto a partir de certa altura, o comandante da Companhia de Caçadores 557 sediada no subsector do Cachil receber ordens do comando de sector Catió, de BCAÇ 619, para parar com as explorações à mata do Cachil. (***)
Termino, que isto dava era um poste muito extenso e não um comentário.
Um alfa bravo.
Colaço
PS - Uma questão, estes inimigos [mosquitinhos] não terão também culpas no cartório com a sua contribuição na morte de ex-combatentes, embora a longo prazo?
___________
Notas de L.G.:
(*) (*) José Colaço, ex-Sold de Trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65
Vd. postes de:
2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)
20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)
9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)
19 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3334 O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)
(**) (2) SSobre a Op Tridente (ou Batalha do Como), vd. postes de:
28 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2892: A verdade e a ficção (2): Ilha do Como, Op Tridente: Queres vender a tua água ? Dou-te 100, dou-te 200 pesos (Anónimo)
27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2889: A verdade e a ficção (1): Op Tridente, Ilha do Como, Jan / Mar 1964 (Mário Dias)
23 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2874: Um dia na Ilha do Como: Operação Tridente, Fevereiro de 1964 (Valentim Oliveira, CCAV 489/BCAV 490)
15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)
15 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)
23 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2375: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (8): A Batalha do Como (Mário Dias / Santos Oliveira)
17 de Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como
12 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)
1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1907: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (2): A libertação da Ilha do Como (A. Marques Lopes / António Pimentel)
17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)
17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias
17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)
Vd. ainda os vídeos e documentários da RTP, sobre a Operação mais mediática da guerra da Guiné, no sítio Guerra Colonial (1961-1974) > Multimédia > Operações > Operação
Tridente
(***) Sobre a importância do Congresso de Cassacá, o I Congresso do PAIGC, realizado de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, a 15 Km da Ilha do Como, no auge da Batalha do Como (designação usada pelos guerrilheiros) ou da Op Tridente (nome de código dada à operação pelas NT), dv. documentário (em francês), dsiponível em Guerra Colonial (1963-1974) > Multimédia > Vídeos e documentários da RTP > PAIGC - Documentário francês
(...) "O presente documentário trata, de uma forma muito eficaz, toda a estratégia de luta do PAIGC a partir de 1964. Com efeito, tendo como base as declarações de Amílcar Cabral em três blocos, o documentário sublinha e enfatiza com imagens, as grandes linhas de força saídas do Congresso de Cassacá (na proximidade da Ilha de Como e da fronteira com a Guiné-Conacri) realizado em Fevereiro de 1964.
"Este Congresso foi a primeira grande reunião do PAIGC com a presença da quase totalidade dos quadros responsáveis. A grande importância das decisões ali tomadas teve a ver, especialmente, com:
"- a necessidade de definir muito claramente a subordinação da estrutura militar ao poder politico; Amílcar Cabral fez sempre declarações em diferentes ocasiões afirmando explicitamente que o PAIGC era um partido de militantes armados e não de militaristas;
"- a criação de uma nova estrutura militar operacional, os "bigrupos", com uma chefia bicéfala com um comandante militar e um comissário politico; estas unidades eram constituídas por 40 elementos bem armados e em constante movimento, dando assim início a fase da guerra de movimento;
"- a orientação para a organização das zonas libertadas, dotando-as de recursos básicos essenciais, nomeadamente de saúde, educação e justiça, que foi, evidentemente, o projecto mais importante e conseguido para o controlo e apoio das populações" (...).
Guiné 63/74 - P4051: FAP (18): Kurika da Mata (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)
Guiné > 26 de Março de 1973 > Sequência fotográfica, mostrando a recuperação do Pilav Ten Miguel Pessoa, ejectado sob os céus de Guileje, depois do seu Fiat G-91 ter sido abatido por um Strela, na véspera, até à recepção festiva que lhe foi feita pelos seus camaradas da BA12, em Bissalanca, no regresso do Hospital...
Fotos: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados.
FAP (18) > KURIKA DA MATA
por Miguel Pessoa (**)
[Fixação / revisão de texto / subtítulos / bold: LG]
(i) 25 de Março de 1973, um domingo que tinha começado perfeitamente normal
Sento-me no chão, ainda estonteado com a sequência dos últimos acontecimentos. Procurando retomar por completo a consciência, tento levantar-me, mas sinto a perna esquerda falhar ao mesmo tempo que uma forte dor me atinge. Procuro uma explicação para o que me está a acontecer e tento rever o que se passou nos últimos minutos.
Começo a conseguir reconstituir toda a acção que me trouxe aqui - o apoio de fogo ao aquartelamento de Guileje, o sobrevoo do corredor do Guileje e a busca de indícios do IN na zona de Gandembel, o impacto violento sentido no avião, a perda total do motor, a minha tentativa de aproximação a Guileje, o afundamento brusco do avião, a minha reacção imediata accionando o manípulo de ejecção, depois... nada!
Vejo-me agora isolado no meio da mata, com um pé torcido, segundo parece, e uma forte dor nas costas, que atribuo à violência da ejecção. Sinto que a minha vida está a andar para trás; e, afinal, o dia tinha começado perfeitamente normal...
...................
Naquele Domingo, 25 de Março de 1973, tinha iniciado o meu trabalho às seis da manhã. Estava prevista uma actividade de voo um pouco mais reduzida durante o dia, mas a parelha de alerta dos Fiats, constituída por mim e pelo meu camarada António Matos, estava a postos para o que desse e viesse; o mesmo sucedia com as outras tripulações que também tinham entrado de alerta à mesma hora: do DO-27, dos AL-III (o heli das evacuações e o heli-canhão) e as enfermeiras pára-quedistas prontas para qualquer evacuação que surgisse.
A manhã passou-se sem sobressaltos. Opto por almoçar qualquer coisa no pomposamente chamado Clube de Pilotos, junto às Esquadras de Voo. Esta sala de estar, com um bar adjacente, permite às tripulações a permanência dos pilotos junto das Esquadras, para poderem acorrer mais depressa a qualquer solicitação. O accionamento do alerta é exigente e não se compadece com comezainas demoradas - desde o accionamento do alerta até à descolagem temos um tempo máximo de 10 minutos, o que inclui sacar o equipamento de voo, dirigir-se às operações para receber instruções e os mapas 1/50.000 da zona a apoiar, ser transportado até ao avião, pôr em marcha, rolar para a pista e descolar... Exige alguma celeridade.
Aproximávamo-nos das treze horas e eu tinha começado a tomar o meu café. De repente soam os altifalantes estrategicamente colocados no corredor limítrofe das Esquadras: "Alerta aos Fiats!". Imediatamente nos deslocamos à sala de equipamentos de voo, onde sacamos o equipamento mínimo para a missão (1) e seguimos em passo acelerado para as Operações. Aí, o Oficial de Operações do Grupo Operacional 1201 e o Oficial da Dia às Operações explicam-nos a situação.
Trata-se de um apoio de fogo solicitado pelo aquartelamento de Guileje, na sequência de uma flagelação com foguetões e canhões sem recuo sofrida pouco antes. Para aumentar o tempo sobre o objectivo é decidido escalonar a saída dos dois aviões, de modo a garantir uma pequena sobreposição na zona a apoiar. Sou mandado avançar em primeiro lugar; dirijo-me rapidamente para o avião e atiro-me de imediato lá para dentro - nestes casos o mecânico antecipou a inspecção exterior e poupa-nos tempo. A rolagem para a pista é feita mais depressa que o habitual e para poupar tempo faço uma descolagem de corrida (2). Rapidamente o Tigre Negro (3) está no ar.
______________
Nota do autor:
(1) Nas missões normais o piloto usava o fato anti-g (que permite ao corpo suportar maiores acelerações (Gs), o Mae-West (colete insuflável para a água), as fitas para as pernas (que, ficando presas à cadeira, no caso de uma ejecção não controlada puxavam as pernas para trás, evitando lesões graves nos joelhos e/ou nas pernas num possível contacto com o aro da canopy durante a ejecção) e, naturalmente, o capacete de voo com a máscara acoplada. No caso da saída do alerta, que se pretendia muito mais expedita, muitas vezes dispensávamos o anti-g, levando apenas o trikini- como lhe chamávamos - o capacete, o mae-west e as fitas da cadeira, isto no pressuposto de que a carta 1/500.000 e as luvas de voo já estavam guardadas nos bolsos do nosso fato de voo. O pára-quedas estava integrado na cadeira de ejecção, por isso era "vestido" quando nos sentávamos dentro do avião.
(2) A descolagem de corrida era um procedimento mais expedito usado nas saídas de alerta em que o avião, quando entra na pista, está já a ser acelerado para a descolagem e os procedimentos antes da descolagem são feitos enquanto o avião ganha velocidade na pista. Pelo contrário, em condições normais o avião é imobilizado no início da pista, são efectuados os procedimentos antes da descolagem, é acelerado o motor para a potência máxima e, verificada a normalidade de todas as indicações do motor, são libertados os travões, e o avião inicia então a corrida de descolagem (o percurso na pista desde que larga travões até ter as rodas no ar).
(3) Indicativo normal da parelha de alerta. Nos Fiats não usávamos os nossos indicativos pessoais, apenas no DO-27, onde o meu nome de guerra era "Kurika".
(ii) Quando um piloto está a mais no seu avião, só lhe resta... ejectar-se!
O percurso para o objectivo é feito com bastante potência para diminuir o tempo em rota; aproveito para verificar o armamento e o combustível e, já próximo, inicio os contactos via rádio na frequência terra-ar.
Guileje esclarece-me sobre a possível origem dos disparos e indica-me a zona do antigo aquartelamento de Gandembel como a mais provável. À medida que me aproximo da fronteira começo a baixar de altitude - o pessoal do lado de lá (Kandiafara e Simbeli, por exemplo) tem a mania de treinar as anti-aéreas se nos apanham a jeito, por isso manter os 1000 pés é uma solução de compromisso entre evitar os RPG e mantermo-nos fora da vista da AAA (4).
Já no local procuro indícios de movimento de pessoas ou veículos, tentando visualizar trilhos recentes. Inicio uma volta pela esquerda e nesse momento sinto um impacto forte na traseira do avião, a que se segue o ruído característico da paragem do motor, o que posso confirmar pelo decréscimo rápido das rotações. Tento de imediato reacender o motor através da ignição de emergência enquanto, prevendo já o pior, prancho o avião para um lado e para o outro na tentativa de localizar e atingir a zona de Guileje. O motor continua parado e a velocidade não vai durar muito tempo. Quase de seguida, sinto a perda total dos comandos do avião, iniciando este uma descida brusca em direcção ao solo. Nem tenho tempo de alertar a Base - provavelmente nem me ouviriam dada a minha baixa altitude.
Estou a mais no avião e a única solução é ejectar-me. Puxo a argola de ejecção (5) que está por cima da minha cabeça. A adrenalina multiplicou-me as forças de tal modo que nem sinto resistência ao accionar o sistema. A velocidade de raciocínio multiplicou-se igualmente. Imagino que falhou a ejecção e penso accionar a alavanca alternativa (na cadeira, em baixo, entre as pernas). Sinto então a explosão do cartucho da cadeira e deixo de ter consciência do que me rodeia. Afinal, passou-se 1/3 de segundo entre o accionamento do manípulo e a saída da cadeira...
..................
Amparado a uma árvore, ainda tonto, tento fazer um ponto rápido da situação e deixo para mais tarde a análise do que se passou com o avião ou a maneira como acordei naquele sítio. O facto é que estou em terreno hostil, ainda distante do aquartelamento, num ambiente que é novo para mim, sozinho e quase incapacitado de andar. E se o IN viu a minha ejecção é natural que se dirija para o local para tentar apanhar-me. Pelo meu cálculo penso estar a sudoeste do antigo aquartelamento de Gandembel e considero ser a melhor opção avançar para NW, o que me aproximaria da estrada Aldeia Formosa-Guileje e do próprio aquartelamento. (6)
Notas do autor:
(4) Artilharia Anti-Aérea
(5) A que chamávamos Sto.António, por ser em forma de auréola... Ao puxar-se para a frente, accionava o sistema de ejecção e desenrolava uma lona que tapava a cabeça do piloto, protegendo-o de certa forma de pequenos destroços e do fluxo de ar exterior, quando a cadeira saía do avião.
(6) Infelizmente o meu raciocínio estaria certo se eu estivesse a sul daquela estrada. Mas as manobras que fiz levaram-me para norte dela e eu nunca mais iria cruzar a referida estrada...
(iii) Obrigado ao meu kit de sobrevivência (very, very light)... e ao malogrado Ten Cor Brito, comandante do G0 1201, que me detectou
Abro o pequeno kit de sobrevivência que nos tinha sido distribuído - na verdade o seu conteúdo é uma novidade para mim, pois embora tivesse uma ideia do que lá estava nunca tinha visto nenhum aberto. Aliás, o kit era coberto por um forro em flanela, todo cosido, o que tinha impedido uma exploração prévia do seu recheio...
O essencial é tentar iniciar a marcha com o tornozelo ainda quente, pois receio não conseguir andar quando a perna arrefecer. Estou num local bastante arborizado e com muita vegetação junto ao solo, o que dificulta a progressão. Avanço a coxear, tropeçando com frequência. Tenho receio de perder a bússola que vinha no kit, é minúscula e se a deixar cair, naquele terreno, arrisco-me a não conseguir encontrá-la. Opto por segurá-la entre os lábios, ficando com as mãos livres para me ir apoiando sempre que tropeço. Com o tempo aumentam as dores na perna e a progressão é cada vez mais difícil.
Parece-me começar a ouvir barulho de aviões a jacto - será o outro avião de alerta já à minha procura? Começo a alterar as minhas prioridades - agora a minha preocupação é tentar encontrar um local mais aberto de onde possa disparar os very-lights e ser localizado por um avião. E há que ter cuidado, que os meus recursos são limitados, para alimentar a caneta dos very-lights só tenho nove cargas - a dotação que nos era normalmente atribuída (7). Mas a copa das árvores não deixa muito espaço para manobra.
Finalmente, alcanço uma zona que está longe de ser a ideal mas que, dado o desnível das copas das árvores, poderá permitir o disparo enviezado dos very-lights, o que talvez possibilite a sua visualização do ar. O facto é que já não consigo andar e as costas também me doem bastante. Não me parece que consiga sair dali pelos meus meios.
Não temos rádios distribuídos, mas no kit vêm uns fósforos presumivelmente anti-humidade. Pode ser que fazendo uma fogueira... No momento também não vejo grande utilidade no preservativo que vinha no kit. Se a ideia era servir de contentor de água, esqueçam, que aqui não há nenhuma... O mesmo para o anzol - só se for para as férias...
O ruído dos aviões começa a ser mais frequente, mas parece que a área de busca é ainda afastada. Mesmo que eles se dirijam na minha direcção não vou conseguir vê-los e eles também não irão localizar-me; a única esperança é que vejam um very-light.
Sento-me encostado a uma árvore, virado para a zona mais descoberta (ou, será melhor dizer, menos cerrada...). Ao fim de algum tempo sinto a aproximação de um jacto. Parece vir na minha direcção, mas não consigo vê-lo. A minha experiência permite-me ter uma ideia, pelo som, da direcção e da distância do avião em relação ao ponto em que me encontro; disparo o primeiro very-light - um verde, apesar de não me sentir em grandes condições físicas - mas os minutos seguintes não me dão qualquer indicação de que tenha sido visto; nem as duas horas seguintes - as minhas tentativas de ser visto não estão a resultar e já utilizei quatro dos nove very-lights (já comecei a gastar dos brancos, mas a verdade é que já estou a borrifar-me para as cores!).
Começam a aproximar-se as cinco da tarde - na Guiné a transição do dia para a noite ocorre cedo e com uma certa rapidez; sinto que já não tenho muito tempo para ser localizado antes de escurecer. Volto a detectar a aproximação de um avião e disparo mais um very-light. O avião passa próximo, sinto-o dar a volta e passar outra vez próximo de mim, a baixa altitude (8).
Fico com a esperança de ter sido visto, mas a hora seguinte não confirma as minhas expectativas. E a noite cai finalmente, avolumando-se com ela a minha apreensão, dada a minha visível inadaptação ao ambiente que me envolve. Sou perturbado por uma série de dúvidas que me assolam, para as quais não tenho resposta - Os pilotos terão visto algum very-light? Estará a ser organizada uma operação de recuperação? Como pensarão recolher-me? O IN terá detectado a minha ejecção? Irão tentar "agarrar-me à mão"?
______________
Notas do autor:
(7) 3 very-lights verdes, 3 brancos e 3 vermelhos, usados de acordo com o estado em que o aviador se encontrava (do menos grave para o mais grave). Isto seria aplicável se fossem muitos. Assim, a partir de certa altura usa-se os que temos, não importa a cor...
(8) Contar-me-iam mais tarde que o Ten Cor Brito, Comandante do GO 1201 - o piloto em questão - referenciou o disparo deste very-light e sobrevoou novamente o local, tendo divisado com algum custo o meu pára-quedas, meio enterrado numa árvore. Convencido de que o piloto estaria num estado de saúde razoável, acertadamente considerou que não havia condições de segurança para lançar de imediato uma operação de salvamento, dada a hora tardia, antes preferindo iniciar o planeamento de uma operação bem sustentada, a desencadear nas primeiras horas da madrugada.
(iv) Talvez a noite mais longa da minha vida
A noite vai ser certamente prolongada - e pouco dormida, seguramente. Aproveito para repousar um pouco o corpo, estendendo-me no chão, o que me permite reduzir as dores nas costas e simultaneamente dar menos nas vistas de quem se aproxime.
Tenho algum tempo para pensar no que me levou a esta situação. O IN terá pelos vistos atingido o Fiat, do que resultou a falha do motor, logo seguida da perda de comandos. Dadas as condições em que estava a voar, não tenho dúvidas de que a ejecção terá ocorrido nos limites da segurança, a baixa altitude e com uma acentuada razão de descida do avião desgovernado. Do modo como observei o paraquedas, meio pendurado ao longo da árvore, começo a acreditar que ele apenas terá completado a sua abertura já no contacto com a árvore em que me enfeixei, o que terá travado a velocidade da descida, acabando eu - mesmo assim - por entrar depressa demais pelo chão, provocando as lesões na perna esquerda. Calculo agora que será mais que uma entorse, embora não haja fractura completa da perna, nem fractura exposta.
Lembro-me que a minha arma pessoal - uma Walther PPK.22 (9) - ficou guardada no anti-g, mas não tenho a certeza se não será melhor assim - a posse da arma dar-me-ia a tentação de a usar em situações em que tal não era recomendado. Bom, não tenho a arma, não vale a pena pensar mais nisso.
A noite é interminável - mantenho-me desperto embora por vezes o cansaço me faça dormitar, mas acordo logo, alertado por um qualquer barulho. A tensão da situação e a desidratação que começa a afectar-me também não contribuem para me acalmar. No escuro parece-me detectar o movimento de um insecto que brilha, mas trata-se afinal dos ponteiros luminosos do meu relógio, a que a minha visão desfocada (por falta de referências) parece dar uma sensação de movimento... Acordo outra vez com a sensação de algo encostado à minha perna (uma cobra?) - não me mexo, até porque cobras não são o meu forte; será a perna partida a latejar que dá aquela sensação de movimento? A verdade é que essa sensação passa - ou o animal se foi ou a perna deixou de latejar...
Cometo um erro ao poisar a cabeça no chão para repousar. Fico com uma orelha encostada ao chão, o que amplifica todos os sons produzidos à minha volta. O simples contacto de uma folha a cair, ao bater no chão, faz lembrar a progressão pé ante pé, de alguém que se aproxima. Apesar de a escuridão não o permitir, parece-me divisar duas sombras que se vão aproximando de mim...
O amanhecer encontra-me exausto, mas satisfeito por ver a luz do dia. Fico a aguardar o regresso dos aviões para tentar perceber o que estão a planear. Finalmente começo a ouvi-los. É uma miscelânea de sons que vou identificando - Fiats, T-6, DO, AL-III. Começo a ter a certeza de que fui localizado. Pelo sim, pelo não, quando sinto a sua aproximação, disparo mais um very-light. Mas sistematicamente, parece que os AL-III se aproximam e a uma certa distância voltam para trás (10).
Os very-light esgotam-se finalmente. Resolvo despir a parte de cima do fato de voo e retirar a camisola interior, branca. Depois de vestido novamente o fato de voo, decido pôr a camisola interior por cima, à laia de pull-over. Espero ter assim mais possibilidades de ser detectado do ar, por fazer agora um maior contraste com a vegetação.
São nove horas da manhã - já passaram 3 horas de luz e nada. Tinha pensado que um AL-III com guincho chegaria à vertical e tentaria recuperar-me pelo ar... mas a verdade é que nenhum aparelho me sobrevoa.
Em desespero, resolvo fazer um fogo que seja visto do ar (má ideia, que ainda posso ficar carbonizado...) mas a natureza ajuda - a vegetação está húmida... e os tais fósforos anti-humidade também! Vários falham e não consigo acender nada. Quando risco o último, a cabeça salta, ainda por arder. Tiro as luvas e com a ponta dos dedos seguro a cabeça do fósforo, friccionando-a contra a lixa: começa a arder queimando-me os dedos mas apagando-se logo de seguida.
_____________
Notas do autor:
(9) As armas de baixo calibre, embora menos eficazes, eram as mais apropriadas para os pilotos dos Fiats. Veja-se que uma arma destas, pesando cerca de 500 g, representa mesmo assim um peso de cerca de 9 kgs durante uma ejecção (18 Gs=18 x a aceleração da gravidade). Assim, com uma arma de maior calibre (e peso correspondente), em caso de ejecção o piloto arriscava-se a vê-la rasgar o bolso ou o coldre em que a guardava, e desaparecer.
(10) Soube posteriormente que naquela altura os AL-III procediam à colocação de Pára-quedistas e Operações Especiais na orla da mata em que me encontrava, para estes depois prosseguirem a pé na minha direcção.
(v) Um homem em apuros... mas bem educado e delicado
Resigno-me a esperar por auxílio, que da minha parte parece-me não haver muito mais a fazer. Mas a desidratação e a tensão começam a pregar-me partidas. Pressinto a aproximação de pessoas, mas não as identifico. Começo a pensar que é pessoal do PAIGC que está a envolver-me, na esperança de poder preparar uma emboscada ao helicóptero ou helicópteros de salvamento. Chego à conclusão que o melhor é não chamar a atenção dos aviões, pois se eu pelos vistos já estou "aviado", não vale a pena levar comigo algum camarada que esteja a tentar salvar-me.
Começo a divisar cabeças que se aproximam pelo meio da folhagem; são africanos, o que parece confirmar as minhas piores previsões; o armamento e uniformes também não são das tropas portuguesas. Sabem o meu nome (mas também não é difícil, têm provavelmente infiltrados na Base). Dizem-me para ir com eles - e eu peço-lhes "delicadamente" (11) para se irem embora e me deixarem em paz.
Aparece o que parecia ser o chefe - de barbicha e óculos - e diz-me que é o Marcelino da Mata. Ora eu, pira de 4 meses da Guiné, embora conhecendo as referências do senhor, nunca o vi pessoalmente, mas é conhecido que ele costuma levar cantis com Fanta e Coca-Cola. Peço-lhe de beber, ao que ele anui. Provado o produto fica confirmada a identidade do meu interlocutor, o qual merece da minha parte, de imediato, um efusivo cumprimento: "Ah granda Marcelino!".
Chega entretanto ao local pessoal meu conhecido do BCP 12 e renova-se a minha confiança em acabar bem o dia. Ao ponto de, quando sugerem a construção de uma padiola, ter recusado: "Entrei nesta mata de pé e é de pé que vou sair" - Pudera! Agora que já tenho as costas quentes...
A deslocação até ao helicóptero não tem grande história, embora seja demorada e cansativa, pois a incapacidade da minha perna esquerda obriga-me a progredir no terreno apoiado em dois elementos das Operações Especiais, um de cada lado.
O pessoal do Marcelino tem pelos vistos a mania de provocar o IN pois, à medida que avançam no terreno, gritam para o mato "Eh F.... da P.... do C.......! Apareçam, seus C....!", ao que eu lhes sugiro que primeiro me ponham no helicóptero e depois resolvam essa contenda com os outros, que por mim já tenho que me chegue. Só me falta que aqueles tipos comecem aos tiros uns aos outros, e eu sem me poder mexer!
Durante o percurso, noto que um dos pára-quedistas que vai à minha frente se vira para trás de vez em quando, tirando-me uma fotografia. Ora eu ainda estou um bocado descomposto e continuo com a camisola branca por cima do fato de voo. Peço uns momentos para tirar a camisola, que guardo num dos bolsos do fato de voo, e prossigo a caminhada com mais à-vontade, pois já me sinto razoavelmente enfarpelado e em condições de enfrentar a máquina fotográfica. Apesar dos perigos, a nossa progressão começa a parecer um passeio turístico, pois chegamos a parar para tirar uma foto de grupo. O Marcelino resolve pôr uma pose mais agressiva, de catana na mão, o que, associado à minha cara de enfiado, mais faz parecer que fui apanhado pelo IN...
Chegamos finalmente à orla da mata, onde um AL-III nos espera. Para apoiar aquela evacuação, o Serviço de Saúde da BA12 tinha destacado um médico (12). Quando entro no heli, devo estar com um aspecto abatido pois ele decide dar-me um tónico qualquer que eu aceito de bom grado, que ainda estou com sede... E o facto é que fico com uma passada que ninguém me cala! Também, tinha estado quase 24 horas sem falar...
___________
Notas do autor:
(11) Segundo alguns testemunhos, parece que não foi bem assim. Eu terei dito "Vão-se f.... ; deixem-me morrer aqui em paz sozinho" ou algo semelhante. Tenho que aceitar esta última versão como correcta, porque por aquela altura eu já tinha os platinados a falhar. Embora me choque, porque sempre fui uma pessoa bem educada...
(12) Convém esclarecer o porquê da presença de um médico nesta situação. Pouco tempo antes tinha surgido uma determinação do Estado-Maior que proibia a ida das enfermeiras paraquedistas à zona de combate. Esta decisão surgiu na sequência da morte de uma e ferimento de bala de outra; o curioso é que nenhuma destes casos ocorreu no decurso de uma evacuação à zona, pois uma morreu num acidente na placa dos DO-27 (na Guiné) e outra foi atingida por uma bala quando voava noutro DO-27 (em Moçambique). Isto mostra o receio que as chefias tinham dos efeitos na opinião pública, caso ocorresse a morte de uma enfermeira em verdadeiro cenário de guerra. À época aceitava-se que as mulheres apoiassem o esforço de guerra, mas na retaguarda, enquanto que não se via com bons olhos que ela participasse activamente na frente de combate.
(vi) Finalmente, o regresso... a casa!
Aterramos em Guileje, onde muitos militares curiosos esperam para ver o aviador recuperado; alguém resolve dar-me, em jeito de compensação, uma garrafa de champanhe. Um novo helicóptero está a postos no local para me transportar para o Hospital Militar; também já lá está a enfermeira paraquedista que me vai acompanhar, a enfermeira Giselda (13); embarcamos no helicóptero e mantemos 1500' de altitude (14) em direcção ao Hospital, onde chegamos sem problemas.
Tiradas várias radiografias, confirma-se a fractura do perónio; depois de me colocarem o gesso na perna partida, o helicóptero leva-me (mais a garrafa de espumante) para a placa de helicópteros da Base - parece que finalmente acabou o dia e que vou poder descansar de tantas emoções. Engano meu! À chegada à Base sou surpreendido pela presença de um grupo de militares da BA 12 - pilotos, mecânicos, enfermeiras e outros - que resolvem festejar exuberantemente a minha recuperação. Sinto-me emocionado com esta recepção. Para além dos laços de amizade que tenho com alguns dos presentes, neste momento eu represento para eles o produto final do trabalho que, directa ou indirectamente, desenvolveram com tão bom resultado. Por isso sentem-se felizes por eu estar ali. E eu estou feliz por ter regressado a casa.
Miguel Pessoa
(Por vezes "Kurika" ou "Kurika da Mata")
_____________
Notas do autor:
(13) A Giselda acompanhou-me nessa evacuação e, desde então, nos momentos mais importantes da minha vida - casámos em Outubro de 1974.
(14) Não há dúvida que tivemos sorte. Embora começassem a surgir no TO os mísseis Strela, até ali desconhecidos, nenhum deles estava, pelos vistos, no percurso que seguimos para o Hospital. A altitude mantida colocava-nos perfeitamente ao alcance do míssil. Mas não era o nosso dia...
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Nota de L.G.:
(*) Vd. poste anterior desta série, FAP > 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4028: FAP (17): Do Colégio Militar a Canjadude: O meu amigo Tartaruga, o João Arantes e Oliveira (Pacífico dos Reis)
Guiné 63/74 - P4050: (Ex)citações (21): A esperança de que o António Ferreira ainda esteja vivo...(Cátia Félix)
1. Cátia Félix, amiga da viúva de António Ferreira, Cidália Cunha, deixou o seguinte comentário ao poste de 18 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4046: Ainda a atroz dúvida da Cidália, 37 anos depois: O meu marido morreu mesmo na emboscada do Quirafo ? (Paulo Santiago)
Boa noite, amigos
Desde já apresento-me...sou a Cátia, amiga da Cidália Cunha (viúva), que entrei em contacto com o Paulo Santiago (um SENHOR). Agradeço imenso a dedicação de todos, acreditem que tudo o que fizerem fará a diferença.
Tenho uma relação com a Cidália como mãe/filha e numa das nossas muitas confissões ela contou-me toda a sua história. O casamento de sonho com o grande amor da sua vida e o desabar de tudo nas terras da Guiné.
Esta grande Mulher que desde sempre fez frente aos "grandes" do exercito à procura de respostas que nunca conseguiu ter.
As perguntas: "Será que o Ferreira morreu mesmo no Quirafo? Será que naquela sepultura, que é adorada todos os Domingos, está mesmo o corpo do Ferreira?" mantêm-se depois de todos estes anos por falta de explicações. Além disso o Ferreira disse sempre que fugia antes de morrer...Se calhar todos disseram o mesmo...
O que é certo é que a Cidália e toda a familia vivem na esperança que mais um "morto" apareça vivo. A filha que nunca conheceu o pai, o neto que adora o avó que nunca conheceu, a esposa que o continua a amar como no 1ºdia, desde sempre até ao fim...
Por isto tudo e muito mais, mais uma vez agradeço em meu nome e em nome da Cidália e familia:
-tudo o que têm feito e sei que continuarão a fazê-lo;
-toda a dedicação em encontrar respostas;
-por este blogue que nos deu uma enorme esperança, aquando das minhas pesquisas até altas horas...
Estarei sempre disponível para acompanhar a Cidália, já que ela não conduz, para sabermos algo mais.
OBRIGADO!
NOTA - Só para corrigir um lapso, o Ferreira estudava na Escola de Engenharia de Arca d'Água e, pelo que li algures aqui no blogue havia um Sr. chamado Sousa de Castro que frequentava esse mesmo curso, que poderá ajudar-nos.
Boa noite, amigos
Desde já apresento-me...sou a Cátia, amiga da Cidália Cunha (viúva), que entrei em contacto com o Paulo Santiago (um SENHOR). Agradeço imenso a dedicação de todos, acreditem que tudo o que fizerem fará a diferença.
Tenho uma relação com a Cidália como mãe/filha e numa das nossas muitas confissões ela contou-me toda a sua história. O casamento de sonho com o grande amor da sua vida e o desabar de tudo nas terras da Guiné.
Esta grande Mulher que desde sempre fez frente aos "grandes" do exercito à procura de respostas que nunca conseguiu ter.
As perguntas: "Será que o Ferreira morreu mesmo no Quirafo? Será que naquela sepultura, que é adorada todos os Domingos, está mesmo o corpo do Ferreira?" mantêm-se depois de todos estes anos por falta de explicações. Além disso o Ferreira disse sempre que fugia antes de morrer...Se calhar todos disseram o mesmo...
O que é certo é que a Cidália e toda a familia vivem na esperança que mais um "morto" apareça vivo. A filha que nunca conheceu o pai, o neto que adora o avó que nunca conheceu, a esposa que o continua a amar como no 1ºdia, desde sempre até ao fim...
Por isto tudo e muito mais, mais uma vez agradeço em meu nome e em nome da Cidália e familia:
-tudo o que têm feito e sei que continuarão a fazê-lo;
-toda a dedicação em encontrar respostas;
-por este blogue que nos deu uma enorme esperança, aquando das minhas pesquisas até altas horas...
Estarei sempre disponível para acompanhar a Cidália, já que ela não conduz, para sabermos algo mais.
OBRIGADO!
NOTA - Só para corrigir um lapso, o Ferreira estudava na Escola de Engenharia de Arca d'Água e, pelo que li algures aqui no blogue havia um Sr. chamado Sousa de Castro que frequentava esse mesmo curso, que poderá ajudar-nos.
quarta-feira, 18 de março de 2009
Guiné 63/74 - P4049: As abelhinhas, nossas amigas (5): As abelhas e a NEP (Alberto Nascimento)
1. Mensagem de Alberto Nascimento(*), ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63), com data de 17 de Março de 2009:
Amigo Luís
Enviei em 11/03 um apontamento sobre o tema Abelhas, que julgo não foi recebido, ou aguarda oportunidade para ser publicado. Na dúvida, resolvi reenviar.
Um Abraço
Alberto Nascimento
ABELHAS
Da NEP nunca ouvi falar, mas deve querer dizer, Não Estejas Parado com abelhas por perto ou já em cima de ti, corre o mais que puderes atira-te à água, atira-te de cabeça para o interior de uma moita, (diziam que resultava, que elas terminavam a perseguição), mas parado é que não.
Era o pão nosso de todos os dias no destacamento de Piche. A fonte, situada próximo do quartel secou. Os banhos passaram a ser tomados num charco que ficava na traseira do quartel, mas para beber e cozinhar passámos a ir a uma nascente que nos indicaram e que ficava a uns quilómetros na estrada para Canquelifá.
A nascente até ficava num local bonito, aprazível, onde até apetecia ficar um bocado a apreciar a frescura, as árvores enormes muito próximas da água, só que cada árvore daquelas tinha uma colmeia daquela raça de abelhinha que, com alguma razão, é conhecida por assassina.
Nos primeiros dias ainda mal tinha conseguido colocar o atrelado tanque de mil litros em posição para poder ser enchido com a bomba manual, já elas estavam em cima de nós, furiosas distribuindo ferroadas.
Depois consegui perceber que o que as irritava e obrigava a atacar eram os vapores do escape e passei a colocar o tanque com o motor do jipão desligado. Mesmo assim atacavam frequentemente e nem o fumo que fazíamos com capim molhado impedia de levarmos umas valentes ferroadas.
Foi uma época de grande preparação física, embora forçada, mas posso garantir que foram batidos recordes de velocidade e se a situação se tem mantido, tinha nascido na Guiné a maior e melhor equipa de fundistas portugueses da época.
Com a ida para Bambadinca, acabaram o treinos forçados e as ferroadas.
Julgo que os camaradas bloguistas também tiveram contacto com outro insecto fabricante de mel conhecido por “mosca do mel”. Tinha o comprimento de pouco mais que dois milimetros, não tinha ferrão, mas quando sentiam perigo para a colmeia atacavam em tão grande número que era difícil aguentar. Introduziam-se nos ouvidos, nas narinas por debaixo dos cabelos... eram tão chatas que faziam correr, tal como as primas de ferrão.
Um Abraço
Alberto Nascimento
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3964: Nuvens negras sobre Bissau (6): O Nino morreu vítima de si próprio (Alberto Nascimento)
Vd. último poste da série de 14 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4031: As abelhinhas, nossas amigas (4): Desculpem qualquer coisinha (Luís Faria)
Amigo Luís
Enviei em 11/03 um apontamento sobre o tema Abelhas, que julgo não foi recebido, ou aguarda oportunidade para ser publicado. Na dúvida, resolvi reenviar.
Um Abraço
Alberto Nascimento
ABELHAS
Da NEP nunca ouvi falar, mas deve querer dizer, Não Estejas Parado com abelhas por perto ou já em cima de ti, corre o mais que puderes atira-te à água, atira-te de cabeça para o interior de uma moita, (diziam que resultava, que elas terminavam a perseguição), mas parado é que não.
Era o pão nosso de todos os dias no destacamento de Piche. A fonte, situada próximo do quartel secou. Os banhos passaram a ser tomados num charco que ficava na traseira do quartel, mas para beber e cozinhar passámos a ir a uma nascente que nos indicaram e que ficava a uns quilómetros na estrada para Canquelifá.
A nascente até ficava num local bonito, aprazível, onde até apetecia ficar um bocado a apreciar a frescura, as árvores enormes muito próximas da água, só que cada árvore daquelas tinha uma colmeia daquela raça de abelhinha que, com alguma razão, é conhecida por assassina.
Nos primeiros dias ainda mal tinha conseguido colocar o atrelado tanque de mil litros em posição para poder ser enchido com a bomba manual, já elas estavam em cima de nós, furiosas distribuindo ferroadas.
Depois consegui perceber que o que as irritava e obrigava a atacar eram os vapores do escape e passei a colocar o tanque com o motor do jipão desligado. Mesmo assim atacavam frequentemente e nem o fumo que fazíamos com capim molhado impedia de levarmos umas valentes ferroadas.
Foi uma época de grande preparação física, embora forçada, mas posso garantir que foram batidos recordes de velocidade e se a situação se tem mantido, tinha nascido na Guiné a maior e melhor equipa de fundistas portugueses da época.
Com a ida para Bambadinca, acabaram o treinos forçados e as ferroadas.
Julgo que os camaradas bloguistas também tiveram contacto com outro insecto fabricante de mel conhecido por “mosca do mel”. Tinha o comprimento de pouco mais que dois milimetros, não tinha ferrão, mas quando sentiam perigo para a colmeia atacavam em tão grande número que era difícil aguentar. Introduziam-se nos ouvidos, nas narinas por debaixo dos cabelos... eram tão chatas que faziam correr, tal como as primas de ferrão.
Um Abraço
Alberto Nascimento
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3964: Nuvens negras sobre Bissau (6): O Nino morreu vítima de si próprio (Alberto Nascimento)
Vd. último poste da série de 14 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4031: As abelhinhas, nossas amigas (4): Desculpem qualquer coisinha (Luís Faria)
Guiné 63/74 - P4048: Estórias do Jorge Fontinha (5): Lavadeiras de Bula
1. Mensagem de Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 15 de Março de 2009 dirigida ao co-editor CV:
Aí vai mais uma Estória. Esta para descontrair, nostálgica e saudosa.
Transmite o meu abraço a toda a Tabanca.
Jorge Fontinha
LAVADEIRAS DE BULA
Aeródromo de Bula
As minhas Estórias nem sempre seguem uma ordem cronológica. Também não tenho a pretensão de me recordar de tudo e não é minha intenção escrever a História da CCAÇ 2791, até porque me preocupo somente por descrever o que vivi ou presenciei, durante o tempo que permaneci naquelas paragens.
Hoje, até vou saltar uns meses, sobre os últimos acontecimentos relatados. Vou localizar-me no período dos Reordenamentos, já em pleno ano de 1972.
Como referi, aquando da descrição do meu Grupo de Combate, o 4.º, este esteve no destacamento de Mato Dingal. Naturalmente que várias atribuições nos eram confiadas, como por exemplo promover, principalmente, o apoio sanitário, assistência medicamentosa e humanitária, defesa da Tabanca e ensino escolar básico às crianças. Eu próprio fui o professor oficial. Era igualmente da nossa responsabilidade, proceder à substituição das velhas Palhotas “Tabancas”, construindo outras de blocos e telhados de zinco.
Naturalmente que tínhamos as obrigações próprias da defesa e manutenção das instalações Militares, bem assim, como providenciar o reabastecimento de bens alimentares e fornecimento de água potável.
Para o efeito, pelo menos dia sim, dia não, uma Secção deslocava-se a Bula que era relativamente perto, para na Sede do Batalhão requisitarmos o que era necessário. Na mesma viagem ia outro Unimog atrelado a um auto-tanque e com bidões recuperados, dos postos de abastecimento de combustível, para complemento de fornecimento de água.
Este serviço, por se tratar duma escapadela à rotina, era feita por rotação de secções, que eram três. A do Alferes Gaspar, a do Furriel Fontinha e a do Furriel Chaves.
O episódio que vou contar é um daqueles momentos espectaculares e inesquecíveis e é também daqueles das boas lembranças, que nos fazem olhar para trás com saudade e nostalgia…
Em certo dia, tínhamos já saído do Batalhão, com os reabastecimentos carregados, faltando deslocarmo-nos ao fontanário para reabastecimento de água, o que acabamos por fazer, pois este ficava num caminho mesmo em frente à porta de armas e a muito pequena distância, 100 a 200 metros. Era natural que o local não estivesse totalmente livre, pois o enchimento do auto-tanque e dos bidões levava algum tempo.
Não me lembro de todo quem estava à minha frente a fazer o mesmo que eu iria fazer, mas efectivamente estava outra secção, doutro Grupo de Combate e até podia ser de outra Companhia do Batalhão. Não tenho ideia, passados estes anos quem eram. O que fica para a História, foi o que eu assisti, enquanto conversava com o meu camarada da outra secção, que terminassem e nós iniciássemos a nossa tarefa.
Ora, o que aconteceu foi o seguinte:
O local era composto por um fontanário que jorrava bastante água potável para o interior de um tanque rectangular, seguramente com uma frente de 6 metros por 4 de largura e daí escorria para um lago de média dimensão, com algumas pedras salientes, e depois seguia por um riacho directamente para a bolanha. Era no tanque e no lago que as lavadeiras, BAJUDAS e as restantes mulheres, lavavam a nossa roupa e a delas. Cada um de nós tinha a sua lavadeira. Bastante alegres e ruidosas, na sua azafama.
Bajudas lavando roupa
Todas elas, salvo umas poucas, faziam o seu trabalho completamente nuas, enquanto não chegava nenhuma tropa para se reabastecer de água. Ficariam assim, se não fossem molestadas com gracejos ou até apalpadas por alguns militares mais brincalhões. Depois de chegarmos, normalmente cobriam-se com uns ligeiros panos, que de um certo modo, nada cobriam.
Passando ao relato dos acontecimentos, os militares que se encontravam no local, haviam lavado alguns bidões, que tinham sido esvaziados de gasolina dias antes, no tanque onde elas deveriam lavar a roupa, o que originou que bastantes resíduos de gasolina tivessem ficado na água. Naturalmente, uma camada de cerca de meio centímetro de gasolina, cobria a superfície.
O engraçado do episódio deu-se quando um militar, inadvertidamente, se lembra de lançar um cigarro acabado de fumar, que viria a cair no interior do tanque. Escusado será retratar a cena que se passa. O tanque incendeia-se, provocando espanto e medo em toda a gente, dando lugar a grande alarido entre elas que atropelando-se umas as outras, se põem em fuga, deixando cair os panos e passando a correr em direcção as suas tabancas, mesmo à frente da porta de armas em grande algazarra e completamente nuas. Foi um espectáculo hilariante e felizmente sem consequências.
Lavadeiras lavando no lago, junto ao tanque
Nem sempre nos dedicávamos à Guerra. Por vezes até nos divertíamos.
Fur MIl Jorge Fontinha e Sold Álvaro Lobo
Fotos e legendas: © Jorge Fontinha (2009). Direitos reservados
Um abraço para a Tabanca.
Jorge Fontinha
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Nota de CV:
Vd. último poste de 13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3888: Estórias do Jorge Fontinha (4): O primeiro morto do 4.º GCOMB/CCAÇ 2791
Aí vai mais uma Estória. Esta para descontrair, nostálgica e saudosa.
Transmite o meu abraço a toda a Tabanca.
Jorge Fontinha
LAVADEIRAS DE BULA
Aeródromo de Bula
As minhas Estórias nem sempre seguem uma ordem cronológica. Também não tenho a pretensão de me recordar de tudo e não é minha intenção escrever a História da CCAÇ 2791, até porque me preocupo somente por descrever o que vivi ou presenciei, durante o tempo que permaneci naquelas paragens.
Hoje, até vou saltar uns meses, sobre os últimos acontecimentos relatados. Vou localizar-me no período dos Reordenamentos, já em pleno ano de 1972.
Como referi, aquando da descrição do meu Grupo de Combate, o 4.º, este esteve no destacamento de Mato Dingal. Naturalmente que várias atribuições nos eram confiadas, como por exemplo promover, principalmente, o apoio sanitário, assistência medicamentosa e humanitária, defesa da Tabanca e ensino escolar básico às crianças. Eu próprio fui o professor oficial. Era igualmente da nossa responsabilidade, proceder à substituição das velhas Palhotas “Tabancas”, construindo outras de blocos e telhados de zinco.
Naturalmente que tínhamos as obrigações próprias da defesa e manutenção das instalações Militares, bem assim, como providenciar o reabastecimento de bens alimentares e fornecimento de água potável.
Para o efeito, pelo menos dia sim, dia não, uma Secção deslocava-se a Bula que era relativamente perto, para na Sede do Batalhão requisitarmos o que era necessário. Na mesma viagem ia outro Unimog atrelado a um auto-tanque e com bidões recuperados, dos postos de abastecimento de combustível, para complemento de fornecimento de água.
Este serviço, por se tratar duma escapadela à rotina, era feita por rotação de secções, que eram três. A do Alferes Gaspar, a do Furriel Fontinha e a do Furriel Chaves.
O episódio que vou contar é um daqueles momentos espectaculares e inesquecíveis e é também daqueles das boas lembranças, que nos fazem olhar para trás com saudade e nostalgia…
Em certo dia, tínhamos já saído do Batalhão, com os reabastecimentos carregados, faltando deslocarmo-nos ao fontanário para reabastecimento de água, o que acabamos por fazer, pois este ficava num caminho mesmo em frente à porta de armas e a muito pequena distância, 100 a 200 metros. Era natural que o local não estivesse totalmente livre, pois o enchimento do auto-tanque e dos bidões levava algum tempo.
Não me lembro de todo quem estava à minha frente a fazer o mesmo que eu iria fazer, mas efectivamente estava outra secção, doutro Grupo de Combate e até podia ser de outra Companhia do Batalhão. Não tenho ideia, passados estes anos quem eram. O que fica para a História, foi o que eu assisti, enquanto conversava com o meu camarada da outra secção, que terminassem e nós iniciássemos a nossa tarefa.
Ora, o que aconteceu foi o seguinte:
O local era composto por um fontanário que jorrava bastante água potável para o interior de um tanque rectangular, seguramente com uma frente de 6 metros por 4 de largura e daí escorria para um lago de média dimensão, com algumas pedras salientes, e depois seguia por um riacho directamente para a bolanha. Era no tanque e no lago que as lavadeiras, BAJUDAS e as restantes mulheres, lavavam a nossa roupa e a delas. Cada um de nós tinha a sua lavadeira. Bastante alegres e ruidosas, na sua azafama.
Bajudas lavando roupa
Todas elas, salvo umas poucas, faziam o seu trabalho completamente nuas, enquanto não chegava nenhuma tropa para se reabastecer de água. Ficariam assim, se não fossem molestadas com gracejos ou até apalpadas por alguns militares mais brincalhões. Depois de chegarmos, normalmente cobriam-se com uns ligeiros panos, que de um certo modo, nada cobriam.
Passando ao relato dos acontecimentos, os militares que se encontravam no local, haviam lavado alguns bidões, que tinham sido esvaziados de gasolina dias antes, no tanque onde elas deveriam lavar a roupa, o que originou que bastantes resíduos de gasolina tivessem ficado na água. Naturalmente, uma camada de cerca de meio centímetro de gasolina, cobria a superfície.
O engraçado do episódio deu-se quando um militar, inadvertidamente, se lembra de lançar um cigarro acabado de fumar, que viria a cair no interior do tanque. Escusado será retratar a cena que se passa. O tanque incendeia-se, provocando espanto e medo em toda a gente, dando lugar a grande alarido entre elas que atropelando-se umas as outras, se põem em fuga, deixando cair os panos e passando a correr em direcção as suas tabancas, mesmo à frente da porta de armas em grande algazarra e completamente nuas. Foi um espectáculo hilariante e felizmente sem consequências.
Lavadeiras lavando no lago, junto ao tanque
Nem sempre nos dedicávamos à Guerra. Por vezes até nos divertíamos.
Fur MIl Jorge Fontinha e Sold Álvaro Lobo
Fotos e legendas: © Jorge Fontinha (2009). Direitos reservados
Um abraço para a Tabanca.
Jorge Fontinha
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Nota de CV:
Vd. último poste de 13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3888: Estórias do Jorge Fontinha (4): O primeiro morto do 4.º GCOMB/CCAÇ 2791
Guiné 63/74 - P4047: Resumo das actividades do Pel Mort 912 (OUT63/OUT65) (Fotos) (Santos Oliveira)
1. Continuação da apresentação do Resumo das actividades do Pelotão de Morteiros 912, enviado pelo nosso camarada Santos Oliveira, ex-2.º Srgt Mil Armas Pesadas, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66, em 14 de Março de 2009.
Digitalização do Relatório e Fotografias
Relatório do Comandante do Pelotão de Morteiros 912 (1)
Relatório do Comandante do Pelotão de Morteiros 912 (2)
Relatório do Comandante do Pelotão de Morteiros 912 (3)
Cômo - Edifício do Comando
Como - Quartel - Vista para NE - Ao fundo a Camarata do Pel Mort
Cômo - Av. do Porto. Picada de troncos desde o local de acostagem do barco até ao Cavalo de Frisa (ao fundo)
Cômo - Abrigo primário, antibomba, construido para dar acesso ao Paiol Clandestino, do Pel de Mort
Cômo - Embalagens de Granadas de Morteiro disparadas a 16NOV64, encimada pelo Cartaz da frase FORAM SÓ 216 GRANADAS
Cômo - Cozinha e Messes Oficiais e Sargentos
Vista da saída para o poço fedorento (E)
Fotos e legendas: © Santos Oliveira (2009). Direitos reservados
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Nota de CV
Vd. poste de 17 de Março > Guiné 63/74 - P4044: Resumo das actividades do Pel Mort 912 (OUT63/OUT65) (Santos Oliveira)
Digitalização do Relatório e Fotografias
Relatório do Comandante do Pelotão de Morteiros 912 (1)
Relatório do Comandante do Pelotão de Morteiros 912 (2)
Relatório do Comandante do Pelotão de Morteiros 912 (3)
Cômo - Edifício do Comando
Como - Quartel - Vista para NE - Ao fundo a Camarata do Pel Mort
Cômo - Av. do Porto. Picada de troncos desde o local de acostagem do barco até ao Cavalo de Frisa (ao fundo)
Cômo - Abrigo primário, antibomba, construido para dar acesso ao Paiol Clandestino, do Pel de Mort
Cômo - Embalagens de Granadas de Morteiro disparadas a 16NOV64, encimada pelo Cartaz da frase FORAM SÓ 216 GRANADAS
Cômo - Cozinha e Messes Oficiais e Sargentos
Vista da saída para o poço fedorento (E)
Fotos e legendas: © Santos Oliveira (2009). Direitos reservados
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Nota de CV
Vd. poste de 17 de Março > Guiné 63/74 - P4044: Resumo das actividades do Pel Mort 912 (OUT63/OUT65) (Santos Oliveira)
Guiné 63/74 - P4046: Ainda a atroz dúvida da Cidália, 37 anos depois: O meu marido morreu mesmo na emboscada do Quirafo ? (Paulo Santiago)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Picada de Quirafo > Fevereiro de 2005 > Restos da GMC da CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74), do BCAÇ 3872 (Galomaro, 1972/74) que transportava um grupo de combate reforçado, comandado pelo Alf Mil Armandino, e que sofreu uma das mais terríveis emboscadas de que houve memória na guerra da Guiné (1963/74)...
Foram utilizados LGFog e Canhão sem recuo. Houve 9 militares mortos, da CCAÇ 3490, nais 1 desaparecido (o António Batista, capturado pelo PAIGC)... Houve ainda mais 3 mortos: 1 sargento de milícia e 2 civis ao serviço das NT.
No relatório da CCAÇ 3490, faz-se ainda referência a 6 feridos, 4 militares e 2 civis. No início deste dossiê, falámos aqui num "número indeterminado de baixas, entre os civis, afectos à construção da picada Quirafo-Foz do Cantoro", o que não parece estar documentado. Sabemos hoje quem comandou o bigrupo que montou esta emboscada, o comandante Paulo Malu.
A brutal violência da emboscada ainda era visível em Fevereiro de 2005, mais de três décadas depois, nas imagens dramáticas obtidas pelo Paulo Santiago e seu filho João, na viagem de todas as emoções que eles fizeram, na altura, à Guiné-Bissau.
Fotos: © Paulo e João Santiago (2006). Direitos reservados.
Foram utilizados LGFog e Canhão sem recuo. Houve 9 militares mortos, da CCAÇ 3490, nais 1 desaparecido (o António Batista, capturado pelo PAIGC)... Houve ainda mais 3 mortos: 1 sargento de milícia e 2 civis ao serviço das NT.
No relatório da CCAÇ 3490, faz-se ainda referência a 6 feridos, 4 militares e 2 civis. No início deste dossiê, falámos aqui num "número indeterminado de baixas, entre os civis, afectos à construção da picada Quirafo-Foz do Cantoro", o que não parece estar documentado. Sabemos hoje quem comandou o bigrupo que montou esta emboscada, o comandante Paulo Malu.
A brutal violência da emboscada ainda era visível em Fevereiro de 2005, mais de três décadas depois, nas imagens dramáticas obtidas pelo Paulo Santiago e seu filho João, na viagem de todas as emoções que eles fizeram, na altura, à Guiné-Bissau.
Fotos: © Paulo e João Santiago (2006). Direitos reservados.
Cópia do relatório da CCaç 3490, Saltinho, 21 de Abril de 1972 [, já aqui publicado por nós, no P2422, de 8d e Janeiro de 2008]. Transcrição de Virgínio Briote, nosso co-editor; bold, do editor L.G.:
Exemplar nº...
CCaç 3490
Saltinho
210800ABR72
Anexo B (Relação do pessoal morto e ferido em combate) ao relatório de emboscada nº 03/72.
1.Causas que deram origem às baixas sofridas pelas NT
-Contacto com o IN na emboscada sofrida pelas NT no dia 17 de Abril de 1972, na
região do Quirafo (Contabane 9. B7-60).
i) Relação numérica e nominal dos militares, milícias e elementos da População
colaborantes com as NT, mortos em combate:
- Sr. Alf. Mil. Nº 00788271 – Armandino da Silva Ribeiro
- Furriel Mil. Nº 01142371 – Francisco Oliveira dos Santos
- 1º Cabo Radioteleg. Nº 08845271 – António Ferreira
- 1º Cabo A.P.Met. nº 14964771 – Sérgio da costa Pinto Rebelo
- Soldado nº 09334069 – António Marques Pereira
- Soldado nº 10665171 – Bernardino Ramos de Oliveira
- Soldado nº 10896771 – Zózimo de Azevedo
- Soldado nº 10998071 – António da Silva Baptista
- Soldado nº 11117671 – António de Moura Moreira
- Sargento Mil. Nº 044665 – Demba Jau
- Civil – Serifo Baldé
- Civil - Tijane Baldé
ii) Relação numérica e nominal dos militares desaparecidos em combate
- Soldado nº 11331671 – António Oliveira Azevedo
iii) Relação numérica e nominal dos militares, feridos em combate
- 1º Cabo Atirador nº 11549071 – Augusto Carlos Leite
- Soldado Atirador nº 10819171 – José Manuel de Barros Fernandes
- Soldado Atirador nº 10977271 – Manuel Hernâni Martins Alves Gandra
- Soldado Atirador nº 11060971 – Manuel da Costa Almeida
- Civil – Saico Seidi
- Civil – Cabirú Baldé
Assina pelo Comandante da Companhia (Dário Manuel de Jesus Lourenço, Cap Mil Inf ) o Alf Mil Alexandrino Luís F.... [restante ilegível].
AUTENTICAÇÃO
P'lo Comandante da Companhia (Dário Manuel de Jesus Lourenço, Cap Mil Inf ), Alf Mil Alexandrino Luís F. [restante ilegível].
1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada e amigo Paulo Santiago
Assunto - A Guerra e o luto continua presente
Luís, Briote,Vinhal
Recebi em 3 de Março passado um mail, que reencaminho, enviado por uma jovem, Cátia Félix, a pedido de Cidália Nunes, viúva do 1º Cabo Radiotelegrafista António Ferreira, morto em combate em 17/04/1972 na emboscada do Quirafo (*).
Como imaginam, ao receber aquele mail, dois sentimentos brotaram de mim: satisfação e tristeza. Satisfação pelo que escrevi sobre a Tragédia do Quirafo, satisfação, também, por existir este blogue que o Luís em boa hora lançou, permitindo aos ex-combatentes da Guiné contarem a verdade que, a maior parte das vezes, não vem nos documentos oficiais. Tristeza, porque adivinhei que por trás daquele mail estava um luto com quase trinta e sete anos. Tanto tempo...
Há poucos minutos, tive um longo telefonema da Cidália, onde pressenti uma imensa saudade e uma imensa resignação, ainda que ponteada por algumas dúvidas, sendo a principal "O meu marido morreu naquela emboscada ?"
A esta pergunta pude afiançar-lhe que foi naquela emboscada e naquele local que o marido morreu. Existem outras dúvidas que eu, em consciência, não soube nesta altura dissipar, caso saber se o António Ferreira estava reconhecível, é uma pergunta que irei pôr aos meus amigos Cosme e Mário Rui, respectivamente 1º Cabo e Fur Mil do PEL CAÇ NAT 53, e que foram ao Quirafo recolher os corpos.
Quero, quando me encontrar pessoalmente com a Cidália, quem sabe em 17/04/09, ter respostas para lhe dar com VERDADE. Se algum dos camaradas que me lê souber algo sobre isto, agradeço que me informe.
O António Ferreira, segundo percebi, frequentava a Faculdade de Engenharia no Porto e tinha uma filha (que tem hoje 38 anos), com um ano e poucos meses quando embarcou para a Guiné, numa viagem sem regresso.
Quando a Cidália soube da aparição do Batista (**) em Setembro de 1974, que oficialmente tinha morrido no mesmo dia do marido, correu para a Maia, procurando saber se aquele "morto-vivo" lhe poderia dizer mais alguma coisa sobre o Ferreira. Infelizmente o Batista apenas se lembra, como também sabemos, das explosões e de o terem agarrado à mão, mais nada, quem morreu, só o soube já em Portugal após a sua libertação.
Devo dizer, inconscientemente, talvez tenha lançado algumas dúvidas no espírito da Cidália, ela não me disse, mas até encontrar o Batista estava convencido que o militar apanhado à mão no Quirafo - penso que está nos meus postes - era de transmissões e também havia a troca de nomes.
Lamentavelmente nunca apareceu ninguém daquela CCAÇ a dizer nada. A Cidália contou-me que em 74 recebeu um telefonema de um Furriel, já não se lembra do nome, daquela Companhia dizendo-lhe que gostaria de falar com ela sobre a morte do marido mas teria de ser uma conversa a sós (?) marcando um dia. Jovem de 22 anos, viúva recente, resolveu ir acompanhada por familiares, mas o dito graduado não apareceu.
Termino dizendo que a Cidália e o António Ferreira têm um neto de 16 anos que faz muitas perguntas sobre o avô.
Não é fácil dominar as emoções quando se recebem telefonemas destes.
Abraço a todos
P. Santiago
2. Mensagem anterior (3 de Março) do Paulo Santiago (após conversa telefónica comigo, L.G.):
Luís
Em seguimento da nossa conversa, reencaminho o mail recebido. Agora pensei melhor e penso que o António Ferreira é um dos mortos do Quirafo. Não sei se vou encontrar no blogue uma lista publicada pelo José Martins, vou tentar, e tu vê também se a encontras.
Vou responder à Cátia, disponibilizando-me para me encontrar com a esposa do António Ferreira. Vai ser um encontro, possivelmente doloroso, mas, como diz a Cátia, as histórias da Guiné permanecem na vida de todos.
Diz-me qualquer coisa.
Abraço
Paulo
3. Mail enviado ao Paulo Santiago, em 3 de Março último, por Cátia Félix
Assunto - As histórias da Guiné...
Caro Paulo Santiago
Sou leitora assídua do blog dos ex-combatentes da Guiné pois apesar da minha tenra idade (25 anos) sempre me suscitou muito interesse as histórias verídicas por todos vocês vividas.
De tudo o que li, a Tragédia do Quirafo foi sem dúvida a que mais me impressionou, talvez por conviver com uma familia de um militar da CCAÇ 3490. Possivelmente já ouviu falar desse militar, António Ferreira (Porto), que era das Transmissões (radiotelegrafista) dessa companhia.
Estou a enviar-lhe este email a pedido e em nome da esposa do Ferreira, Cidália Cunha, que gostaria imenso de entrar em contacto consigo para trocarem impressões, pois apesar de já terem passado muitos anos as histórias da Guiné permanecem na vida de todos.
Porquê enviar um email ao Paulo? Porque de tudo o que lemos, sentimos que se tem dedicado imenso a todas as causas mal explicadas que se passaram naquelas terras áridas.
Desde já agradecemos imenso todo o seu empenho e sabedoria na forma como consegue transmitir na perfeição todos os assuntos relacionados consigo e com os seus camaradas.
Ficamos a aguardar uma resposta.
Com os melhores cumprimentos
Cátia Félix
(P'la Cidália Cunha)
4. Comentário de L.G.:
Obrigado, Paulo. Tu és um homem de grande sensibilidade e com forte sentido de solidariedade e compaixão. Melhor do que ninguém, tu irás representar-nos, a todos nós, que fomos camaradas do António Ferreira, num próximo encontro, a aprazar com a Cidália Cunha, viúva do António, e a sua amiga Cátia Félix, possivelmente até no próprio dia em que passam os 37 anos da tragédia do Quirafo, no próximo 17 de Abril de 2009.
Como vês pela lista (nominal) acima publicada, o único militar de transmisões que foi dado como morto, na sequência da emboscada do Quirafo, em 17 de Abril de 1972, foi o António Ferreira, 1º Cabo Radiotelegrafista nº 08845271...
O que é poderás dizer mais aos familiares e amigos do nosso infortunado António Ferreira, que não tenhamos já dito aqui no blogue ? Se calhar, mais do que dizer, importa saber ouvir, mostrar disponibilidade para ouvir...
Muito provavelmente, eles/elas nunca fizeram, como devia ser, o luto pela perda do António (marido, pai, filho, amigo...), porque nunca viram o corpo (chegou-lhes um caixão selado, chumbado...).
Como houve pelo menos um caso de troca de identidades (o António Batista, desaparecido, foi dado como morto, em vez do António Oliveira Azevedo) e, além do mais, os cadáveres estavam irreconhecíveis, desmembrados e carbonizados (de acordo com o testemunho do Alf Mil Médico Alfredo Pinheiro de Azevedo e do Fur Mil Enfermeiro Álvaro Basto, que tu mesmo recolheste: vd. poste P1985, de 22 de Julho de 2007 ), ficou, fica, ficará sempre a atroz dúvida: Será que o meu marido morreu mesmo nessa emboscada ?
Paulo, podemos estar perante um caso de luto patológico, ou seja, de um processo mental associado à perda de uma pessoa amada e decorrente da interrupção do processo normal do luto, eternizando ou tornando crónica a sensação de perda e todas as suas manifestações... É horrível, provoca um grande sofrimento psíquico e crises emocionais, sempre que se fala em (ou se evoca) a pessoa... desaparecida ('e que pode não estar morta').
Acho que a melhor maneira de ajudar a Cidália é voltar a contar a história (e repeti-la, se necessário), com todos os pormenores, mesmo os mais horrendos... E mostrar-lhe a foto da viatura, a GMC, onde o António e os seus companheiros morreram, carbonizados... Mostrar as fotos do Saltinho e dos lugares, à beira do Rio Corubal, onde ele também viveu bons momentos e onde sentiu saudades da mulher e da filha...
Como homem das transmissões, levando as costas o seu rádio, o António seguramente que ia na GMC, perto do Alf Mil Armandino, comandante da coluna... Diz-lhe que foi uma carnificina horrível, mas que tudo se passou num ápice.
Entretanto, será desejável que apareçam mais depoimentos, nomeadamente de malta que conheceu e conviveu de mais perto com o António Ferreira, no Saltinho, como é o caso da malta do teu Pel Caç Nat 53 e da CCAÇ 3490 ou do BCAÇ 3872 (Galomaro).
Do Batalhão, temos apenas, aqui, como membros da Tabanca Grande, o Carlos Filipe Coelho, o Luís Dias, o Juvenal Amado, o Joaquim Guimarães e o António Batista, se não me engano. O Luís Borrega também teve contactos com a malta deste batalhão.
Da CCAÇ 3490 são só mesmo o António Batista e o Joaquim Guimarães. Até agora julgo que não apareceu mais ninguém, embore eu não confie muito na minha memória. Há um outro camarada, identificado pelo Carlos Vinhal, e que pertenceu à CCAÇ 3490: Justino Sousa - contacto: 255 776 190. Tens, por fim, o Joaquim Guimarães, que vive nos Estados Unidos e que era professor no Saltinho (***). Ele deve estar lembrado do António. Mas acredito que seja doloroso para ele e para o resto da malta da CCAÇ 3490 lidar, ainda hoje, com este pesadelo.
Paulo, confio na tua sabedoria e experiência para lidar com este difícil caso. Mas conta com todo o nosso apoio. Sabemos que farás o teu melhor. Transmite aos familiares e amigos do António a nossa solidariedade e compaixão.
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Notas de L.G.:
(*) Sobre a tragédia do Quirafo, vd. postes de:
21 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1980: Blogoterapia (26): Os nossos fantasmas, os nossos Quirafos (Virgínio Briote / Torcato Mendonça/Luís Graça)
17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1962: Blogoterapia (25): Os Quirafos do nosso Passado (Torcato Mendonça / Virgínio Briote)
12 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1947: O Coronel Paulo Malu, ex-comandante do PAIGC, fala-nos da terrível emboscada do Quirafo (Pepito / Paulo Santiago)
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
(**) É já vasto, no nosso blogue, o dossiê do António Batista, a quem chamamos o 'morto-vivo' do Quirafo:
26 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2885: O Nosso III Encontro Nacional, Monte Real, 17 de Maio de 2008 (9): António Batista, ex-prisioneiro de guerra
25 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2680: O caso do nosso camarada António Batista (Carlos Vinhal / Álvaro Basto / Paulo Santiago e Pereira da Costa)
1 de Fevereiro de 2008 Guiné 63/74 - P2497: O dossiê António da Silva Batista: um caso de indignidade humana (Torcato Mendonça)
31 de Janeiro de 2008 Guiné 63/74 - P2494: Sr. Ministro da Defesa, parece que não há Simplex que valha ao António da Silva Batista! (Paulo Santiago)
8 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2422: Quem terá sido o Camarada que ficou na campa do António Baptista? (Prisioneiros de Guerra) (Virgínio Briote)
25 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2381: Diana Andringa, com o teu apoio, podemos ajudar o António Batista, o morto-vivo do Quirafo (Álvaro Basto)
21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2371: O Sold António Baptista não constava das listas de PG (Prisioneiros de Guerra) (Virgínio Briote)
28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2140: Tabanca Grande (35): Notícias do Tony Tavares (CCAÇ 2701) e do António Batista (CCAÇ 3490) (Ayala Botto)
9 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2040: No almoço da tertúlia de Matosinhos com o António Batista, o nosso morto-vivo do Quirafo (Paulo Santiago)
30 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P2011: Vamos ajudar o António Batista, ex-Soldado da CCAÇ 3490/BCAÇ 3872 (Júlio César / Paulo Santiago / Álvaro Basto / Carlos Vinhal)
26 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1999: Vamos arranjar uma caderneta militar nova para o António Batista (Rui Ferreira / Paulo Santiago)
24 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1991: O Simplex, o Kafka e o Batista ou a Estória do Vivo que a Burocracia Quer como Morto (João Tunes)
24 de Jullho de 2007 > Guiné 63/74 - P1990: Carta aberta ao Cor Ayala Botto: O caso Batista: O que fazer para salvar a sua honra militar ? (Paulo Santiago)
23 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1986: António da Silva Batista, o morto-vivo do Quirafo: um processo kafkiano que envergonha o Exército Português (Luís Graça)
22 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1985: Prisioneiro do PAIGC: António da Silva Batista, ex-Sold At Inf, CCAÇ 3490 / BCAÇ 3872 (2) (Álvaro Basto / João e Paulo Santiago)
22 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1983: Prisioneiro do PAIGC: António da Silva Batista, ex-Sold At Inf, CCAÇ 3490 / BCAÇ 3872 (1) (Álvaro Basto / João e Paulo Santiago)
21 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1980: Blogoterapia (26): Os nossos fantasmas, os nossos Quirafos (Virgínio Briote / Torcato Mendonça/Luís Graça)
17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1959: Em busca de... (2): António da Silva Batista, de Crestins-Maia, o morto-vivo do Quirafo (Álvaro Basto / Paulo Santiago)
(***) Vd. postes de:
1 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2019: Álbum das Glórias (23): O mestre-escola do Saltinho (Joaquim Guimarães, CCAÇ 3490, 1972/74)
28 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3097: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (1): Saltinho
(...) "Quero também agradecer ao Paulo Santiago pela maneira como descreveu a passagem do Quirafo, com honestidade, sem dramatizar ou exagerar. Prestou a devida homenagem aos meus companheiros, alguns dos quais não tive grande contacto, mas como dizia respeitou a memória de "eles" e quem sabe dos seus familiares e em particular a minha.
"Eu pessoalmente ainda não tive a coragem de me mostrar. Neste momento ando numa luta com os meus companheiros de Companhia mas ninguém se quer envolver ou comentar. Mais de que nunca penso na minha, na nossa culpabilidade do Quirafo.
"Num dos blogs refere-se em comemtário a questão da recuperação dos corpos. Eu penso que esse pormenor deve ser excluído, não importa como foi, o importante é que tudo foi feito com amor, com respeito e muita dor mas foram dignificados em todo o processo" (...).
1 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3104: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (2): Saltinho
4 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3109: Álbum fotográfico do Joaquim Guimarães (3): O Rio Corubal no Saltinho
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