segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5195: Histórias de heroísmo (2): O meu herói de... Bissau (Alberto Branquinho)

Lisboa > Biblioteca-Museu República e Resistência / Espaço Grandella > 2.º Ciclo de Conferências Memórias Literárias da Guerra Colonial > 4 de Junho de 2009 > Alberto Branquinho no acto de apresentação do seu livro de contos "Cambança - Guiné, Morte e vida em maré baixa"


O meu herói de… Bissau
Por Alberto Branquinho*

Durante a primeira vez que passei por Bissau antes do regresso (quatro foram idas e regressos de férias), entrei, à hora do almoço, no bar da Messe de Santa Luzia. Perto da porta tropecei em dois ou três alferes milicianos, sentados à volta de uma mesa.

Conheci-os e reconheceram-me dos tempos de cadete, em Mafra. Pertenciam à fauna instalada em Bissau. Bebericavam o whisky, digestivo, e o café. Talvez pela minha tez cor-de-azeitona, talvez pelo aspecto outsider, concluíram que eu não era residente naquela freguesia. Chamaram-me:

- Olá, herói. Ó herói, anda cá. Fala à gente.

Cumprimentei-os e sentei-me na cadeira disponível.

- Então, quantos gajos já apanhaste à mão?

Seguiram-se outras perguntas de igual teor, entre gargalhadas. Sentia-me fortemente agredido pelo sarcasmo cultivado nas Reps de Bissau, mas não conseguia fazer fogo de resposta. Se respondesse, sairia palavrão grosso. Fiquei calado e sentia-me cada vez mais fora do baralho.

(- Saio?
- Fico aqui?
- Que faço?
- Não. Não vou bater em retirada).

Entretanto, fiz o reconhecimento do local, olhando em volta – oficiais médios, superiores, algumas senhoras… O terreno não me era favorável.

Entrou, então, outro alferes, de outra Companhia, da minha zona de operações, mas velhinho, em fim de comissão.

- Olha, outro herói.

- Ó herói, fala à gente.

Ele aproximou-se, alheio ao sarcasmo circundante. Olhou para mim e deve ter notado o meu incómodo.

- Já almoçaste? Não? Então vem daí e caga para estes heróis que estão a acabar o café e o whisky para regressarem à guerra santa da caneta, nas matas do ar condicionado.

Sem dizer mais, afastou-se.

Acompanhei-o para o restaurante, com a sensação de que seguia os passos de um HERÓI, que me arrancara das mãos do inimigo.

Alberto Branquinho
__________

Notas de CV:

(*) Alberto Branquinho, natural de Vila Nova de Foz Côa, residente em Lisboa, jurista de formação, reformado da TAP, (ex-Alferes Miliciano de Operações Especiais da CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) é o autor do livro de contos "Cambança - Guiné, Morte e vida em maré baixa"

Vd. Primeiro poste da série de 25 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5157: Histórias de heroísmo (1): Sold nº 939 Paulo: Olha os cabrões, já me f... a arma! (José Colaço)

8 comentários:

manuel maia disse...

Caro Branquinho,

Infelizmente,Bissau e outras cidades estavam prenhes dessa gente que usava a cunha para lá estar e boçalmente tentava fazer piada com quem estava no mato.

Também conheci alguns...

Foi graças a eles que o
final redundou no que sabemos...

Um brande abraço e parabéns pelo trabalho que,estou certo,será um êxito.

manuel maia

Unknown disse...

Como sempre, um prazer ler-te.
Um abraço

Anónimo disse...

Caro Branquinho
É sempre um prazer contactar com as tuas brilhantes histórias que demonstram uma grande perspicácia na análise de factos passados que a muitos podiam passar
despercebidos.
Sinceramente, tendo passado alguns dias pelo ambiente daquelas instalações de Santa Luzia, felizmente nunca assisti a tais cenas.
Talvez porque não tinha lá conhecidos e mantinha-me isolado, com a excepção do Cap do QP meu conhecido das guerras na zona Mansoa-Mansabá com quem tive algumas conversas e que acabou por me tramar...não tive outros contactos.
Mas esses teus ex-camaradas do COM
eram uns grandes f.... .. ....
Será que agora são desses heróis que se pavoneiam por aí?
Esses mereciam apanhar pela frente um dos muitos "apanhados" que não teriam a tua complacência...
Abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Amigo Branquinho,
por 'uma dessas' parti os cornos a 4-quatro_médicos-4 do Hosp de Bissau, no bar do Grand'Hotel. Fui preso pela PM por força do 'desenrolar da acção' mas não estou nada arrependido e o auto foi escamoteado e os gajos ficaram c'a tromba amolgada por muito tempo. Aposto que ainda se lembram...

(Desculpa a rudeza do comentário,
-vai à moda da época evocada!- que aqui fica para se algum desses rapazitos, por ventura, ler...)

É uma bela história, a tua; bem contada.

Um abraço
Salvador

Hélder Valério disse...

Caro Branquinho,
Julgo entender como te sentiste.
É do mesmo jeito que todos nos sentimos quando "vemos" perfeitamente que não pertencemos ao meio onde episodicamente estamos inseridos.
À zona dos oficiais de Santa Luzia fui duas ou três vezes mas evitei sempre misturar-me.
Quanto ao Bar e Messe de Sargentos, grupo a que eu pertencia, também havia muito desfasamento da realidade mas aqui, como já uma vez relatei num texto que foi publicado, era mais à base da fanfarronice, dos falsos heróis.
Enfim, entre um ou outro tipo de idiotas, venha o diabo e escolha.
Ambos enojavam.
Um abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Saúdo o teu regresso, meu herói, grande contador de histórias do nosso quotidiano anónimo, feito de andanças e cambanças, das pequenas misérias e grandezas que são a nossa (e)terna marca de humanidade...

Anónimo disse...

Olá Branqinho!

Então por onde tens andado?

Por estas e por outras é que eu

nunca entrei na Messe em Bissau.

Das duas vezes que por lá passei

juntei-me a Camaradas do Mato como

eu e aproveitei para mergulhar no

Pilão...E aí sim, trataram-me como

um Herói..

Grande Abraço

Jorge Cabral

Anónimo disse...

Caro Branquinho,

O que relatas, é a realidade, do
espirito de muito pessoal.
Ainda hoje, quem se baldou à ida ao Ultramar, ainda goza e critica os nossos relatos...
Eu estou curado há "manga" de tempo.Um abraço, do Jorge Rosales