Carlos e Luís
Após a leitura do livro do nosso camarada António Martins de Matos e em especial o capitulo escrito pela psicóloga Teresa Matos sobre o medo, resolvi fazer uma pequena viagem sobre o meu medo ou medos.
Junto vai uma foto onde estão vários dos que seriam sobreviventes da emboscada do Quirafo em Abril de 1972. De notar que o que está na primeira fila ao centro é o condutor único sobrevivente da primeira viatura. Ao lado dele, à nossa esquerda, é o condutor da segunda.
Um Feliz Natal e um próspero Ano Novo para todos os membros da tabanca mais para as suas famílias.
Abraços
Juvenal Amado
O MEDO
No dia 24 de Dezembro faz 47 anos que desembarquei em Bissau integrado no meu Batalhão 3872, o que quer dizer, que no momento que escrevo estas linhas navegava ou estava ao largo da ilha da Madeira. Não tive medo quando fui mobilizado, nem quando embarquei, nem quando desembarquei. Havia um misto de curiosidade e distanciamento, que quase parecia que não me estava a acontecer aquilo e que era um simples observador.
Mas na noite do desembarque, já no Cumeré, provei o medo como nunca pensei que existisse tal sentimento. A violência da guerra chegou até mim, que tinha dado duas dúzias de tiros de G3 e era esse o som mais próximo que tinha dela. Não sabia na altura que a espiral do medo tinha tantos patamares e que, aquele som das antiaéreas, a fazer batimento de zona, que faziam tremer o chão, não era nada comparado com som de um ataque onde as explosões e o matraquear das armas ligeiras têm um resultado tão aterrador.
O medo tolda-nos os sentidos, desfaz-nos o discernimento, penetra perniciosamente nos músculos, tolhe-nos as passadas, encharca-nos a roupa com suor gelado, deixamos de ver e ouvir com clareza, por vezes não se tem controle sobre as mais elementares necessidades fisiológicas, a irracionalidade sobrevem à amálgama de sensações descontroladas, em que nos tornamos seres sem quereres nem vontades próprias. Desse estado, saímos em várias direcções e soluções impensáveis, quando, no estado da razão de que normalmente somos proprietários, faríamos ao contrário .
Ao longo da vida passamos por diversos medos por ou ignorância rotulamos de medo, pois o medo na infância do escuro, do professor, do resultado do exame, o medo de ser rejeitado, o medo do ridículo, em nada é equiparado ao medo que nos descontrola ao ponto de nada mais ter interesse que a preservação da vida.
O medo como escreve a psicóloga clínica Teresa Matos* (vale a pena ler) é bem mais complexo do que até aqui eu pensava. Envolve a produção ou ausência de substâncias que na nossa condição de humanos produzimos. Escreve ela, que sujeitos ao medo o nosso corpo se transforma com reacções físico-químicas, que nos preparam para receber em antecipação o impacto de qualquer agressão que nos ponha em perigo.
Depois respondemos ao medo por ordem de um superior, porque por vezes existe o medo hierárquico, que suplanta o medo do inimigo. Se assim não fosse, como se explicaria, que à ordem de comando um soldado salta para a frente afrontando cortinas de balas?
Noutras, o individuo reage em autodefesa, porque é necessário responder à agressão. Finalmente o medo pode tolher de tal maneira o individuo que nada fará para se defender.
No principio da guerra, falou-se de quem se matou após a mobilização com medo de morrer na guerra, quando afinal dessa forma certeira cumpriu o destino que temia mas, que lhe era incerto.
“o medo tem alguma utilidade, mas a covardia não”. Mahatma Gandhi
Quem esteve em situações de combate, ou participou em colunas em que minas mataram camaradas, sabe do terror que se sente após os acontecimentos, a dificuldade de abandonar a vala e em especial, em mexer os pés do sítio onde nos abrigamos na urgência.
Conheço um camarada que tendo sofrido uma emboscada onde morreram vários companheiros (Quirafo - Saltinho) sofre de stress pós-traumático e o medo apodera-se dele de tal forma que não consegue responder-lhe, não dorme, é visitado pelos acontecimentos e as caras dos que morreram não lhe saem da cabeça. Os sons da tragédia compõem a banda sonora do que poderia ser um filme. Neste caso são os psicólogos e psiquiatras a administrar químicos em substituição dos que não se produzem naturalmente de que fala a autora Teresa Matos. O organismo do nosso camarada não consegue responder ao medo que se pegou a ele de forma visceral. Cumpre-me aqui informar, que já não falo com o camarada desde que ele começou a ser tratado e por isso, não ter real conhecimento do seu estado hoje.
Naquele tempo também sofri do medo real e em antecipação ao que poderia acontecer quando ia em colunas mas por outro lado pernoitei em sítios onde só alguma inconsciência da minha parte, permitiu ignorar o perigo. Conheci quem com medo dos ataques, só se deitava após as 11 horas da noite, pois era norma que se não nos atacavam até aquela hora, já não fariam com medo de serem apanhados pela madrugada na retirada.
Fez no dia 1 de Dezembro anos que fomos atacados ao arame farpado. O sentinela na dúvida se eram cabras a pastar ou guerrilheiros, não quis disparar com medo de levar uma porrada do comandante. Valeu-nos outro camarada que pegou na G3 e despejou o carregador sobre os vultos.
Mas o medo também é motor da actividade humana. O medo de ficar para trás, o medo que pareça mal, o medo da solidão e da incompreensão, o medo da velhice quando afinal devíamos ter mais medo de não chegarmos a velhos.
Assim existem vários patamares para o medo. O medo é um sentimento que se revisita como nenhum outro, pois há quem tenha medo de ter medo.
“Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com a coragem”. Jean Paul Sarte
Um Feliz Natal em paz é o meu maior desejo para todos os camaradas
(*) - Livro de António Martins de Matos Voando Sobre Um Ninho de Strelas, capitulo 42
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19145: Blogoterapia (289): Aquele toque a finados é uma coisa que me arrepia... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)