terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22954: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXIII: Velhice vai no Bissau, Ó-lé-lé...lé-lé...


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Buba > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74 > 27 de Junho de 1974> O pessoal  "instalado" na LDG batizada com o nome do nosso capitão, Vasco da Gama, a caminho de Bissau... “Tudo ao molho e Fé em Deus”... Nada de euforias!


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74 >  25 de Junho de 1974 > Aqui vamos nós… sem euforias... a caminho de casa
 
Fotos (e legendas): © Carlos Machado / Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto 3 > Guiné > Bissau > c. 1960/70 > Vista aérea de Bissau. Ao centro, o Palácio do Governo e a Praça do Império. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 118". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL). (Cortesia do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado. Foi também professor.

Já saiu o seu livro de memórias (, a sua história de vida),
de que temos estado a editar largos excertos, por cortesia sua.
Tem um pósfácio da autoria do nosso editor Luís Graça (*)



Paz &  Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (**)

Parte XXIII - … VELHICE VAI NO BISSAU, “Ó-LÉ-LÉ-LÉ-LÉ…”


Entretanto, lá chega o dia, há muito desejado, de deixarmos o Cumbijã, com destino a Bissau (riscando o último “pau” na caserna), em trânsito para a peluda.

Coisa estranha!,  na partida não se sentia o entusiasmo normal destas situações. Compreensível, tendo em conta o fim (ainda que tacitamente) das hostilidades.

Deixamos o Cumbijã à guarda da companhia que havia abandonado Guileje, a CCAV 8350. Um reencontro, fraterno, mas estranho, depois de Estremoz. O normal seria a nossa substituição por periquitos e não por alguém tão velhinhos quanto nós, como era o caso da CCav 8350. Estava, obviamente, em curso algo de injusto para uma companhia que passou por um dos momentos mais dramáticos da guerra na Guiné.

Ao passarmos o cavalo de frisa, abandonando definitivamente Cumbijã, uma lágrima senti ao canto do olho. Não sei se de alegria pela partida, se de tristeza pelas perdas e sofrimento de tantos camaradas e elementos nativos, questionando-me: porquê?

Afinal tudo se resolveu da noite para o dia (de 24 para 25 de Abril de 1974)!? Eu, só sei que não sei! Alguém que me explique,  que eu estou muito cansado...

Ao fazermos o caminho de Cumbijã para Buba  (Foto nº 1) para apanharmos a LDG para Bissau, junto à bolanha das “Touradas”, um grupo de elementos do PAIGC emerge da mata, armados até aos dentes e nós já completamente desarmados (senti arrepios na espinha), acenando com as mãos e as armas. 

Foi um momento muito estranho, dava a sensação que do dia para a noite o mundo tinha virado do avesso. Ficamos na dúvida se foi um gesto fraterno ou de alívio (passe a presunção). Grupos do PAIGC tinham já ido, creio eu, a todos os aquartelamentos da zona numa visita de cortesia e ao mesmo tempo para falarem com as populações sobre os rápidos desenvolvimentos que iriam conduzir à independência.

Vivi com alguma perplexidade, a forma como gerimos o fim das hostilidades. Esta feliz fotografia publicada no Blogue (paradigma do momento) fala por si!


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART/BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Julho de 1974: visita de Bunca Dabó e do seu bigrupo, fortemente armado... Ao centro, o nosso amigo e camarada Jorge Pinto, então alf mil, em farda nº 2, desarmado, fazendo as "honras da casa" (*). O aquartelamento e a povoação foram ocupados pelo PAIGC apenas em 2 de setembro de 1974. (Natural de Turquel, Alcobaça, o Jorge Pinto é professor do ensino secundário, reformado.)

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Um dos beligerantes sempre se apresentando armado até aos dentes enquanto o outro, completamente desarmado, de mãos nos bolsos e de palito ao canto da boca.

Muita... muita negligência, muita descontração e muita “fé...zada” que o Natal é todos os dias…

Nunca a companhia se encontrou ou falou com grupos do PAIGC, nem nunca fomos contactados para os receber (talvez porque não tínhamos população?). Soubemos que passados uns dias depois da nossa saída, estes entraram, a seu pedido, em Cumbijã.

Em Bissau foi descanso, muitos bifes com batatas fritas, muita...muita ostra, com cerveja e ás vezes, imaginem! vinho verde branco fresquinho.

A minha perceção, chegado a Bissau, era o de um clima de “fim de guerra” e ao mesmo tempo tenso.

Só conheci Bissau, fugazmente, nos momentos de partida e regresso de férias, pelo que não dava para comparar. Contudo, era evidente um ambiente de descompressão, que sempre acontece com o fim da guerra, por parte dos militares, mas, ao mesmo tempo, de um nervosismos indisfarçável dos europeus aí residentes: quadros de empresas, funcionários públicos e principalmente comerciantes. O semblante do proprietário da escola de condução, meu instrutor, onde tirei a carta, gritava através do seu silêncio ensurdecedor em cada aula.

Quanto à população em geral a vida continuava, nas suas rotinas de sempre, como se nada tivesse acontecido… ou estivesse para acontecer.

Deu para comprar um terço de um carocha (o carro pertencia a 3), onde o Gouveia me ensinou a conduzir, e um relógio “Citizen” (excelente relógio que ainda hoje funciona) para gastar os últimos pesos

Deu ainda para tirar a carta de condução, em tempo recorde, graças às lições do Gouveia (no meu ⅓ de carocha), com exame no dia anterior ao embarque para Portugal. Incumbi o camarada Mourato, furriel periquito do meu pelotão, para me enviar a dita carta logo que estivesse pronta. 

A carta tardou tanto a chegar que resolvi inscrever-me numa escola de condução para tirar uma nova. Felizmente, antes do exame lá recebi o dito papel com as desculpas do Mourato que não a enviou, por correio, com receio que a mesma não chegasse ao destino dada a anarquia reinante de fim do império. Acabou por ma enviar já em Portugal.

Galinha Gorda... por muito dinheiro

Já em Bissau (a conhecer e a viver um pouco do seu dia dia), éramos chamados a fazer proteção à cidade.

Bissau, em grande parte do seu perímetro, tinha uma proteção de arame farpado com vários pontos de vigia ao longo do seu percurso.

Quando entrava de serviço, uma das funções era fazer a ronda, de jipe com um condutor, por todos os postos de vigia assegurando que todos os soldados estavam nos seus postos e em alerta. Era evidente o desleixo nos postos de vigia dado que se tinha já interiorizado que a guerra tinha acabado.

Num dos postos de vigia, da responsabilidade de soldados da companhia, parei para conversar um pouco. Logo me arrependi porque de imediato vem na minha direção uma mulher esbaforida, a queixar-se de não sei do quê, não conseguindo perceber absolutamente nada do que dizia dada a pressa com que falava. Apercebo-me que os soldados,  em vez de ficarem comigo para me protegerem daquele “ataque” de fúria da mulher, todos se afastam, com um sorriso entre dentes.

Percebi logo que havia história. A mulher, um pouco mais calma, vai ao chão e pega numa pena de galinha e aponta para os soldados. Mistério fácil de desvendar, para este “Sherlock Holmes” do Cumbijã. Estamos perante um crime cheio de rabos de palha: o rancho do almoço estava intacto e junto ao posto de vigia uma fogueira ainda mal apagada.

Exerci a minha autoridade (?) fazendo uma acareação entre as partes. Dizia a mulher: "Estes militares foram à minha tabanca, roubaram, mataram e comeram a minha galinha".

Os soldados afirmaram: "Concordamos com tudo o que a mulher disse menos o rouba da galinha já que foi a mesma (a galinha) que entrou, sem autorização, no nosso posto de vigia, pondo em risco a nossa segurança"…

Assim se chegou à reconstituição do “crime”: Um soldado, que já tinha feito ali serviço, tomou de ponta aquela galinha. Trouxe umas sementes da caserna para a aliciar a entrar na guarita seguindo o carreiro de sementes, deixadas por ele, da tabanca até à guarita, acabando aqui por a matar. Perante a galinha morta, depois de conferenciarem, tomaram a decisão mais sensata de assá-la e comê-la.

Todos assumiram o pecado da “gula” ao afirmarem: "Assámos a galinha e todos a comemos. Soube-nos também como se fosse roubada... mas não foi!"

Afinal não foi nada fácil atribuir culpas, pelo que fui colocando pesos (dinheiro) na mão da mulher até ela se calar. Ou seja: Paguei, mas não comi… mas também não pequei de gula!

Continua...


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Capa do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.(*)

O livro, saído neste último Natal de 2021, aguarda a melhor oportunidade para a sua apresentação ao público. 

Mas podem desde já serem feitos pedidos ao autor: valor 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro.

Os pedidos devem ser feitos para o e-mail: jscosta68@gmail.com, indicando o endereço postal.
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22861: Notas de leitura (1404): Joaquim Costa, "Memórias de guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina. Guiné: 1972/74", Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp. - Parte I: "E tudo isto, a guerra, para quê ? Não sei"...

(**) Último poste da série > 16 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22911: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXII: Os torneios de futebol e a Cilinha que não veio, e a notícia do 25 de Abril que só chegou a 26...

Postes anteriores (faz agiora um ano que começámos a publicar esta série, que já deu um livro):

20 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22824: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXI: A "marcha louca" na véspera do Natal de 1973

26 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22754: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XX: outras guerras, outros protagonistas: os mosquitos, as abelhas, as formigas, as matacanhas...

12 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22711: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIX: As hortinhas... dos "durões"

2 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22682: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVIII: A ração de combate

11 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22621: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVII: a minha "bigodaça”... que tanto incomodou os senhores da guerra

22 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22561: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVI: O regresso de férias e o terceiro murro no estômago

31 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22499: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XV: Férias em julho/agosto de 1973... e o teste da cerveja

25 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22482: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIV: " Bora lá... para a nova casa, Nhacobá" (Op Balanço Final)


8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22350: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XII: A primeira noite em Nhacobá (Op Balanço Final)

23 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22308: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI: Op Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o dia mais longo

7 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22261: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte X: a segunda "visita dos vizinhos" (com novo ataque ao arame)

26 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22225: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IX: O primeiro murro no estômago

1 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22159: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII: A primeira visita... dos "vizinhos", com ataque ao arame!

13 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas

24 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22032: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VI: (i) batismo de fogo... com a reza do terço; e (ii) uma patuscada... de gato por lebre!

23 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22028: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte V: As nossas lavadeiras... e o furriel 'Pequenina'

12 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21996: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IV: O embarque, as 'hospedeiras'… e África Minha

27 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21953: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte III: Depois de Chaves, Estremoz, RC 3, onde fomos formar companhia...

13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira

3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)

Guiné 61/74 - P22953: Fauna & flora (18): mais dois animais emblemáticos das fábulas guineenses: o búfalo (bufre em crioulo) e o elefante (nhiuá, em fula)








Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, adapt, de brochura  abaixo citada (s/d), pág. 13 (*)


1. No conto "O Cativeiro dos Bichos", reproduzido no poste P22951 (**), há referência a mais dois "bichos" do "bestiário" da Guiné-Bissau, dois mamíferos, o búfalo e o elefante, que hoje importa conhecer melhor para proteger  (***)


(...) Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair ! (...)


(...) Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante. (...)



2. Não creio que algum de nós, antigos combatentes,  tenha posto a vista em cima de búfalos e elefantes, durante a guerra... A não ser talvez o "básico de Bambadinca" que, contava-se, um dia, quando estava de sentinela, acordou todo o quartel e as tabancas à volta, aos tiros de G3 em posição de rajada... 

 Interpelado pelo graduado que fazia a ronda, jurou que tinha visto uma manada de elefantes junto ao arame farpado... Em Angola e Mooçambique talvez fosse mais fácil, na época,  encontrar elefantes em plena natureza...

Tanto o elefante como o búfalo são hoje animais rarosquer nas savanas quer nas florestas da Guiné-Bissau. (Vd. infografias acima reproduzidas). E, teoricamente, estão protegidos por lei.  Mas a caça furtiva e sobretudo o abate das árvores de grande porte são dois dos factores apontados pelo IBAP (Instituto da Biodiversidade e Áreas Protegidas, da Guiné-Bissau)  para o desaparecimento progressivo (e se calhar irreversível) destas e doutras espécies de animais de grande porte, emblemáticos,  e que, no passado, existiam em abundância.

Acrescente-se os seus nomes tradicionais nalgumas das línguas dos povos da Guiné-Bissau:


O nome científico do búfalo é Syncerus manus planiceros (Bly); em crioulo é Bufre;  em balanta, Impungde; em fula, Edá; e Siô, me mandinga.



Quanto ao elefante: o nome científico é Loxodonta cyclotis (Matsch). Os fulas chamam-lhe Nhiuá; para o futa.fula é Maubá; em madinga diz-se Samom; em manjaco, Olom; em papel, Oinga; e em saracolé, Turé.

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Notas do editor:

(*) Fonte: Guia de Identificação dos Animais da Guiné-Bissau. República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Deparatmento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítio do IBAP ,
https://ibapgbissau.org/Documentos/Estudos/Animais%20da%20Guine-Bissau.pdf)

(**) Vd. poste de 31 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22951: Antologia (83): O Cativeiro dos Bichos, conto de Artur Augusto Silva (Cabo Verde, 1912 - Guiné-Bissau, 1983), escrito na Prisão de Caxias, em 1966, e que era uma fabulosa fábula que tinha também uma contundente crítica, implícita, à hipócrita política colonial do Governo Português da época

(***) Último poste da série > 10 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22794: Fauna & flora (17): três animais das fábulas guineenses: o leão, o lobo (hiena) e a lebre

Vd. poste anterior > 24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22401: Fauna & flora (16): Répteis da Guiné-Bissau que é preciso conhecer e proteger: 2 crocodilos, o crocodilo-do-Nilo (Lagarto) e o Lagarto preto; e duas linguanas (a de água e de mato)

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22952: Notas de leitura (1415): "Guerra da Guiné", da autoria do Coronel Fernando Policarpo; Quidnovi, 2006 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,

Devemos ao Coronel Fernando Policarpo a única obra divulgativa sobre a Guerra da Guiné. A estrutura da súmula é escorreita, mas hoje é duvidoso que as grandes linhas que ele enuncia tenham a consistência que manda o rigor histórico. 

Primeiro, sabe-se hoje mais sobre os acontecimentos que antecederam o ataque ao quartel de Tite, em 20 de janeiro de 1963, a subversão, mesmo na sua fase armada, já existia. 

Segundo, manter uma linguagem profundamente crítica para o período da governação Schulz, e quase que abençoando toda a governação Spínola, mais do que uma deformação dos acontecimentos é não apreciar os meios de que um e outro dispuseram e muito menos ter em conta a gradual qualidade de armamento do PAIGC. Oxalá o Coronel Fernando Policarpo reveja o seu livro, é indispensável que os leigos disponham de uma obra clara e sintética à mão, coisa que hoje as livrarias não dispõem para oferecer.

Um abraço do
Mário



As duas edições da Guerra da Guiné pelo Coronel Fernando Policarpo

Beja Santos

A 1.ª edição da "Guerra da Guiné", da autoria do Coronel Fernando Policarpo é de 2006, Quidnovi, faz-se igualmente menção à Academia Portuguesa de História. 

É uma obra com bom grafismo, ilustrações a propósito, elaborada para grande divulgação, contempla dados essenciais e em extratexto apresenta referências a personalidades que têm a ver com a História da Guiné como Honório Barreto ou Teixeira Pinto, Marcello Caetano e Spínola, Alpoim Calvão e Marcelino da Mata, Raúl Folques e Carlos de Azeredo, Carlos Fabião, há menções à Casa Gouveia, ao Massacre do Pidjiquiti, a Amílcar Cabral, Luís Cabral, Nino Vieira, Rafael Barbosa, a Guiné como berço do MFA.

Fernando Policarpo, atendendo à natureza do projeto divulgativo, soube atender ao essencial: Conferência de Berlim, a partilha de África e os desafios postos ao Governo Português; a ascensão dos nacionalismos africanos e o papel da ONU ao longo de todo este grande combate político; o essencial da História da Guiné, as caraterísticas físicas do território, a sua economia, as suas etnias; a fundação do MFA e o percurso de Amílcar Cabral, organização das forças de guerrilha; o autor estabelece duas fases para o conflito: de 1963 a 1968, de 1968 a 1974, hoje sabe-se que esta arrumação é alvo de controvérsia; explica-se o elementar das manifestações da subversão, a principal implantação do PAIGC no interior do território e a resposta das Forças Armadas; a narrativa é linear se bem que por força da condensação o autor não destrinça a fase preparatória da subversão na natureza da ocupação e o arranque da beligerância, acontece que a passagem de Louro de Sousa para Arnaldo Schulz é feita e precisa de ser clarificada de acordo com os meios disponíveis e pela situação, de um modo geral obliterada, da divisão das populações e até da diáspora para os países limítrofes, redesenhou-se um território e em função dele, com população fixada ou por razões meramente de estratégia militar, criaram-se destacamentos, ao longo de todo este período como na chamada segunda fase do conflito, enquanto se manteve uma grande constância no equipamento usado pelas forças portuguesas os guerrilheiros foram gradualmente sendo dotados de melhor equipamento, tudo se ia complicando pelo poder de iniciativa das forças guerrilheiras, aos poucos, as forças fixadas no solo foram sendo obrigadas a uma rotina desgastante e a uma vigilância perpétua, o que condicionava largamente o seu poder de iniciativa. 

Podem tecer-se comentários às respostas estratégicas de Louro de Sousa e Arnaldo Schulz face à pulverização das populações, ao separar das águas, mas não é correto dizer-se que os comandos militares, até 1968, cederam sempre a iniciativa aos guerrilheiros, deixando-se ir a reboque da sucessão de incursões bem sucedidas, permitindo a criação de bases avançadas permanentes, denunciando ao inimigo uma incontornável incapacidade de lidar com a nova realidade militar; a Comissão para o Estudos das Campanhas de África tornou pública em 2016 a Resenha Histórico-Militar referente aos aspetos da atividade operacional na Guiné, aí fica bem claro que houve iniciativas ofensivas, de pendor dissuasor, havia que proteger populações, itinerários, deu-se a resposta compatível com os meios, provavelmente sem o toque de asa que pode levar a guerrilha a ceder; esta contextualização só virá a ficar elucidada quando se proceder à investigação científica do que foram os quatro anos do mandato de Arnaldo Schulz.

O Coronel Fernando Policarpo enfoca a segunda fase do conflito e a orientação de Spínola, não deixa de informar que se multiplicaram os meios e os efetivos de tropas especiais e que apareceu dinheiro para aldeamentos estratégicos, alargou-se a propaganda, etc. O autor fala da procura da solução política, da operação Mar Verde, da progressiva africanização da guerra (há um grande mito sobre esta africanização, como se não viesse do passado um CIM – Centro de Instrução Militar que em Bolama fabricava unidades de caçadores nativos e milícias, procedeu-se à reciclagem da polícia administrativa, o que se seguiu foi a formação de companhias de caçadores e, separadamente, a formação de companhias de comandos e fuzileiros).

Em 1971, escreve o autor, a política de concentração da população nos aldeamentos estratégicos tinha provocado a desertificação de áreas geográficas consideráveis, mas fora do arame farpado a insegurança era total. Contudo, bem vistas as coisas, esta insegurança já vinha do passado, fora do arame farpado, regra geral, era terra de ninguém, a insegurança tocava a guerrilha e a contraguerrilha. E diz também o autor que recrudesciam as flagelações e que os militares apresentavam um elevado grau de desgaste físico e psicológico (como se no passado este quadro não fosse semelhante). 

E diz igualmente o autor que, contrariamente ao desgaste e lassidão evidenciados pelas tropas portuguesas, o PAIGC demonstrava enorme pujança operacional. Fica-se sem entendimento de quais os milagres produzidos pela estratégia de Spínola. Este desentende-se com Marcello Caetano, dá-se o assassinato de Amílcar Cabral, a guerra recrudesce, entram os mísseis terra-ar em ação. E assim termina o autor: 

“Não nos parece polémico concluir que no caso concreto do teatro de operações da Guiné a revolução ocorrida em Portugal, no dia 25 de Abril, foi providencial pois, tendo em conta a progressiva degradação da situação militar, era previsível o colapso do exército português num período relativamente curto, que poderia oscilar entre seis meses a um ano, dependendo essa incerteza apenas do facto do Comando-Chefe ignorar se o PAIGC iria, ou não, introduzir no teatro de operações novos sistemas de armas e meios de mobilidade que permitissem evoluir para operações do tipo convencional, como já Spínola antevira um ano antes”.

A nova edição da obra data de 2010, é também da Quidnovi e da Academia Portuguesa de História, é seguramente o mesmo texto com muito menos imagens, infelizmente a revisão deixou passar muitas gralhas, e não atualiza a bibliografia. 

O Coronel Fernando Policarpo continua a ser o autor da única versão de grande divulgação da Guerra da Guiné, daqui lhe deixamos o apelo para que, à luz dos estudos mais recentes, reatualize a sua obra, a opinião pública precisa ter uma fonte informativa bem fundamentada.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22946: Notas de leitura (1414): Depoimentos de combatentes cabo-verdianos na Guiné: André Corsino Tolentino e outros (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22951: Antologia (83): O Cativeiro dos Bichos, conto de Artur Augusto Silva (Cabo Verde, 1912 - Guiné-Bissau, 1983), escrito na Prisão de Caxias, em 1966, e que era uma fabulosa fábula que tinha também uma contundente crítica, implícita, à hipócrita política colonial do Governo Português da época


Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido) e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos... Esta casa será durante alguns anos, até à morte do Pepito, a sede da Tabanca de São Martinho do Porto...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos  (edição de autor, Bissau, 2006 ).  Na realidade, tratou-se de uma edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz, em homenagem à memória, ao talento e ao exmplo cívico do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), que viveu na Guiné-Bissau, de 1949 a 1966, e depois, de 1976 até à data da sua morte.
 

1. Porque muitos dos nossos leitores mais recentes, nunca ouviram falar sequer do seu nome, aqui vai um pequeno apontamento biográfico sobre o autor deste livro de contos, Artur Augusto Silva (1912-1983) (, que tem 32 referências no nosso blogue). 

Para quem quiser ter uma informação mais detalhada e contextualizada, ver aqui a sua biografia, profusamente ilustrada, da autoria do seu filho João Schwarz da Silva, na sua página, Des Gents Intéressants" (em francês e em português).

Artur Augusto Silva


(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) ainda estudante, foi director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) de 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura: dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, publicados no livro "O Cativeiro dos Bichos", como o Zé Faneca, pescador da Nazaré;

(vii) em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com António Carneiro mas também com  Amílcar Cabral (de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes);

(ix) participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau, onde a sua esposa, dra. Clara Schwarz da Silva, foi professora;

(x) visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) em 26 de agosto de 1966,  foi preso pela PIDE, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recordará sempre  "com dor e revolta";

(xiii) esteve preso em Caxias, durante 4 meses, sem culpa formada;

(xiii) em 23 de dezembro de 1966, "por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) em 1967, "Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.


2. Em homenagem ao autor, à sua esposa, Clara Schwarz (1915-2016) (que foi durante anos a decana da Tabanca Grande), e aos filhos de ambos,  Iko, já falecido, João Schwarz da Silva (que vive em Paris, e é também nosso grã-tabanqueiro) e  Carlos Schwarz da Silva, Bissau, 1949 - Lisboa, 2012), o nosso querido e saudoso Pepito (cofundador e histórico líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), republicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos deste livro de contos, e que deu o título à obra, "o Cativeiro dos Bichos" (pp. 57/63).

Trata-se uma fabulosa fábula (, se nos é permitido  o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1966, na Prisão de Caxias, tinha também uma contundente crítica,  implícita,   ao sistema colonial, à sua política e à sua justiça; recorde-se que na época era governador (e comandante-chefe) da Guiné o General Arnaldo Schulz, o mesmo que o expulsou da sua tão amada terra de adopção,  e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do longo braço armado da PIDE, e que se depois se opôs ao seu regresso à Guiné: em ofício da subedelegação da PIDE de Bissau, de 19/12/1966, é transmitida ao Diretor-Geral da PIDE a opinião do Governador de que "aquele Senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo" (sic).

A propósito das "fábulas guineenses", veja-se também a série que temos estado a reproduzir, a partir do livro  "Lendas e contos da Guiné-Bissau", da autoria de J. Carlos M. Fortunato ("Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.],  s/l, Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017,  102 pp,  ISBN 978-989-8661-68-5 (*`*)

Recorde-se que na cultura dos mais diversos povos as fábulas  (, contos populares,) são também uma forma, indireta, de denunciar e criticar  os abusos do poder dos mais fortes.   Muitas delas, incluindo as  fábulas guineenses,  encerram lições segundo  as quais os animais mais fortes, como o leão ou o "lobo" (hiena), podem ser  vencidos pela "audácia", "coragem",  "inteligência" e "cooperação" dos mais fracos. 



O Cativeiro dos Bichos (pp. 57-63)

por Artur Augusto Silva  (*)


A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, 
desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
– Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
– O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:
– As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
– O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
– Na verdade, na verdade – retorquiu o homem. 
– Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. 

Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966) (***)

 [Revisão / fixação de texto, incluindo negritos,  para efeitos de publicação deste poste: LG, com a devida vénia ]



Arbitrariamente detido pelo PIDE em 26 de agosto de 1966, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, acusado de "exercer actividades contra a segurança do Estado" (sic),  esteve preso em Caxias 4 meses, sem culpa fomada. Foi solto em 26 de dezembro, sem julgamento, por ordem do subdiretor da PIDE, José Barreto Sacchetti.  Repare-se no primeiro documento acima, a assinatura, perfeitamente legível, do agente da PIDE que deteve o advogado Artur Augusto Silva: Benedito Pereira André (que em 1974 era chefe de brigada; terá morrido recentemente, aos 89 anos).


___________

Notas do edtor:

(*) Vd. poste de 20 de maio de  2006 > Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)


domingo, 30 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22950: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XI: Conto - O casamento do lebrão





Ilustração do mestre Augusto Trigo (págs. 66 e 67)




O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das págs. 65-68 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)




J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


Conto - O casamento do lebrão 
(pp. 65-68)

O Rei leão tinha uma linda filha, que se queria casar, mas não tinha namorado. Um dia o lobo (hiena) passou pelo portão do palácio do Rei, e viu a princesa que estava a apanhar flores e a cantar, e ficou logo apaixonado por ela. O lebrão (macho da lebre) também passou por lá e ao ver a princesa também ficou apaixonado por ela. 
É mesmo com esta princesa que eu me vou casar - pensou alto o lebrão, quando a viu. 

Como o palácio tinha guardas, que não os deixavam entrar, o lobo e o lebrão passaram a andar à volta do palácio, para ver se conseguiam falar com a princesa. 

Um dia o lobo e o lebrão encontraram-se os dois, junto ao muro do palácio. 
 O que fazes aqui?  perguntou o lebrão. 
 Queria ver a princesa, ela é mesmo bonita e tem uma voz tão doce!  disse o lobo suspirando. 
 Eu também a vi no jardim, gostei muito dela, e quero casar com ela  disse o lebrão. 
 Tu também? Quem vai casar com a princesa, sou eu!  exclamou o lobo
 Não sei como vamos conseguir falar com ela. Os guardas não deixam passar ninguém…  comentou o lebrão. 

A girafa, que estava de sentinela junto ao muro, ouviu a conversa, e com o seu pescoço comprido espreitou, viu o lobo e o lebrão, e disse: 
 O que querem daqui? Vão-se embora. 
 Cala-te, garganta comprida  respondeu o lobo
 Ambos gostamos da princesa e queremos casar com ela – disse o lebrão. 

A girafa foi contar ao Rei, e este mandou chamar o lobo e o lebrão, e disse: 
 A minha filha aceita casar com um de vocês, mas têm que fazer uma  luta sem armas. Só poderão usar a força do corpo e ela casará com o que vencer. Ao vencedor, eu darei a minha filha para casar, dois bois e um lugar no palácio para ele viver. A luta será amanhã às dez horas. 

O lobo todo contente disse logo: 
– Hé! Hé! Eu é que vou casar com a princesa, pois sou o mais forte. 

No dia seguinte, às sete horas da manhã, o lobo já lá estava com o seu grupo, à porta do palácio, a tocarem tambor e a dançarem de contentes, pois tinham a certeza de que o lobo  ia ganhar a luta, mas o lebrão era muito esperto e não desistiu. 
 Huuum..., tenho que arranjar uma maneira de vencer o lobo  pensava alto o lebrão. – Já sei! Vou meter-lhe tanto medo, que ele vai fugir!  disse o lebrão para o seu grupo. 

O lebrão arranjou umas braceletes para os braços e para o corpo, para parecer mais forte, pôs-se em cima dos ombros do macaco e vestiu uma camisa comprida, para esconder o macaco, e assim ficou a parecer um gigante. 

O grupo do lobo ouviu tambores e viu poeira ao longe, e um deles disse: 
 Vem ai o lebrão mais o seu grupo. 

O lobo levantou-se, olhou, e viu um grupo de animais que se aproximava, trazendo à sua frente um animal enorme, e disse: 
 Não pode ser. O lebrão não é assim tão grande, o lebrão é pequeno. Vai lá ver quem é. 

O amigo do lobo foi ver e voltou a correr gritando: 
 É mesmo o lebrão, cresceu muito, agora é um gigante, fujam, fujam. 

Cheios de medo, o lobo e o seu grupo, largaram a fugir. 

E foi assim que o lebrão conseguiu casar com a princesa e ficar a viver no palácio do Rei.


2. Como ajudar a "Ajuda Amiga"?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque, que já foi inaugurada dia 8 deste mês, com pompa e circunstância), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com

sábado, 29 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22949: Os nossos seres, saberes e lazeres (489): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (35): Faiança polícroma, corda seca, ponta de diamante, o azulejo decorativo visto à lupa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Havia que repartir por uma curta série de textos a visita a um dos mais esplendorosos museus nacionais, implantando no Convento da Madre de Deus com a sua deslumbrante igreja. Logo o restaurante-cafetaria é do maior interesse, bem como o espaço da estufa, e depois continua a viagem pela evolução do azulejo em Portugal, a contemplação do retábulo Nossa Senhora da Vida, passamos pela importante pintura Panorama de Jerusalém, nesse mesmo rés-do-chão temos a igreja, uma das mais importantes do barroco português, vamos desfrutando de silhares de azulejos, de painéis em que não falta o exotismo, como O Casamento da Galinha, o extraordinário presépio, as figuras de convite, e assim avançamos até ao século XX, e a coroar a visita o extraordinário conjunto da Grande Vista de Lisboa. É para visitar com tempo e pensar em regressar depressa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (35):
De um belo presépio à grande vista de Lisboa antes do terramoto, Museu Nacional do Azulejo


Mário Beja Santos

Seria imperdoável pormos termo a esta visita ao Museu Nacional do Azulejo sem fazer uma referência à monumental Natividade que se encontra na capela de Santo António. Trata-se de um dos conjuntos mais importantes de uma tradição portuguesa. Estava agora na chamada Sala do Presépio, hoje reduzida a um terço da sua dimensão original, é uma criação de valor excecional dos barristas portugueses, o visitante confronta-se com anjos músicos, foliões, a Sagrada Família, as imagens dos Reis Magos e muitíssimo mais. É de visita obrigatória.
A sua grande importância a exposição do azulejo do século XX, desde a Arte Nova até à atualidade. Ganha destaque um painel relevado de Jorge Barradas, pintor e ilustrador do modernismo português, um grande renovador da cerâmica, figura da primeira geração de modernistas. Como escreve Maria Antónia Pinto de Matos, “O decorativismo adequou-se ao gosto do artista, que já o manifestara na sua atividade gráfica, conduzindo-o a uma produção escultórica que associa a graciosidade requintada, por vezes quase barroca a um tratamento que se aproxima à tradição barrista dos oleiros portugueses. O seu interesse pelas formas escultóricas está patente nesse painel, criado para a fachada do Museu de Arte Contemporânea, hoje Museu do Teatro, uma alegria às artes da pintura e da escultura, representadas por duas figuras andróginas”. Antes, porém, temos o decorativismo de Raul Lino, carateres geometrizantes do fim da Arte Nova.
Seguem-se duas imagens da evolução azulejar que vai de Maria Keil a Júlio Resende e Eduardo Nery. Maria Keil é uma figura destacada pelo seu trabalho na primeira fase do Metropolitano de Lisboa, exigiram-lhe uma grande sobriedade nos seus padrões, era um tempo em que o decorativismo parietal ocupava um papel secundário, parecia que o passageiro do metro não tinha direito à fruição estética na atmosfera da estação, tudo se resolvia com umas cores garridas e música ambiente, conceito que está hoje totalmente ultrapassado.
Outro ângulo do claustro concebido por Diogo Torralva, atenda-se à harmonia das proporções, independentemente de todos os trabalhos posteriores, designadamente a adaptação dos andares superiores a espaço museológico.
Despedimo-nos com alguns pormenores do silhar de azulejos Grande Vista de Lisboa. Demos a palavra à autora do guia do museu: “Este extraordinário conjunto, um dos mais importantes da história da azulejaria portuguesa e uma das joias do Museu Nacional do Azulejo, é, simultaneamente, um documento único para a História de Lisboa, mostra-nos a cidade vista a partir do azulejo antes do terramoto de 1755. A sua execução tem vindo a ser associada a um dos primeiros mestres da azulejaria barroca nacional, Gabriel del Barco, ainda que seja, provavelmente, obra de uma oficina. Com cerca de 23 metros de comprimento, nele estão representados 14 quilómetros de costa, de Algés a Xabregas, retratando palácios, igrejas, conventos e casas de habitação, para além de toda uma vivência que se observa desde as áreas mais densamente povoadas aos campos e arrabaldes de Alcântara ou Belém. Outrora numa sala do Palácio dos Condes de Tentúgal, na Rua de Santiago, em Lisboa, ele terá sido aplicado como silhar, ou seja, colocado nas paredes, junto ao rodapé, com a visão do Palácio Real seguramente em destaque, na parede do topo do espaço. Deste modo, o acentuar da linha de costa ganharia uma ênfase própria, que a colocação do conjunto relevando o espaço, numa visão a 360º, dotaria de uma visão similar ao que viriam a ser, futuramente, os diaporamas”. Parece sentir-se o movimento da cidade, podemos agora comparar o que foi engolido pelo terramoto, num dos extremos do painel temos o Convento Madre de Deus e numa perspetiva avantajada avulta o Palácio Real e o Terreiro do Paço, numa dimensão desproporcionada, aquele local era o eixo a partir do qual a vida de Lisboa se articulava.
Está-se a crer que é uma imagem do essencial para que o leitor tome a decisão de visitar ou voltar de novo a este extraordinário museu.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22930: Os nossos seres, saberes e lazeres (488): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (27): Faiança polícroma, corda seca, ponta de diamante, o azulejo decorativo visto à lupa (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22948: Parabéns a você (2030): Luís Graça, Fundador e Editor deste nosso Blogue, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22929: Parabéns a você (2029): Virgínio Briote, ex-Alf Mil Cav da CCAV 489 e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo "Os Diabólicos" (Cuntima e Brá, 1965/67)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22947: Em busca de... (316): Furriel Silva que em 1973 deu escolinha aos meninos de Chugué. Procura-o o cidadão guinnense, radicado em Itália, Vasco Na Nena que lhe quer prestar o seu reconhecimento. Ponto da situação (Carlos Silva, Cor Tir na Reforma)

Localização de Chugué. Infogravura da Carta de Bedanda 1:50.000. © Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem do senhor Coronel Tirocinado na Reforma Carlos Cação da Silva, com data de 26 de Janeiro de 2022:

Meu caro Carlos Vinhal,
Espero que se encontre bem de saúde e em “pleno” no cumprimento da sua tarefa no vosso Blog.

Venho dar-lhe conta da evolução positiva deste assunto pois neste momento estamos em vias de estabelecer contacto com o Fur Silva.

Na sequência do esforço de pesquisa destaco:

- 1.ª Pista: A vossa triagem das sub-unidades presentes no Chugué no període de 1972/1974 apontando para as CCAÇ’s 3477 e 4143;

- O Arquivo Geral do Exército na sua pesquisa não encontrou qualquer referência ao Fur Silva em ambas as Companhias mas identificou o Fur. Enf. Faria na CCAÇ 4143 que teria também apoado a Escolinha do Chugué. Deu-nos assim a 2.ª pista.

- Com o nome completo deste Furriel Enfermeiro e as indicações de um outro aluno da mesma escola e naquela época, que localizámos, hoje como médico no Hospital de Beja, estamos a aproximarmo-nos do Fur Silva que, não pertencendo àquelas Companhias, está confirmada a sua presença na escola do Chugué.

- Estamos confiantes de que o nosso objectivo foi conseguido mercê do vosso empenho e interesse que sempre manifestaram e que nos proporcionaram os primeiros e fundamentais elementos para que fosse conseguido um desfecho que, acreditamos, irá ser positivo.

Só tenho que, mais uma vez, enviar os meus sentidos agradecimentos aos Srs. Dr. Luis Graça, Carlos Vinhal e também a todos aqueles que tiveram que envolver nesta pesquisa.
Estarei sempre ao vosso dispor para o que julgarem necessária e nas minhas possiblidades.

A melhor saúde para todos
Cordiais cumprimentos
Um grande abraço amigo
Cação da Silva


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2. Mensagem resposta enviada ao senhor Coronel Cação da Silva no mesmo dia:

Senhor Coronel Cação da Silva,
Muito obrigado pela sua mensagem dando nota da evolução da tarefa que assumiu levar até ao fim.
Se não se importar darei notícia no nosso Blogue desta sua mensagem. Fico a aguardar a sua autorização.
Pela nossa parte também estamos ao seu inteiro dispor, assim lhe possamos ser uteis.
Retribuímos o abraço com votos de que esteja bem.

Pelo Blogue LG&CG
Carlos Vinhal


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3. Ainda no mesmo dia recebemos do senhor Coronel a seguinte mensagem:

Meu Caro Carlos Vinhal,
Não tem que pedir autorização alguma. Faça a publicação que melhor entender pois também penso que é importante para os nossos combatentes na Guiné e que participam no Blog terem conhecimento do sucesso da nobre tarefa a que todos deitámos mão. Um reencontro, passados quase meio-século, destes “jovens” que se conheceram no Chugué em condições nada fáceis será certamente emotivo e vivenciado com muitas recordações. O Vasco Na Nema está presentemente na Guiné onde está a tratar de assuntos familiares e aguarda-se a sua passagem por Lisboa onde ficará uns dias antes de seguir para Veneza.
Estou esperançado de que tudo irá correr bem e disso lhe darei oportunamente conhecimento.

Um abraço amigo e sempre ao vosso dispôr.
Cação da Silva

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Nota do editor

Vd. poste de 21 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22737: Em busca de... (315): Furriel Silva que em 1973 deu escolinha aos meninos de Chugué. Procura-o o cidadão guinnense, radicado em Itália, Vasco Na Nena que lhe quer prestar o seu reconhecimento (Carlos Silva, Cor Tir na Reforma)

Guiné 61/74 - P22946: Notas de leitura (1414): Depoimentos de combatentes cabo-verdianos na Guiné: André Corsino Tolentino e outros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,
Para contextualizar, factualizar, documentar e interpretar a guerra da Guiné, com bases no rigor científico da hermenêutica e heurística, é indispensável obtermos os múltiplos depoimentos das hostes cabo-verdianas que combateram na Guiné. Há recolhas já efetuadas, recordo que Leopoldo Amado juntou um acervo de testemunhos a propósito do livro sobre Aristides Pereira, em que colaborou. José Vicente Lopes, jornalista e escritor cabo-verdiano, procedeu ao estudo do movimento subversivo no interior do arquipélago, das tensões e frustrações aí existentes, cria-se uma luta armada que não vinha. E os depoimentos são vários, mas são peças soltas, infelizmente. Por isso mesmo, é de toda a utilidade visitarmos sites como este, são outras abordagens, outras clarificações, contributos para um poliedro, esse sim, poderá ter a capacidade de ajudar a compreender o todo que anda por aí fragmentado.

Um abraço do
Mário



Depoimentos de combatentes cabo-verdianos na Guiné:
André Corsino Tolentino e outros


Beja Santos

André Corsino Tolentino viu os seus livros apreendidos no Lar dos Estudantes Ultramarinos, em 1967. Foi expulso e anos depois passou a dedicar-se inteiramente à luta como dirigente do PAIGC. Regressou a Cabo Verde em 1974, exerceu funções ministeriais e atualmente é administrador não-executivo da Fundação Amílcar Cabral.

Neste site podemos ler a sua entrevista mas também a de outros cabo-verdianos que combateram na Guiné como Pedro Pires, antigo Presidente de Cabo Verde e que liderou a delegação que negociou com Portugal o reconhecimento da independência da Guiné e depois de Cabo Verde; Carlos Reis, que ensinou na escola-piloto do PAIGC e que estava em Conacri aquando da invasão portuguesa em 1970, e da morte de Amílcar Cabral; Lilica Boal, escolhida por Amílcar Cabral para dirigir, em Conacri, a escola que preparava os filhos dos combatentes para a independência; e Pedro Martins, o prisioneiro mais jovem do Tarrafal.
André Corsino Tolentino conta como depois da sua expulsão seguiu para França, passou pela Suíça até chegar à Bélgica. Guarda boas recordações da Universidade de Lovaina e da comunidade cabo-verdiana como também do grupo de professores que apoiava os estudantes das colónias. E observa:
“Esta comunidade de estudantes já tinha uma relação com a comunidade vizinha, principalmente com a França e a Holanda. Havia até um certo intercâmbio cultural entre esses estudantes e os emigrantes daquela região. O primeiro objetivo era conseguir mobilizar alguns jovens emigrantes cabo-verdianos. Os obstáculos e preconceitos nesta mobilização eram enormes: Nós éramos terroristas para o regime salazarista, mas éramos também uma espécie de mensageiros do comunismo. E do comunismo no seu pior, daquele comunismo que chega e redistribui tudo o que se tem, desde o mais íntimo. Havia que desfazer essa ideia, o que era relativamente fácil, quando as pessoas conheciam a realidade, os interlocutores. Por exemplo, quando eu falava com as pessoas da ilha de Santo Antão era relativamente fácil desmontar esta propaganda. Para os meus colegas da ilha de Santiago, de São Vicente ou da ilha da Boavista era igualmente fácil, mas o encontro tinha de acontecer e a conversa tinha de ocorrer também para que isso fosse possível”.

Recebeu treino militar em Madina do Boé, e esteve durante um ano na Escola de Marinha em Odessa, no ano seguinte. Perguntado se acreditava realmente que algum dia seria possível em Cabo Verde a luta de guerrilha, André Corsino Tolentino elogiou a estratégia de Amílcar Cabral por este ter pensado e conseguido formar o PAIGC com guineenses e cabo-verdianos, mas não ilude a questão da frustração dos cabo-verdianos dentro do próprio PAIGC e da emigração. “Só depois viemos a saber que, de facto, era muito difícil em termos militares, sobreviver a um desembarque nas ilhas de Cabo Verde. Era altamente perigoso porque podia haver um fácil aniquilamento nos guerrilheiros. Houve discórdia entre Amílcar Cabral e Che Guevara na altura, porque Guevara defendia o princípio dos focos. Dizia que desde que as pessoas se instalem e tenham armas e o abastecimento garantido do exterior, a guerrilha poderá depois mobilizar a base e avançar. E Cabral defendia que a guerrilha só vinga se emergir da população local”.
Questionado sobre a sua viagem de Conacri para o interior da Guiné, depois de maio de 1964, respondeu:
“Houve uma explosão de alegria. A guerra durou muito tempo, mais de dez anos. Este cansaço manifestava-se através de conspirações, da desistência de operações, falta de apoio das populações ou através da deserção para o inimigo. Estávamos todos cansados da guerra, quer as tropas coloniais quer a resistência. Por conseguinte, a substituição do poder em Portugal e as declarações seguintes de predisposição para realizar a Descolonização, a Democracia e o Desenvolvimento só podiam ser bem-vindas. É neste contexto que o ambiente muda radicalmente”.

Para saber mais sobre estes combatentes cabo-verdianos, ver o site https://www.dw.com/pt-002/est%C3%A1vamos-todos-cansados-da-guerra-lembra-corsino-tolentino/a-17759520.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22937: Notas de leitura (1413): A utopia de André Álvares d’Almada, Revista Sintidus, nº. 1, de 2018 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22945: As tuas melhoras, camarada !... (1): Padre Mário de Oliveira (ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912, Mansoa, 1967/68), hospitalizado, em Penafiel, com múltiplos traumatismos, mas consciente, depois de grave acidente automóvel

1. O nosso camarada Mário de Oliveira, de 84 anos, ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68), está hospitalizado, no Centro Hospital do Tâmega e Sousa, em Penafiel, com traumatismo múltiplos, mas consciente, na sequência de grave acidente automóvel, ocorrido anteontem à tarde, em Macieira da Lixa, Felgueiras. (Para mais detalhes, ver aqui notícia de ontem, no semanário Visão).

 Foi assistido, nos cuidados intensivos, por uma querida sobrinha, enfermeira, que falou com ele, embora ele não lhe pudesse responder por estar entubado. Ele foi pároco da sua freguesia, Paredes de Viadores, depois de ele vir da Guiné (, de mal com Deus e com César...).

Desejamos ardentemente as suas rápidas melhoras, eu e a Alice  (de que ele é um velho amigo, foi ao nosso casamento, civil, em Candoz). 

Um abraço fraterno, Luís Graça.

PS - Se acharem bem, mandem-lhe uma mensagem, para ele ler, quando sair do hospital e voltar a casa,  ele vai gostar e não se importa que eu aqui divulgue o seu endereço de email, que de resto é público: padremario@sapo.pt 


2. O Mário de Oliveira tem 15 referências no nosso blogue. Ele é  um dos nossos capelães (,  que integram a nossa Tabanca Grande, juntamente com:

  • Arsénio Puim (açoriano, da Ilha de Santa Maria, ex-alf mil capelão, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72);
  • Augusto Batista (ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã. 1969/70);
  • Horácio Fernandes (ex-padre franciscano, ex-alf mil capelão, CCS/BART 1913, Catió, 1967/69);
  • Libório Tavares (1933-2020) (, natural de São Miguel, Açores, ex-alf mil, CCS/ BCAÇ 2835, Nova Lamego, 1968/69).