terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23001: Memórias cruzadas da região de Gabu: as origens do desassossego em Copá e as sequelas da metralha entre o Natal de 73 e 7Jan74 (Jorge Araújo)




Capas de alguns dos títulos consultados


Imagem de satélite da região leste onde ocorreram os factos narrados neste texto.




O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Acaba de encerrar, temporariamemte a Tabanca dos Emiratos, até junho próximo. Tem cerca de 311 referências no nosso blogue.
 


MEMÓRIAS CRUZADAS DA REGIÃO DE GABÚ:

AS ORIGENS DO DESASSOSSEGO EM COPÁ E AS SEQUELAS DA METRALHA ENTRE O NATAL’73 E 07JAN74



1. – INTRODUÇÃO

A estrutura deste projecto de investigação bibliográfica, a incluir na série “Memórias Cruzadas”, foi organizada a partir de vários depoimentos existentes no vasto espólio do Blogue da Tabanca Grande, alguns editados há mais de uma década, mas todos eles relacionados com a temática apresentada no título do trabalho, tendo como contexto geográfico a Região de Gabú.

Ainda que em poste anterior tenha feito referência aos acontecimentos de Janeiro de 1974, em Canquelifá, e da morte, no dia 7, do nosso camarada (e amigo) Luís Filipe Pinto Soares (fur mil operações especiais) da CCAÇ 3545 – P16127, de 23Mai2016 – a sua releitura, enquanto efeméride com quarenta e oito anos, e outros factos sublinhados em novas consultas bibliográficas e da sua respectiva análise historiográfica, nasceu o interesse pelo seu aprofundamento, uma vez que estávamos na posse de elementos novos, por nós classificados de evidências irrefutáveis.

Com estas “evidências”, procura-se dissipar eventuais equívocos ou imprecisões identificadas na literatura, produzida e influenciada por cada um dos lados do conflito, cujas capas, títulos e autores se reproduzem abaixo por ordem de apresentação, sobre alguns dos factos aí narrados (que os há!).

Por outro lado, com este desígnio pretende-se, também, ajudar a reconstruir o puzzle das “memórias” do conflito armado naquela Região do Leste da Guiné, em particular no triângulo: «Bajocunda / Copá / Canquelifá», com maior detalhe para os dois últimos locais, onde a “problemática” e a estratégia operacional, entre vizinhos, era semelhante.

O principal período de tempo desta análise é de quinze dias, com início no Natal de 1973, onde ficou ferido, por ter accionado uma mina em Bajocunda, o Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz, Cmdt da 1.ª CCAV/BCAV 8323, até ao dia 7 de Janeiro de 1974, dia da “Acção Minotauro”, realizada em Canquelifá, durante a qual foram capturados, já cadáveres, dois elementos da guerrilha, sendo um cubano e um cabo-verdiano.

De acordo com o acima exposto, nos pontos seguintes daremos conta do que entendemos ser o mais relevante retirado das fontes consultadas, adicionando-lhes outras informações complementares, com recurso à sua triangulação, de modo a melhorar a percepção de todos esses factos, mesmo sabendo-se que todos eles estão a uma distância temporal de quase meio século.


2. – CONTEXTO GEOGRÁFICO, HISTÓRICO E CRONOLÓGICO
IDENTIFICADO NA BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


Conforme se dá conta na introdução, este segundo ponto segue a linha de investigação projectada, fazendo interagir, sempre que possível, o tempo dos factos (ocorrências) com o contexto espacial (local) e a identificação dos respectivos actores, individuais ou colectivos.





Deste modo, a contextualização da narrativa tem o seu início no mês de Dezembro de 1973, a poucos dias da comemoração da data natalícia, e como espaço geográfico o triângulo «Bajocunda / Copá / Canquelifá» onde estavam instaladas, nas duas primeiras localidades, forças do BCAV 8323, do TCor Cav Jorge Eduardo Rodrigues y Tenório Correia Martins (29Set73-10Set74) e, na terceira, a CCAÇ 3545, do Cap Mil Inf Fernando Peixinho de Cristo, unidade de quadrícula do BCAÇ 3883, do TCor Inf Manuel António Dantas (19Mar72-19Jun74).

Na distribuição das Unidades Operacionais do BCAV 8323, sediado em Pirada, a quem competia a responsabilidade do Sector L6, do qual faziam parte os subsectores de Bajocunda, Paúnca e Pirada, coube à 1.ª CCAV, do Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz, o primeiro daqueles subsectores. 

Deste modo, o contexto histórico tem início nos “casos” observados e registados na literatura, com destaque, em primeiro lugar, para a narrativa divulgada no livro «O Princípio do Fim» ( Porto: Campo das Letras),  de Benigno Rodrigo, cujo nome está ligado a forte controvérsia relativamente à origem dos conteúdos por si publicados que, segundo se defende em comentários editados neste Blogue (p.e. os do P3871, de 11Fev2009), são da autoria do soldado condutor auto-rodas, António Rodrigues, pertencente à 1.ª CCAV do BCAV 8323/73.

Outras abordagens sobre a mesma problemática podem ser consultadas no P3995, de 07Mar2009, da autoria de Graça de Abreu, e no P4406, de 24Mai2009, de António Rodrigues.

2.1 – “O PRINCÍPIO DO FIM”, de Benigno Fernando

▬ Algumas notas

Convém acrescentar que para a presente análise o que nos interessa são as informações (substância) produzidas, e estas foram extraídas do P1410, editado em 8Jan2007, fez quinze anos recentemente.




► Neste âmbito é importante reter que os primeiros factos ocorreram “próximo do Natal de 1973": 

(...) Num desses dias o PAIGC atacou a povoação de Amedalai (ver mapa acima), que ficava a 5 km de Bajocunda e a 17 de Copá. A povoação era formada por população civil e pela milícia armada e o ataque aconteceu ao fim da tarde. (…) 

De Bajocunda foram em socorro da povoação três pelotões [GrComb] que provocaram algumas baixas ao PAIGC, sendo forçado a retirar” (p.29). 

Sobre esta última referência, o fur mil serv mat da 1.ª CCAV, Amílcar Ventura, que se encontrava em Bajocunda, afirma, em comentário, ser falso o relato, pois não seria possível saírem três pelotões, ao fim do dia, em socorro de Amedalai, quando, na mesma altura, Bajocunda também estava a ser atacada. “O que fizeram foi lá ir logo de manhã” e verificar os estragos (P1410).

Em 25 de Dezembro, dia de Natal de 1973, pelas 11:00 horas em Copá, o Alferes Mil Manuel Brás, solicita ao sold cond António Rodrigues que o leve até Bajocunda, pois havia recebido uma mensagem que dava conta que o Cmdt da 1.ª CCAV, Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz ficara ferido, desconhecendo as causas do sucedido (Vd. foto 1).

Chegado a Bajocunda, soube-se que nesse dia 25 de Dezembro (3.ª feira), o capitão Ângelo Moreira da Cruz saiu de Bajocunda, com os efectivos necessários para desminar Amedalai (ver mapa). Quando deu por concluído o levantamento das minas localizadas, e no momento em que se preparavam para abandonar o local, um dos militares presentes afirmou: “meu capitão tenho a impressão de que ao pé do senhor está mais uma mina”, E de facto era verdade. O capitão virou o pé ao lado e sem saber accionou a mina que lhe amputou uma das pernas. Terminava nesse momento a sua comissão, que durou apenas três meses no CTIG. Algum tempo depois, viria a ser substituído pelo Cap Mil Cav Fernando Júlio Campos Loureiro.

Os últimos dias de 1973 e os três primeiros de 1974, em Copá, passaram-se relativamente calmos.



Foto 1 – Quartel de Bajocunda, 25Dez1973. Evacuação do Cap Cav Ângelo César da Cruz, Cmdt da 1.ª CCAV/BCAV 8323 (1973/1974), na sequência de ter accionado uma mina antipessoal, ficando sem uma perna (foto do álbum do fur mil Amílcar Ventura – P5002, de 24Set2009, com a devida vénia).






► Colando com o texto anterior, recuperamos agora o depoimento editado no poste acima, da autoria de António Rodrigues, onde começa por afirmar que “chegados ao dia 3 de Janeiro de 1974 (5.ª feira), o dia foi mais ou menos calmo, embora durante a tarde, enquanto jogávamos futebol na pista de aviação em Copá, se ouvissem fortes rebentamentos na direcção de Canquelifá que, soubemos depois, estrava a ser violentamente flagelada com armas pesadas. (…) 

Porém, eram 23:30 horas em ponto desse mesmo dia aconteceu “o nosso baptismo de fogo”. Refere que o Manuel Vicente Antunes, que àquela hora fazia reforço no seu abrigo, gritou, ao mesmo tempo que se ouviu um rebentamento. (…)

Continua: “as primeiras granadas passavam por cima de Copá e iam rebentar aí a uns dois kms de distância, entre Copá e Bajocunda. Elas vinham bastante alternadas, atiravam três morteiradas, deixavam passar dez minutos e voltavam a atirar outras três, e assim sucessivamente”. 

(…) Entretanto as bombas continuavam a cair. É curioso que a dada altura duas em cada três granadas caíam ali próximas, mas não rebentavam. (…) A dada altura, ainda deste primeiro ataque, as granadas começaram a cair com maior intensidade sobre o abrigo ou posto onde eu me encontrava. 

A nossa falta de experiência disse-nos naquele momento que devíamos abandonar o posto e irmos para outro menos apoquentado, porque na verdade o abrigo 7 era, naquela noite, o que estava a ser mais atingido e por isso não hesitámos em nos mudar todos para o abrigo 1, que ficava ali mesmo ao lado. (…)

Com efeito, “o PAIGC continuava a disparar de dez em dez minutos sobre Copá, pelo que só se resolveram a parar eram duas horas da madrugada do dia seguinte (4Jan), precisamente no momento em que o luar desapareceu. Foi aí que o primeiro ataque a Copá, desde que lá chegámos (em 25Nov73), terminou… Os guerrilheiros dispararam nessa noite, sobre Copá, cinquenta granadas, mais de metade das quais caíram fora do aquartelamento”. (…)

Acrescenta que “felizmente naquela noite não houve problemas de maior, nem sequer o mais leve ferimento. (…) Mas o ataque desse dia foi apenas um pequeno aviso (como se veio a provar). 

Passaram-se os dias 4, 5 e 6Jan74, com relativa calma. No dia 7 marcou-se novamente a coluna que dias antes tinha sido interrompida. Mas nesse dia veio mesmo a realizar-se só que, chegada a meio do percurso (Massacunda Maunde) foi atacada por uma forte emboscada feita nesse local pelo PAIGC”.

Conta o António Rodrigues que “eram cerca das 09:30 horas da manhã, estava ele e os homens que nesse dia estavam de serviço à água junto ao poço onde tirávamos a água em Copá, e, a dado momento, ouvimos um forte rebentamento na direcção de Massacunda, logo seguido de um enorme tiroteio. Lembramo-nos logo que seria a nossa coluna que estava a ser emboscada. Ficámos um pouco suspensos e logo um furriel nos chamou e disse que largássemos a água porque tínhamos que ir em socorro dos nossos camaradas. Nós assim o fizemos. Eu (como condutor) peguei no carro imediatamente e regressámos para dentro do arame farpado. Formou-se o pelotão que arrancou imediatamente para o local, ficando em Copá apenas cinco ou seis homens, um por cada abrigo, pois ainda tínhamos connosco mais alguns soldados africanos”. (…)

Entretanto, do local da emboscada (à coluna que regressava a Copá?) chegava via rádio a notícia mais concreta do que tinha acontecido. Havia a registar alguns feridos e dois mortos, sendo estes últimos, o soldado Rui Silveira Patrício, natural de Santa Margarida-Conceição, Concelho da Covilhã e o 1.º Cabo António Aguiar Ribeiro, natural de Orca, Concelho do Fundão, ambos solteiros, e fazendo parte do 3.º GrComb da 1.ªCCAV/BCAV 8323.

Para além das duas perdas humanas, verificou-se também a destruição de duas viaturas Berliet e, ainda, do dinheiro que seguia nessa coluna para pagamento do anterior mês de Dezembro’73 destinado a todos os militares europeus e africanos que se encontravam em Copá (Vd. foto 2).

Foi ainda destruído todo o correio destinado a Copá, onde se incluía os postais de Boas Festas e lembranças enviadas pelos familiares e que, em função da ocorrência, as não puderam receber.



Foto 2 – Estrada Bajocunda/Copá, 07Jan1974. Viatura (Berliet) da 1.ª CCAV/BCAV 8323, destruída na emboscada de 7 de Janeiro de 1974 (foto do álbum do fur mil Amílcar Ventura – P5002, de 24Set2009, com a devida vénia).







Porém, as más notícias desse dia ainda não tinham terminado. Pelas cinco da tarde e com apenas os elementos que haviam ficado no aquartelamento, em cada posto, este voltaria a ser atacado pela artilharia do PAIGC até às 22:20 horas, ou seja, durante mais de cinco horas. 

Sobre este episódio, o António Rodrigues relata que os poucos homens que ali se encontravam “meteram-se nas valas de G3 na mão à espera do que desse e viesse, pois mais uma vez não tínhamos armas com capacidade de lhes darmos resposta, e com dois homens em cada posto lá fomos aguentando o fogo de morteiro 120 e 82, que carregavam sobre nós persistentemente”.

Só cerca das 20:00 horas é que entrou o restante pelotão em Copá, debaixo de fogo, quando a maioria da população, aos gritos, se punha em fuga das suas tabancas, que ardiam, em direcção à República do Senegal, cuja fronteira ficava dali a três quilómetros.

“Juntamente com a população fugiram (ou desertaram) praticamente todos os militares africanos que ali se encontravam em reforço da guarnição, ficando apenas em Copá, naquela noite, um Alferes e um Furriel europeus, que comandavam esse Pelotão de Africanos, juntamente connosco o 4.º GrComb da 1.ª CCAV/BCAV 8323, num total de 29 homens”.

Como a artilharia do PAIGC não parava o seu ataque, e as nossas munições eram muito poucas, talvez umas 18 a 20 granadas de morteiro 81, algumas de morteiro 60, e pouco mais de uma dúzia de granadas de mão, vimo-nos forçados a pedir auxílio aéreo a Bissau, que nos mandou um avião Dakota que começou a sobrevoar Copá eram 22:20 horas, altura em que a artilharia do PAIGC parou o fogo. Esta paragem fez supor que, por via do bombardeamento aéreo, o inimigo tinha retirado para o Senegal, que ficava ali muito próximo. Mas o que aconteceu foi exactamente o contrário.

Durante o ataque aéreo, as forças do inimigo no terreno deslocaram-se para junto do aquartelamento, como estratégia, pois ficavam mais seguros e em condições de puderem continuar a perseguir os seus intentos que era a “conquista” de Copá.

António Rodrigues conta que “mal o avião se foi embora, eram cerca das 23:00 horas, começámos a ouvir fortes ruídos de motores a trabalhar, dando-nos a ideia de serem viaturas que se dirigiam a Copá e a sê-lo àquela hora, eram com certeza do inimigo”. (…) “Mas eu, ao ouvir todo aquele estranho ruído, tinha um pressentimento de que as coisas ainda não tinham terminado nesse dia, e decidi ficar a pé e fazer companhia ao sentinela, até ver o que ia acontecer”.

E aconteceu… algumas viaturas encaminhavam-se a toda a força na direcção de Copá, quando, por volta das 23:50 horas, o ruído se deixou de ouvir, mas por pouco tempo. Bastaram mais vinte minutos para se dar início a “mais um momento terrível naquela noite. Era exactamente meia-noite e dez minutos quando se ouviu o já típico rebentamento que dava início aos ataques do inimigo”.

Segundo a narrativa, “o inimigo estava a dez metros à nossa frente e trazia uma táctica que estava muito bem montada. Tinha junto ao arame farpado três secções, separadas alguns metros, o que lhe permitiu fazer fogo de armas ligeiras ininterruptamente durante uma hora e cinco minutos, porque o fazia por secções e quando uma estivesse sem munições a outra estava preparada para disparar (ou a entrar em acção), e assim sucessivamente.

"Para além destas secções de infantaria, tinham um auto-blindado (tipo ZIG russo) junto a uma das secções a apoiá-la com os disparos do seu canhão e, na rectaguarda destas secções tinham toda a artilharia com que nos tinham atacado anteriormente (de tarde), encontrando-se esta a cerca de um km, também apoiada por outro auto-blindado do mesmo tipo”.

A nossa resposta não tardou, com a utilização da “metralha” disponível, como sejam: dilagramas, granadas de bazuca, de morteiro 81 e 60, além das metralhadoras Breda, HK-21 e G3, disparos dirigidos nas direcções onde se encontravam instaladas as “bocas de fogo In”.

António Rodrigues (foto atual à esquerda) dá o exemplo da “secção que estava do lado norte, apoiada pelo blindado que estava já a abrir uma entrada para penetrar no nosso aquartelamento, onde progrediu cerca de dez metros para dentro do arame farpado". 

É, nesta situação que “o meu camarada Manuel Antunes, acompanhado do 1.º Cabo João Ribeiro, se enchem de coragem, pegam em meia-dúzia de granadas de morteiro 60, saltam para fora da vala debaixo de fogo e atiram-nas todas sobre o blindado, que tentava entrar, e que o terá feito recuar, não sei se por acção dessas granadas, que não teriam grande efeito sobre tal viatura, mas o certo é que quem a comandava resolveu iniciar a retirada naquele momento”.

Era uma hora e quinze minutos, do dia 8 de Janeiro de 1974, quando o tiroteio acabou, ainda com muita coisa a arder, mas com a certeza de que todos os “bravos de Copá” (vd. foto 3)  e a sua população local tinham sobrevivido durante aquelas horas “amargas e terríveis vividas nesse dia e noite de 7 de Janeiro de 1974”, não permitindo que o PAIGC conseguisse cumprir com os objectivos a que se tinha proposto.



Foto 3 – Copá, Jan1974. Alguns dos 29 “Bravos de Copá”, do 4.º GrComb da 1.ª CCAV/BCAV 8323, que defenderam estoicamente a instalação militar onde se encontravam aquartelados, durante o forte ataque levado a cabo pelo PAIGC, no dia e noite de 7Jan1974 (foto do álbum do sold cond António Rodrigues – P14214, de 03Fev2015, com a devida vénia).

● Finalmente; o reconhecimento e os resultados da refrega.

O autor do texto, cujo conteúdo acompanhámos com muita atenção e a quem devemos um obrigado e um elogio por este seu valioso contributo historiográfico, que serviu de questão de partida para a elaboração do presente trabalho, conclui a última parte da narrativa (o depois) acrescentando:

“No dia seguinte de manhã, fomos passar reconhecimento fora do arame farpado e verificámos melhor o que na realidade tínhamos provocado ao inimigo. Vimos a entrada que realmente o blindado abriu no arame farpado e numa das secções, junto ao poço de água da pista de aviação, teriam tombado pelo menos dois homens, visto que aí haviam duas postas de sangue separadas por um metro de distância e tinham colados alguns dos muitos invólucros das muitas munições que já tinham disparado”.

“A meio da distância entre os dois e cerca de um metro atrás, rebentou uma granada do nosso morteiro 81, o que com certeza terá ferido os homens daquela secção e eles tombaram sobre os invólucros que tinham à sua volta. Encontrámos ainda um carregador e caixas de munições de Kalashnikov, maços de tabaco e bonés. 

"Havia sinais de que o blindado que apoiava a artilharia lá mais atrás, tinha vindo socorrer os feridos já referidos anteriormente. Mas, como nós insistimos a fazer fogo com as nossas armas, mesmo sabendo que eles estavam em retirada, esse blindado não conseguiu chegar pertos dos feridos, pelo que estes foram levados de rastos até ao carro. Vendo-se atrapalhados, não conseguiram meter os feridos logo no carro, pelo que este começou a retirar de marcha atrás sobre o mesmo rodado, enquanto o carreiro que os corpos de rastos marcavam, continuava a par do rodado, até que conseguiram carregá-los”.

António Rodrigues termina com um sentimento de orgulho, salientando que “durante todo esse fogo, nenhum dos nossos homens ficou ferido”.


2.2 – D(O) OUTRO LADO DO COMBATE – CONTROVÉRSIAS:

▬ “DE CAMPO A CAMPO: CONVERSAS COM O CMDT DO PAIGC
BOBO KEITA (1939-2009)”


Neste ponto, e para efeitos de comparação de narrativas, no que pode ser entendido por “convergente versus divergente”, ou erróneo em relação à descrição dos principais factos em análise, não podíamos deixar de consultar as fontes produzidas por elementos de cada um dos lados do conflito.

Na perspectiva “do outro lado do combate” (designação dada a outra série), recorremos à obra de Norberto Tavares de Carvalho, “De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita” (Edição de autor. Porto, 2011), citando algumas das passagens editadas no P16317, de 19Jul2016, conforme se indica abaixo.



◙ Depoimento de Bobo Keita (1939-2009) sobre a morte de Mamadu Cassamá, em Copá, em 7Jan1974

► Partindo dos relatos de António Rodrigues citados no ponto anterior, em particular as dúvidas suscitadas quanto aos motivos (ou factos) que levaram os responsáveis do PAIGC a darem por concluído o ataque ao aquartelamento de Copá, abandonando as suas posições no terreno no início da segunda hora do dia 8 de Janeiro de 1974 (3.ª feira), o depoimento do Cmdt Bobo Keita não é muito esclarecedor nos seus detalhes. Mas confirma que, pelo menos, tiveram uma baixa, a do Cmdt Mamadu Cassamá, o elemento que tentou entrar no interior do quartel.  Diz ele:

(...) “Mamadu Cassamá morreu no ataque a Copá. Tomei parte nesse ataque, juntamente com o camarada Paulo Correia. O Mamadu era dos que ainda acreditavam na “força” dos amuletos… Avançou muito e foi até aos arames que circundavam o quartel. Pegou nos arames e fez força para os arrancar. Foi localizado e um tiro certeiro [de que arma?] silenciou-o de vez. O Mamadu Cassamá era o comandante daquela zona”. (...)


Nas conversas com Norberto Tavares de Carvalho, autor do livro, Bobo Keita volta a referir-se ao episódio do ataque a Copá nos seguintes termos:

 (...) “Para o assalto a Copá, que fica a uns trinta quilómetros da cidade senegalesa de Wassadou [ver mapa acima], peguei em dois dos meus tanques, constitui um comando e fomos à emboscada [a da coluna Copá/Bajocunda/Copá ou estava-se a referir ao ataque a Copá? Não está claro]. 

"A operação em Copá contou com Quemo Mané, comandante de infantaria. Copá também não foi fácil para os tugas. Alinhámos um número razoável de combatentes, menor que Guileje e Guidaje, e o objectivo era o de isolar os colonialistas. A tomada do quartel não nos interessava, queríamos somente convencê-los de que não tinham mais nenhuma escapatória e que deviam partir da nossa terra”. (...) 


2.3 – D(O) OUTRO LADO DO COMBATE – CONTROVÉRSIAS:

▬ “LA HISTORIA CUBANA EN ÁFRICA: 1963-1991: PILARES  DEL SOCIOALISMO EN CUBA”, de Ramón Pérez Cabrera


▬ Alguns excertos

► Em conformidade com os objectivos deste trabalho, a consulta do livro do escritor cubano Ramón Pérez Cabrera não podia deixar de ser efectuada, uma vez que nele constam diversas referências sobre o contexto onde ocorreram alguns dos episódios já identificados nos pontos anteriores.

Por outro lado, os fragmentos que abaixo se reproduzem em bilíngue – espanhol e português – com a tradução da nossa responsabilidade – são considerados, a par dos restantes, como fontes documentais importantes na aproximação aos factos reais.

As actividades da guerrilha na zona leste a partir de Dezembro de 1973

Caracterização do ambiente operacional



● Tradução

(…) “Os comandantes do PAIGC, a partir de finais de Novembro e ao longo de Dezembro de 1973, aproveitando a alteração das condições climatéricas [final da época das chuvas], deslocaram tropas, munições e mantimentos para as zonas próximas das instalações militares fortificadas, onde os soldados portugueses permaneceram aquartelados, mas mantendo estes as acções de patrulhamento nas áreas externas dos mesmos para evitar serem surpreendidos pelos guerrilheiros. Na segunda etapa da operação «Abel Djassi» [nome de guerra de Amílcar Cabral (1924-1973)], realizada nas três frentes de combate no primeiro semestre de 1973 [os três G’s], participaram catorze internacionalistas cubanos” (op.cit., p.179).

► As acções combativas na Frente Leste iniciam-se em Janeiro de 1974

▬ O ataque ao aquartelamento de Copá e suas consequências



● Tradução

“As acções combativas da operação «Abel Djassi» começaram na Frente Leste, em 3 de Janeiro de 1974 (5.ª feira), com o ataque ao aquartelamento de Copá. A movimentação dos destacamentos guerrilheiros começou nas primeiras horas da manhã e naquela tarde já haviam ocupado as posições de fogo de artilharia e os lugares nas emboscadas de contenção. Às 22:00 horas começou o tiro de ajuste e uma hora depois os disparos com os morteiros de 120 mm, mas, devido à ineficiência dos obuses, já que cerca de quarenta por cento não explodiram, no dia 5Jan (sábado) de madrugada, as FARP suspenderam o assédio da artilharia ao quartel” (op.cit., p.179).




● Tradução

“Após a morte de Mamadu Cassamá, o Comandante Paulo Correia, chefe da Frente Leste, decidiu não realizar novos assaltos de infantaria à instalação [Copá] e manter o cerco e atormentar com artilharia o quartel, que se prolongou durante todo o mês de janeiro” (op.cit., p.179).

2.4 – A FOTO QUE PODE AJUDAR A REVOGAR ALGUNS EQUÍVOCOS…

► É intenção da foto que se encontra 
abaixo  (Fotos 4 e 4A) é servir de prova sobre alguns equívocos identificados nas narrativas analisadas, em particular nos “casos” em que é descrito, com aprofundado detalhe, o modo como ocorreram as mortes de elementos da guerrilha, a sua captura e posterior inumação.

Importa sublinhar que, neste “caso”, os dois corpos da foto, desnudos, mereceram o maior respeito e consideração humana, por parte do colectivo da CCAÇ 3545, tendo os mesmos sido lavados antes de serem inumados na região (de acordo com fonte oral).




Fotos 4 e 4A – Quartel de Canquelifá, 7Jan1974. Dois corpos, já cadáveres, de elementos da guerrilha capturados durante a “Acção Minotauro”, levada a cabo por um bigrupo da CCAÇ 21. 

Por ausência de identificação, supõe-se que o primeiro elemento seja o Tenente Ramón Maestre Infante (cubano) e, o outro, Jaime Mota (cabo-verdiano). Foto do álbum do camarada Pereira, fur mil da CCAÇ 3545, com a devida vénia. A foto, tipo passe, colocada no canto superior direito (Foto 4), é de Jaime Mota, retirada do P14150, de 23Mai2016, aqui apensada para efeitos de comparação.


2.5 – “NO OCASO DA GUERRA DO ULTRAMAR”, uma derrota
pressentida”, de Fernando de Sousa Henriques (1949-2011)


▬ Algumas notas de leitura, por Beja Santos

► Por imperativo de investigação, onde se colocava a necessidade de alargar as fontes documentais, por razões espaciais (ou de vizinhança) existentes entre Copá e Canquelifá, separadas apenas por doze kms (ver mapa acima), e onde muitas das acções eram levadas à prática em parceria, pois os interesses eram comuns, recorremos às memórias do malogrado camarada Fernando de Sousa Henriques (1949-2011), ex-alf mil operações especiais da CCAÇ 3545, aproveitando algumas notas de leitura do seu livro, editado em 2007, e escritas pelo camarada Beja Santos no P12074, de 23Set2013.



► Contexto em Canquelifá (vd. foto 5):

(…) “A partir de Novembro’73, não houve descanso em Canquelifá, repetiram-se as flagelações, os misseis deram entrada nas flagelações frequentes, era nítido que os guerrilheiros queriam comprometer os reabastecimentos e acantonar as tropas aos seus quartéis. As emboscadas às obras da estrada Piche-Nova Lamego também se acentuaram. Em Dezembro’73 houve um relativo descanso mas os assaltos às tabancas deram frutos, as populações, ainda lentamente, começaram a fugir para os grandes centros.

No início de Janeiro’74, os ataques com foguetões a Canquelifá marcaram presença. O autor explica a natureza das destruições que as imagens, pela sua eloquência, desfazem todas as dúvidas. Mas não só Canquelifá, Piche e Buruntuma também foram contempladas. Nessa altura os efectivos do Batalhão levam quase vinte e quatro meses de Guiné. Foi necessário pedir apoio à CCAÇ 21, uma companhia só de guineenses, comandada pelo tenente Jamanca.

Em 7 de Janeiro’74 a CCAÇ 21 surpreende uma força inimiga e traz dois corpos [foto 4], um cubano e um cabo-verdiano. As flagelações recrudesceram. Ia começar o martírio de Copá, um destacamento que irá ser abandono por impossibilidade de defesa” [em 14 de Fevereiro de 1974].



Foto 5 – Canquelifá, Jan1974. Explosão de uma bomba durante um ataque do PAIGC ao aquartelamento de Canquelifá (foto do álbum do camarada Pereira, fur mil da CCAÇ 3545, com a devida vénia).

2.6 – “GUINEENSE, COMANDO, PORTUGÊS”, de Amadú Bailo Djaló

Alguns excertos

► Em complemento do ponto anterior, e tendo por base o livro de memórias de Amadú Djaló, ex-alferes comando graduado (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), citamos alguns “desassossegos” por ele vividos, em conjunto com os restantes elementos da CCAÇ 21, entre Copá e Canquelifá no período em análise.

(…) No final de 1973 e início de 1974 “Canquelifá estava muito diferente. As tabancas que havia à volta, junto às fronteiras com o Senegal e com a Guiné-Conacri estavam todas arrasadas, a população tinha desaparecido. A zona estava nas mãos do PAIGC e Canquelifá agora era um local muito perigoso, sempre à espera de ataques, do lado do Senegal ou da Guiné-Conacri. As estradas estavam semeadas de minas, se Canquelifá precisasse de apoio à noite, não podia ser socorrida por estrada, de noite não se podia picar estradas. Foi nesta situação que encontrámos Canquelifá.

Estavam ali duas companhias, uma de europeus (CCAÇ 3545) e a nossa (CCAÇ 21), oito pelotões ao todo. Fizemos um programa de saídas, todos os dias de manhã saía um bigrupo nosso até a uma distância de cinco a sete kms e regressava por volta das duas da madrugada. Julgávamos que, a partir dessa hora, era mais difícil haver ataques do PAIGC. Num dia saía um bigrupo de africanos, no dia seguinte um de europeus. Desta forma, cada bigrupo descansava três dias.

Em algumas dessas saídas, deixávamos o quartel, de manhã muito cedo, na direcção de Nhunanca. Depois de andarmos um bom bocado, entrávamos numa lala (clareira), quase sem árvores, com o capim muito alto, que as populações geralmente queimavam na primavera.

Depois de atravessarmos para o outro lado da lala, permanecíamos aí algum tempo, até cerca das 15:00 horas, quando decidíamos abandonar o local. Caminhávamos mais dois ou três kms e emboscávamo-nos. Ocupávamos dois caminhos, o que ia para Nhunanca e o que levava a Chauara. Ficávamos durante cerca de uma hora e regressávamos, contornando o quartel e entrando pela entrada contrária à saída para Copá.

Numa dessas saídas, em 7 de Janeiro de 1974 (2.ª feira), na “Acção Minotauro”, um dos nossos bigrupos, comandado pelos alferes Ali Sada Candé e Braima Baldé, quando estava emboscado, a cerca de dois kms do aquartelamento, avistou, por volta das 16:00 horas, um grupo do PAIGC a atravessar a lala. Estavam a deslocar-se na direcção do quartel [de Canquelifá].

O nosso bigrupo foi no encalço deles, a observarem o que iam fazer. Cerca de um quilómetro andado o pessoal do PAIGC parou, debaixo de uma grande árvore. Um deles estava a preparar-se para subir a árvore, quando o nosso bigrupo os atacou, de surpresa. O pessoal do PAIGC fugiu como pôde, deixando no local três guerrilheiros mortos, as armas e um rádio Racal que, viemos a descobrir mais tarde, tinha sido perdido por nós em Morés, em 23 de Dezembro de 1971.

[Nesse dia] era a vez do meu grupo ficar no aquartelamento, mas quando começámos a ouvir o tiroteio saímos imediatamente. Quando os encontrámos o caso já estava arrumado. Ajudámo-los a trazer os corpos dos guerrilheiros que depositámos junto à parada.

Nesse mesmo dia 7 de Janeiro, por volta das 17:30 horas, o PAIGC desencadeou um ataque a Canquelifá. Ou de represália, ou porque também tinha ouvido os tiros. Um dos primeiros mísseis acertou na central eléctrica e uma grande bola de fumo negro começou a subir. De vez em quando paravam os bombardeamentos, depois recomeçavam. Durou quase a noite toda este ataque.

A tabanca ardeu e ficou completamente destruída. Morreram durante o ataque quatro pessoas, um furriel europeu [Luís Filipe Pinto Soares, da CCAÇ 3545 - P16127], um soldado negro (Donsa Boaró, da CCAÇ 21), o soldado Mica Djaló Baldé (do 6ºPelArt/GAC7) e um rapaz de cerca de 13 ou 14 anos que trabalhava para o furriel europeu que tinha morrido” (op.cit., pp.268-270).





Sobre a “Acção Minotauro”, citada anteriormente, é de relevar o facto de termos localizado, no decurso da presente investigação, uma referência a ela no Arquivo da Defesa Nacional, onde existem “8 positivos fotográficos da acção Minotauro, em Canquelifá”, conforme sublinhado abaixo.



Ou, consultando o link;

https://www.portugal.gov.pt/upload/ficheiros/i007076.pdf



2.7 – RAMÓN MAESTRE INFANTE - tenente cubano falecido na Guiné

Breve biografia militar



► Como foi referido nos pontos 2.5 e 2.6, quer por Fernandes de Sousa Henriques, da CCAÇ
3545, quer por Amadú Bailo Djaló, da CCAÇ 21, ambos os depoimentos são unanimes ao afirmarem a morte de dois elementos da guerrilha, em combate ocorrido em 7 de Janeiro de 1974, e o transporte dos seus corpos para o quartel de Canquelifá. Um seria cubano e o outro cabo-verdiano, provavelmente os dois cadáveres que se encontram na foto 4.

A ser verdade que o elemento cubano capturado seja o tenente Ramón Maestre Infante, como é indicado pelo escritor Ramón Pérez Cabrera, no livro de que é autor, e que abaixo se reproduz, independentemente de haver a discrepância em relação ao seu local, ao escrever que foi em Copá (onde não se verificou a captura de qualquer elemento da guerrilha) mas, ao que tudo leva a crer, foi em Canquelifá.

O que é um facto é que este militar cubano morreu… vinte e cinco dias depois da sua partida de Havana.

◙ Eis uma brevíssima biografia, enquanto cidadão militar, retirada da literatura consultada:





● Tradução

“Enquanto as actividades iam acontecendo nas matas guineenses, em Havana um novo contingente de instrutores cubanos preparava-se para prestar a sua ajuda internacionalista aos combatentes do PAIGC na Guiné-Bissau. Um deles, Ramón Maestre Infante, deixou Cuba por via aérea em 13 de dezembro [1973] para a África. Chegou a Conacri e, sem perder tempo, seguiu viagem para Kandiafara e em poucos dias foi incorporado num destacamento de guerrilha no teatro de operações” (op.cit., p.180).



● Tradução

“Em 7 de Janeiro (2.ª feira), Ramón Maestre cumpriu, junto com um jovem guerrilheiro cabo-verdiano, a importante missão de assediar o quartel de Copá com morteiro, mas a acção foi suspensa para o dia seguinte. Na manhã do dia 8Jan (3.ª feira), Ramón Maestre e o jovem guerrilheiro partiram novamente e quando estavam a colocar o morteiro foram surpreendidos por uma patrulha portuguesa. 

No intenso tiroteio, Ramón Maestre foi ferido, morto ou feito prisioneiro [?], enquanto o cabo-verdiano conseguiu escapar sob o intenso tiroteio. A princípio, os portugueses acreditaram que o combatente era guineense, mas após identificá-lo como cubano, decidiram levá-lo ao quartel de Buruntuma [? - talvez Canquelifá, o quartel mais próximo] com a intenção de transportá-lo posteriormente para a capital de Bissau, mas não puderam levá-lo porque o quartel fora cercado pelas FARP e o fogo antiaéreo impediu que os helicópteros pousassem na área. Finalmente, o corpo do oficial cubano foi sepultado fora do quartel depois de lhe cortarem o corpo em duas metades e amputar as orelhas e as mãos como prova da nacionalidade” (op.cit., p.180).

► Encontrámos mais uma referência ao seu nome no ponto 13 (Anexos) do livro “El Grito del Baobab” (O grito do Baobá), de que é autor o escritor cubano Coronel (reformado) Humberto Trujillo Hernández, editado pela Editorial de Ciências Sociais em 2008. Porque não conseguimos ter acesso ao seu conteúdo, aqui se dá conta, somente, desse facto, o que lamentamos. Caso haja algum tertuliano que o tenha, faça o favor de nos informar.

2.8 – JAIME MOTA – cabo-verdiano, natural da Ilha de Santo Antão

Algumas notas

► Das fontes consultadas, a investigação realizada pelo jornalista cabo-verdiano José Vicente Lopes, parece não deixar quaisquer dúvidas, não só em relação à data, como ao local da ocorrência, conforme se retira da leitura aos P14150 e P14151, de 15Jan2015, em particular de algumas passagens retiradas do artigo do mesmo autor, designado por “O martírio de Jaime Mota”.






Eis alguns fragmentos:

(i) – De acordo com as informações dadas pelo, também cabo-verdiano, Amâncio Lopes, Cmdt do 2.º Grupo GRAD a actuar na região de Gabú, refere que no dia 3 de Janeiro de 1974, vai com Jaime Mota, e outros elementos, para a operação de Canquelifá, que corre bem. “No dia 7Jan voltámos ao mesmo quartel e cometemos um erro que foi fatal para Jaime Mora e outras pessoas”.

(ii) – Nesse dia, a determinada altura, “detectada a presença de um grupo do PAIGC, um pelotão de comandos africanos [um bigrupo da CCAÇ 21] acaba por surpreendê-los pela rectaguarda, precisamente no momento em que Amâncio Lopes, Jaime Mota e os restantes guerrilheiros procediam à recolha de dados para mais um bombardeamento ao quartel de Canquelifá”.

(iii) – Essa emboscada fatídica, segundo Amândio Lopes, “aconteceu já ao fim da tarde, quando ele e os seus homens aguardavam que escurecesse um pouco mais para procederem ao bombardeamento do quartel de Canquelifá e, como era hábito, desaparecerem rapidamente do terreno”.

(iv) – “Estávamos a comunicar, o cubano [?] sentou-se num bagabaga, o Jaime Mota sentou-se também um pouco atrás de mim, o radialista guineense também, e havia mais três elementos do meu staff para definir a direcção do fogo (só na artilharia, éramos uns sete ou oito elementos)”.

(v) – Nesse momento, sentimos tiros. “Na fuga, eu (Amâncio Lopes) ensaio ir numa direcção, no que um dos guineenses me grita, aflito, ‘por aí não, camarada Amâncio, porque o tiro está a vir dessa direcção’”.

(vi) – Invertemos a fuga. No recuo, verificámos que nem o Jaime Mora nem o cubano [?] estavam connosco. Mandei toda a gente parar e eu disse: ‘falta-nos o Jaime e o cubano’. O artilheiro guineense me diz: ‘camarada Amâncio, na direcção em que o Jaime e o cubano ficaram, não há chance… se você quiser ficar também… Pense bem. Não podemos voltar, porque se o fizermos será a nossa morte também”.

(vii) – Por outro lado, Honório Chantre (1941.10.25-2020.07.20), que, depois da independência da Guiné-Bissau, foi Ministro da Defesa Nacional de Cabo Verde, entre 1981-1986, recorda o seu conterrâneo como um homem muito ponderado e seguro, afirmando: “o Jaime não foi tropa portuguesa, mas tinha uma formação militar muito sólida. Esteve em Cuba, na União Soviética e tinha experiência de combate adquirida no terreno da Guiné. Juntamente com Amâncio e o Bibino, ele tinha a quarta classe daquele tempo, feita nos anos quarenta ou cinquenta, ao contrário de alguns colegas de Santo Antão que foram alfabetizados por nós em Cuba”.

(viii) – Depois… Depois, a confirmação da morte de Jaime Mota. Esta aconteceu na sequência da “operação de recolha e transladação dos três cabo-verdianos inumados em território da Guiné-Bissau”, em que participaram António Leite, Amâncio Lopes e Eduardo dos Santos. É referido: “fomos ao Leste e conseguimos localizar os restos do Jaime Mota, que pouco restava. Mesmo assim, foi fácil, porque sabíamos que ele tinha um dente de ouro e encontrámos uma caveira com dente de ouro”. (…)


Termino esta narrativa, com a mesma dúvida como comecei… Será que este documento, onde se procurou separar o caminho do “real” do da “ficção”, tem alguma utilidade?

Pelo menos, para mim, ajudou-me a compreender melhor alguns dos episódios mais marcantes e mais sofridos dos “encontros” tidos, de ambos os lados, nas matas de Copá e Canquelifá, situadas na Região do Gabú, Leste da Guiné-Bissau, entre o Natal de 1973 e 7 de Janeiro de 1974.

Obrigado pela atenção.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

08Fev2022

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Notas do editor:


Último poste da série > 15 de outubro de  2021 > Guiné 61/74 - P22631: Memórias cruzadas nas 'matas' da Região do Óio-Morés: o caso da queda do "T-6 FAP 1694", em 14out1963, incluido no documentário "Labanta Negro!", realizado pelo italiano Piero Nelli, 28 meses depois (fev 1966) (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P23000: Blogpoesia (765): "Para ti, Ó Mulher Grande", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 11 de Fevereiro de 2022 com mais um dos seus trabalhos verso, desta vez dedicados às Mulheres Grandes de Teixeira Pinto, afinal a todas as Mulheres Grandes da Guiné do nosso tempo:

Mais uma vez a enviar para a Tabanca mais esta coisinha e porque já há muito tempo que não o faço.
Porém, não me esqueço de visitar a Tabanca porque também é minha.

Um Grande Abraço para todos os Tertulianos em Especial Para seus Régulos e Chefes de Tabanca.
Albino Silva


PARA TI, Ó MULHER GRANDE

Para ti ó Mulher Grande
Tu que és Mulher e Mãe
És a mulher da Guiné
És igual à minha também.

Para ti ó Mulher Grande
Aquela que na Guiné vi
Em Bolanhas que trabalhavas
Em Tabancas que conheci.

Vi em ti ó Mulher Grande
Coisas que não tinha visto
E para nunca esquecer
Vim aqui escrever isto.

Eu te via pelas matas
Quando a lenha ias apanhar
Que a carregavas à cabeça
Para a Tabanca levar.

Tomavas conta dos filhos
Na Bolanha ias trabalhar
Ainda ias de redes à pesca
Para o teu peixe pescar.

Cultivavas a vianda
No sal ias trabalhar
Cuidavas tua Tabanca
Andavas sempre a lutar.

No solo de tua Tabanca
De vassoura improvisada
Lá ias varrendo tudo
Eras mulher asseada.

Sem luxos mal vestidas
Tudo era bem ao natural
E mesmo na alimentação
Te alimentavas muito mal.

Sei que a cultura africana
Que é diferente da minha
Assim via a Mulher Grande
Dar aquilo que não tinha.

O que mais me custava ver
Quando davas de mamar
Ao filhote agarrado a peles
Sem leite para se alimentar.

Quantas mulheres guineenses
Com seus filhos a chorar
Sem ter alimentos ou pão
Para sua fome matar.

Trabalho árduo na bolanha
Trabalhavas sem descansar
E quando chegava a colheita
O bandido te ia roubar.

Reconheço Mulher Grande
Com a vida difícil de levar
Quando na tabanca, doente
Sem mesinho para tomar.

Quantas vezes na tabanca
Aquelas que fui visitar
Socorrê-las, dar-lhe mesinho
Mulher Grande eu ia curar.

Sinceramente ficava triste
Quando as via tanto sofrer
Quando as queria ajudar
E nada podia fazer.

Ainda hoje vejo Mulheres
Na imensa África a sofrer
Na tabanca ou deslocadas,
aos poucos as vejo morrer.

Vão morrendo de doentes
Com fome sem ter que comer
Ao colo delas seus filhos
Com suas Mães a morrer.

Enquanto vão tendo forças
Com a fome vão chorando
E já sem forças e sem Pão
Mães e Filhos se vão calando.

Tanta coisa estragamos
Quando podíamos oferecer
Àquelas pessoas que sofrem
Sem ter nada para comer.

Para ti ó Mulher Grande
De quem eu me lembro bem
Eras uma Mãe da Guiné
Mas igual à minha Mãe.

Para ti ó Mulher Grande
Quantas vezes eu fazia
Da comida que era pra mim
E com vós eu repartia.

Para ti ó Mulher Grande
Eu sempre me hei-de lembrar
Daquilo que pouco tinhas
E ainda me querias dar.

Eras tu ó Mulher Grande
Descalça e a caminhar
Com os pés todos cortados
Quando tu ias pescar.

Para ti ó mulher Grande
Corajosa trabalhando
Também em noites de Ronco
Em tabancas te via dançando.

Hoje não estou na Guiné
Mas nunca eu me esqueci
Da Mulher Grande e Mãe
Muitas que na Guiné vi.
Mulher Grande da Guiné
Um dia ainda vais ver
Por nunca me esquecer de ti
Eu voltarei a escrever.

Por:
Albino Silva
Sol. Maq. 011004/67
CCS/BCaç 2845
Guiné - 1968/70
____________

Notas do editor

Poste anterior de Abino Silva de 14 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22719: Blogpoesia (760): Operações e Missões, e dos nomes que lhes davam (7) (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845)

Último poste da série de 13 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22996: Blogpoesia (764): "O perfume das cores"; "Remate" e "As flores do rio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22999: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (11): em dia de namorados, relembrando uma peça do falar alentejano que é uma obra-prima de marotice e de saudável bom humor... (Manuel Gonçalves, ex-alf mil manut, CCS/ BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73)


Capa do livro "Dicionário de falares do Alentejo", de /Vítor Fernando Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro. - 3ª ed., muito ampliada ( Lisboa;: Âncora, 2013. - 294 p., a 2 colunas,  ISBN 978-972-780-420-7). VItor Fernando Barros, transmontano, professor do ensino secundário,  é aind autor de outros livros que podem interessar os nossos leitores, tais como: "Dicionário de Falares das Beiras", "Dicionário do Falar de Trás-os-Montes e Alto Douro", "Dicionário de Português Europeu para Brasileiros e vice-versa".


1. O
nosso querido amigo e camarada, transmontano de Bragança,  Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Manut da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), mandou-nos há dias uma deliciosa peça ilustrando o "falar alentejano" que já se perdeu (ou está-se a perder) à medida que o rolo compressor da modernização e da globalização mata o que é diversidade cultural, incluindo os nossos falares, de Norte a Sul do país, passando pelas regiões autónomas...  Já tenho saudades de ver e ouvir gente, na televisão com sotaque tripeiro, alentejano ou açoriano... Ou de ouvir falar termos e expressões que transgridem a norma cula d língua portuguesa...e que só a enriquecem.

Adicionalmente, em dia de Namorados, esta peça é uma obra-prima de marotice e de saudável bom humor, pese embora o traço grosso da caricatura da mulher alentejana e do padre católico perdido em antigas terras de mouros...  Sem "tradutor", a gente ficava a "ver navios"... Afinal, quantas "línguas" se falam em Portugal ? 

O Manuel Gonçalves não refere a página em que vem esta peça no "Dicionário de Falares Alentejanos", livro que não tenho mas que  vou adquirir. Obrigado, Manel, pela tua atenção. Esperamos não ofender ninguém, a começar pelos alentejanps e os católicos... De qualquer modo, é de "caranço" (ternura) que todos estamos a precisar, nos dias que correm, e nas nossas idades... (LG)


Data - quinta, 10/02/2022, 15:42 
Assunto - Alentejano vs Estrangeirismo

A língua portuguesa é muito rica, não há dúvida... Quando toda a gente fala por estrangeirismos bacocos, neologismos ou no vaidoso jargão técnico, sabe bem lembrar a bela e rica linguagem popular alentejana contida neste delicioso e maroto texto. Deliciem-se. 

Confissão Alentejana 

 Louvado seja Jesus Cristo!

 − Louvado seja sempre 

  Há quanto tempo não te confessas, minha filha ?” 

  − Vai fazer um mês, Senhor Padre.

  Ó minha filha, então porquê? Costumas vir todas as semanas. O que te apoquenta?
 
 −  Senhor Padre, nem sei como lhe dizer. Anda um assunto aberrundando-me, mas...

 − Procura-me o que quiseres, filha. Não deves ter melindres de desabafar com o teu confessor.

 − O meu noivo, Senhor Padre... Está em alas para experimentar... O que as pessoas fazem depois de casadas...

 − Agora cá! Mas vocês não são casados, valha-me Deus! Não podem ir contra as leis de Deus, filha! Querem casar ou querem ajoujar-se?

    Casar, Senhor Padre. Mas ele diz que entre noivos não haveria de ser grande pecado.

  Isso é lá a julgadura dele. Mas é a ele que cabe estabelecer a lei de Deus? Que pachouvada! Tu tens de ser rabeta e ter tinório.
 
 − Então, como devo fazer? Não quero que ele fique alcanchofrado comigo. E Senhor Padre, nós estamos muito encegueirados um pelo outro. Ele anda desinsofrido.

 − Eu entendo-te, filha. O caso está bichoso. Um homem não é de ferro e uma moça também não. Se não existissem esses desejos ninguém casava. Tal como se não existisse o paladar ninguém comia e morríamos todos. Acontece que o ser humano quando é cristão tem de seguir as boas leis de Cristo. Não nos devemos afastar do Evangelho. Atinta nas minhas palavras, pois elas são para teu bem. Mas para que te possa aconselhar melhor deves contar-me tudo o que vós tendes feito durante o vosso derrete.

 −  Como assim, Senhor Padre?

    Tudo. Conta-me tudo. Já o viste à espervela? Ele toca-te?

     Ai Jesus! Que entalo!

    Mexeu-te nas lanteriscas? Não sejas marreta e conta-me.

      Senhor Padre, quando estamos beijando ele quer que lhe mexa no martelinho. Mas eu não sei se devo. Mas nunca o vi nadavau.

  Ele é merlo mas tu terás de ser mais mérrula. Não podes albardar isso. Tal mimo desperta os apetites do verdugo e num flaite estás em privança. Não te esqueças que podes ficar embaraçada. Já viste que papel seria?

 − Não quero isso, Senhor Padre. Que dava um patatum à minha mãe. E o arrecuão que o meu pai me daria até me causa agasturas.

   Tem calma, filha. Tenta apressar a boda. Podes beijá-lo com caranço mas sem escofiar as lanteriscas do moço. Não tomes isto como um recado. És esgalhada, empapoilada e tens andado a aziá-las. Ele também te mexe na rola?

    Ai, Senhor Padre!

  Se não me contas a mim hás-de contar a quem? Dou-te bons conselhos no sentido de evitar a gadela. Todo o homem é pirata. Sei que não és moça alvarina. Confia no teu confessor. É para tua boa orientação, filha. Apressa a boda. Mexeu-te na pinta? Por cima ou por baixo dos froxéis?

  Por baixo, Senhor Padre...

  − Não  é galinha-morta esse teu noivo, não! E enquanto isso acontecia estavas dando-lhe galanduchas no seu romão-cego ?

 − Sim, Senhor Padre...

 Nâo  é nenhum mata-formigas, não. Não ficaram almareados? Conseguiram parar a tempo?

 − Sim, Senhor Padre... Mas está ficando cada dia mais difícil. Dá-me a espertina de noite.  Sinto uma calorina pelo corpo todo. E passo o tempo afofando estar com ele outra vez.

   Apressa a boda! Não te deixes enodoar, filha. A vila está cheia de trogalheiras sempre à espreita. Fazem de ti uma bagaça e lá vai o noivado para o maneta.

 − Isso  é que nunca! Dava-me uma travadinha que nunca mais me recompunha. Vou ter cautelas, Padre.

 − Agora  diz três Avé-Marias e o acto de contrição. Para a semana voltas cá. E tornas a contar-me tudo.


Aberrundar: atormentar 
À espervela: à mostra, a nu 
Afofar: achar gosto antecipado a qualquer coisa 
Agasturas: ânsias 
Agora cá!: não penses nisso! 
Ajoujar-se: amancebar-se 
Alas (Estar em): estar ansioso 
Albardar: permitir 
Alcanchofrado: zangado 
Alvarina: leviana 
Arrecuão: descompostura 
Atintar: ver bem 
Bichoso: difícil de resolver 
Calorina: calor 
Caranço: ternura 
Derrete: namoro 
Desinsofrido: impaciente 
Embaraçada: grávida 
Empapoilada: bem vestida, garrida 
Encegueirados: apaixonados 
Enodoar: manchar a reputação de alguém 
Entalo: aflição 
Escofiar: acariciar 
Esgalhada: airosa, formosa 
Estar a aziá-las: estar a pedi-las 
Flaite (Num): num instante 
Froxéis: roupa interior de senhora 
Gadela: cópula 
Galinha-morta: tolo 
Julgatura: opinião 
Lantriscas;  partes íntimas 
Marreta: teimosa 
Martelinho: pénis 
Mata-formigas: parvo 
Merlo: esperto 
Mérrula: astuta 
Nadavau: nu 
Pachouvada: asneirada 
Papel: escândalo 
Patatum: chelique 
Pinta: vagina 
Pirata: malandro 
Procurar: perguntar 
Recado: repreensão 
Romão-cego: pénis 
Rola: orgão sexual feminino 
Tinório: muito juízo 
Verdugo: homem musculoso 

Fonte: Adapt. livre de Dicionário de falares do Alentejo / Vítor Fernando Barros, Lourivaldo Martins Guerreiro. - 3ª ed., muito ampliada. - Lisboa : Âncora, 2013. - 294 p., a 2 colns ; 23 cm. - Bibliografia, p. 291-294. - ISBN 978-972-780-420-7 (Com a devida vénia...)

Guiné 61/74 - P22998: Humor de caserna (43): Em dia de namorados, uma história pícara, o furriel sedutor e a filha do senhor Tenório de Bafatá (Fernando Gouveia, ex-alf mil rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70)


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > Vista aérea > Em primeiro plano, o rio Geba, à esquerda, e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962, tendo sido construído - segundo a informação que temos - por militares de uma unidade aqui estacionada ainda antes do início da guerra).

Ainda do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Ao fundo, ao alto da avenida principal, já não se chega a ver o troço da estrada que conduzia à saída para Nova Lamego (, que ficava a nordeste de Bafatá); havia um a outra, alcatroada, para Bambadinca, mas também com acesso à estrada (não alcatroada) de Galomaro-Dulombi, povoações do regulado do Cosse, que ficava a sul. À entrada de Bafatá, havia uma rotunda. ao alto. Para quem entrava, o café do Teófilo, o "desterrado", era à esquerda..

Do lado direito pode observar-se as traseiras do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, que representava os interesses da CUF, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa. Por aqui passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,. que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes e se divertiam... comas meninas do Bataclã.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.] (*ª)


1. O
Fernando Gouveia foi Alf Mil Rec Inf, Cmd Agr 2957 (Bafatá, 1968/70), é autor de, entre outras séries notávais, "A Guerra Vista de Bafatá (Fernando Gouveia)" de que se publicaram cerca de 9 dezenas de postes, é arquitecto reformado, transmontano, vive no Porto; tem cerca de 170 referências no nosso blogue.

Da série "A Guerra Vista de Bafatá" fomos "respigar" esta deliciosa história (*), que vem a propósito do Dia dos Namorados, 14 de fevereiro. Quem passou por Bafatá, vai adorar o texto (e o contexto) (**)


A Guerra Vista de Bafatá > 15 > Uma estória de faca e alguidar


Por Fernando Gouveia


Antes de entrar propriamente na novela,  refiro que nos finais de 1969 o meu Comandante, Coronel Hélio Felgas, foi apanhado de surpresa. Uma ordem de Bissau, talvez forjada pelo recente Comandante do COP de Nova Lamego [COP 5]   e as elites do ar condicionado da capital, transferia-me a mim e mais alguns militares, do Comando Agrupamento 2957 para o COP. Quer eu, quer os meus superiores, achámos que foi um golpe baixo.

Confiando no Coronel Felgas que me disse que eu não estaria lá muito tempo. Foi só esperar que aparecesse outro alferes disponível para me substituir e eu regressei. Ao fim de uns quinze dias estava novamente em Bafatá, no Cmd Agr 2957. O Alf Mil Correia substituiu-me em Nova Lamego.

No Gabu, onde não me recordo de fazer o que quer que fosse relacionado com a guerra, conheci o Fur Mil Dinis (nome fictício), o protagonista desta estória, com quem aliás bebi uns bons whiskys.

Passado pouco tempo o Coronel Felgas acaba a comissão e o Coronel Neves Cardoso vai substitui-lo no Comando de Agrupamento. Com ele vem todo o pessoal afecto ao COP 5, incluindo o nosso Fur Mil Dinis.

Em princípios de 1970,  a guerra ia correndo com mais ataque, menos ataque, mais mina, menos mina e em Bafatá, oásis de paz, a vida corria entre o trabalho no aquartelamento, as idas ao café depois de almoço (quando não se dormia a sesta) e as idas ao cinema.

Tudo isso era propício ao devaneio.

O nosso Fur Mil Dinis, nas suas saídas para a cidade, começou a frequentar mais assiduamente determinada casa comercial. Era perto do quartel, comia-se lá bem, era agradável permanecer na esplanada, mas sobretudo o senhor Tenório (nome fictício) e a sua esposa tinham uma filha, a Rosinha (nome fictício),  de uns dezanove anos, que embora cheiinha não era nada de se deitar fora.

O nosso Furriel viu ali uma companhia que o faria esquecer as agruras da guerra.

Penso que um namoro se tinha desencadeado. Naquela altura, há 40 anos, e dado que a Rosinha não saía debaixo das saias da mãe, a coisa não teria ido além de algum beijito trocado num intervalo das idas da mãe à cozinha.

Imagino, naquele clima, que o nosso Furriel devia andar nas nuvens. Porém o Dinis cometeu um erro grave. Como militar que era,  não devia ter subestimado o adversário, que neste caso era o pai da Rosinha. O senhor Tenório, raposa velha, homem de pele curtida de trinta anos de Guiné, embora atarracado mas entroncado como um touro de lide, vivido como era, meteu-se ao caminho até ao Comando de Agrupamento.

Não o vi por lá mas logo a seguir, o Ten Cor Teixeira da Silva chama-me e em termos de desabafo diz-me:

 Oh,  Gouveia, sabe quem esteve aqui? Foi o senhor... Tenório!. Queria saber informações sobre o Furriel Dinis,  pois ele anda de namoro com a filha, a Rosinha, e era minha obrigação dizer-lhe tudo, nomeadamente que ele era casado…

Faltaria um mês para o Furriel Dinis acabar a comissão, mas à parte final fui assistindo eu diariamente: o Furriel Dinis nunca mais saiu do quartel até ir embora.

Tudo é real, excepto alguns nomes.

Fernando Gouveia

2. Fichas de unidades:


Comando de Agrupamento n.º 2957

Identificação: CmdAgr 2957
Unidade Mob: RAL I - Lisboa
Crndt: Cor InfHélio Augusto Esteves Felgas | Cor Art José João Neves Cardoso
CEM: TCor Cav Emanuel Xavier Ferreira Coelho ! TCor Inf Artur Luís Félix Teixeira da Silva
Divisa: -
Partida: Embarque em 09Nov68; desembarque em 15Nov68 | Regresso: Embarque em 19A9070

Síntese da Actividade Operacional


Em 18Nov68, rendendo o CmdAgr  1980,assumiu a responsabilidade da zona Leste, com sede em Bafatá, e abrangendo os sectores de Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego e depois os novos sectores, então criados, com a consequente reformulação dos respectivos limites, em Piche, em 24Nov68 e em Galomaro, em 07Nov69. 

De 11Mar69 a  11Out69 e de 26Jul69 a 06Nov69, foram ainda constituídos, transitoriamente, na zona Leste, o COP 5 e COP 7, respectivamente e criado, em 26Jun70, o COT I.

Desenvolveu a sua actividade de comando e coordenação dos respectivos batalhões e das forças atribuídas de reforço, planeando, impulsionando e controlando a respectiva actuação que foi, essencialmente, de patrulhamento, reconhecimento e de contacto com as populações e de acções sobre grupos inimigos infiltrados, com destaque para as operações "Lança Afiada", "Baioneta Dourada" e "Nada Consta", entre outras. 

Em 02/07Fev69, planeou e executou a operação "Mabecos Bravios", respeitante à evacuação dos aquartelamentos de Madina do Boé, Béli e Ché-Ché.

Em 001IAg070, já na fase de sobreposição com o CmdAgr 2970, passou a integrar o CAOP Leste, então organizado por despacho ministerial de 20Jun70, pelo que foi extinto e o seu pessoal recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 121 - 2ª Div/4ª Sec., do AHM).

Fonte - Excerto de: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.35..


Comando Operacional nº 5

Identificação: COP 5
Cmdt: Cor Art José João Neves Cardoso
Início: 15Mar69  | Extinção: 11Out69

Síntese da Actividade Operacional

Este comando foi criado com a finalidade de actuar contra a ameaça inimiga sobre os regulados do Pachisse, Maná, Chanha, Tumaná de Cima e Cancumba e sobre a região de Nova Lamego, com vista a assegurar a coordenação da actividade operacional dos comandos de batalhão - BCaç 2835 e BArt 2857 - e das respectivas forças ali instaladas.

Em 15Mar69, assumiu a responsabilidade da zona de acção, com a sede em Nova Lamego, abrangendo os sectores de Nova Lamego (Sector L3) e Piche (Sector L4), tendo ficado subordinado directamente ao Comando-Chefe, a partir de 25Abr69.

Desenvolveu intensa actividade operacional, comandando e coordenando a acção das unidades atribuídas em acções de patrulhamento, batidas, emboscadas e de defesa e controlo das populações.

Em 11Out69, o COP 5 foi extinto, voltando os comandos de batalhão a assumir a responsabilidade completa dos respectivos sectores e as zonas respectivas a ficarem novamente na dependência do CmdAgr 2957.

Observações > Não tem História da Unidade.


Fonte - Excerto de: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.607. (Com a devida vénia...).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de novembro de  2009 > Guiné 63/74 - P5232: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (15): Uma estória de faca e alguidar

Guiné 61/74 - P22997: Notas de leitura (1418B): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:

Queridos amigos,
Se me perguntarem quais os livros mais importantes para estudar o pensamento e a obra de Cabral, não hesitarei em pôr este trabalho de Chilcote no escasso punhado de obras obrigatórias. Todos os conceitos que este académico expõe estão baseados numa amplíssima investigação, procedeu com a sua equipa a um levantamento minucioso de todos os artigos, intervenções e comunicações de Cabral, igualmente o que publicou na imprensa de Cabo Verde, de Portugal e um pouco por toda a parte e traça-nos uma bibliografia sobre os principais documentos referentes à luta armada, muitos deles de consulta obrigatória para quem quer conhecer a luta armada na Guiné. E mesmo o escol das entrevistas que fez em Cabo Verde e Guiné-Bissau não é raridade histórica para guardar num museu, podem-se tirar elações e uma delas salta imediatamente à vista, o que distinguia a classe intelectual cabo-verdiana dos principais combatentes guineenses. Leitura imperdível, pois, para os mais estudiosos deste período.

Um abraço do
Mário



A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (2)

Beja Santos

“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.

Recapitulemos em síntese o que o académico releva como essencial do pensamento e da ação daquele que foi considerado um dos principais teóricos revolucionários africanos: dá-nos o itinerário curricular, a sua experiência em Lisboa onde já germina o nacionalismo africano, a construção da teoria do nacionalismo revolucionário, a originalidade do conceito de vanguarda da revolução; a construção do modelo de denúncia do colonialismo português nos areópagos internacionais e o papel desse colonialismo português como meramente subsidiário do imperialismo internacional; a conceção de nacionalismo com base na luta de libertação nacional, onde instituiu uma unidade de dois povos, sem minimizar a importância primordial das culturas étnicas, Cabral estimava que estava a emergir uma nova cultura e uma nova economia decorrente da originalidade da luta armada; percorre-se o seu pensamento quanto à transição da luta armada para a construção do Estado, como ele supunha edificar um modelo de desenvolvimento com o máximo de democracia sob a liderança do PAIGC. Resta dizer que este vasto modelo tem sido objeto de críticas, mormente depois da independência e como em breve veremos aquando da análise da obra “Descolonizações, Reler Cabral, Césaire e Du Bois no século XXI”, com organização de Manuela Ribeiro Sanches, os conceitos de unidade e desenvolvimento, por exemplo, são altamente contestados por estudiosos com provas dadas.

Ronald Chilcote percorrera Cabo Verde e a Guiné entre agosto e setembro de 1975, entrevistou um bom punhado de dirigentes do PAIGC em ambos os países, um apêndice que ele intitula “Perspetivas da vanguarda revolucionária”, entrevista Luís Cabral, Fernando Fortes, dois dirigentes da primeira hora, Felinto Vaz Martins, Paulo Correia, Domingos Brito dos Santos, Manuel Boal, Juvencio Gomes, Carmen Pereira, Augusto Pereira da Graça, José Araújo, Chico Bá, Otto Schacht, entre outros. Para o estudioso, a consulta destes respondentes não é uma mera raridade histórica. Encontram-se contradições, como a questão do envolvimento do PAIGC nos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959, há quem diga abertamente que o PAIGC não teve qualquer envolvimento com o protesto dos trabalhadores Manjacos. Recorde-se que estas entrevistas decorrem naquele estado de graça do sonho de um socialismo africano em que a ajuda internacional parecia fadada a pagar todos os devaneios das nacionalizações e de uma industrialização sem pés nem cabeça, muitos dos respondentes dão respostas uníssonas quanto à organização do Estado, à política externa. Ponto curioso, nenhum deles põe acento tónico na necessidade de uma reconciliação nacional após tão longo período de luta armada, com cavadas divisões da população, incluindo as etnias que procuraram a neutralidade, como os Felupes e os Bijagós. Há respostas de grande qualidade, caso de Juvencio Gomes, que foi o responsável pela presença do PAIGC em Bissau no período de transição, quando se deu a retirada portuguesa. Os líderes ligados à educação mostram um compreensível entusiasmo, e apercebemo-nos de alguns homens da envergadura intelectual, caso de José de Araújo que depois dos acontecimentos do 14 de novembro de 1980 se retirou para Cabo Verde. Vale a pena pôr em comparação as respostas dos guineenses e dos cabo-verdianos, sente-se a identidade cultural, sente-se que o verdadeiro fio de ligação são os sonhos de Cabral para a construção de um Estado com dois países.

De primeiríssima importância é o estudo conduzido pela equipa de Ronald Chilcote quanto ao levantamento de todos os escritos de Cabral (livros, discursos, documentação panfletária, textos de ocasião, intervenções em conferências,…), é um levantamento datado de 1942 até à sua morte, bem como edições posteriores até 1988. Também em anexo se juntam por ordem cronológica os artigos de Cabral na imprensa de Cabo Verde, de Portugal e um pouco pelo mundo inteiro. Em secção à parte, a relação dos trabalhos sobre a Guiné e Cabo Verde tendo a luta pela libertação nacional como eixo principal, um impressionante alfobre documental que nenhum estudioso pode ignorar.

Como é evidente, os estudos sobre o pensamento e ação de Cabral conheceram uma significativa evolução depois de 1991. Mas só por pura incúria é que não se deixa referência maior a todo este trabalho de Ronald Chilcote. Está aqui a matriz de um pensamento que foi evoluindo de um adolescente a um cientista que gizou uma teoria sobre o colonialismo e o imperialismo. Não se ilude uma certa confusão entre expetativa e realidade, aquela ideia de federações e de unidades entre países que Cabral viu nascer e que de um modo geral foram um malogro. Cabral distinguia entre o colonialismo e o neocolonialismo, a dominação direta e a dominação indireta, pretendia que o PAIGC estivesse municiado contra o neocolonialismo. Igualmente o seu pensamento traduzia-se numa ideia de nacionalismo diferente daquela que era experienciada pela cultura europeia. O seu conceito de nacionalismo revolucionário articulava perfeitamente cultura e economia, ele imaginou que a luta armada e o processo da independência, em si próprios, esbateriam os sentimentos étnicos, afinal tão profundos. O seu olhar sobre as classes e o desenvolvimento das forças produtivas é indiscutivelmente original e contenda com a cartilha soviética e até chinesa do tempo, nunca quis iludir a inexistência de um proletariado industrial, alçapremou a pequena burguesia à condição de decisor revolucionário, sem contestação a sua análise desobedecia aos cânones marxistas convencionais. Se igualmente se pensar que este teórico revolucionário criou um partido, uma escola-piloto, uma estratégia militar, alcançou gradualmente apoios internacionais para formar os seus quadros e receber armamento cada vez mais sofisticado, se notabilizou pela habilidade diplomática e liderou os termos de uma coesão entre os independentistas das colónias portuguesas, fica-se com o quadro completo de um construtor, um homem de ação, um visionário como houve poucos em África.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1417): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22996: Os nossos médicos (92): Nunca na vida te deixarei sozinho (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


1 - Em mensagem de 12 de Fevereiro de 2022, o nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) enviou-nos este seu conto:


NUNCA NA VIDA TE DEIXAREI SOZINHO

Nunca na vida te deixarei sozinho, disse a Isabel ao seu marido Joãozinho, na véspera de meter outro homem na sua cama.

A Isabel não andou na Faculdade, para assim falar tão bem nas traseiras do sentimento, mas foi criada de servir em Bissau, o que, numa aldeia do mato, era um curso superior. Isabel era uma mulher muito bonita, daquelas que são sempre futuro, ainda que a pele se engelhe. As suas formas afeiçoavam-se aos olhos, mais despindo a existência do que o corpo. Uma espécie de mulher à flor da pele, bem calculada por dentro. Mulheres paridas de si mesmas, sem vida nos outros. Mulheres de além-desejo, voo de ave caminhando fora dos passos. Isabel, o torvelinho das tonturas do Joãozinho.

Joãozinho, servente da messe, sabia a mulher que tinha e todo se babava quando a gente dizia que ela era mais linda que surucucu empinada, mais pura que fruto de cajú. Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel, adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas. Manhã levantada era sol de todo o dia, noite deitada era sonho que não morria.

Um dia…

Encontrava-me eu frente à palhota da Isabel, limpando com uma compressa embebida em permanganato de potássio, as feridas do dorso das vacas, verdadeiros buracos abertos pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue, impiedoso tormento dos animais, quando ouvi atrás de mim uma voz de asas, leve de tempo, onde não havia destino, medida por lonjuras de sonho.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Do peito me nasceu um soluço que só anos mais tarde se escapou.
- Olá Isabel, que bela surpresa!
- Doutor, tenho galinha que consegui arranjar e vou fazer frango à cafreal para Doutor e nosso Capitão.
- Isabel, tu és um anjo, e nosso capitão, todo católico, vai pensar que é dádiva do céu, quando eu lhe contar.

Todos somos fingimento quando o sangue não se entorna no desaconchego da solidão. O provisório serve o regresso da alma, o fogo de outros calores invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam. O capitão não mediu a fome nem a galinha, esqueceu a comunhão do Padre Gama, sonhou o despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos no cair da noite.

Ao cair da noite, lá fomos os dois à palhota da Isabel, enquanto o Joãozinho lavava a loiça na messe. A Isabel estava no último acto da confecção do delicioso cafreal da tabanca. Primeiramente refogado, apenas em sumo de limão e piripiri, depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola.

Notei que os olhos do capitão se cruzavam constantemente com os meus, não na galinha mas nas ancas da Isabel. Seguiam a luz sensual do petromax, que penetrava abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de dentro. Senhora de reflexos e de encontros, Isabel não prestava menos atenção à sedução do que à galinha.
- Doutor, nosso Capitão, tenho gira-disco e morna, mim dançar para doutor e nosso capitão.

Não nos empenhámos em perceber como é que uma pequena caixa e um disco de madeira giravam música. O esvoaçar do tule era o centro do mundo, o arder da fogueira de todo o nosso frio. Toda a força daquele colo maternal, toda a ternura da silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados durante longos anos, toda a firmeza das carnes subtis, todo o trigo desse abrigo adormecido, toda a tempestade recolhida nesse pedaço de noite tombaram sobre nós quando a Isabel iniciou o strip-tease.

Não me lembro do sabor da galinha. Recordo apenas uma espécie de vento fustigando as entranhas, reduzindo-me a um calção e uma camisa, ardendo dentro de mim com sabor a cinza.
Olhámos um para o outro, sorrimos, assumindo o que sempre estivera assumido, antes de darmos ao espírito a momentânea liberdade de um passeio pelo sonho que morre ao pé dos coqueiros.

Aconteceu nessa noite ou na noite seguinte. O Joãozinho entrou em casa e deu com alguém a fugir da cama da Isabel. Pobre do Joãozinho, sofreu mais com a sova que deu na mulher do que com a traição. Sofreu mais pelo avesso do que ela dissera na véspera, nunca na vida te deixarei sozinho, do que em todas as noites que passara enterrado na bolanha à espera de turra. Doeu muito mais do que picada de escorpião.

Isabel apresentou queixa no Chefe de Posto. Argumentava e provava com as equimoses dificilmente visíveis na sua pele de negra. Dolorosas como as equimoses em pele de branca. Afastara bondades de Joãozinho, denegrindo sua violência, grande de mais para coisa de momento. Não ser vontade de ela mas força de imaginação que vem de dentro. Destino de todo fogo que acende rápido.

Foi constituído o tribunal. Perante o Chefe de Posto, Capitão e eu, compareceram queixosa e réu. O Joãozinho estava disposto a perdoar, a despeito de um sonoro desabafo, bengala de toda a sua alma, letra de toda a sua filosofia, resguardo de toda a sua defesa.
- Boca de ela ser boca de mim, olho de ela ser olho de eu ver, dor de ela corpo de mim qui dói, vida de ela valer morte de mim, mim ca pude pensar que Zabel durme cum gajo na cama de mim, dibaxo di memo tecto… inda si foi sinhô dôtô ou nosso capeton…!

(Conto rigorosamente verdadeiro. Mas nem dotô nem capeton estiveram na cama de Zabel).

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21878: Os nossos médicos (91): recordando o sentido do humor do nosso saudoso J. Pardete Ferreira (1941-2021), ex-alf mil médico (CAOP, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1969/71)

Guiné 61/74 - P22995: Blogpoesia (764): "O perfume das cores"; "Remate" e "As flores do rio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):


O perfume das cores

Cheiravam a camélias as alamedas floridas da entrada no palácio da fidalga que era viúva.
Vinham de longe os carros para os banquetes, noite adentro.
Enquanto batiam a fome as horas famintas do povo escravo.
Eram um mar de cores os campos lavrados dos rendeiros.
Se ouvia o zumbido doce das abelhas esfaimadas.
Caíam lentas as horas em saudosas badaladas.
Da torre ao alto, às horas certas, caíam as trindades, convidando à oração ao Criador.
Enquanto a manta do negrume recolhia as gentes em quentes madrugadas.
Era assim que se vivia nos meus tempos saudosos de criança.
Era escassa a abundância mas se respirava de abundante felicidade.


Berlim, 26 de Janeiro de 2022
16h38m
Jlmg


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Remate

Tudo no campo flui para o remate.
Dribles. Corridas esquadrinhadas sobre o relvado.
Por tudo se esforçam os jogadores.
Fintam. Fazem que vão mas ficam.
Avançam por trás e pela frente.
Fazem sempre o contrário.
A surpresa é o seu forte.
A rapidez estonteante traz sempre o sucesso.
Quem quer ganhar tem de rematar.
Seu inimigo atento é o guarda-redes.
Só perde quando deixa cair as chaves.
À volta rugem os apupos estridentes da populaça, dando saída aos maus instintos.
No final aquele relvado verde fica um deserto de silêncio

Onde só vagueiam os fantasmas.


Berlim, 1 de Fevereiro de 2022
16h48m
Jlmg


********************

As flores do rio

Orquídeas, acácias e camélias, tingem às cores as margens verdes do rio.
Tecem enseadas. As praias do sonho para quem o mar está longe.
Se enchem as praias de tendas às cores.
Se regalam nas cadeiras as gentes sedentas de iodo do mar.
De tempos a tempo, passam os vendedores de guloseimas.
Engodo das crianças e regalo dos pais.
- "línguas de sogra"! gritam os vendedores que palmilham a praia.
O sustento da casa que o espera à ceia.


Berlim, "bar dos motocas" arredores de Berlim
8 de Fevereiro de 2022
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22933: Blogpoesia (763): "Quando o nome é maior que a pessoa"; "Os botões caem" e "De nariz arrebitado", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P22994: Agenda cultural (799): ATO (DES)COLONIAL: Exposição temporária, de 20 de janeiro a 12 de junho de 2022, Museu do Aljube Resistência e Liberdade, Lisboa


Museu do Aljube Resistência e Liberdade, Rua de Augusto Rosa, 42 • 1100-059 Lisboa


EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA 

ATO (DES)COLONIAL

20 DE JANEIRO A 12 DE JUNHO DE 2022


Sinopse

A violência está na génese, na prática e na simbologia de um processo de ocupação. Mas a violência encontra resistência, com diferentes expressões e impactos. Esta exposição pretende revelar e relevar diversos processos de resistência ao colonialismo português entre 1926 e 1974, período objeto deste museu.

A exposição ATO (DES)COLONIAL pretende contribuir para o questionamento da herança colonial no nosso país, em particular durante o período da ditadura, e para a valorização das experiências de resistência anticolonial enquanto processos determinantes para a autodeterminação e independência dos povos africanos, mas igualmente essenciais para o derrube do fascismo em Portugal.

ATO (DES)COLONIAL convida-nos a pensar sobre abordagens necessárias a uma prática antirracista, nas escolas, nos espaços públicos de cultura e na sociedade.

Que este ATO (DES)COLONIAL seja mais um, entre outros, e que gere mais pensamento e ação anticolonial e antirracista, abolicionista de todas as formas de violência.

Esta exposição temporária terá um ciclo de programação paralela que incluirá ciclo de cinema, conversas e visitas orientadas.

Horário: de terça a domingo, das 10h00 às 18h00. Entrada livre.

Fonte: Museu do Aljube
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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22959: Agenda cultural (798): Apresentação do livro "Guerra, Paz... e Fuzilamentos - Guiné 1970-1980" da autoria de Manuel Bernardo, dia 15 de Fevereiro, pelas 15h00, na Livraria-Galeria Municipal Verney, Rua Cândido dos Reis, 90 - Oeiras. A obra será apresentada pelo Coronel Tirocinado Comando Raul Folques

Guiné 61/74 - P22993: Parabéns a você (2036): Miguel Rocha, ex- Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845 (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22984: Parabéns a você (2035): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22992: (In)citações (195): Estou a preparar a 2ª edição, revista e acrescentada, do meu livro "A Pesca à Baleia na Ilha de Santa Maria" (Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72)


Arsénio Puim, natural de Santa Maria, Açores, a viver em São Miguel, 
escritor, ex-alf mil capelão, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72):



1. Mensagem do nosso amigo e camarada Arsénio Puim:

Data - 11 de fevereiro de 2022 17:25
Assunto - Nota de leitura
 

Obrigado pela tua “nota de leitura” relativa ao meu livro (*). Um livro, sem dúvida, simples e limitado, de cariz popular e muito mariense-açoriano, mas que julgo será um bom documento para a posteridade.

Posso informar-te que, desde há algum tempo, estou a preparar uma nova 2.º edição, também revista e acrescentada. Desta vez , é a reedição do livro “A Pesca à Baleia na Ilha de Santa Maria”, que publiquei em 2001 (, edição do Museu de Santa Maria, 109 pp.). Espero que venha a lume no próximo verão.

Luís, apreciei o pequeno debate relativo a alguns termos marienses de influência americana (**). Penso que esta foi no passado, em maior ou menor dimensão, uma realidade frequente em meios populares mais isolados e menos escolarizados que sofreram a influência doutras culturas. 

Em Santa Maria a influência foi americana, noutros meios será francesa ou alemã e ainda noutros foi portuguesa. É o caso, “mutatis mutandis”, do crioulo, que também se insere nesta dinâmica linguística corrente, proporcionada pela oralidade corrente, no caso, a associação da língua nativa e a língua dos colonizadores. São fenómenos curiosos.

Relativamente ao termo “calafona”, não há duvida que vem de “Califórnia”. Porém, no uso mariense popular o termo foi alargado a todo os emigrantes de qualquer área da América que apresentam características muito americanizadas, tanto no sotaque como no vestuário, maneiras de ser e linguagem. Já o termo “calafão” é muito menos usual em Santa Maria.

Quanto ao termo “raivar”, é verdade que às vezes, numa versão mais evoluída, se diz draivar, mas num americanismo mais retinto é mesmo “raivar”.

Do termo “estôa” não conheço em Santa Maria a variante estoro. Sei, porém, que os termos podem adquirir nas diversas ilhas um cunho próprio. E quanto aos nomes próprios, eles sofrem habitualmente grandes adaptações na América.

E tu, Luís,, quando é que escreves o teu livro? Com a tua bagagem e capacidade, há que pensar nisso.

Sabes que o Mário Ferreira, médico do nosso Batalhão, também publicou em 2007 o livro “Tempestade em Bissau”? (***) Numa ocasião em que fui a Lisboa , há quinze anos, ele ofereceu-me um exemplar. É uma visão da Guiné e da guerra, romanceada mas ao mesmo tempo baseada na realidade, à maneira talvez de romance histórico - escrita por alguém que (vê-se) esteve lá - e onde afloram conceitos filosóficos e sociais muito válidos.

Muita saúde! Um grande abraço.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"

(**) Último poste da série > 10 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22796: (In)citações (194): Divulgação do Prémio Literário Antigos Combatentes - Ministério da Defesa Nacional (Mário Beja Santos)

(***) Vd. poste de 29 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7525: Notas de leitura (181): Tempestade em Bissau, Ano 1970, de Mário Gonçalves Ferreira (Mário Beja Santos)

Vd. também poste de 10 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2092: Antologia (61): Tempestade em Bissau (Mário G. Ferreira)

Guiné 61/74 - P22991: Recortes de imprensa (120): A seca e os incêndios florestais fora de época... (Apontamento de Carlos Pinheiro no semanário O Almonda de Torres Novas)

1. Em mensagem do dia 11 de Fevereiro de 2022, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), enviou-nos um recorte do seu apontamento publicado no Semanário "O Almonda" de Torres Novas, onde colabora regularmente:

Com a devida vénia ao Semanário "O Almonda" de Torres Novas
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22584: Recortes de imprensa (119): Reacção de Mário Beja Santos ao artigo do "Diário de Notícias", de 29 de Setembro de 2021, "Comandos africanos nas Forças Armadas Portuguesas. Histórias de abandono e traição"