Depois de Portalegre segue-se Santarém, para fazer a minha formação pedagógica na Escola Industrial e Comercial de Santarém (c. 1978/79, LG).
Era um CF constituído por professores de várias formações e grupos disciplinares.
Reconheço que foi um ano muito enriquecedor. Formadores de excelente qualidade, grande camaradagem e entreajuda com os mais de 30 estagiários oriundos de todo o país, com muitos jantares (muita sopa da pedra) em conjunto já que a maioria só regressava a casa ao fim de semana.
Aqui se estudou até à exaustão a Teoria Cognitiva de Piaget e a taxonomia dos objetivos educacionais de Bloom (Taxonomia de Bloom).
Os seis elementos do meu grupo disciplinar, no qual se incluía o orientador, eram todos do Porto e viviam na mesma casa. Mais parecia uma segunda recruta.
Foi um ano de muito trabalho, com muita colaboração, mas também alguma competição. A nota final do estágio podia ditar, no concurso para efetivo, ficar longe ou perto de casa. O trabalho começava às oito da manhã e muitas vezes só terminava de madrugada.
Poucas vezes jantávamos fora já que o ordenado era curto, como tal o jantar era feito em casa. Cada um tinha a sua especialidade: mm sabia cozinhar, outro tinha jeito para as compras, outro para as limpezas (as casas de banho era rotativo) e quem não tinha jeito para nada lavava a loiça.
O especialista da cozinha não deixava nada ao acaso, pois na quantidade de água no arroz, do tempo de cozedura ou quantidade de sal utilizava sempre uma fórmula matemática com o auxílio de uma régua de cálculo (os engenheiros gostavam mais das réguas de cálculo do que das primeiras "texas").
Este foi um ano em que o arroz faltou em quase em todo o país pelo que o especialista das compras, por sugestão do merceeiro, levou arroz integral. O cozinheiro aplicou a fórmula habitual para a quantidade de água, tempo de cozedura e quantidade de sal. Já o bife tinha "voado" e o arroz ainda não tinha chegava à mesa, pelo que, fomos à cozinha ver o que se estava a passar com o cozinheiro. Vimo-lo todo vermelho, com o suor a cair-lhe da testa dentro da panela e a régua de cálculo feita em pedaços no chão num canto da cozinha. Quanto mais água punha na panela mais ela desaparecia e o arroz sempre duro...
Um belo dia comemos na cantina algo que não nos caiu bem, pelo que decidimos fazer para o jantar uma canja de galinha. O cozinheiro colocou tudo na panela, aplicando as suas fórmulas com a ajuda da régua de cálculo (já colada com fita cola) e foi arejar um pouco já que se sentia um pouco indisposto. Os restantes elementos começaram a mexer a canja e (sem régua de cálculo) concluíram que a porção das pevides de massa era muito pouca pelo que a cada "mexidela" lá ia mais um mão cheia de pevides para a panela.
Quando o cozinheiro chegou, gritou furioso: "quem esteve a mexer na panela? Vão ser todos obrigados a comer esta mistela!"
E assim foi, todos comemos a canja de galinha às fatias e de faca e garfo.
Como fazíamos várias noitadas na escola, fomos avisados por colegas mais antigos que o guarda noturno, para além de uma grande pancada, fazia a ronda sempre de pistola (#), pelo que o devíamos informar sempre que ficássemos a trabalhar até de madrugada. Assim sempre fizemos. Contudo, numa altura em que se estava a esgotar o tempo para apresentar um trabalho de equipa, pedimos a chave ao chefe dos funcionários para trabalharmos na escola num dia feriado. Era nossa intenção trabalhar só da parte da manhã, mas a coisa complicou-se e arrastou-se pela noite dentro.
Embrenhados no trabalho nem nos lembramos do guarda noturno. Era uma da manhã quando ouvimos passos ao longe, ficamos brancos como um fantasma, pois o homem caminhava na nossa direção como nos filmes de terror. Ficamos sem saber o que fazer. Se gritássemos, assustávamos o homem e ainda levávamos um balázio, se não nos dessemos a conhecer a coisa ainda poderia piorar.
Entretanto ouve-se um tiro (##) e, ato contínuo, todos começamos a gritar (eu fui o único que se deitou no chão - ainda reflexos dos tempos de Guiné): "Somos nós, Sr. João, não dispare pelo amor de Deus!".
O homem lá nos reconheceu, também ficou aliviado, mas nós ficamos sem conseguir falar durante uns bons minutos.
Joaquim Costa
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Notas do autor:
(#) Todas as escolas, mais antigas, ainda têm no seu inventário uma pistola e um carregador cheio de balas, guardado a sete chaves no cofre (fala quem sabe!)
(##) O homem de facto usava a pistola carregada e pronta para disparar, mas o tiro foi de uma pistola de feira, de fulminantes, que também usava como primeira abordagem à situação.
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