quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5075: Não-Estórias de Guerra (1): O Furriel Enfermeiro de Quebo (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro *, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 que esteve em Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala nos anos de 1969 a 1971, com data de 26 de Setembro de 2009:

Caros Editores,
Há muito, muito tempo que não colaboro activamente no blogue.
Este regresso de férias permitiu-me descobrir umas coisas congeladas, que vou enviar, assim, aos bocadinhos.
Hoje é esta não-estória.

Com um pedido de desculpas pelo incómodo.
Um Abraço
Manuel Amaro


2. Uma não-estória de guerra > O Furriel Enfermeiro de Quebo
por Manuel Amaro

Eu delicio-me a ler e ver estórias de guerra. Em livros, em filmes e, mais recentemente, aqui no blogue.

Mas eu não tenho estórias de guerra para contar porque, apesar de ter estado em zona de guerra, de 28 de Outubro de 1969 a 6 de Setembro de 1971, durante todo esse tempo nunca disparei um único tiro. Logo, não fiz a guerra.

Mas eu gosto de participar. Então, decidi contar a minha não-estória de guerra, na Guiné-Bissau.

Quando cheguei a Aldeia Formosa (Quebo) no final de 1969, aquilo era assim quase um paraíso.

Tínhamos feito um mês de estágio em Nhacra (englobando Safim, João Landim, Cumeré e Dugal). Aqui no Dugal, o Pelotão do Alferes Caçador ainda foi presenteado com uma rocketada que levantou as chapas da cobertura.

A viagem em LDG, via Bolama, até Buba, foi desagradável. A coluna Buba/Aldeia de uma qualidade indescritível.

Mas em Aldeia Formosa não havia guerra. Diziam os mais velhos que isso se devia à acção de alguns Comandantes que por lá passaram, nomeadamente o major Azeredo e o major Fabião. E também devido à existência do Cherno Rachid Djaló. Mas… como não há bem que sempre dure…

Entre 20 de Março e 30 de Abril de 1970, Aldeia Formosa foi duramente castigada pelo inimigo. Tanto com emboscadas no mato, de que resultaram três mortos, como ataques ao quartel.

Os ataques do PAIGC a Aldeia Formosa incomodaram tanto o General Spínola que este tomou a decisão de substituir o Comandante do BCAÇ 2892, nomeando para o cargo, o Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira.

O novo Comandante, mal tomou posse reuniu com o 2.º Comandante, o Oficial de Operações, Comandantes de Companhia, Oficiais e Sargentos. Falou muito e ouviu pouco. De seguida, sentou-se naquela mesa enorme, na Sala de Operações, e, olhando para os mapas, questionava o oficial de operações:
- A CART 2521 tem o pessoal todo operacional?
- Sim, tem, meu Comandante.
- E a CCAÇ 2615 tem o pessoal todo operacional?
- Sim, tem, meu Comandante - repetiu o Major... Mas hesitou e corrigiu…
- Bem, quer dizer… o Furriel Enfermeiro está destacado no Posto Escolar.

O Comandante deu um salto e gritou:
- É isso… não pode ser. O pessoal de saúde tem que estar integrado nas suas Unidades Operacionais. Esse Furriel cessa funções hoje. Amanhã já está integrado na Companhia. Nomeia-se outro Furriel, Amanuense ou de Transmissões, para a Escola.

O Tenente Lopes, que dava os últimos retoques no stencil da Ordem de Serviço, ainda conseguiu incluir o texto do Despacho, que foi publicado e distribuído, nesse dia, já noite dentro.

Esta foi a grande decisão do novo Comandante. E a decisão foi cumprida

No dia 6 de Maio de 1970, quando o Pelotão (aqui apetece-me chamar-lhe Grupo de Combate) saiu para a Operação de rotina, já integrava o Furriel Enfermeiro, de camuflado, carregando uma bolsa tradicional, mas de G3 a tiracolo. Esta cena teve assistência, mirones, assim uma coisa semelhante à apresentação do Cristiano Ronaldo, em Madrid…

Saliente-se que esta decisão e a sua imediata implementação, foi tão importante que, quando o Pelotão que fazia a segurança nocturna, no exterior do quartel, regressava a casa, já se cruzou com o gila, informador do PAIGC, que ia a caminho da fronteira, para transmitir a novidade.

Nino recebeu o mensageiro que chegou com ar cansado da viagem, mas feliz por cumprir tão importante missão informativa:
- O novo Comandante de Quebo já tomou uma decisão. O Furriel Enfermeiro que estava na Escola passou a operacional. A partir de hoje, cerca de 15% das operações na área de Quebo terão a sua participação.

Nino, que de início parecia tranquilo, começou a dar sinais de impaciência e algum nervosismo. Para disfarçar, começou por acariciar a sua kalash com a mão direita, mas a esquerda, mais difícil de controlar, começou a coçar a cabeça. Quando o Nino coçava a cabeça já se sabia que alguma coisa estava a correr muito mal.
- Isso é mau. E logo agora que tínhamos algum controlo na zona.

Nino pensou, pensou… mas não demorou mais de cinco minutos para ordenar aos seus adjuntos o que fazer de imediato:
- As armas pesadas cumprem o plano até esgotar as munições... O grupo do GB, até ordem em contrário, não faz as emboscadas previstas na zona de Quebo.

E a ordem foi cumprida. E a vida continuou. Até que uns dias depois, ainda em Maio, o gila aparece de novo e informa:
- Camarada Comandante Nino, o Furriel Enfermeiro deixou a zona operacional. Agora só faz colunas de reabastecimento Quebo/Buba/Quebo. É que os outros enfermeiros não gostam de fazer colunas e ele gosta de ir a Buba comer peixe grelhado e cumprimentar os amigos que tem em Buba e Nhala.

Nino pareceu não dar muita importância à informação, mas logo que o gila se afastou, ordenou, até ordem em contrário, a paragem da colocação de minas na estrada e/ou ataques às ditas colunas. E a ordem foi cumprida.

Mas a vida no teatro de guerra é muito agitada, mesmo para quem não faz a dita. Ainda decorria o mês de Junho e já o gila estava a solicitar nova audiência.
- Camarada Comandante Nino´, lembra-se do Furriel Enfermeiro de Buba, que foi ferido e não foi substituído? Está no Hospital em Lisboa, com uns centímetros de intestino a menos…

Nino não entendeu a razão desta conversa, mas replicou:
- Em Buba os colonialistas têm um médico.
- Pois - concordou o gila -, mas o médico vai de férias a Portugal. O Camarada Nino imagina quem vai substituir o médico durante esse tempo?... O Furriel Enfermeiro do Quebo.

Nino soltou um palavrão. (Que eu não repito, porque eu não escrevo palavrões, mesmo quando são ditos por outros). E depois ordenou:
- Até ordem em contrário, o Grupo do MS não executa ataques na zona de Buba.

E a ordem foi cumprida.... Em Outubro lá estava de novo o gila informador, o que era um incómodo para Nino, porque estas informações eram pagas, mas ao mesmo tempo eram informações válidas e sempre credíveis, portanto úteis, para a operação do PAIGC.
- Então que notícias temos de Quebo? - perguntou Nino.
- Coisa grande, Camarada. A Companhia de Nhala vai para Quebo e a de Quebo vai para Nhala.

Nino não entendeu a razão da importância desta informação e argumentou:
- Mas isso é uma simples troca, não altera nada.
- Altera, sim, camarada Comandante. É que o Furriel Enfermeiro, agora, vai ficar em Nhala, até ao fim da comissão, em Setembro do ano que vem. – sentenciou o gila.

Nino, que até ali estivera de pé, durante toda a conversa, sentou-se, baixou a cabeça, colocou-a entre as mãos e, em vez do tradicional palavrão, disse baixinho:
- … Dasse… dasse… dasse…

Passados uns minutos levantou-se, passou as mãos pelo rosto, alisou o cabelo e ordenou a todos os seus comandantes:
- Até Setembro de 1971, não haverá qualquer acção contra os militares colonialistas instalados em Nhala, incluindo o quartel, a estrada e os carreiros.

E a ordem foi cumprida.... Em Setembro de 1971, o Furriel Enfermeiro do Quebo e Nhala regressou à Metrópole. O gila emigrou e é estivador no porto de Marselha. O Nino… bem, sobre o Nino toda a gente sabe tudo.

A maior parte dos protagonistas desta não-estória já faleceram e não poderão confirmar o que aqui está escrito. Mas o nosso Camarada José Martins, recorrendo a todas as suas fontes de informação, poderá confirmar que todas as ordens de Nino, aqui referidas, foram cumpridas.

A bem de uma situação de guerra, que se queria de paz.

Um Abraço
Manuel Amaro
CCAÇ 2615


2. Comentário de CV:

E assim, com esta fantástica não-estória de guerra do nosso camarada Manuel Amaro, a quem aproveito para pedir desculpa pelo tempo que demorei a publicá-la, demos início a uma série que pode servir para guardar as vossas ficções ou histórias verdadeiras, mas colaterais a acções de guerra propriamente dito.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4840: Parabéns a você (20): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Os Editores)

6 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado Manuel Amaro por esta lufada de ar fresco! Um abraco amigo do ex-alferes que jogava a bisca,na picada de Quebo a Mampatá com o ........"gila"da tua história! J.Belo

mario gualter rodrigues pinto disse...

Manuel Amaro

Regressaste em grande e com bom humor. As férias fizeran-te bem.

É pá não ficaste farto de peixe no Algarve que ainda tiveste de ir comer peixe a Buba.

Agora percebo porque é que em Mampatá estávamos sempre a embrulhar.

Era porque não estavas lá.

Um abraço


Mário Pinto

Zé Teixeira disse...

Amaro / Tavira esse dgila já era meu conhecido, no tempo em que eu e o J.Belo estavamos em Mampatá em um Pelotão chegava e sobrava para aguentar o inimigo. O tal dgila entrava por lá dentro e comia na tabanca do Samba, o sargento da milicia. Pelos vistos quando o Spinola decidiu pôr lá uma Companhia inteira o homem não gostou e foi informar o Nino.
Tu, querido amigo e o Mário Gualter tiveram azar em chegar um pouco depois de nós.
Do que eu e o Belo nos safamos.! eh! eh!

Abraço par todos
Zé Teixeira

Luís Graça disse...

Meu querido vizinho de Alfragide (não há meio de a gente se encontrar, tu, eu e o Humberto Reis, que moramos aqui no feudo do Catolino, um dinossauro autárquico):

Como é que tu, com um talento desses para a escrita narrativa e humorística, estás aí sentado a um canto da Tabanca Grande, a mascar a tua noz de coca, a fingir que dormitas na rede preguiceira, a tirar as medidas às bajudas, e por aí fora (que um homem tem de ocupar a sua rede neuronal, sob pena de pôr em causa a integridade da sua saúde mental..) ?

Tens andado escondido e eu distraído!... Ms agora não te safas, venha para cá a próxima não-estória de guerra!...

O talento merece um brinde. À tua, à nossa. Luís

Hélder Valério disse...

Caro Manuel Amaro

Se se pensasse fazer melhor, estragava!
Realmente uma bela maneira de contar a "tua ida à guerra". E a ironia está tão bem colocada que torna a história bem visível, até parece que se "vê" os diálogos do "djila" com o Nino, o coçar a cabeça, o praguejar, enfim, simplesmente hilariante e ao mesmo tempo a fazer todo o sentido.
Obrigado por esta pérola.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Como o humor pode dizer tanto, é um mistério que gostaria de desvendar. Especialmente se bem esgalhado como aqui.
Abraço
José Brás