terça-feira, 23 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20006: Estórias avulsas (97): quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão s/r, 82-B10, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal, ainda não tinha chegado a minha hora! (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72)


Guiné > Região de Bafatá > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > Destacamento de Contabane  (reordenamento) > Pel Caç Nat 53 (1970/72) > O Paulo Santiago com o canhão sem recuo 82 B-10, russo,  que esteve na origem do acidente que provocaria a morte do 2.º Sargento Parente (, apanhado pelo "cone de fogo" do canhão s/r disparado inadvertidamente por alguém)... A tragédia deu-se no dia 13/05/70, quando já se encontrava naquele quartel a CCAÇ 2701, que rendeu a a CCAÇ 2406, "Os Tigres do Saltinho" (1968/70). O 2.º Sarg Parente não pertencia a nenhuma daquelas companhias, era um dos graduados do Pel Caç Nat 53, comandado naquela data pelo alf mil  António Mota que eu fui substituir em outubro de 1970. O canhão s/r, apreendido ao PAIGC; foi mais tarde transferido do Saltinho para o reordenamento de Contabane (hoje, Sinchã Sambel).

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Estórias avulsas > Quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão sem recuo, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal,. ainda não tinha chegado a minha hora!

por Martins Julião 
Brasão da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72)

[ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72), membro da nossa Tabanca Grande desde 23 de julho de 2006 (*), e um dos "históricos" do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo; empreário em Oliveira de Azeméis; espantosamente, ainda não temos nenhuma foto dele, à civil ou à militar, como mandam as NEP do blogue]

O almoço decorreu, como habitualmente, na nossa messe de oficiais e sargentos, onde o ambiente de camaradagem e de bom convívio era exemplar.

Após a refeição normalmente bebia-se um café com uma(s) dose(s) generosa(s) de whisky, mas era ao jantar que as libações eram superiores.

Como sempre estava o calor infernal da Guiné, abafado, húmido, dificultando a respiração e, entre as 12 e as 15 horas ninguém, em seu perfeito juízo, se atrevia a expor-se às suas violentas carícias, excepto quando as operações o exigiam.

Resolvi fazer uma sesta procurando fugir a este período de enorme desgaste.

Dirigi-me a um abrigo pequeno, chamado abrigo do canhão, onde na anterior companhia passava a noite a equipa que tinha por responsabilidade manusear um canhão sem recuo de fabrico russo, que fazia parte das nossas armas mais pesadas de defesa do aquartelamento e, que, provavelmente, participou no ataque a Conacri, pois durante um período de alguns meses foi-nos retirado, exactamente, no mesmo período em que decorreu a preparação e o referido ataque à capital da República da Guiné-Conacri.

Embora nos tenha deixado bastante apreensivos, durante esse período, uma vez que o armamento mais pesado era muito escassos , quando o recebemos ele vinha reparado e em muito melhor estado do que anteriormente. O canhão tinha imensas folgas o que tornava perigoso as operações de fogo, uma vez que provocavam fugas de chamas laterais, obrigando a sua guarnição a rigorosos cuidados de posicionamento.

O abrigo era pequeno: descia-se uma escada de cerca de 2 a 3 metros e no seu interior havia um beliche duplo e uma outra cama, ficando todo o espaço quase totalmente ocupado. O tecto era uma cobertura com troncos de árvores, flexíveis, duras e resistentes (cibes: um tipo de palmeira), terra e cimento a fechar o exterior.

Havia a pretensão de se afirmar que estes abrigos resistiam ao impactos das granadas inimigas, mas dificilmente se poderia acreditar nessa total segurança. Eu nunca acreditei , sobretudo após a terrível experiência por que passei.

Tirei a parte superior do camuflado e, em tronco nu, estiquei-me na cama paralela ao beliche ( 2 camas militares sobrepostas).

Lá dentro a temperatura não era tão fresca e agradável como se possa supor, mas era melhor estar debaixo de terra do que estar noutro local mais exposto. Talvez por esta razão não adormeci ou então não estava marcada a minha morte para esse dia.

Mantive-me acordado mas procurando relaxar e deixando a minha imaginação a vaguear por caminhos longínquos.

Num dado momento, ao passar a mão pelo peito nu, verifico que tinha uma muito pequena camada de areia sobre a pele. Passei a um estado vigilante e compreendi que caia uma fina camada de areia e terra sobre o meu peito, mas uma camada muito fina e intermitente.

Reagi de imediato; saltei da cama, peguei na parte superior do meu camuflado e corri para as escadas. Estava quase a chegar aos últimos degraus quando uma pancada violenta me atirou contra as escadas, ficando de barriga para baixo, quase esmagado, pelo peso da terra e dos troncos em cima das minhas costas. Apenas fiquei com a cabeça de fora e o braço esquerdo meio coberto.

Senti as primeiras dores sobre uma das pernas, que estava a ser submetida a uma pressão muito violenta,  comprimidas entre os degraus, suportando o peso pressionante dos escombros.

Tentei ver no exterior se alguém aparecia, mas seria muito difícil haver deslocações de soldados àquela hora, pois toda a gente disponível teria providenciado uma solução de abrigo do calor.

Não valia a pena gritar por socorro, pois ninguém me iria ouvir, dadas as distâncias entre a posição em que me encontrava e outros abrigos. Optei por esperar e ver se alguém passaria no meu campo de visão ou se dariam pelo colapso do abrigo.

Nesse período em que me encontrava imobilizado, naquela dolorosa posição, dei por mim a pensar se teria havido um milagre que levou à minha reacção ou se teria sido o meu rápido raciocínio a prever a derrocada em curso e me teria permitido escapar, no limite dos limites, para aquela posição, qual purgatório antes de uma libertação final.

Quando já não acreditava numa ajuda e as dores subiam de intensidade, eis que surge uma soldado mecânico, homem bom, de físico possante, mas francamente para o pesado. Quando me viu entrou em pânico e disse que ia procurar ajuda. A custo, consegui acalmá-lo e pedir-lhe para não chamar ninguém e fosse buscar uma pá, pois se aparecesse muita gente, na ânsia de ajudarem e de me tirarem debaixo dos escombros podiam partir-me a perna que se encontrava no limite da resistência e do sofrimento.

Lá o convenci e ele cumpriu escrupulosamente o meu pedido. Pouco tempo passado,  estava de regresso com a pá e, para cumulo da situação, passou sobre mim e posicionou-se sobre a terra e os escombros que me esmagavam.

Dei um berro valente, umas tantas asneiradas e gritei-lhe para sair de cima de mim. Expliquei-lhe que, com muito cuidado, procedesse à remoção da terra que cobria uma parte do meu braço esquerdo.

Concluído esse trabalho e libertado o meu braço, pedi-lhe que me desse a pá. Retirei cautelosamente uma parte da terra que me cobria permitindo assim poder-lhe dar indicações para ele, agora de novo com a posse da pá, me ir destapando e aliviando da terra e dos escombros.

Passado um bom bocado,  fiquei a salvo e pude-me levantar.  Nessa altura deu para ver que a minha perna esquerda estava muito maltratada e com ferimentos diversos, embora, felizmente, não muito profundos.

Agradeci ao meu salvador e dirigi-me ao balneário onde no chuveiro me limpei da terra agarrada à pele e de algum sangue. Depois dirigi-me ao posto médico, meio nu, e onde o nosso médico Drº Faria, bem como o furriel enfermeiro trataram das escoriações.

A perna inchou bastante nos dias seguintes e chegou-se a pensar que teria de ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau, uma vez que, naquele clima as infecções , causadas por qualquer tipo de ferimentos, tendem a fazer perigosas patologias mas acabou por não ser necessário e passado alguns dias estava pronto para o meu dia a dia habitual.

Não tinha chegado a minha hora!

NOTA: O nosso capitão, na companhia do aguerrido e ilustre alferes ranger, chegaram um pouco depois, regressados do Xitole.
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P20005: (Ex)citações (357): para um fula, bom muçulmano, crente, como o pai do Cherno Baldé, o homem nunca chegou à lua (nem poderia chegar)... Do mesmo modo, só as mulheres grandes, como a Fatumatá, de Sinchã Sambel, chegavam às 100 luas ou mais (Cherno Baldé, Bissau / Hélder Sousa, Setúbal)




Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Duas fotos da dona Fatumatá, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, aliado de Spínola... Era já viúva, quando morreu, em 2010, com 114 luas, dizem uns, ou 100 anos, dizem outros. A foto de cima, a primeira, é do José Teixeira, a outra é do Paulo Santiago, dois "tugas" com uma enorme sensibilidade sociocultural, que honram a Tabanca Grande:  um e outro conheceram a senhora Fatumatá, ainda em vida, o Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, que voltou à Guiné em 2005, 2008 e 2010), e o José Teixeira (ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos)

Fotos: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. Dois deliciosos (e "muy preciosos", como diriam os espanhóis,.,) comentários sobre a Dona Fatumá, mulher grande de Contabane (e depois Sinchã Sambel), viúba do prestigiado régulo Sambel Baldé, aliado de Spínola:


Caros amigos Luis e Mário Migueis,

O nome correcto deve ser "Fatumata" (*), que é a versão fula do árabe Fátima ou Fátmah, todas as outras formas serão variantes abreviadas do mesmo nome, por exemplo: Fátu/Fáru, Máta/Mára, Fatumá/Farumá, Matâel/Marâel (diminuitivos), no meio fula.

Fatemá deverá ser uma versão portuguesa do mesmo nome, acho eu.

Voltando a questão da idade, acrescentaria que a minha mãe era da mesma geração que a Fatumata, talvez um pouco mais nova e, facto curioso, na opinião de muitos familiares, ela ja tinha mais de 100 anos, antes da sua morte ocorrida em 2017.

Não havendo forma de os contradizer, aceitava pacificamente este dado, mas por um feliz acaso, um dia, ela contou-me que quando o pai voltou da guerra de Canhabaque, ela ainda era uma miudinha dos seus 9/10 anos, mais ou menos. Sabendo que a última guerra de Canhabaque, que tinha contado com a participação de auxiliares de Sancorlã (nosso regulado), tinha sido em 1935/36, fiz as contas e conclui que a sua idade estava muito exagerada e que, na verdade, se em 1936 estava com 9/10 anos, entao em 2010 deveria andar, mais ou menos, à volta dos 83/84. Contudo, as minhas conclusões muito rigorosas, muito europeias, baseadas num marco histórico bem conhecido, simplesmente, foram rejeitadas e deitadas ao lixo da nossa memória colectiva.

Da mesma forma que em 1969/70 tinham rejeitado a ideia da chegada do homem à Lua (**), considerada uma ideia maluca dos brancos. Acontece que aceitar esta afirmação, para eles, era aceitar a ideia de que o céu não era o habitat de Deus. O meu pai nem sequer admitia que houvesse discussão acerca disso, corria com todos, grandes e pequenos. Aquilo punha o mundo por eles conhecido e aceite de pernas para o ar,  o que era inadmissivel.

Cherno Baldé

(ii) Hélder Sousa (*):

Caros amigos,

Tenho acompanhado este caso com alguma curiosidade e acho que tem sido abordado com correcção e bom senso.

Falando em "bom senso" acho que ele está quase sempre presente nas oportunas intervenções, solicitadas ou não, do Cherno.

Apenas acho que a expressão "Fatemá" não tem obrigação de ser uma "versão portuguesa", no sentido de se ter superiormente arranjado uma grafia para o nome. Acho mais provável que portugueses, isso sim, ao ouvirem referir-se à senhora e sem conhecer essas nuances dos nomes que o Cherno refere, passaram a grafar tal como lhe soava e depois foi passando de uns para outros
.
O que acho mesmo uma delícia são aqueles dois aspectos que o Cherno conta: ao tentar determinar com o "rigor dos brancos" a idade de sua mãe,  isso foi "rejeitado e deitado ao lixo da nossa memória colectiva", o que mostra como as comunidades normalmente se fecham e defendem as "suas verdades".

O outro aspecto, aliás no seguimento do anterior mas muito mais implicante, foi a discussão/posição sobre a "ida à Lua",  pois isso, como o Cherno diz, "punha o mundo por eles conhecido e aceite de pernas para o ar o que era inadmíssvel". (***)

Isto afinal não é nada estranho...

Hélder Sousa

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20001: (In)citações (136): Fatemá (ou Fatumatá), a mulher grande, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do atual régulo, Suleimane Baldé, que foi soldado do exército português... Morreu em 2010, centenária... Um exemplo espantoso da arte de bem envelhecer (Paulo Santiago / José Teixeira / José Brás / Cherno Baldé / Mário Miguéis da Silva)

Vd. também  poste de 22 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20004: (De)Caras (110): Fatumatá, esposa do régulo Sambel, de Contabane. Fotografada em 2005, com 96 anos (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


segunda-feira, 22 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20004: (De)Caras (134): Fatumatá, esposa do régulo Sambel, de Contabane. Fotografada em 2005, com 96 anos (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Fatumatá, esposa do Régulo Sambel de Contabane. Tinha então 96 anos. Morreu aos 100, em 2010.

Foto (e legenda): ©  ´José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do José Teixeira (ex-1.º cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos, fogo acima, tirada em 2011, em Faro Sadjuma):

Enviado: 21 de julho de 2019 23:30

Assunto: Fatumata,  a esposa do Sambel, régulo de Contabane.

Meus caros:

Junto uma foto da Fatumata,  esposa do Régulo Sambel de Contabane que lhe tirei em 2005 quando ela tinha 96 anos, segundo me disse a Meta Baldé (Naná), esposa do Sulimane, eu filho e atual régulo. 

 À data estava perfeitamente lúcida. A imagem que me ficou dela foi o seu abraço prolongado enquanto me dizia com emoção "Branco e na volta, Branco e na volta". 

Quando faleceu em 2010,  tinha efetivamente 100 anos. (***)

Fraternal abraço do Zé Teixeira
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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P20003: (In)citações (137): Obrigado, amigos/as e camaradas, pelos votos de parabéns que me deram ao km 73 da minha "picada da vida" (Jaime Silva)


Angola > Leste > O alf mil paraquedista Jaime Silva, do BCP 21 (1970/72), em 1970.  a norte do Rio Cassai.

Foto (e legenda): © Jaime Silva (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso amigo e camarada Jaime Bonifácio Marques da Silva, natural de (e residente em) Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande:


Data: segunda, 22/07/2019 à(s) 00:39

Assunto: Mensagem de agradecimento


Caro Luís,

Muito obrigado pelo teu texto: Palavras amigas e sentidas, como só tu consegues transmitir!

Muito obrigado pela oferta do livro "Os passos em volta", do Herberto Hélder. Vai ajudar-me, seguramente, "a tonificar o músculo do coração", como tu dizes. (*)

Muito obrigado pela Vossa amizade, tua e da Alice.

Gostaria, se fosse viável, que fizesses o favor de publicar, também no Blogue, na página do Facebook da Tabanca Grane e ainda na página do Facebook da Magnífica Tabanca da Linha, a mensagem que escrevi para tanta e boa gente  que se lembrou de mim na passagem destes meus 73 anos. (**)

Os camaradas do blogue, por terem sido combatentes como eu em África, pertencem a esse grupo de "Gente Boa".

Abraço meu e da Dina, para ti e a Alice.


73 ANOS! TANTA E TANTA GENTE BOA!

No passado dia 17 de Julho recebi de muitas das minhas amigas e amigos votos de felicidades e de parabéns pelo facto do tempo me ter privilegiado e permitido progredir na "picada" da vida ao longo destes 73 anos!

Não percorri sozinho este percurso! Tanta e tanta gente boa com quem me cruzei! Tantas e tantos foram os que me ajudaram a chegar aqui, hoje, e ser a pessoa que sou!

Durante este percurso guardo em mim aquelas e aqueles que me acompanharam e me incentivaram a calcorrear o caminho mais seguro nesta "picada" da vida e me estenderam a sua mão:

 (…) " Não te rendas, ainda estás a tempo
de alcançar e começar de novo, (…)
Não te rendas que vida é isso, 
continuar a viagem,
perseguir os teus sonhos, (…)
Não te rendas, por favor, não cedas (…).

[Mário Benedetti (1920-2009), "Não te rendas"]

A eles, a minha gratidão. Nunca os esquecerei!

A vós, meus amigos, o meu muito obrigado. (***)

Jaime

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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 17 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19984: Parabéns a você (1654): Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 3492 (Guiné, 1971/74); Jaime Bonifácio Silva, ex-Alf Mil Paraquedista do BCP 21 (Angola, 1970/72) e José Manuel Pechorro, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19 (Guiné, 1971/73)

(***) Último poste da série > 21 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P20001: (In)citações (136): Fatemá (ou Fatumatá), a mulher grande, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do atual régulo, Suleimane Baldé, que foi soldado do exército português... Morreu em 2010, centenária... Um exemplo espantoso da arte de bem envelhecer (Paulo Santiago / José Teixeira / José Brás / Cherno Baldé / Mário Miguéis da Silva)

Guiné 61/74 - P20002: Notas de leitura (1200): “Crónicas de um Tenente, Guiné-Bissau, 1968-2018”, o autor é Fernando Penim Redondo, o prefácio é de Mário de Carvalho; Edições Colibri, 2019 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Não se pode ficar insensível a este documento, a vários títulos singular, não é um diário nem um repositório de notas avulsas sobre peripécias de um fuzileiro da Guiné, é um jovem que aderiu ao comunismo, que aos 22 anos aparece como fuzileiro, a sua mulher aparecerá depois como professora em Bissau, fala dos rios da Guiné, de barcos encalhados, de incêndios e de abalroamentos, de muita tensão e de picos de camaradagem. Regressa e vive na subversão até ser preso. Na Guiné, tirou imensas fotografias e cinquenta anos depois voltou com duas exposições.
Recomendo vivamente a leitura destas saborosíssimas e vívidas "Crónicas de um Tenente".

Um abraço do
Mário


Será que o Tenente Redondo passou por Mato de Cão entre 1968 e 1970?

Beja Santos

O livro dá pelo nome de “Crónicas de um Tenente, Guiné-Bissau, 1968-2018”, o autor é Fernando Penim Redondo, o prefácio é de Mário de Carvalho, Edições Colibri, 2019. Antes de mais, é um livro completamente fora do que conhecemos. São memórias de um jovem que bateu à porta da Reserva Naval, foi aceite e desembarcou em Bissau como fuzileiro. Era membro do PCP, casara há pouco, adorava a fotografia, poetava de vez em quando. Vamos vê-lo numa fotografia bem perto da LDP 301, talvez no rio Cacheu. São notas confessionais redigidas com imensa serenidade e ternura, é um texto desafetado, a tentar a impessoalidade, felizmente não conseguida. Integrou a 6.ª Companhia de Fuzileiros. Diz ter navegado no Cacheu até Farim, no Mansoa, no Geba e no rio Grande de Buba. Quando vi a sua fotografia, em 1968, fiquei inquieto, conhecia a pessoa, e depois de muitas voltas à memória, tenho a impressão que acertei com uma manhã em Mato de Cão, uma lancha seguia à frente de um comboio de embarcações civis em direção a Bambadinca. Num passadiço, fiz sinal de pedir boleia, a minha malta resguardada, não queria que houvesse qualquer equívoco de um grupo ousado do PAIGC com o descaro de flagelar na orla do rio. Assomou um oficial barbudo, pedi-lhe boleia, era quase uma antemanhã, teria tempo de requisitar umas carradas de material, uns sacos de arroz para a população civil, requisitar outros abastecimentos para a tropa arranchada. O oficial disse que sim, perguntou onde estava a minha gente, assobiei, o magote veio a correr, na primeira embarcação civil ouviu-se um murmúrio de terror, alguém terá pensado que se iniciara uma operação de pirataria. Desfeito o equívoco, a malta espalhou-se por vários barcos e chegados a Bambadinca agradeci ao gentil oficial barbudo. Posso estar enganado, mas creio tratar-se deste tenente que passou ao papel as recordações da sua adolescência, da sua formação política, conta-nos histórias bizarras, também momentos de grande camaradagem e solidariedade, vamos mesmo vê-lo a ser liberto da prisão em Caxias, estão aqui plasmados alguns dos seus poemas, é um fotógrafo de mão cheia e para abonar aqui se publicam um pescador Felupe e um lutador, provavelmente Balanta.

Do seu passado, percebe-se a importância que atribui à verve cineclubista, foi neste meio que conheceu a sua futura mulher, recorda com saudade o café Chaimite, na Praça Paiva Couceiro, local de cumplicidades e onde soube que estavam abertas as candidaturas para oficial da Reserva Naval. Depois despontam as recordações, já estamos numa subida do Cacheu e ele lembra como se encontrou com um camarada de armas e ouviu o concerto para violino de Tchaikovsky.
O que importa reter é a prosa do marinheiro:
“As lanchas encarreiravam rio acima, quase paradas quando apanhavam a corrente pela proa. O resto do comboio de batelões ainda não os alcançara e decidiram fazer uma paragem para pernoitar, fundeando num local onde as outras embarcações pudessem mais tarde juntar-se-lhes. Escolheram uma curva do rio onde o tarrafo era alto e denso; as margens despidas das clareiras eram locais de emboscadas e tiroteios. Só suicidas se atreveriam a fazer um ataque a partir das raízes inclinadas e escorregadias do tarrafo. Lançaram o ferro e a corrente virou-lhes a proa para a foz. Assim ficaram no silêncio, que só as aves cortavam, e sem acender gambiarras. Na estação das chuvas, o céu, quase sempre nublado, não dava margem ao luar. Desligados os motores, sinal que passavam ao inimigo contra vontade, a sua presença devia ser ocultada por todas as formas. Até tinham o cuidado de esconder as pontas dos cigarros”.

As recordações incluem diabruras, desacatos, sinistros, com homens e máquinas. Guardou a agenda cultural, o que lia e que era motivo de conversas, os filmes que passavam no UDIB, dá mesmo informações elementares a pensar em leitores não-iniciados nas artes da marinhagem, é primoroso a explicar-nos as lanchas de desembarque:
“As lanchas de desembarque, rectangulares, tinham a forma de uma caixa de sapatos. Numa das extremidades, à polpa, situava-se a casa do leme, muito singela, e na outra, à proa, encontrava-se uma porta que, ao abater, permitia o acesso a veículos ou pessoal directamente da praia. Existiam em três tamanhos mas mesmo as maiores, por causo do seu fundo chato, tinham calado que pouco ultrapassava um metro.
No seu bojo podiam transportar dezenas, ou mesmo centenas, de fuzileiros com todo o seu material. Ou então um ou vários jipes e Unimogs, conforme a tipologia.
Foram usadas profusamente no teatro de operações da Guiné. Quando se formavam comboios de batelões, para abastecimentos do interior isolado pela guerra, eram sempre escoltados por uma ou duas lanchas médias, armadas com as suas peças Oerlikon de 20mm e duas metralhadoras MG 42, uma em cada bordo.”

A mulher do tenente vive em Bissau, é professora no Liceu Honório Barreto. Toca-nos as suas recordações do cinema, há por vezes situações muito tensas, os marinheiros e grumetes exigiram levar as suas mulheres para o balcão, que estava reservado a oficiais e sargentos, tudo se amenizou.
Nessa noite foi com a mulher ver o “Apache” de Robert Aldrich, recordação inesquecível:
“Como de costume, no espaço que medeia entre as primeiras cadeiras da plateia e o ecrã, tinham sido colocados uns bancos corridos, de madeira, para a ganapagem que se dedicava a transportar as marmitas da messe e outros pequenos serviços ao domicílio.
Os garotos negros, em grande algazarra, aplaudiram todas as flechas e machadadas com que os índios brindaram a cavalaria durante aquela hora e meia.”

No regresso da Guiné, voltou à militância política, e um dia a PIDE veio buscá-lo, esteve escassos dias em Caxias, tudo se passou muito perto do 25 de Abril. Tirou imensas fotografias na Guiné, cinquenta anos depois veio expô-las e oferecê-las ao Museu Etnográfico. Antes disso, esteve na Quinta do Mocho e descobriu um aluno da mulher, o Osvaldo, ditosa alegria. Como ele diz, “Este não é um livro biográfico mas conta certas estórias que mostram o sentido de uma vida”.
Um livro que a todos toca, a intensidade de luz e sombra que ele põe em cada um dos seus registos fotográficos é uma evidência de que há cinquenta anos, imprevistamente, ele estava a preparar esta maravilhosa velada de armas, esta insofismável prova de amor pela Guiné.


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Nota do editor

Último poste da série de 19 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19993: Notas de leitura (1199): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (15) (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20001: (In)citações (136): Fatumatá, a mulher grande, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do atual régulo, Suleimane Baldé, que foi soldado do exército português... Morreu em 2010, centenária... Um exemplo espantoso da arte de bem envelhecer (Paulo Santiago / José Teixeira / José Brás / Cherno Baldé / Mário Miguéis da Silva)




Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Fatumatá e Paulo Santiago, ladeados por familiares e amigos. Por de trás, João Santiago, filho do Paulo, que também quis sentir as emoções de seu pai ao voltar à Guiné da sua juventude.

Fotos (e legendas): © Paulo Santiago  (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


1. A propósito da mulher grande, Fatumatá, de Contabane (*),  volta-se aqui a reproduzir mensagem de Paulo Santiago  (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, que voltou à Guiné em 2005, 2008 e 2010), com data de 8 de Novembro de 2010 (*)


Telefonema que recebi, às 23.00 horas de ontem, do Zé Teixeira, que recebera a mesma notícia do Carlos Nery [, ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), que, por sua vez, a recebera de um antigo milícia: "Morreu a Fatemá"!

Fatumatá, Mulher Grande, Grande Senhora, que conheci há 40 anos, tendo-a visitado em 2005 e 2008, era viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do actual régulo, Suleimane Baldé, ex-1.º cabo do Pel Caç Nat 53, que tive a honra de comandar.

A Fatumatá ficou na memória de inúmeros militares que foram passando por Contabane, Aldeia Formosa e Saltinho, onde, na outra margem do rio Corubal, nos anos de 1970-71, foi construído o reordenamento de Contabane, hoje chamado Sinchã Sambel. O meu convívio, mais intenso, com a Fatemá decorreu no período em que vivi naquele reordenamento, de maio a agosto de 1972. Nos dias em que não havia saídas para o mato, quase sempre, a seguir ao jantar, tinha longas conversas com o Sambel e a Fatemá. 

Ela lembrava-me a minha avó Clementina que me enviou o bolo-rei mais delicioso que até hoje comi, apesar de muito duro quando o recebi em Bambadinca, história que já contei aqui no blogue.
 
A Fatumatá era dotada de grande jovialidade e simpatia. Ainda hoje quando encontro algum ex-militar da CCAÇ 2701, a que estive adido, sabendo que estive recentemente na Guiné, em 2008, vem a pergunta : "E a Fatemá ainda é viva? Como é que ela está?"

Em fevereiro de 2005, acompanhado pelo meu filho João, apareci de surpresa em Sinchã Sambel, a Fatumatá  fez-nos uma recepção que jamais esqueceremos. Sem o saber desencontrara-me do Suleimane que tinha vindo, dias antes para Lisboa, e a Fatemá, naquele dia foi régulo e chefe de tabanca. Ela mobilizou toda a aldeia para receber os visitantes. Foi uma tarde, prolongou-se pela noite, de fortes emoções onde pontificava aquela figura matriarcal que no final nos ofereceu um cabrito.
Na Guiné, onde a esperança de vida é muito baixa, a Fatumatá era uma excepção notável, e com certeza única, tempos atrás ultrapassara os cem anos. O Suleimane, ontem, quando lhe telefonei,  disse-me que a mãe tinha 114  anos (?!), e,  sendo assim, nasceu no séc XIX, passou pelo séc XX e vem morrer no séc XXI. 

Soube envelhecer com dignidade, para quem nunca soube o que era botox ou pilling, a Fatumatá tinha uma pele lisa, com muito poucas rugas, e,  para além deste aspecto exterior, possuía uma cabeça cheia de memórias. Em 2005, falou-me dos militares portugueses que foi conhecendo ao longo dos anos da guerra, uns que eu conhecia, outros não. Curiosamente, esqueceu o comandante da CCAÇ 3490, ou fez por bem não o mencionar.

Em Março de 2008, encontrei-a  já muito prostrada, muito apática, e já não me reconheceu
Ontem à tarde, segundo o Suleimane, "ficou-se"... morreu de velhice. Hoje, às 10.00 horas, seria enterrada. Que Alá a tenha em descanso.

Águeda, Aguada de Cima, 8 de novembro de 2010

2. Comentários ao poste P7249:

(i) Luís Graça, editor:

Paulo: A ternura com que falas desta mulher, que bem podia ter sido tua avó ou bisavó... Os laços de afecto que deixaste por onde passaste... Eu não sei se isto é muito "português", só sei que é de um grande português, cidadão e homem, de sue nome Paulo Santiago e cuja presença, entre nós, muito honra a Tabanca Grande...

Há mais postes onde evocas a Fatumatá... Por exemplo, fui buscar este excerto:

"Jamil [ Nasser, comerciante libanês do Saltinho,] desistiu da abertura de uma casa em Mampatá, mas a ideia foi aproveitada por um outro comerciante do Xitole, o Rachid. Passou-se para o reordenamento de Contabane, na outra margem do rio, e estou a ver a Fatemá, mulher do régulo Sambel, mãe do meu 1º Cabo Suleimane, a 'pendurar-se' ao pescoço do Spínola e a cobri-lo de beijos."(...) (**)


(ii) José Brás (**):

[ex-fur mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68); nasceu em Alenquer; trabalhou na TAP como tripulante comercial de 1972 a 1997; foi sindicatista e autarca; mora em Montemor-o-Novo; tem mais de 130 referências no nosso blogue; é autor de “Vindimas no Capim”, 2.ª Edição, Lisboa, Publicações Europa América, 1987, e também de "Lugares de Passagem", Chiado Editora, Lisboa, 2010].

A minha memória sobre a Fatumatá  não é tão objectivamente clara como a que aqui aparece do camarada Santiago.

Há coisas da Guiné que me escapam hoje e penso mesmo que me escaparam sempre, para minha desgraça pessoal,  porque tenho isso como uma lástima que não me aumenta razões para a consideração de outros nem de mim por mim próprio.

Tentando entender porque terá sido isso, quero crer que se deve a uma certa rejeição pela guerra e pelas razões da guerra e, nesse tempo, mesmo pelos seus intérpretes no terreno, apesar de também eu a ter assumido.

Por isso Fatumatá era apenas a mais prestigiada das mulheres de Sambel. tenente de segunda linha, homem que permaneceu a nosso lado, creio que até ao fim da guerra. Dele, lembro cartas que escrevi para um seu filho que estava em Lisboa e que ele queria em Contabane para casar com uma mulher "negociada" pelo pai, coisa que gerou conflito de posturas porque o filho, tendo escolhido mulher, outra, já não aceitava a decisão do pai.

Lembro também do posto rádio que montei em sua casa, com AN-GRC9,  para apoiar uma incursão da minha companhia na estrada que ligava a Madina do Boé, operação que deu apenas uma vítima, uma cobra com mais de 4 metros apanhada pelos soldados e cozinhada em Aldeia Formosa.

E também me lembro do embaraço desse dia, obrigado a partilhar o arroz de chabéu com galinha na mesma malga de madeira onde comiam Sambel e as suas mulheres da forma tradicional da Guiné.
Sei que muito soldado português partilhou experiências destas sem quaisquer dificuldades, mas para mim não foi agradável, coisa que, como disse já, sinto hoje como postura verdadeiramente lamentável na medida em demonstra a pouca adaptação que terei tido nesta experiência.

 (iii) José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos) (**)

 Não me lembro da Fatumatá (...), quando trilhei as picadas de Quebo e Mampatá [, em 1968/70].

Recordo o régulo Sambel, seu marido, e a sua dedicação e fidelidade a Portugal. O seu filho, o nosso amigo Suleimane, actual régulo de Contabane, esse sim, como soldado milícia partilhou comigo algumas...  aventuras em Mampatá. Hoje prezo muito a sua amizade e a da sua esposa, a Ádada, que conheci ainda bajuda. Que bonita que era e ainda é!

Tal como o Paulo Santiago, tive a felicidade de conviver com a Fatumatá em 2005, quando a Adada (...) me reconheceu, passados trinta e cinco anos (que belo e feliz momento!).

Estava a saborear este encontro, quando vejo surgir à porta da sua morança a velhinha Fatemá, que se dirige a mim com um sorriso, para logo me abraçar e,  com as lágrimas nos olhos,  me pedir "Branco na volta, branco na volta !"

Por mais que lhe dissesse que agora só lá íamos para matar saudades, ela insistia "Branco na volta!"... Seguiu-se uma amena conversa, interrompida aqui e além pelos seus bisnetos, que queriam brincar comigo ao fotógrafo.

Voltei em 2008. Notei que estava mais parada, porque os anos não perdoam. Retenho a imagem de uma mulher linda, apesar da idade, lúcida e,  sobretudo, tal como o filho e outros familiares que conheço, muito ligada a Portugal e aos portugueses que por lá passaram.

Com a sua morte perdeu-se um forte elo de ligação, com os portugueses que pisaram aqueles trilhos do regulado de Contabane.

3. Comentários  ao poste P19995 (*)

(i) Mário Miguéis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, BissauBambadinca e Saltinho, 1970/72; bancário reformado, cartunista,  vive em Esposende)

Na entrevista (pág. 10 e 11) feita por mim e pelo ex-alferes Rocha  ao respeitável Sambel Baldé, régulo de Contabane (pai do atual régulo, Suleimane Baldé) [, e publicada no jornald e caserba, "O Saltitão"], perguntávamos, a certa altura, ao entrevistado "quantas chuvas tinha"...."Cinquenta e sete", respondeu Sambel, com convicção. 

Ora, tendo sido referido aqui no blogue, aquando do falecimento da Fatumatá (senhora de uma simpatia e gentileza inexcedíveis, mulher mais velha de Sambel e mãe do atual régulo) que esta deveria ter a proveta idade de 114 anos e,  tendo ainda em atenção que a Fatumatá, para quem a conheceu e ao Sambel, não era mais velha que este, antes pelo contrário, das duas uma: ou o Sambel tinha mais que 57 anos em 1971 (data da entrevista) ou a Fatumatá não tinha assim tantas chuvas quando faleceu [, em 2010]... (Experimentem fazer as contas).

Para os menos familiarizados com a guerra no sul e leste da Guiné, o Sambel alude, na entrevista, ao ataque do PAIGC à tabanca de Contabane (nas proximidades de Aldeia Formosa), que destruiu completamente (disso se falou já abundantemente aqui no nosso blogue). 

Madina-Contabane foi edificada na margem esquerda do Corubal, junto ao Saltinho, pelas tropas da CCAÇ 2701, em 1971, para recolher, em definitivo, a população, algo dispersa durante dois anos, da antiga Contabane. 

O capitão André, a certa altura da entrevista referido pelo Sambel, era o comandante da CCAÇ 2406 ("Os Tigres"), que precederam a CCAÇ 2701 no Saltinho (já publiquei uma foto no blogue, montando o tigre da CCAÇ 2406, "escultura" que tem na sua base uma lápide alusiva aos vários mortos da Companhia).

(ii) Cherno Baldé, Bissau (*):

(...) A segunda hipótese deve ser a mais provável, pois 114 anos são "muitas chuvas" para as condições reais em que nós vivemos, mesmo sendo uma mulher. O método da contagem (chuvas) e a ausência de registos escritos fazem mais que complicar a contagem. E, para piorar, no meio tradicional fula, a idade não era importante senão no momento e em função do beneficio que dai poderia resultar. Convinha ser jovem e forte nos momentos de recrutamento para tarefas mais ou menos bem remuneradas, e mais velho quando isso permitia beneficiar de alguma herança ou deixar de pagar impostos.

Gostei muito da lenda sobre a origem do cavalo e da entrevista ao Régulo Sambel Baldé. A lenda do cavalo retrata a epopeia das guerras com o reino Bambará de Segou, de onde é originária a maior parte dos primeiros fulas que povoaram o actual territorio da Senegambia (Guiné, GBissau, Senegal e a Gâmbia).

O verbo "firmar" é uma tradução directa da lingua fula, o mesmo que dizer "estar vs morar". Fez-me lembrar o meu velho pai que falava igualzinho, e bem vistas as coisas, com muito mérito e inteligência se tivermos em conta as suas origens e histórias de vida. Queria ver qualquer um de vocês a falar fula com a mesma desenvoltura de espirito e clareza no sentido. Caso para dizer: Mesmo se nunca mereceram o devido respeito e confiança da parte de muitos portugueses, mormente administradores coloniais e comandantes de companhias do exercito, os nossos pais e avôs foram extraordinários e dignos de admiração. (...)

(iii) Paulo Santiago (*):

Foi o Suleimane que me falou nos 114 anos da mãe, pode haver exagero, talvez...Ela teria uns sessenta e picos quando por lá andámos, mais os quarenta que ainda viveu. O Suleimane,é mais velho que eu doze anos,tem agora oitenta e três.

(iv) Mário Miguéis da Silva:

Caro Cherno Baldé, as tuas palavras alusivas aos vossos pais e avôs conseguiram comover-me. Tive com as populações de etnia fula, com as quais convivi ao longo dos dois anos da minha comissão de serviço, uma relação da maior cordialidade. Percebi, desde cedo, as carências de que padeciam e a delicadeza da sua posição. Embora suportassem tudo com elevação, com a maior das dignidades, não me passava ao lado o seu sofrimento, a sua preocupação com o futuro dos seus. Isto, apesar do seu passado de guerreiros altivos e indomáveis. 

De um modo geral, procurei ser muito amigo de todos, acarinhando as crianças e fazendo o que estava ao meu alcance para ajudar pais e mães. Mas, os Homens-Grandes, gente humilde no seu comportamento exterior, mas sábia e altiva como nenhuma outra no território, sempre me infundiram o maior respeito e mereceram grande amizade. Quando, como agora, dou comigo a recordar algumas vetustas personalidades, que tive a honra de conhecer no seio das suas tabancas disseminadas pelo leste e sul da Guiné, e embora não tenha quaisquer problemas de consciência quanto ao meu comportamento em relação às mesmas, não deixo de me sentir algo entristecido por não ter podido ser tão generoso com elas quanto desejaria.

Obrigado pelo teu comentário ao poste e um grande abraço. (*****)

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(*****) Último poste da série > 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19968: (In)citações (135): Achega II - E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau (Manuel Luís Lomba)

Guiné 61/74 - P20000: Blogpoesia (629): "Papel almaço", "A voz..." e "A ajuda...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Papel almaço

Minhas provas em papel almaço.
O arrematar da escola primária.
Um acontecimento importante para quem nascera havia 10 anos.
Nunca mais esquece.
Uma vitória pública da nossa capacidade para enfrentar o futuro
e a bagagem para vencer na vida.

As regras da língua com que nos entendemos.
O domínio dos números para dimensionar bem as medidas e quantidades.
A visão global do ambiente em que nos movemos.
A nossa Terra e os astros que, de longe, nos acompanham.
O pedaço dela que nos tocou da História.
Os heróis sem nome que a construiram.
O que tem de bom e belo.
Mar e rios. Campos e serras.
As vias férreas que eram as veias onde corria o sangue da riqueza.
E, sobretudo, os valores morais da natureza humana organizada em sociedade.
O alicerce sólido do que somos hoje...

Mafra, Bar 7 Momentos, 19 de Julho de 2019
9h46m
Jlmg

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A voz...

Nossa voz é impetuosa.
Vibra oculta e incontrolada.
Reagindo aos seres que nos circundam.
São eles que no-la modulam e regem como maestros.
Sua afinação foi trabalho de muita dedicação.
Entre sorrisos e olhares ternos.
Se tornou vibrante e musculada.
Tem o timbre das canas verdes quando o vento silva.
Poisa nos sons com os pés descalços.
Solta palavras com sua mensagem.
Se diverte em ondas sonoras de harmonia.
Entoando o sentimento que vai na alma.
Chama cada ser vizinho pelo seu nome.
Diz sim e não segundo a vontade.
Ouca se envergonha e tosse...

Bar, 7 Momentos, 20 de Julho de 2019
10h57m
Jlmg

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A ajuda...

É nobre e exigente a arte de ajudar.
Adequada a cada caso.
Nunca como se quer ou apetece.
Não se pode diminuir quem precisa do nosso auxílio.
Hoje, sou eu por ti.
Um dia, será o inverso.
Porque ninguém é auto-suficiente.
Hoje, estou bem.
Amanhã, poderei não estar.
Quanto mais tenho ou sou, maior é a obrigação de ajudar.
Só tenho direito ao essencial.
Esse é inviolável.
O resto é secundário.
Seu valor, onde for mais útil.
A reciprocidade não faz parte do ajudar.
Muito menos se pode comerciar.
Não tem cotação na bolsa e em nenhum lado.
Porque ajudar assenta na igualdade e na solidariedade de quem nasceu igual.

Mafra, 20 de Julho de 2019
18h27m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19978: Blogpoesia (628): "Na minha rua...'", "Rachmaninov" e "Reflexões minhas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19999: Efemérides (309): Há 50 anos o homem chegava à lua... e eu ia caminho de Bissau, num "barco turra" que parou, no Geba Estreito, com uma avaria...Valeu-nos o proverbial "desenrascanço tuga"... Viagem inesquecível até ao fim da minha vida! (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > 21 de julho de 1969 > Efeméride: no dia que o homem chegou à Lua, eu descia o rio Geba (Bambadinca-Bissau, com passagem no célebre Mato Cão e depois na não menos temível Ponta Varela, a seguir ao Xime)... Era um barco fretado para levar material usado da tropa. Estivemos parados várias horas: primeiro por causa da maré, depois devido a avaria no motor do barco só resolvido (desenrascado) com uma peça sacada dum carro que seguia no barco para sucata. Viagem inesquecível, até ao fim da minha vida!




Guiné > Região de Bafatá > Contuboel  > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > 21 de julho de 1969, dia em que o homem chegou à lua... O Valdemar vai a caminho de Bissau, num barco civil, daqueles a que chamávamos, depreciativamente, "barco turra". (*)


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


1. A CHEGADA DO HOMEM À LUA E A ARTE DO DESENRASCA

por Valdemar Queiroz 


- Estamos tramados, partiu-se uma peça do motor. Não vamos sair daqui tão cedo
- Estou a ver que sim. Talvez se desenrasque alguma peça naquela sucata.

Diálogo entre o mestre do barco e um soldado da metrópole, depois de estarmos parados há algum tempo e já noite dentro, no meio do rio Geba, antes de passarmos no Xime, apenas interrompido pela transmissão na rádio da chegada do homem à Lua.

- É um pequeno passo para o homem e um salto de gigante para a humanidade - disse o astronauta americano Neil Armstrong ao pisar o solo lunar.

Faz hoje 50 anos. Foi nas primeiras horas dia 21 de Julho de 1969

Durante o dia 20, em Contuboel, completada a nossa CART 2479 (futura CART 11 e, mais tarde, CCAÇ 11), com os soldados africanos que tinham acabado a instrução, seguiu para Piche e eu fui destacado para ir a Bissau entregar material já usado,  utilizado na instrução de recrutas africanos.

A viagem rio Geba abaixo, de Bambadinca a Bissau, foi feita num barco civil de carga/passageiros (vulgo ‘barco turra’) que rebocava, em comboio, mais dois barcos pequenos carregados de várias mercadorias, sacos de mancarra, automóveis sinistrados e passageiros civis e alguns militares em serviço, de regresso ‘à peluda’ ou de férias.

O barco parou com problemas no motor pouco tempo depois da saída de Bambadinca, na zona do Geba Estreito, parando ao cair da noite e antes de se passar no Xime. Estávamos parados, já há horas, sem ninguém se aperceber do motivo, aproveitando para ouvir na rádio a pilhas a chegada do homem à Lua.

Alguns de nós não acreditavam no que ouviam, outros davam mais importância ao local em que nos encontrávamos sem saber se alguém nos fazia segurança em terra, apenas apercebendo-.nos de estarmos próximo das margens, avistar uma luz brilhante no meio da mata e sem paciência para afugentar os mosquitos.

O nosso soldado lá conseguiu desenrascar uma peça, julgo que seria um parafuso, num dos carros sinistrados,  que, talvez por ter sido sacada dum Peugeot e o motor do barco ser de marca francesa, adaptou perfeitamente para pôr o motor a trabalhar, embora continuássemos parados, aguardando a maré favorável.

E lá seguimos viagem, com a luz brilhante na mata que aparecia e desaparecia cada vez mais longe (o serpentear do percurso do rio fazia com que se avistasse o mesmo local de distância diferente), entrando no Geba largo, já ao nascer do dia,  e ainda faltando algum tempo de Bissau à vista, para o desembarque.

Não me recordo bem de ter ouvido alguém falar dos avanços da Ciência com a chegada do homem à Lua ou outra conversa sobre a atribulada viagem, mas hoje, passados 50 anos, posso gabar-me de ter ouvido a chegada do homem à Lua no meio da rio Geba, na Guiné, e presenciado um momento alto da extraordinária arte do desenrasca dos portugueses.

Inesquecível. (**)

Valdemar Queiroz


2. Nota sobre a CCART 2479 / CART 11:

(i) a CART 2479 [tem mais de meia centena de referências no nosso blogue):

(ii) constituiu-se no RAL 5 em Penafiel, no ano de 1968, como subunidade do BART 2866, desmembrando-se desta unidade em fevereiro de 1969, e embarcando com destino à Guiné no dia 18, aonde chegou a 25 do mesmo mês;

(iii) o percurso operacional da CART 2479 na zona leste, foi longo, fixando a sua sede em Nova Lamego, no Quartel de Baixo em setembro de 1969;

(iii) passou por Contuboel, Bissau, Contuboel, Piche, Nova Lamego, Piche;

(iv) comandante: cap mil art Analido Aniceto Pinto (1/6/1934- 27/2/2014) (trabalhou na Galp Energia);

(v) foi extinta em 18 de janeiro de 1970, passando a companhia a designar-se CART 11 [, tem cerca de 8 dezenas de referências no nosso blogue];

(vi) em maio de 1972 a CART 11 (tem mais de 90 referências no blogue) passou a designar-se CCAÇ 11 [tem cerca de 4 dezenas de referências]. 

(vii) de 12 de narço a 24 de maio de 1969, no CIMC - Centro de Instrução Militar de Contuboel fizeram a recruta os seus futuros soldados, do recruramento local, bem como os da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12);

(viii) o juramento de bandeira  realizou-se em Bissau em 26/4/1969, na presença do Com-chefe, o gen Spínola;

(ix) as duas futuras companhias faziam parte da chamada "nova força africana" que estava então em formação e era muito acarinhada por Spínola;

(ix) em 18 de julho de 1969, a CART 2479 / CCART 11 foi colocada em Nova Lamego e emPiche, e a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 em Bambadincam, finda a instrução de especialidade e a IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (,dadas no CIMC).

__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14823: Memória dos lugares (299): O Rio Geba e o "barco turra", a caminho de Bissau, no dia em que o homem chegou à lua (20 de julho de 1969) (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

(**) Último poste da série >  9 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19961: Efemérides (308): Homenagem aos Combatentes da União de Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo, do Concelho de Matosinhos, caídos em Campanha na Guerra do Ultramar

sábado, 20 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19998: Os nossos seres, saberes e lazeres (344): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (3) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

1. Lembremos o que nos dizia o nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), na sua mensagem de 12 de Julho de 2019, onde nos falava de um projecto em que esteve envolvido no Saltinho, a criação de um jornal para a CCAÇ 2701, a que foi dado o o título de O Saltitão:

Quando, no final de Agosto/71, após as minhas primeiras férias na metrópole, regressei ao Saltinho, fui convidado pelo Capitão Carlos Trindade Clemente, Comandante da Companhia ali instalada (CCAÇ 2701), para levar avante a criação do Jornal da Unidade, que era uma coisa que ele tinha em mente há muito tempo. Só ele saberá das razões que o levaram a escolher-me para missão de tamanha responsabilidade, tanto mais que eu não fazia parte dos quadros da Unidade – estava lá em diligência desde Março/71, após estágio de informações, com a duração de cerca de três meses, em Bambadinca. Claro que logo aceitei a incumbência com o maior entusiasmo, ou não tivesse eu, sem que ele conhecesse o facto, grande experiência do antecedente naquelas coisas do jornalismo – fora, de parceria com um conterrâneo do mesmo pelotão, o grande feitor do Jornal de Parede da 5.ª Companhia no RI 5, nas Caldas da Rainha (recruta do 4.º turno de 1969 – Curso de Sargentos Milicianos), após termos afastado a indesejável concorrência à bofetada.
[...]
Esposende, 10 de Julho de 2019
Mário Migueis

********************

2. Publicação das últimas 7 páginas do primeiro número de O Saltitão









(FIM)
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

18 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19989: Os nossos seres, saberes e lazeres (341): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (1) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)
e
19 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19995: Os nossos seres, saberes e lazeres (342): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (2) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

Último poste da série de 20 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19997: Os nossos seres, saberes e lazeres (343): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19997: Os nossos seres, saberes e lazeres (343): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Se é axioma o que escreveu Saramago que o que se vê no verão não é o mesmo que se vê no inverno, que o que se vê de manhã não é exatamente o mesmo que se vê à tarde, e se, acima de tudo, esta viagem se processava sobre o signo da revisitação de lugares conhecidos há décadas e que, em muitos casos, permaneciam no limbo da memória, aqui se confessa o prazer consumado de ir verificar espaços por onde se andara e onde houve mudanças de tomo, mas os mesmos tesouros que então se conhecera apareciam agora com novo look.
Não sei se é verdade se Bruxelas é a capital europeia, mas mesmo que não seja é um dos locais do mundo onde aparecem exposições inolvidáveis, de génio rebarbativo, atenda-se ao que aqui se diz da exposição do Bozar "Além de Klimt", uma verdadeira delícia.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (6)

Beja Santos

O dia começa no Parque do Cinquentenário, recorde-se que este faustoso empreendimento arquitetónico teve a ver com a comemoração dos cinquenta anos da independência do reino da Bélgica em 1880. Arco grandioso onde se misturam elementos estilísticos Luís XVI e outros mais clássicos, tudo para glorificar a Bélgica pacifista e heroica. Os edifícios do Parque albergam museus e cá fora temos esculturas de grande valor. O viandante passa rente ao Museu do Automóvel, com modelos provenientes de todo o mundo, ainda não se disse mas este parque também acolheu a Exposição Universal de 1897, do outro lado temos o Museu do Exército e da História Militar, mas aonde exatamente o viandante entra é nos Museus Reais de Arte e de História.


É um museu com coleções incomparáveis, desde as Antiguidades do Próximo Oriente, do Egito, da Grécia, da Etrúria e de Roma, há um importante acervo da arqueologia nacional, da Pré-História às civilizações merovíngias, seguem-se as artes decorativas, joalharia e muitíssimo mais. Não menos impressionantes são as coleções de arte não-europeia que nos falam das civilizações da América, da Polinésia e da Micronésia, há uma espantosa estátua proveniente da Ilha de Páscoa, exemplares de arte muçulmana, são não menos impressionantes as salas temáticas com objetos de prata e cerâmica, até instrumentos de precisão. Assim se passou a manhã toda, com indisfarçável alegria. Caminha-se para o centro da cidade e após amesendar o viandante atira-se para outra empreitada maior no Palácio das Belas-Artes, arquitetura do prodigioso Victor Horta, o museu chama-se Bozar e a exposição tem um título por demais sugestivo “Além de Klimt”.



Foi decisão difícil, pois ali ao lado havia uma não menos tentadora exposição sobre Berlim entre 1912 e 1932. A decisão está tomada, é uma oportunidade única para conhecer a vida cultural de Viena durante a guerra e depois, vai empalidecer a estrela de Gustav Klimt, entram em cena jovens expressionistas como Kokoschka e Egon Schiele. Klimt morre em fevereiro de 1918, está a irromper, vibrátil, o expressionismo.


Gustav Klimt foi o nome maior da Arte-Nova na sua variante vienense que teve a designação de Wiener Secession. Este quadro foi pintado no seu último ano de vida, é uma composição simples e a tela ficou inacabada. O modelo foi Johanna Staude que também pousou para outro génio da pintura, que aqui vai aparecer, Egon Schiele. É difícil imaginar que enquanto os homens morriam aos milhões nas trincheiras e em combates sangrentos, a vida cultural de Viena não esmorecia.



Egon Schiele foi um génio precoce, em março de 1918, durante a 49.ª exposição da Wiener Secession, triunfou completamente. Génio precoce com morte precoce, uma dezena de dias antes do Armistício, morrerá com a gripe espanhola. É conhecido por ser um pintor radicalmente expressivo, gostava de atmosferas contemplativas. Neste quadro temos dois homens agachados num espaço indeterminado. Até parece que se trata de uma figura duplicada e há fortes semelhanças nos rostos com Egon Schiele, são olhares sonhadores no vazio, mais uma tela inacabada.




O visitante vai de surpresa em surpresa, vanguardistas húngaros, peças desconhecidas de Alfons Mucha, o inconformismo berrante de Oskar Kokoschka, inevitavelmente o entusiasmo pela guerra ou a denúncia da carniçaria, obras alegóricas, psicodramas.


Este Ecce Homo de Anton Hanak é arrasador, uma emanação de um mundo despedaçado, sente-se neste bronze a longa e rica tradição do Humanismo Europeu, da Antiguidade Greco-Romana e do Cristianismo. Hanak era um dos escultores austríacos mais conhecidos, legou-nos figuras simbólicas e visionárias sem paralelo neste Império Central.




Para além de Klimt também nos remete para seguidores do construtivismo russo, para essas coisas novas onde se aplicavam os grandes princípios da abstração. Há uma figura espantosa, reabilitada nas últimas décadas, o húngaro László Moholy-Nagy, um dos avatares da escola da Bauhaus, uma instituição de vanguarda que teve que encerrar portas na alvorada do nazismo. László Nagy era um artista dos sete ofícios, uma curiosidade ferverosa pela escultura, fotografia, arquitetura, cinema e teatro. Na sequência cronológica em que se organiza a exposição são exploradas outras dimensões, como a abstração-criação e o surrealismo, as múltiplas variações sobre o figurativo, a adesão aos ideais revolucionários, a apologia declarada aos nacionalismos.






Enfim, uma esplendorosa exposição que permite visualizar os percursos das artes plásticas no final da vida de Klimt, movimentos que estavam em incubação e que degeneraram no expressionismo, em novas manifestações do figurativo, passando pelo surreal e pela modificação do real numa espécie de desintegração do indivíduo. Não será por acaso que Kokoschka aparece como figura transversal e terminal deste vasto caleidoscópio de manifestações artísticas, sempre na vanguarda e acabando por se distanciar explicitamente das correntes abstratas do seu tempo, vendo-se como alguém que “perpetua a grande tradição austríaca do barroco, renovando-a”, alguém que se mostrou sempre sensível aos sinais do tempo. Mais um dia de felicidade para o viandante, anoitece e faz frio, regressa a casa, vai preparar depois do jantar a viagem do dia seguinte, desta feita na Flandres, em Gand.

(continua)
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Notas do editor

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