1. Mensagem do Amílcar Mendes:
Amigo Luís Graça, venho-te pedir que publiques o que te escrevo: O corpo do soldado Comando José Luís Inácio Raimundoje que morreu nas valas em Guidage, foi trazido por nós, Comandos da 38ª Companhia, aquando do nosso regresso a Binta na coluna.
Não ficou enterrado em Guidaje porque NUNCA deixamos mortos ou feridos para trás. Tínhamos o dever moral de trazer o seu corpo e só o largámos em Binta quando ficou numa urna e dali seguiu para a capela mortuária de Bissau onde foi devolvido à família.
Recebi mensagens peguntando porque não ficou ele enterrado em Guidaje como outros; porque na nossa formação de COMANDOS foi-nos ensinado que o mais importante era o HOMEM!
2. Comentário de L.G.:
Amílcar:
(i) Foi um lapso da minha parte, involuntário, um típico erro cometido por simpatia: estava a pensar nos camaradas paraquedistas da CCP 121 que lá morreram e lá ficaram, o Lourenço, o Victoriano e o Peixoto, aqui evocados num post recente do Victor Tavares, no decurso da Op Mamute Doido, em 23 de Maio de 1973: vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
(ii) Aqui fica a tua correcção (e o teu protesto, implícito): eu sei que um camarada ferido ou morto em combate não se deixa para trás, que isso era um ponto de ponto para os bravos da 38ª CCmds.
(iii) Aceita as minhas desculpas, extensivas a todos os teus camaradas que estiveram contigo nesses longos e difíceis dias de Maio de 1973, em Guidaje. As minhas desculpas também à família do Raimundo, que era natural da Chamusca. Eu sei que ainda é doloroso falar da morte de camaradas nossos.
(iv) Vou corrigir o título do post P1223, de 30 de Outubro último.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 1 de novembro de 2006
terça-feira, 31 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)
Texto de Pedro Lauret, ex-oficial imediato da LFG Orion (Guiné, 1971/73) e hoje capitão-de-mar-e-guerra na reforma (1):
Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial
Durante toda a minha comissão (1971-1973) era frequente receber no navio mensagens referindo a possibilidade de serem colocadas minas aquáticas nos diversos rios e braços de mar.
As mensagens invariavelmente previam: a vinda de especialistas soviéticos para dar formação sobre minas; a colocação de minas neste ou naquele curso de água; a ida de elementos do PAIGC especializar-se a um país de leste …
A Marinha sempre levou a sério estas informações. Os sistemas tradicionais de rocega de minas não eram aplicáveis à realidade dos rios da Guiné pelo que a sua minagem iria trazer graves problemas à navegação. Algumas dúvidas se punham, no entanto, sobre a real possibilidade de uma minagem sistemática dos rios pois as condições naturais eram adversas: fortes correntes, grandes amplitudes de maré, fundos baixos, cursos sinuosos.
Colocada esta nota prévia vamos à nossa estória:
Numa tarde de 1972 descia, no NRP Orion, o Rio Cacheu vindo de Binta em direcção a Ganturé. Ao descrever a curva de acesso à clareira do Tancroal avistei um objecto estranho a flutuar, acestei os binóculos e apercebi-me de um objecto esférico a flutuar.
Uma mina?! Era óbvio! Máquinas à ré, a toda a força!
O navio devia navegar a 14 nós (3), as máquinas inverteram, o navio tremeu, na gíria da Marinha diríamos que até fogueiros saíram pela chaminé. O navio estancou antes de atingir o terrível objecto. De novo de binóculos em riste comecei a aperceber-me que era uma estranha mina. De facto era completamente esférica, mas mina não parecia ser. Com alguns toques de máquina aproximámo-nos, aos poucos fui-me apercebendo das características daquela exótica mina aquática.
Calculem o que era: uma cabra afogada que inchou e a sua esférica barriga aparecia a espreitar à tona de água.
Foi assim que um garboso navio da Armada colocou máquinas a ré a toda a força para não atropelar uma cabra afogada.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd post de 1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)
(2) Vd. último post desta série, 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1193: Estórias avulsas (4): O fantasma-cagão da 3ª Companhia do COM, EPI, Mafra, 1966 (A. Marques Lopes)
(3) Um nó é equivalente a um milha náutica/hora, ou seja,a 0,51444 m/s ou a 1,852 km/h. Neste caso, 14 nós correspondem a uma velocidade de 25,928 km/h. Fonte: Wikipédia (2006)
Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial
Durante toda a minha comissão (1971-1973) era frequente receber no navio mensagens referindo a possibilidade de serem colocadas minas aquáticas nos diversos rios e braços de mar.
As mensagens invariavelmente previam: a vinda de especialistas soviéticos para dar formação sobre minas; a colocação de minas neste ou naquele curso de água; a ida de elementos do PAIGC especializar-se a um país de leste …
A Marinha sempre levou a sério estas informações. Os sistemas tradicionais de rocega de minas não eram aplicáveis à realidade dos rios da Guiné pelo que a sua minagem iria trazer graves problemas à navegação. Algumas dúvidas se punham, no entanto, sobre a real possibilidade de uma minagem sistemática dos rios pois as condições naturais eram adversas: fortes correntes, grandes amplitudes de maré, fundos baixos, cursos sinuosos.
Colocada esta nota prévia vamos à nossa estória:
Numa tarde de 1972 descia, no NRP Orion, o Rio Cacheu vindo de Binta em direcção a Ganturé. Ao descrever a curva de acesso à clareira do Tancroal avistei um objecto estranho a flutuar, acestei os binóculos e apercebi-me de um objecto esférico a flutuar.
Uma mina?! Era óbvio! Máquinas à ré, a toda a força!
O navio devia navegar a 14 nós (3), as máquinas inverteram, o navio tremeu, na gíria da Marinha diríamos que até fogueiros saíram pela chaminé. O navio estancou antes de atingir o terrível objecto. De novo de binóculos em riste comecei a aperceber-me que era uma estranha mina. De facto era completamente esférica, mas mina não parecia ser. Com alguns toques de máquina aproximámo-nos, aos poucos fui-me apercebendo das características daquela exótica mina aquática.
Calculem o que era: uma cabra afogada que inchou e a sua esférica barriga aparecia a espreitar à tona de água.
Foi assim que um garboso navio da Armada colocou máquinas a ré a toda a força para não atropelar uma cabra afogada.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd post de 1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)
(2) Vd. último post desta série, 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1193: Estórias avulsas (4): O fantasma-cagão da 3ª Companhia do COM, EPI, Mafra, 1966 (A. Marques Lopes)
(3) Um nó é equivalente a um milha náutica/hora, ou seja,a 0,51444 m/s ou a 1,852 km/h. Neste caso, 14 nós correspondem a uma velocidade de 25,928 km/h. Fonte: Wikipédia (2006)
Guiné 63/74 - P1230: Onde se fala do Henriques da CCAÇ 12, do ranger Eusébio e da tragédia do Quirafo (Mário Miguéis)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > Finais de 1969 ou princípios de 1970 > O ex-furriel Henriques, que na altura usava um pera, à revelia do RDM, e óculos esfumados (na época, estavam na moda)... Esses óculos irão desaparecer, para sempre, sob o efeito de cone de fogo de um bazuca, no decurso da Op Boga Destemida, em 9 de Fevereiro de 1970 ... Em homenagem às cangalhas, que lhe terão possivelmente salvo a vista, e que ficaram para sempre enterrados no capim e na terra vermelha de Gundagué Beafada, aquele tuga nunca mais usou óculos na vida... O Furriel Mil de Informações Mário Migueis, que diz tê-lo conhecido em Bambadinca, entre Novembro de 1970 e Janeiro de 1971l, tem razão quanto aos óculos: nessa altura, o Henriques de facto já não usava óculos...
Foto: Luís Graça (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Mensagem do Mário Migueis que me chegou via Paulo Santiago, com data de 6 de Outubro de 2006 (1):
Caro Santiago:
Só agora tive oportunidade de ir ao blogue que me indicaste. Confesso que foi uma surpresa agradabilíssima poder rever, através de fotos da época, e não só, figuras e locais tão familiares, cujo registo os trinta e cinco anos entretanto decorridos não conseguiram apagar. Só por isso, o meu jarama (2) ao editor do blogue e a todos os restantes tertulianos, independentemente dos respectivos credos e patentes.
Penso que conheci o Henriques (Luís Graça) em Bambadinca, durante a minha passagem pelo sítio (Novembro de 1970 a Janeiro de 1971). No entanto, as fotografias dele disponíveis no blogue (uns óculos de que me não recordo) deixam-me algumas dúvidas (3).
Tenho, no entanto, uma fotografia com o T. Roda (CCAÇ 12), na qual, ao fundo, aparece a figura daquele que eu admito ser o agora nosso Luís Graça. A personagem que eu recordo usava, na altura, pêra pouco farta e, quando não estava em serviço, apresentava-se invariavelmente fardado com camisa de meia manga, calção, bota de lona e meia bem esticada até ao joelho (tudo como mandava a sapatilha e... o Anjos de Carvalho) (4).
Olha, nunca me deu para ir à Internet em busca da Guiné...e agora!... Agora, despertaste-me a curiosidade e o apetite e, qualquer dia, dou comigo a blogar também por vielas e calçadas, que é como quem diz por bolanhas e picadas...
Passando, agora, à questão que me colocaste, via telemóvel, quando, na paz do Senhor, passeava eu, desarmado e inocente, na Rua de Santa Catarina da Invicta Cidade, confirmo que, na Companhia do Lourenço (andas a chamar nomes feios ao homem!...), havia realmente um Furriel Miliciano Eusébio. Não me constou nunca, porém, que fosse Ranger (embora admita que pudesse sê-lo) e, até final de Outubro de 1972 (altura em que regressei à Metrópole), não pertenceu a GE [Grupo Especial] nenhum, nem nunca pôs os pés para além da linha de fronteira (5).
Mas, atenção!... embora o nome, o tempo e o local da acção sejam coincidentes, podemos (nunca se sabe!...) estar a falar de Eusébios diferentes. De qualquer modo, já tenho gente a tratar de tentar confirmar (ou até a localizar o Eusébio, quem sabe?!...).
(...) Por outro lado, quem diz que iam fardados e equipados com armamento russo para beneficiarem do factor surpresa e lançarem a confusão, está completamente fora do esquema, pois, como sabemos, para as acções além fronteiras, eram privilegiadas pelo Com-Chefe as tropas de cor (grupo do Marcelino da Mata, comandos africanos, milícias) e o equipamento capturado ao IN, para que não ficassem eventualmente no terreno provas da nossa participação nas mesmas, retirando, assim, sustentação às queixas (constantes, após a invasão de Conacry) das Repúblicas da Guiné e do Senegal na ONU.
No que se refere à emboscada do Quirafo e ao Desaparecido em Combate (estavas de férias, mas eu estava no Saltinho)(6), detecto algumas incorrecçõs no relato das quais, oportunamente, te darei conta (antes disso, vou tentar falar com alguém da desgraçada CCAÇ 3490 e, se possível, contactar o Batista - o famoso Morto-Vivo (sabes que este foi o título que dei a um conto com que concorri, uns anos atrás, a um concurso literário do JN? Claro que foi inspirado na nossa história ...).
Bem, bem,... com estas e com outras, estou a entrar pela madrugada dentro!... Deixa-me mas é desligar o aparelho, que se faz tarde!...
Um grande abraço e até breve!
PS - Juro-te que chorei durante meia-hora de tanto me rir com o teu relato do episódio das abelhas e do nosso Lourenço. Quem, como eu, conheceu os actores, tem que chorar certamente! Assisti à chegada ao quartel das G-3 abandonadas pelos pobres periquitos, algumas das quais com as coronhas derretidas, outras calcinadas... Foi, realmente, uma grandecíssima palhaçada e, contada por ti, a história tem realmente um sabor...
2. Resposta do Paulo Santigao:
Caro Migueis:
Agradeço a tua mensagem. O Eusébio que esteve no Saltinho, trabalha na NEA no Porto. Deve ser o tipo que pensavas trabalhar na Regisconta, que parece agora ter aquela designação. Há um tertuliano, Fur Mil Ranger, que esteve em Mansoa, em 1974 [, o Eduadro Magalhães Ribeiro] , já me deu o número de telefone de casa do tal Eusébio e me disse que o tipo ía gostar de falar comigo, etc. Respondi-lhe que espero justificações na Net, local onde descobri a história. Estou a aguardar.
Agradeço que corrijas algumas imprecisões da emboscada do Quirafo. Em 17 de Abril de 1972, tu estavas presente e eu de férias, como digo nos Posts onde relato o que me transmitiram os meus homens. Penso, contudo, o mais importante foi demonstrar a incompetência criminosa do Lourenço e do C. Lemos (7).
Há dias o Cosme, um dos meus ex-cabos, disse que o cabo apanhado à mão no Quirafo se chamava Ferreira, e não Batista, nome que utilizei no relato, pois era o que tinhas indicado quando almoçámos em Aveiro e falámos no caso.
Era bom que entrasses para a Tertúlia. Reenviei a tua mensagem para o Luís Graça. Vamos ter um encontro dia 14 em Montemor o Novo, onde vou com o Julião [Martins] e o [Carlos] Santos, [ambos da CCAÇ 2701) que andam a arranjar inspiração para escrever no blogue. Deves lembrar-te do Vacas de Carvalho, do Pelotão de Cavalaria [, o Pel Rec Daimler 2406, ]em Bambadinca. Há tempos contei no blogue o dia em que despertei o Anjos de Carvalho ao som dos tambores, com autorização do Polidoro, claro (3).
Não falei nas coronhas derretidas, porque a certa altura arranquei para Cansamange, deixando o Proveta na recolha de armas e na discussão com os pilotos dos heli. Podia ter sido um dia desastroso.
Espero continuar a encontrar-te na Net e também na Blogosfera.
Um abraço
Paulo Santiago
________________
Notas de L.G.:
(1) Segundo informação posterior do Paulo Santiago, o Mário Migueis, natural de Esposende, e também conhecido por Silva, foi furriel miliciano de informações, passou por Bambadinca, no tempo do BART 2917, entre Novembro de 1970 e Janeiro de 1971, e esteve com o Paulo Santiago no Saltinho até meados de 1972. Não pertencia ao Pel Caç Nat 53: não confundir com o Fur Mil Mário Rui...
(2) Lê-se djarama e quer dizer obrigado, no dialecto fula da Guiné-Bissau.
(3) Vd. post de 16 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1180: Paraquedistas, anjos da morte nos céus do Corubal (Luís Graça)
(4) Major Anjios de Carvalho, 2º Comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), já aqui várias vezes evocado, a última das quais pelo próprio Paulo Santiago: vd post de 11 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1062: Uma cena em Bambadinca: quando o Major caiu da cama (Paulo Santiago)
(5) Vd. posts de:
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1119: Um periquito no Saltinho, o ranger Eusébio (CCAÇ 3490, 1972/74)
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1120: O Ranger Eusébio no Saltinho: erros e omissões (Paulo Santiago)
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1121: Carta Aberta ao Ranger Eusébio (Paulo Santiago)
(6) Vd. posts de:
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
(7) Capitão Miliciano Lourenço, cmdt da CCCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74); tenente-coronel Castro Lemos, cmdt do BCAÇ 3872, sedeado em Galomaro: vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
Foto: Luís Graça (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Mensagem do Mário Migueis que me chegou via Paulo Santiago, com data de 6 de Outubro de 2006 (1):
Caro Santiago:
Só agora tive oportunidade de ir ao blogue que me indicaste. Confesso que foi uma surpresa agradabilíssima poder rever, através de fotos da época, e não só, figuras e locais tão familiares, cujo registo os trinta e cinco anos entretanto decorridos não conseguiram apagar. Só por isso, o meu jarama (2) ao editor do blogue e a todos os restantes tertulianos, independentemente dos respectivos credos e patentes.
Penso que conheci o Henriques (Luís Graça) em Bambadinca, durante a minha passagem pelo sítio (Novembro de 1970 a Janeiro de 1971). No entanto, as fotografias dele disponíveis no blogue (uns óculos de que me não recordo) deixam-me algumas dúvidas (3).
Tenho, no entanto, uma fotografia com o T. Roda (CCAÇ 12), na qual, ao fundo, aparece a figura daquele que eu admito ser o agora nosso Luís Graça. A personagem que eu recordo usava, na altura, pêra pouco farta e, quando não estava em serviço, apresentava-se invariavelmente fardado com camisa de meia manga, calção, bota de lona e meia bem esticada até ao joelho (tudo como mandava a sapatilha e... o Anjos de Carvalho) (4).
Olha, nunca me deu para ir à Internet em busca da Guiné...e agora!... Agora, despertaste-me a curiosidade e o apetite e, qualquer dia, dou comigo a blogar também por vielas e calçadas, que é como quem diz por bolanhas e picadas...
Passando, agora, à questão que me colocaste, via telemóvel, quando, na paz do Senhor, passeava eu, desarmado e inocente, na Rua de Santa Catarina da Invicta Cidade, confirmo que, na Companhia do Lourenço (andas a chamar nomes feios ao homem!...), havia realmente um Furriel Miliciano Eusébio. Não me constou nunca, porém, que fosse Ranger (embora admita que pudesse sê-lo) e, até final de Outubro de 1972 (altura em que regressei à Metrópole), não pertenceu a GE [Grupo Especial] nenhum, nem nunca pôs os pés para além da linha de fronteira (5).
Mas, atenção!... embora o nome, o tempo e o local da acção sejam coincidentes, podemos (nunca se sabe!...) estar a falar de Eusébios diferentes. De qualquer modo, já tenho gente a tratar de tentar confirmar (ou até a localizar o Eusébio, quem sabe?!...).
(...) Por outro lado, quem diz que iam fardados e equipados com armamento russo para beneficiarem do factor surpresa e lançarem a confusão, está completamente fora do esquema, pois, como sabemos, para as acções além fronteiras, eram privilegiadas pelo Com-Chefe as tropas de cor (grupo do Marcelino da Mata, comandos africanos, milícias) e o equipamento capturado ao IN, para que não ficassem eventualmente no terreno provas da nossa participação nas mesmas, retirando, assim, sustentação às queixas (constantes, após a invasão de Conacry) das Repúblicas da Guiné e do Senegal na ONU.
No que se refere à emboscada do Quirafo e ao Desaparecido em Combate (estavas de férias, mas eu estava no Saltinho)(6), detecto algumas incorrecçõs no relato das quais, oportunamente, te darei conta (antes disso, vou tentar falar com alguém da desgraçada CCAÇ 3490 e, se possível, contactar o Batista - o famoso Morto-Vivo (sabes que este foi o título que dei a um conto com que concorri, uns anos atrás, a um concurso literário do JN? Claro que foi inspirado na nossa história ...).
Bem, bem,... com estas e com outras, estou a entrar pela madrugada dentro!... Deixa-me mas é desligar o aparelho, que se faz tarde!...
Um grande abraço e até breve!
PS - Juro-te que chorei durante meia-hora de tanto me rir com o teu relato do episódio das abelhas e do nosso Lourenço. Quem, como eu, conheceu os actores, tem que chorar certamente! Assisti à chegada ao quartel das G-3 abandonadas pelos pobres periquitos, algumas das quais com as coronhas derretidas, outras calcinadas... Foi, realmente, uma grandecíssima palhaçada e, contada por ti, a história tem realmente um sabor...
2. Resposta do Paulo Santigao:
Caro Migueis:
Agradeço a tua mensagem. O Eusébio que esteve no Saltinho, trabalha na NEA no Porto. Deve ser o tipo que pensavas trabalhar na Regisconta, que parece agora ter aquela designação. Há um tertuliano, Fur Mil Ranger, que esteve em Mansoa, em 1974 [, o Eduadro Magalhães Ribeiro] , já me deu o número de telefone de casa do tal Eusébio e me disse que o tipo ía gostar de falar comigo, etc. Respondi-lhe que espero justificações na Net, local onde descobri a história. Estou a aguardar.
Agradeço que corrijas algumas imprecisões da emboscada do Quirafo. Em 17 de Abril de 1972, tu estavas presente e eu de férias, como digo nos Posts onde relato o que me transmitiram os meus homens. Penso, contudo, o mais importante foi demonstrar a incompetência criminosa do Lourenço e do C. Lemos (7).
Há dias o Cosme, um dos meus ex-cabos, disse que o cabo apanhado à mão no Quirafo se chamava Ferreira, e não Batista, nome que utilizei no relato, pois era o que tinhas indicado quando almoçámos em Aveiro e falámos no caso.
Era bom que entrasses para a Tertúlia. Reenviei a tua mensagem para o Luís Graça. Vamos ter um encontro dia 14 em Montemor o Novo, onde vou com o Julião [Martins] e o [Carlos] Santos, [ambos da CCAÇ 2701) que andam a arranjar inspiração para escrever no blogue. Deves lembrar-te do Vacas de Carvalho, do Pelotão de Cavalaria [, o Pel Rec Daimler 2406, ]em Bambadinca. Há tempos contei no blogue o dia em que despertei o Anjos de Carvalho ao som dos tambores, com autorização do Polidoro, claro (3).
Não falei nas coronhas derretidas, porque a certa altura arranquei para Cansamange, deixando o Proveta na recolha de armas e na discussão com os pilotos dos heli. Podia ter sido um dia desastroso.
Espero continuar a encontrar-te na Net e também na Blogosfera.
Um abraço
Paulo Santiago
________________
Notas de L.G.:
(1) Segundo informação posterior do Paulo Santiago, o Mário Migueis, natural de Esposende, e também conhecido por Silva, foi furriel miliciano de informações, passou por Bambadinca, no tempo do BART 2917, entre Novembro de 1970 e Janeiro de 1971, e esteve com o Paulo Santiago no Saltinho até meados de 1972. Não pertencia ao Pel Caç Nat 53: não confundir com o Fur Mil Mário Rui...
(2) Lê-se djarama e quer dizer obrigado, no dialecto fula da Guiné-Bissau.
(3) Vd. post de 16 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1180: Paraquedistas, anjos da morte nos céus do Corubal (Luís Graça)
(4) Major Anjios de Carvalho, 2º Comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), já aqui várias vezes evocado, a última das quais pelo próprio Paulo Santiago: vd post de 11 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1062: Uma cena em Bambadinca: quando o Major caiu da cama (Paulo Santiago)
(5) Vd. posts de:
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1119: Um periquito no Saltinho, o ranger Eusébio (CCAÇ 3490, 1972/74)
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1120: O Ranger Eusébio no Saltinho: erros e omissões (Paulo Santiago)
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1121: Carta Aberta ao Ranger Eusébio (Paulo Santiago)
(6) Vd. posts de:
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
(7) Capitão Miliciano Lourenço, cmdt da CCCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74); tenente-coronel Castro Lemos, cmdt do BCAÇ 3872, sedeado em Galomaro: vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
Guiné 63/74 - P1229: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (18): Não fujam, nós não somos bandidos!
Guiné > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1973 > O novo destacamento do Mato Cão, no tempo em que o Pel Caç Nat 52 era comandado pelo Alf Mil Joaquim Mexia Alves (1971/73). No tempo do Beja Sanmtos, a segurança às embarcações de passagem pelo Geba Estreito, em Mato Cão, era assegurado por diversas forças, que estavam sob o comando do batalhão sediado em Bambadinca, desde a CCAÇ 12 até aos Pel Caç Nat (52, 53, 54, 63). O Joaquim Mexia Alves sucedeu ao Wahnon Reis e ao Beja Santos no comando do Pel Caç Nat 52 (1)
Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados.
Guiné > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Geba > 1968 > A necessidade faz o órgão: com três pirogas, o Beja Santos fez uma jangada e, perante a incredulidade geral, levou um velho reboque para a outra margem do Rio Geba e dali até Missirá... Ele tinha fama de levar tudo o que encontrava à mão, já que em Missirá não tinha nada: por isso o pessoal de Bambadinca gritava uns para os outros, mal avistavam o Pel Caç Nat 52 a atravessar a bolanha de Finete: "Eh, malta, em guarda, vem aí o Tigre de Missirá!"...
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Texto enviado em 17 de Outubro de 2006, peloBeja Santos:
Caro Luís, adianto já o texto referente à semana de 30 de Outubro. De 26 a 29 estarei numa conferência em Roma sobre educação do consumidor, os próximos fins de semana são passados numa pós-graduação em Carregal do Sal, e a partir da próxima semana estou em pleno funcionamento universitário. Penso que tu terás duas boas ilustrações para este texto, ou mesmo três: tens aí a minha fotografia a cambar o atrelado; mando-te pelo correio uma preciosidade bibliográfica que é o Dicionário crítico de algumas ideias e palavras correntes que o António José Saraiva escreveu no início dos anos 60 e que a censura de vez em quando retirava do mercado; mas também tens Mato de Cão que hoje é palco de um episódio burlesco que hoje vou contar. Como te disse ao telefone, ainda esta semana seguirá outro texto e prevejo a elaboração de outro em breve pois na última semana de Novembro estarei a fazer um curso em Bruxelas. Não te incomodo mais e recebe um abraço do
Mário.
Continuação da série Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2). O Mário Beja Santos foi Álf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) .
"Não fujam, nós não somos bandidos!"
por Beja Santos
São quatro da manhã, chove desalmadamente para que não nos esqueçamos que daqui a um bocado se seguirá uma cacimba, depois uma fornalha que deixará a lama seca no nosso camuflado. Não caibo de contente, pois hoje vamos trazer um atrelado, oferta do batalhão que parte e que descobriram este apêndice a mais. Não lhes faz jeito nenhum, e para nós é precioso para transportar petróleo e outras cargas . A operação de partida está normalizada: dois cantis, comida em autogestão, dois apontadores de dilagrama, um morteiro 60, uma bazuca, uma metralhadora ligeira, um cortejo de dose equilibrada de caçadores nativos e milícias. Não vejo indumentárias, muitos deles irão vestidos com roupas civis, boinas e gorros multicolores, calças amarelas, colares cheios de enfeites onde não faltam as tampas de cervejas ("manga de ronco!")
Elegi para tema de reflexão para os 12,5 Km que se vão percorrer encontrar o ponto de equilíbrio e a boa comunicação entre os caçadores nativos que têm uma surda guerra de classes com os milícias e deixar o aquartelamento com totais garantias de resistir a uma qualquer flagelação consistente. Não descobri a pólvora, muitos outros terão centenas de civis a ficarem intranquilos quando metade da guarnição parte para estes patrulhamentos diários.
Bambadinca não deu resposta a mais tropa, a mais morteiros e a equipamento mais moderno. Não deu, nem dará. Até agora os ânimos andam acalmados, uns a caiar, outros a pregar chapas na garagem, outros a carpinteirar e a cimentar, não foi fácil instalar os sanitários para civis e militares. Depois de falar com o 2º Comandante que dentro de dias parte, tomei a decisão de não apoiar a proposta do régulo Malã em criar em Canturé uma tabanca em auto-defesa. A concretizar-se este sonho do régulo, teríamos que encontrar mais armamento à altura das circunstâncias e um novo pelotão de milícias. Acontece que não há meios, não posso tirar efectivos a Missirá nem a Finete.
Continuando as minhas cogitações, está resolvido o problema do equipamento perdido, desgastado e até inútil, está feito o abate do tripé de morteiro que eu nunca vi. Quando regressei de Bambadinca da última vez vinha aliviado com os autos de incapacidade e ruína, desde tachos de 20 litros até 108 lençóis. As arrecadações foram limpas de ferros retorcidos, candeeiros sem candeia e peças de viatura sem nenhum préstimo. Estamos outra vez sem petróleo, hoje é preciso trazer mais tinta e estou cheio de curiosidade em saber o que vai fazer o Marcelo Caetano.
Guiné-Bissau > Região de Baftá > Bambadinca > 1997 : O que restava da antiga escola... e da casa onde vivia, no tempo em que alguns de nós por lá passaram, em 1968/71, a professora Dona Violette da Silva Aires, de origem cabo-verdiana, aqui tão justa e oportunamente evocada pelo Beja Santos (3).
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá)
Sim, podemos ir, 15 no primeiro barco, 10 no segundo. Chamo a tropa e não me apercebi que vieram a correr aos gritos, de armas em riste, um autêntico ulular bélico. A LDM lá vai serena quando se começam a ouvir nas plateias dos terceiro e quarto barcos expressões como cubano, bandidos, desgraça. Quando olho para o espectáculo do pânico instalado, sabe-se lá quem lançou o rastilho do falso alarme, usei a única instância que considerei capaz de travar o pavor generalizado: subi para o tejadilho da cabina, gritei-lhes a plenos pulmões que não éramos bandidos, que, como podiam ouvir, eu não tinha sotaque cubano, pedíamos desculpa pelo susto devido a uma entrada tão desaforada. Os soldados perceberam desta vez que há limites para os clamores desatinados E no porto de Bambadinca tive que cumprimentar todas as tripulações e passageiros. Descobri que de futuro devo aparecer com mais brancos e exigir uma entrada disciplinada do pessoal.
Conheci hoje a Sra Dona Violete, a professora de Bambadinca. Preciso de informações sobre os programas escolares, pedi-lhe mesmo se podia aceitar que o nosso professor bem como o Zé Pereira ali estagiassem por algum tempo. É uma senhora fora do tempo, que fala com brandura, aconchegando o cabelo, recortando a melodia das palavras e que quando conversa avança para o interlocutor. Dei comigo encostado à parede, ela olhava-me em derriço como se eu fosse o primeiro alferes que lhe aparecesse à frente. Esta aparição vai-me custar bem caro em 1970, quando o Comandante me pediu que lhe levasse um ramo de flores e pusesse todos os nossos préstimos à sua disposição. Mas, tirando um episódio trágico-cómico de solidão, será a Dona Violete quem em traços rigorosos me vai explicar o que é hoje Bambadinca. Prometi voltar para conversarmos mais.
Depois de todas as andanças do aprovisionamento, avançamos para uma garagem onde nos aguarda, meio adormecido, o nosso atrelado. Há interjeições, risada e súbito toda a massa do reboque entra em movimento até ao cais. Depois de se parlamentar com Mufali, o canoeiro, apura-se que estamos na vazante, que o reboque não pode ir em cima de uma piroga, com fatalismo assegura-me que não há condições para tirar o reboque desta margem para a outra do Geba.
Mas havia. Olhei para três pirogas ao mesmo tempo, perguntei se elas não podiam estar amarradas e levar toda a carga equilibrada lá dentro. Foi o que aconteceu, como uma fotografia certifica que este atrelado a atravessar o Geba não é fruto do delírio. Ao fim de uma hora, aquela jangada muito especial aterrou no lodo de Finete e toda a tropa o puxou para terra. O guincho do Unimog 411 concluiu a operação que culminou com uma salva de palmas. Ganhei coragem para loucuras maiores que vêm por aí: os balneários de 8 bidões articulados, o nosso precioso chuveiro, passará por esta odisseia, e numa jangada mais sofisticada.
Mais tarde, quando eu perder a vergonha nos meus pedidos e sugerir levar viaturas a partir do Enxalé, encontrarei novas facilidades em jangadas mais possantes que me serão disponibilizadas a partir do porto de Bambadinca. Nesse dia despedi-me do velho batalhão, regressarei a 27 para ouvir o discurso da tomada de posse de Marcelo Caetano. Esse dia será marcado pelo reencontro com o David Payne Pereira, que terá uma importância fundamental para mim. Será o meu arrimo nas horas de desânimo. Aturou-me e tratou-me toda a população civil de Missirá e Finete. Quando, em Abril próximo, o Adão aparecer aos gritos em Bambadinca a dizer que eu não tenho temperatura e devo de estar a morrer e que já não articulo palavra no meu catre, ele virá a correr. Será o padrinho de casamento da Cristina.
Regressamos exaustos mas com petróleo, vitualhas e muitos objectos desirmanados das cantinas de oficiais, sargentos e praças. Nesta sociedade de consumo nada se sabe sobre aqueles microcosmos em que os copos podiam ser pedaços de garrafa, se desconheciam toalhas, travessas e garrafas para água. Missirá, aos poucos, passou a ter baixela, cozinheiros, forno de pão e descobrimos o prazer de estarmos à mesa sem a necessidade de comer à pressa algo de desenxabido antes de se passar ao loto a feijões e analisar as tarefas do dia seguinte.
A verdade é que ainda não me despedi do velho batalhão [, CCAÇ 1910]. Na véspera de partirem, Missirá será brevemente flagelada, o depósito de géneros ficará destelhado e o plinto em cimento para hastear a bandeira destruído. Não haverá vítimas com excepção dos pés feridos do Teixeira das transmissões.
Vão passar-se dois dias calmos. Já temos um gongue para chamar as tropas, é uma velha roda de ferro pendurada num gancho, dispara-se uma martelada com a manivela e Missirá começa a trabalhar. Persuadi Quebá Sonco que não se podem todas as noites fazer morteiradas de reconhecimento para lá dos cajueiros. Bambadinca quer 40 granadas à carga, não nos podemos dar ao luxo de fazer estrondos à menor suspeita. Os livros à carga já começaram a funcionar: armas, cantis e marmitas, até um par de binóculos faz parte da existência do aquartelamento.
Binta, a opulenta mulher de Madiu, e minha distinta lavadeira, andou à pancada com algumas comadres e foi o cabo dos trabalhos para serenar os ânimos. O caderno reivindicativo dos dois bazuqueiros chegou a bom termo, já possuem pistolas para se defenderem caso as bazucas emperrarem.
Nos tempos livres, li O Cavalo Espantado, de Alves Redol e O Deserto dos Tártaros de Dino Buzatti. Antes tinha relido com satisfação duas obras indispensáveis: Dicionário Crítico de Algumas Ideias e Palavras Correntes, de António José Saraiva, e O Hóspede de Job, de José Cardoso Pires. José António Saraiva sempre me mereceu a admiração pelas suas investigações na cultura portuguesa. Este dicionário é uma análise ao conteúdo de certos termos para nos precaver "contra a prestidigitação verbal e contra todas as tentativas de subjugação pela palavra". Ele analisa, por exemplo os conceitos de esquerda e direita, laicismo, tradição e liberdades. Fixei para todo o sempre os conceitos de: "país real", "país legal" e "país fabuloso". Lançando uma crítica implícita à ideologia salazarista, o país real em que vivíamos era a boa gente das vilas e aldeias ordeira e inimiga das novidades. Era um país real afinal utópico. Estabelecera-se numa imaginação de cúpula um país fabuloso constituído por pessoas felizes, trabalhadoras e encantadas pelos discursos oficiais de apelo à ordem. Este país fabuloso pode ser uma perigosa realidade tornando mais dolorosa a marcha do país real.
Quanto ao Hóspede de Job é uma saga do Alentejo sem trabalho e de um par de amigos que peregrinam os seus sonhos pela terra amada, o velho Tio Aníbal e o jovem Janico, João Portela que desespera com a falta de trabalho. José Cardoso Pires entusiasmara-me com o seu O Anjo Ancorado, talvez a primeira obra que anuncia o triunfo do desenvolvimento urbano e a latência de uma sociedade de consumo, contrariando usos e costumes da tradição e da obediência. Uma enorme surpresa está para vir e que vai marcar a ferro quente a minha visão de Portugal: O Delfim, lançado em 1968. Perderei toda a minha biblioteca em breve, subsistirá esta obra-prima da literatura portuguesa contemporânea, pois andará sempre no meu saco.
E eis senão quando os ponteiros do destino lançam-se numa nova vertigem: Marcelo Caetano vai falar ao país; as flagelações entram no barro do quotidiano de Missirá; o Alferes Almeida e o seu pelotão de Caçadores Nativos 54 chegam aqui sem pré-aviso para eu partir para a segunda operação ao Burontoni. Ando feliz com as obras de Missirá e os sinais de conforto e bem-estar. A guerra parece estar longe, mas todo o mês de Outubro vai ser palco de pequenas e grandes guerras. Não resisto a contar.
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)
29 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1039: O Pel Caç Nat 52 no Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)
(...) "O Pel Caç Nat 52 esteve largo tempo em Mato Cão, chegou comigo, salvo o erro, um mês ou dois antes do Natal de 72 e por lá foi ficando ao longo de 73. Eu fui para a CCAÇ 15 [, em Mansoa,] em meados desse ano de 1973 e o Pelotão ainda lá ficou" (...)
A propósito da ida do Meixa Alves para a CCAÇ 15, ele já me pediu para esclarecer (e rectificar) a informação (errada) que foi veiculada no blogue segundoa qual ele foi depois capitão miliciano... Ele, de facto, chegou a comandar a CCAÇ 15, mas sempre como Alferes Miliciano. O seu a seu dono... As minhas desculpas, Joaquim!
(3) Vd. post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)
(...) "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...)
Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados.
Guiné > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Geba > 1968 > A necessidade faz o órgão: com três pirogas, o Beja Santos fez uma jangada e, perante a incredulidade geral, levou um velho reboque para a outra margem do Rio Geba e dali até Missirá... Ele tinha fama de levar tudo o que encontrava à mão, já que em Missirá não tinha nada: por isso o pessoal de Bambadinca gritava uns para os outros, mal avistavam o Pel Caç Nat 52 a atravessar a bolanha de Finete: "Eh, malta, em guarda, vem aí o Tigre de Missirá!"...
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Texto enviado em 17 de Outubro de 2006, peloBeja Santos:
Caro Luís, adianto já o texto referente à semana de 30 de Outubro. De 26 a 29 estarei numa conferência em Roma sobre educação do consumidor, os próximos fins de semana são passados numa pós-graduação em Carregal do Sal, e a partir da próxima semana estou em pleno funcionamento universitário. Penso que tu terás duas boas ilustrações para este texto, ou mesmo três: tens aí a minha fotografia a cambar o atrelado; mando-te pelo correio uma preciosidade bibliográfica que é o Dicionário crítico de algumas ideias e palavras correntes que o António José Saraiva escreveu no início dos anos 60 e que a censura de vez em quando retirava do mercado; mas também tens Mato de Cão que hoje é palco de um episódio burlesco que hoje vou contar. Como te disse ao telefone, ainda esta semana seguirá outro texto e prevejo a elaboração de outro em breve pois na última semana de Novembro estarei a fazer um curso em Bruxelas. Não te incomodo mais e recebe um abraço do
Mário.
Continuação da série Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2). O Mário Beja Santos foi Álf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) .
"Não fujam, nós não somos bandidos!"
por Beja Santos
São quatro da manhã, chove desalmadamente para que não nos esqueçamos que daqui a um bocado se seguirá uma cacimba, depois uma fornalha que deixará a lama seca no nosso camuflado. Não caibo de contente, pois hoje vamos trazer um atrelado, oferta do batalhão que parte e que descobriram este apêndice a mais. Não lhes faz jeito nenhum, e para nós é precioso para transportar petróleo e outras cargas . A operação de partida está normalizada: dois cantis, comida em autogestão, dois apontadores de dilagrama, um morteiro 60, uma bazuca, uma metralhadora ligeira, um cortejo de dose equilibrada de caçadores nativos e milícias. Não vejo indumentárias, muitos deles irão vestidos com roupas civis, boinas e gorros multicolores, calças amarelas, colares cheios de enfeites onde não faltam as tampas de cervejas ("manga de ronco!")
Elegi para tema de reflexão para os 12,5 Km que se vão percorrer encontrar o ponto de equilíbrio e a boa comunicação entre os caçadores nativos que têm uma surda guerra de classes com os milícias e deixar o aquartelamento com totais garantias de resistir a uma qualquer flagelação consistente. Não descobri a pólvora, muitos outros terão centenas de civis a ficarem intranquilos quando metade da guarnição parte para estes patrulhamentos diários.
Bambadinca não deu resposta a mais tropa, a mais morteiros e a equipamento mais moderno. Não deu, nem dará. Até agora os ânimos andam acalmados, uns a caiar, outros a pregar chapas na garagem, outros a carpinteirar e a cimentar, não foi fácil instalar os sanitários para civis e militares. Depois de falar com o 2º Comandante que dentro de dias parte, tomei a decisão de não apoiar a proposta do régulo Malã em criar em Canturé uma tabanca em auto-defesa. A concretizar-se este sonho do régulo, teríamos que encontrar mais armamento à altura das circunstâncias e um novo pelotão de milícias. Acontece que não há meios, não posso tirar efectivos a Missirá nem a Finete.
Continuando as minhas cogitações, está resolvido o problema do equipamento perdido, desgastado e até inútil, está feito o abate do tripé de morteiro que eu nunca vi. Quando regressei de Bambadinca da última vez vinha aliviado com os autos de incapacidade e ruína, desde tachos de 20 litros até 108 lençóis. As arrecadações foram limpas de ferros retorcidos, candeeiros sem candeia e peças de viatura sem nenhum préstimo. Estamos outra vez sem petróleo, hoje é preciso trazer mais tinta e estou cheio de curiosidade em saber o que vai fazer o Marcelo Caetano.
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá)
Preciso de mais uma embalagem de Fenergan para tratar os meus inchaços e entretanto começa a doer-me o joelho direito (serei operado a uma exostose em Março próximo). E é no somatório destes factos e eventos que se entrou na estrada de Gambana, Mato de Cão está já bem próximo. É um lindo amanhecer, avisto o Geba barrento com o tarrafe quieto e túrgido. A tropa fica em vigia na colina e junto à estrada. Ao longe vejo o ponto crescente da LDM e na curva do rio, mas lá longe, aparecem seis embarcações. Eu já sabia desta movimentação incomum, estão a chegar os equipamentos do novo batalhão e a partir para Bissau as bagagens de quem os antecede. Acresce que os djilas andam a levar fazendas e a trazer óleo de palma. Compete a Missirá garantir uma livre circulação do Geba sem que os RPG 2 atemorizem ou lancem o caos.
Na posição interesseira de quem quer uma boleia para Bambadinca, ponho-me isolado no pontão, cumprimento o oficial e a guarnição da LDM, eles passam e afastam-se e dirijo depois a palavra ao Comandante do primeiro barco, o mais bojudo e praticamente sem passageiros.
Na posição interesseira de quem quer uma boleia para Bambadinca, ponho-me isolado no pontão, cumprimento o oficial e a guarnição da LDM, eles passam e afastam-se e dirijo depois a palavra ao Comandante do primeiro barco, o mais bojudo e praticamente sem passageiros.
-Somos 25, preciso da sua ajuda, tenho a viatura do outro lado de Bambadinca e carregamentos a fazer.
Sim, podemos ir, 15 no primeiro barco, 10 no segundo. Chamo a tropa e não me apercebi que vieram a correr aos gritos, de armas em riste, um autêntico ulular bélico. A LDM lá vai serena quando se começam a ouvir nas plateias dos terceiro e quarto barcos expressões como cubano, bandidos, desgraça. Quando olho para o espectáculo do pânico instalado, sabe-se lá quem lançou o rastilho do falso alarme, usei a única instância que considerei capaz de travar o pavor generalizado: subi para o tejadilho da cabina, gritei-lhes a plenos pulmões que não éramos bandidos, que, como podiam ouvir, eu não tinha sotaque cubano, pedíamos desculpa pelo susto devido a uma entrada tão desaforada. Os soldados perceberam desta vez que há limites para os clamores desatinados E no porto de Bambadinca tive que cumprimentar todas as tripulações e passageiros. Descobri que de futuro devo aparecer com mais brancos e exigir uma entrada disciplinada do pessoal.
Conheci hoje a Sra Dona Violete, a professora de Bambadinca. Preciso de informações sobre os programas escolares, pedi-lhe mesmo se podia aceitar que o nosso professor bem como o Zé Pereira ali estagiassem por algum tempo. É uma senhora fora do tempo, que fala com brandura, aconchegando o cabelo, recortando a melodia das palavras e que quando conversa avança para o interlocutor. Dei comigo encostado à parede, ela olhava-me em derriço como se eu fosse o primeiro alferes que lhe aparecesse à frente. Esta aparição vai-me custar bem caro em 1970, quando o Comandante me pediu que lhe levasse um ramo de flores e pusesse todos os nossos préstimos à sua disposição. Mas, tirando um episódio trágico-cómico de solidão, será a Dona Violete quem em traços rigorosos me vai explicar o que é hoje Bambadinca. Prometi voltar para conversarmos mais.
Depois de todas as andanças do aprovisionamento, avançamos para uma garagem onde nos aguarda, meio adormecido, o nosso atrelado. Há interjeições, risada e súbito toda a massa do reboque entra em movimento até ao cais. Depois de se parlamentar com Mufali, o canoeiro, apura-se que estamos na vazante, que o reboque não pode ir em cima de uma piroga, com fatalismo assegura-me que não há condições para tirar o reboque desta margem para a outra do Geba.
Mas havia. Olhei para três pirogas ao mesmo tempo, perguntei se elas não podiam estar amarradas e levar toda a carga equilibrada lá dentro. Foi o que aconteceu, como uma fotografia certifica que este atrelado a atravessar o Geba não é fruto do delírio. Ao fim de uma hora, aquela jangada muito especial aterrou no lodo de Finete e toda a tropa o puxou para terra. O guincho do Unimog 411 concluiu a operação que culminou com uma salva de palmas. Ganhei coragem para loucuras maiores que vêm por aí: os balneários de 8 bidões articulados, o nosso precioso chuveiro, passará por esta odisseia, e numa jangada mais sofisticada.
Mais tarde, quando eu perder a vergonha nos meus pedidos e sugerir levar viaturas a partir do Enxalé, encontrarei novas facilidades em jangadas mais possantes que me serão disponibilizadas a partir do porto de Bambadinca. Nesse dia despedi-me do velho batalhão, regressarei a 27 para ouvir o discurso da tomada de posse de Marcelo Caetano. Esse dia será marcado pelo reencontro com o David Payne Pereira, que terá uma importância fundamental para mim. Será o meu arrimo nas horas de desânimo. Aturou-me e tratou-me toda a população civil de Missirá e Finete. Quando, em Abril próximo, o Adão aparecer aos gritos em Bambadinca a dizer que eu não tenho temperatura e devo de estar a morrer e que já não articulo palavra no meu catre, ele virá a correr. Será o padrinho de casamento da Cristina.
Regressamos exaustos mas com petróleo, vitualhas e muitos objectos desirmanados das cantinas de oficiais, sargentos e praças. Nesta sociedade de consumo nada se sabe sobre aqueles microcosmos em que os copos podiam ser pedaços de garrafa, se desconheciam toalhas, travessas e garrafas para água. Missirá, aos poucos, passou a ter baixela, cozinheiros, forno de pão e descobrimos o prazer de estarmos à mesa sem a necessidade de comer à pressa algo de desenxabido antes de se passar ao loto a feijões e analisar as tarefas do dia seguinte.
A verdade é que ainda não me despedi do velho batalhão [, CCAÇ 1910]. Na véspera de partirem, Missirá será brevemente flagelada, o depósito de géneros ficará destelhado e o plinto em cimento para hastear a bandeira destruído. Não haverá vítimas com excepção dos pés feridos do Teixeira das transmissões.
Vão passar-se dois dias calmos. Já temos um gongue para chamar as tropas, é uma velha roda de ferro pendurada num gancho, dispara-se uma martelada com a manivela e Missirá começa a trabalhar. Persuadi Quebá Sonco que não se podem todas as noites fazer morteiradas de reconhecimento para lá dos cajueiros. Bambadinca quer 40 granadas à carga, não nos podemos dar ao luxo de fazer estrondos à menor suspeita. Os livros à carga já começaram a funcionar: armas, cantis e marmitas, até um par de binóculos faz parte da existência do aquartelamento.
Binta, a opulenta mulher de Madiu, e minha distinta lavadeira, andou à pancada com algumas comadres e foi o cabo dos trabalhos para serenar os ânimos. O caderno reivindicativo dos dois bazuqueiros chegou a bom termo, já possuem pistolas para se defenderem caso as bazucas emperrarem.
Nos tempos livres, li O Cavalo Espantado, de Alves Redol e O Deserto dos Tártaros de Dino Buzatti. Antes tinha relido com satisfação duas obras indispensáveis: Dicionário Crítico de Algumas Ideias e Palavras Correntes, de António José Saraiva, e O Hóspede de Job, de José Cardoso Pires. José António Saraiva sempre me mereceu a admiração pelas suas investigações na cultura portuguesa. Este dicionário é uma análise ao conteúdo de certos termos para nos precaver "contra a prestidigitação verbal e contra todas as tentativas de subjugação pela palavra". Ele analisa, por exemplo os conceitos de esquerda e direita, laicismo, tradição e liberdades. Fixei para todo o sempre os conceitos de: "país real", "país legal" e "país fabuloso". Lançando uma crítica implícita à ideologia salazarista, o país real em que vivíamos era a boa gente das vilas e aldeias ordeira e inimiga das novidades. Era um país real afinal utópico. Estabelecera-se numa imaginação de cúpula um país fabuloso constituído por pessoas felizes, trabalhadoras e encantadas pelos discursos oficiais de apelo à ordem. Este país fabuloso pode ser uma perigosa realidade tornando mais dolorosa a marcha do país real.
Quanto ao Hóspede de Job é uma saga do Alentejo sem trabalho e de um par de amigos que peregrinam os seus sonhos pela terra amada, o velho Tio Aníbal e o jovem Janico, João Portela que desespera com a falta de trabalho. José Cardoso Pires entusiasmara-me com o seu O Anjo Ancorado, talvez a primeira obra que anuncia o triunfo do desenvolvimento urbano e a latência de uma sociedade de consumo, contrariando usos e costumes da tradição e da obediência. Uma enorme surpresa está para vir e que vai marcar a ferro quente a minha visão de Portugal: O Delfim, lançado em 1968. Perderei toda a minha biblioteca em breve, subsistirá esta obra-prima da literatura portuguesa contemporânea, pois andará sempre no meu saco.
E eis senão quando os ponteiros do destino lançam-se numa nova vertigem: Marcelo Caetano vai falar ao país; as flagelações entram no barro do quotidiano de Missirá; o Alferes Almeida e o seu pelotão de Caçadores Nativos 54 chegam aqui sem pré-aviso para eu partir para a segunda operação ao Burontoni. Ando feliz com as obras de Missirá e os sinais de conforto e bem-estar. A guerra parece estar longe, mas todo o mês de Outubro vai ser palco de pequenas e grandes guerras. Não resisto a contar.
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)
29 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1039: O Pel Caç Nat 52 no Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)
(...) "O Pel Caç Nat 52 esteve largo tempo em Mato Cão, chegou comigo, salvo o erro, um mês ou dois antes do Natal de 72 e por lá foi ficando ao longo de 73. Eu fui para a CCAÇ 15 [, em Mansoa,] em meados desse ano de 1973 e o Pelotão ainda lá ficou" (...)
A propósito da ida do Meixa Alves para a CCAÇ 15, ele já me pediu para esclarecer (e rectificar) a informação (errada) que foi veiculada no blogue segundoa qual ele foi depois capitão miliciano... Ele, de facto, chegou a comandar a CCAÇ 15, mas sempre como Alferes Miliciano. O seu a seu dono... As minhas desculpas, Joaquim!
(3) Vd. post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P1228: Questões politicamente (in)correctas (4): Terror e contra-terror na guerra colonial ou do Ultramar (Beja Santos)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > O tigre de Missirá, o Alf Mil Beja Santos, como era conhecido pelos seus camaradas de Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70).... "Com afecto por uns, com humor por outros"! - acrescento eu (LG).
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Texto do Mário Beja Santos, de 24 de Outubro de 2006:
Caro camarada Carlos Vinhal, a nossa opinião sobre os termos utilizados é indispensável mas convirá, penso eu, contextualizar o pretérito das nossas memórias e o amplo arco ideológico que nos irmana. Vou recorrer neste diálogo aos termos que invoca.
Tuga não é pacífico nem incontroverso. Era usado pela propaganda do PAIGC, logo inquestionável por fazer parte de um uso com uma vocação certa. Nunca vi ninguém irado ou amesquinhado com o termo, teve o seu tempo, atingiu os seus objectivos.
Admito que Nharro seja pejorativo hoje, seria uma remake de mau gosto já que no passado tinha carga colonial, classista. Mas não excluo que a sinceridade de quem queira usar querido Nharro seja afectividade pura, uma forma de puxar pela memória sem complacência pelos maus juízos do passado.
Quanto a terrorista, não podemos apagar a história. Na Operação Macaréu à Vista escrevo sem hesitações as práticas de contra-terror. Porque era indispensável recorrermos ao contra-terror: na mina colocada em acessos à volta dos nossos quartéis; nas emboscadas em que esperávamos vítimas imprevísiveis e inquantificáveis; no estrondo da nossa resposta durante as flagelações. Uma coisa era o salazarismo falar em terrorismo, outra o pavor que cirandava das práticas do IN. Um fornilho, uma mina anticarro, um assalto a uma tabanca em autodefesa, provocavam o terror.
Era aliás, isso, que o IN pretendia. Eu pretendia exactamente o oposto: intimidar o IN, surpreendendo com o terrífico da minha presença. Não me pacifico à procura do politicamente correcto, confudindo os eventos do passado com a leitura do presente. Houve mesmo terror e contra-terror. O IN provocava, ou queria provocar terror quando disparava os RPG2 sobre barcos de gente indefesa, procurando a intimidação total e evitar o comércio no Geba, por exemplo. Qual é o mal? Não falávamos nós nos Turras, mesmo que a expressão não tenha hoje a conotação que tinha?
Temos, por último, a Guerra Colonial. Aviso-o que estou completamente de acordo consigo. Mas não posso sugerir que todos nos pautamos pela mesma bitola. A família do blogue, por definição, não pode ter preconceitos ideológicos. Se eu pedir a abolição no uso de Guerra do Ultramar estou a erguer uma descriminação séria contra aqueles com quem pactuei estar no blogue e que continuam convictos que defenderam o Ultramar.
Recordo que o conceito de Ultramar faz parte da história de Portugal, envolveu heróis como Mouzinho de Albuquerque ou Aires de Ornelas, os republicanos julgavam seu dever entrar na 1ª Guerra Mundial também para defender o Ultramar. A reconciliação dos portugueses, e especificamente destes camaradas da Guiné no blogue, far-se-à pelo uso da temperança e do pleno respeito com que queremos dialogar sem aviltarmos a consciência dos outros. Assim, o blogue crescerá na plena diversidade assumida.
Receba a cordialidade e a estima
do Mário Beja Santos
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Texto do Mário Beja Santos, de 24 de Outubro de 2006:
Caro camarada Carlos Vinhal, a nossa opinião sobre os termos utilizados é indispensável mas convirá, penso eu, contextualizar o pretérito das nossas memórias e o amplo arco ideológico que nos irmana. Vou recorrer neste diálogo aos termos que invoca.
Tuga não é pacífico nem incontroverso. Era usado pela propaganda do PAIGC, logo inquestionável por fazer parte de um uso com uma vocação certa. Nunca vi ninguém irado ou amesquinhado com o termo, teve o seu tempo, atingiu os seus objectivos.
Admito que Nharro seja pejorativo hoje, seria uma remake de mau gosto já que no passado tinha carga colonial, classista. Mas não excluo que a sinceridade de quem queira usar querido Nharro seja afectividade pura, uma forma de puxar pela memória sem complacência pelos maus juízos do passado.
Quanto a terrorista, não podemos apagar a história. Na Operação Macaréu à Vista escrevo sem hesitações as práticas de contra-terror. Porque era indispensável recorrermos ao contra-terror: na mina colocada em acessos à volta dos nossos quartéis; nas emboscadas em que esperávamos vítimas imprevísiveis e inquantificáveis; no estrondo da nossa resposta durante as flagelações. Uma coisa era o salazarismo falar em terrorismo, outra o pavor que cirandava das práticas do IN. Um fornilho, uma mina anticarro, um assalto a uma tabanca em autodefesa, provocavam o terror.
Era aliás, isso, que o IN pretendia. Eu pretendia exactamente o oposto: intimidar o IN, surpreendendo com o terrífico da minha presença. Não me pacifico à procura do politicamente correcto, confudindo os eventos do passado com a leitura do presente. Houve mesmo terror e contra-terror. O IN provocava, ou queria provocar terror quando disparava os RPG2 sobre barcos de gente indefesa, procurando a intimidação total e evitar o comércio no Geba, por exemplo. Qual é o mal? Não falávamos nós nos Turras, mesmo que a expressão não tenha hoje a conotação que tinha?
Temos, por último, a Guerra Colonial. Aviso-o que estou completamente de acordo consigo. Mas não posso sugerir que todos nos pautamos pela mesma bitola. A família do blogue, por definição, não pode ter preconceitos ideológicos. Se eu pedir a abolição no uso de Guerra do Ultramar estou a erguer uma descriminação séria contra aqueles com quem pactuei estar no blogue e que continuam convictos que defenderam o Ultramar.
Recordo que o conceito de Ultramar faz parte da história de Portugal, envolveu heróis como Mouzinho de Albuquerque ou Aires de Ornelas, os republicanos julgavam seu dever entrar na 1ª Guerra Mundial também para defender o Ultramar. A reconciliação dos portugueses, e especificamente destes camaradas da Guiné no blogue, far-se-à pelo uso da temperança e do pleno respeito com que queremos dialogar sem aviltarmos a consciência dos outros. Assim, o blogue crescerá na plena diversidade assumida.
Receba a cordialidade e a estima
do Mário Beja Santos
Guiné 63/74 - P1227: Questões politicamente (in)correctas (3): Blogue colectivo, mas não colectivista (João Tunes)
Texto do João Tunes, com data de 23 de Outubro de 2006:
Comandante Luís,
Aqui vão as minhas sugestões de emendas que democraticamente apresento à Mesa:
Blogue colectivo mas não colectivista, porque queremos ser um espaço de memórias partilhadas sem as querermos atropelar com a estulta pretensão de existir uma (unicista) memória colectiva, editado por Luís Graça, que tem como missão permitir aos ex-combatentes, de um lado e de outro da guerra colonial / guerra de libertação na Guiné, ocorrida entre 1963 e 1974, reconstituirem os puzzles das suas memórias. Desde 25 de Abril de 2005, que formamos já a maior tertúlia virtual, em língua portuguesa, sobre a experiência desta guerra. Os seus membros ultrapassaram a casa da centena e, como camaradas que somos, tratamos-nos todos por tu. A palavra de ordem é: Não deixem que sejam os outros a contar a nossa história que é a soma das histórias memorizadas de cada ex-combatente entroncadas nas Histórias dos povos de Portugal e da Guiné-Bissau. Para o bem e/ou para o mal, nós estivemos lá!
Abraço.
João Tunes
Comandante Luís,
Aqui vão as minhas sugestões de emendas que democraticamente apresento à Mesa:
Blogue colectivo mas não colectivista, porque queremos ser um espaço de memórias partilhadas sem as querermos atropelar com a estulta pretensão de existir uma (unicista) memória colectiva, editado por Luís Graça, que tem como missão permitir aos ex-combatentes, de um lado e de outro da guerra colonial / guerra de libertação na Guiné, ocorrida entre 1963 e 1974, reconstituirem os puzzles das suas memórias. Desde 25 de Abril de 2005, que formamos já a maior tertúlia virtual, em língua portuguesa, sobre a experiência desta guerra. Os seus membros ultrapassaram a casa da centena e, como camaradas que somos, tratamos-nos todos por tu. A palavra de ordem é: Não deixem que sejam os outros a contar a nossa história que é a soma das histórias memorizadas de cada ex-combatente entroncadas nas Histórias dos povos de Portugal e da Guiné-Bissau. Para o bem e/ou para o mal, nós estivemos lá!
Abraço.
João Tunes
Guiné 63/74 - P1226: Questões politicamente (in)correctas (2): Tugas, nharros e turras (Carlos Vinhal)
Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970. Uma unidade constituída por nharros, tugas e até turras!... A legenda é do açoriano Mário Armas de Sousa: " 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro sou eu, furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"
Foto: © Mário Armas de Sousa (2005). Direitos reservados.
Texto do Carlos Vinhal, com data de 23 de Outuibro de 2006:
Caros Camaradas:
Vou dar a minha opinião sobre os termos utilizados no nosso blogue, postos à discussão.
- Tuga, julgo ser o diminutivo de Portuga ou Português, ou alguém de pele branca, o que torna o termo pacífico (1).
- Nharro, utilizávamos nós quando queríamos ofender ou pelo menos provocar um preto. Acho que devemos abandonar este termo, mesmo acompanhado de querido. Acho que é dar uma no cravo e outra na ferradura (2).
- Há outro termo que devíamos abolir, uma vez que falamos de um passado de guerra com povos que hoje admitimos serem nossos irmãos. Terroriasta (ou Turra) é para o caso da Guiné em particular exagerado, porque não houve casos de terrorismo propriamente dito, mas uma guerra subversiva, local, em que valia tudo de parte a parte e, de onde nós, portugueses, não saímos de consciência limpa (3).
Todos nos lembramos da guerra que a França travou com os Argelinos, esses sim terroristas, porque executaram acções terroristas em plena França, quando a guerra se travava em Argel.
Sempre que nos meus trabalhos me quero referir aos nossos antagonistas do PAIGC, digo IN [Inimigo]. Acho mais próprio e não ofende quem estava de um ou outro lado da espingarda.
- A Guerra que travámos foi sem dúvida uma Guerra Colonial, já que para todos os efeitos práticos as nossas Províncias Ultramarinas mais não eram que Colónias, com estatuto alterado por Decreto. Nós combatentes não nos temos de envergonhar por isso.
É tempo de nos pacificarmos com nós próprios e de irmos aos poucos suavizando o nosso azedume, por um tempo que foi tão difícil de suportar quão difícil é de esquecer.
O nosso Blogue está bem e recomenda-se, ainda por cima tendo como timoneiro o Luís. Sou de opinião que o Luís deve gerir o blogue de acordo com o seu critério que até agora tem dado tão bons resultados e a disponibilidade técnica do senhorio para dar oportunidade a toda a gente se poder exprimir.
Qualquer dia, sem darmos por isso, estaremos a inaugurar o... blogueforanadaevaocem.
É tudo, um abraço do
Vinhal
Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur MilArt MA
CART 2732
Mansabá/Guiné 70/72
Leça da Palmeira
Telemóvel> 916032220
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. por exemplo post de 8 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVIII: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)
(...) "Tenho algumas cartas que fui escrevendo, no meu Diário de um Tuga, dirigidas a amigos, mas que nunca cheguei a pôr no correio. Por lassidão. Por cansaço. Mas também por receio de correr riscos, desnecessários. Nunca soube até que ponto a PIDE/DGS me vigiava, nos vigiava" (...)
(2) Vd por exemplo post de 11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)
(...) "Aos nossos queridos nharros... Tropa africana que connosco deram o seu sangue, suor e lágrimas, por Portugal, com toda a carga emotiva, de carinho e afecto que a palavra nharro possa conter" (...).
(3) Vd. por exemplo post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)
(...) "Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.
"A justificação era simples, segundo os meus nharros: um balanta a menos, era um turra era menos (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência" (…).
Guiné 63/74 - P1225: Questões politicamente (in)correctas (1): Descrição do nosso blogue (Luís Graça)
Texto do editor do blogue, com data de 23 de3 Outubro de 2006:
Amigos e camaradas de tertúlia:
Reformulei a lead de apresentação do nosso blogue (Luís Graça & Camaradas da Guiné). Trata-se da descrição que vem logo a seguir ao título do blogue e que não pode ter mais de 500 palavras (imposição do senhorio que nos fornece o espaço de alojamento, de borla: o Blogger.com ).
Retirei, por exemplo, a referência aos tugas, nharros e turras... O David Guimarães há tempos tinha sugerido que os termos nharro e turra podiam ser mal aceites pelos nossos amigos e irmãos da Guiné, pelas suas conotações racistas e colonialistas… Também já li comentários, desagradados, de compatriotas nossos sobre o uso da palavra tuga, que os guerrilheiros do PAIGC usavam de maneira acintosa poara apelidar o soldado português...
São/eram termos do nosso calão de caserna, que podemos usar num contexto de brincadeira, mas não na apresentação do blogue… A própria expressão guerra colonial pode não ser pacífica… Para uns, os guineenses, foi guerra de libertação: para outros de nós, foi guerra do Ultramar (1)...
Por outro lado, qual deve ser a nossa missão, a missão do nosso blogue ? É obrigatório ter uma missão ?
Enfim, se isto é um blogue colectivo (cada vez mais, acho eu…), então todos podemos e devemos dar a nossa opinião sobre estas questões… Fico a aguardar as vossas sugestões, comentários e críticas (positivas/negativas)… Vejam também se o vosso nome consta da coluna do lado esquerdo… Eu acho que não dá para pôr a unidade a que pertenceram, ficaria muito pesado e ilegível… Essa informação vem na página, na Net, respeitante à tertúlia (que está alojada na minha própria página pessoal.
http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/guine_guerracolonial_tertulia.html
A nova descrição do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné:
Blogue colectivo, editado por Luís Graça, que tem como missão ajudar os ex-combatentes, de um lado e de outro, a reconstituir o puzzle da memória da guerra colonial, na Guiné. Desde 25 de Abril de 2005, que formamos já a maior tertúlia virtual, em português, sobre a experiência desta guerra. Os seus membros ultrapassaram a casa da centena e, como camaradas que são, tratam-se todos por tu. A palavra de ordem é: Não deixem que sejam os outros a contar a nossa história!
Recordo que este blogue é a continuação do anterior (Blogue-fora-nada), que não nasceu especificamente virado para a experiência da guerra colonial… Era um blogue pessoal, virado para o sociologuês, que remonta a Outubro de 2003, onde eu também comecei a escrever coisas sobre a guerra (a partir de Abril de 2005)… Mas tem um recheio fabuloso, com posts (textos e fotos>) de diferentes camaradas, enfim todos os posts que vocês escreveram entre Abril de 2005 e Maio de 2006… Tenho estado a repescar alguns dos posts mais antigos, que não são conhecidos da maioria dos tertulianos… Como já repararam, faço muitas hperligações (links) para esta primeira série do nosso blogue… Porque a nossa conversa é como... as cerejas.
____________
Nota de L.G.:
(1) Até mesmo a expressão ex-combatentes não é pacífica... Já tenho recebido algumas (felizmente, poucas) provocações, de visitantes do blogue, antigos camaradas nossos, como por exemplo estas duas (cujo autor não vou citar, já que não faz parte da nossa tertúlia nem entende o espírito que nos une):
"Ó Luís: É a primeira vez que vejo este site, mas ou mudas a terminologia para guerra do ultramar e todo o resto,ou então nunca mais vejo isto....e deixa de confratenizar com os turras" (1 de Julho de 2006).
"Ó Luís, onde foste buscar essa dos ex-combatentes? Somos tão combatentes como os nossos avós que combateram na 1ª Guerra Mundial,ou é algum pecado dizer que somos combatentes? Deixa os ex para os politicos,OK." (1 de Julho de 2006).
Amigos e camaradas de tertúlia:
Reformulei a lead de apresentação do nosso blogue (Luís Graça & Camaradas da Guiné). Trata-se da descrição que vem logo a seguir ao título do blogue e que não pode ter mais de 500 palavras (imposição do senhorio que nos fornece o espaço de alojamento, de borla: o Blogger.com ).
Retirei, por exemplo, a referência aos tugas, nharros e turras... O David Guimarães há tempos tinha sugerido que os termos nharro e turra podiam ser mal aceites pelos nossos amigos e irmãos da Guiné, pelas suas conotações racistas e colonialistas… Também já li comentários, desagradados, de compatriotas nossos sobre o uso da palavra tuga, que os guerrilheiros do PAIGC usavam de maneira acintosa poara apelidar o soldado português...
São/eram termos do nosso calão de caserna, que podemos usar num contexto de brincadeira, mas não na apresentação do blogue… A própria expressão guerra colonial pode não ser pacífica… Para uns, os guineenses, foi guerra de libertação: para outros de nós, foi guerra do Ultramar (1)...
Por outro lado, qual deve ser a nossa missão, a missão do nosso blogue ? É obrigatório ter uma missão ?
Enfim, se isto é um blogue colectivo (cada vez mais, acho eu…), então todos podemos e devemos dar a nossa opinião sobre estas questões… Fico a aguardar as vossas sugestões, comentários e críticas (positivas/negativas)… Vejam também se o vosso nome consta da coluna do lado esquerdo… Eu acho que não dá para pôr a unidade a que pertenceram, ficaria muito pesado e ilegível… Essa informação vem na página, na Net, respeitante à tertúlia (que está alojada na minha própria página pessoal.
http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/guine_guerracolonial_tertulia.html
A nova descrição do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné:
Blogue colectivo, editado por Luís Graça, que tem como missão ajudar os ex-combatentes, de um lado e de outro, a reconstituir o puzzle da memória da guerra colonial, na Guiné. Desde 25 de Abril de 2005, que formamos já a maior tertúlia virtual, em português, sobre a experiência desta guerra. Os seus membros ultrapassaram a casa da centena e, como camaradas que são, tratam-se todos por tu. A palavra de ordem é: Não deixem que sejam os outros a contar a nossa história!
Recordo que este blogue é a continuação do anterior (Blogue-fora-nada), que não nasceu especificamente virado para a experiência da guerra colonial… Era um blogue pessoal, virado para o sociologuês, que remonta a Outubro de 2003, onde eu também comecei a escrever coisas sobre a guerra (a partir de Abril de 2005)… Mas tem um recheio fabuloso, com posts (textos e fotos>) de diferentes camaradas, enfim todos os posts que vocês escreveram entre Abril de 2005 e Maio de 2006… Tenho estado a repescar alguns dos posts mais antigos, que não são conhecidos da maioria dos tertulianos… Como já repararam, faço muitas hperligações (links) para esta primeira série do nosso blogue… Porque a nossa conversa é como... as cerejas.
____________
Nota de L.G.:
(1) Até mesmo a expressão ex-combatentes não é pacífica... Já tenho recebido algumas (felizmente, poucas) provocações, de visitantes do blogue, antigos camaradas nossos, como por exemplo estas duas (cujo autor não vou citar, já que não faz parte da nossa tertúlia nem entende o espírito que nos une):
"Ó Luís: É a primeira vez que vejo este site, mas ou mudas a terminologia para guerra do ultramar e todo o resto,ou então nunca mais vejo isto....e deixa de confratenizar com os turras" (1 de Julho de 2006).
"Ó Luís, onde foste buscar essa dos ex-combatentes? Somos tão combatentes como os nossos avós que combateram na 1ª Guerra Mundial,ou é algum pecado dizer que somos combatentes? Deixa os ex para os politicos,OK." (1 de Julho de 2006).
Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto
Autorização (provisória) de domicílio em França, dada em 4 de Outubro de 1967, pelas autoridades policiais francesas (DGSN - Direcção Geral da Segurança Nacional), ao português Victor Junquueira Anastácio, nascido em Lisboa, a 20 de Janeiro de 1948, e residente em Le Mesnil, St Denis, Yvelines.
Inscrição do Vitor, em 22 de Dezembro de 1969, no Consulado-Geral de Portugal em Paris. Como ele já explicou em post anterior (1), "estávamos em Dezembro de 1969 e eu já então sabia que o meu destino era a Guiné, pois essa havia sido a minha opção. Pelos carimbos poderás também constatar que ainda cheguei a tempo para a ceia de Natal! Logo nos primeiros dias de Janeiro embarquei para os Açores a fim de constituir a minha unidade (2)"...
O Vitor faz questão de lembrar que, na tropa, não teve "tratamento especial". Do seu currículo consta que foi "trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico". Além disso, gosta de sublinhar: "Nunca fui bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia. Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida, só comparáveis àqueles em que andei lá por fora".
Texto e fotos: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1). Vive hoje em Pombal, onde é médico e... avô babado.
Continuação da carta que o Vitor Junqueira me escreveu, em 23 de Outubro de 2006, publicada em 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Vitor Junqueira: Irmãos de sangue, suor e lágrimas (Vitor Junqueira)
Caro Luís,
A continuação de uma excelente tarde de trabalho, com algum lazer pelo meio são os meus votos. Já agora, permite-me esta observação. Nos teus mails aparece sempre a referência a este binómio: bom trabalho/boa saúde. Se é verdade o que dizem (o trabalho dá saúde), não seria melhor dar alta aos doentes e pô-los a bulir? Não leves a mal. Isto são lérias do Zé Povo aqui da minha zona.
Vamos ao assunto. No meu último e-mail dizia-te que as tais imagens - que estive hoje a digitalizar - seguiriam logo, logo. Pois aqui vão elas. Provavelmente não te dirão nada e com toda a franqueza, também acho que não terão grande interesse para a nossa comunidade. No entanto, a motivação que me levou a pregar-te esta grande seca, foi tentar demonstrar que nem tudo o que por aí se diz a propósito daqueles que se escapuliram à tropa é verdade.
Parece que, como eu de certo modo antecipei, o pessoal começa finalmente a abrir o saco. Já hoje recebi um e-mail daquele camarada que, ao correr da tecla, descarregou a sua revolta (3). E isso é muito bom, pois é a melhor forma de terapia até agora ensaiada para combater as feridas da alma que, passados mais de trinta anos, ainda incomodam muita gente.
Tocou-me particularmente a reacção daqueles dois camaradas que, em Montemor, aproveitando talvez o aconchego da família (nós todos), não tiveram qualquer prurido em deixar escapar um pouco da pressão (4). Se não tivessem outro mérito, estes encontros são extraordinariamente benéficos na área da recuperação das pessoas afectadas pelo stress traumático.
Também gostei do e-mail do Vacas de Carvalho, aquele do provérbio árabe (5). Se interpretei bem, ele quis dizer que esperava mais frutos, mais reacções, mais intervenção. Estarei enganado?
E para terminar aqui vai mais uma da minha lavra. Se quisermos que a nossa tertúlia se transforme em algo menos efémero, crie raízes baseadas na confiança mútua e na reciprocidade e possa evoluir, dando vida a uma autêntica comunidade, temos que mudar de agulha!
Discutamos, defendamos os nossos pontos de vista sem receio do inoportuno ou politicamente incorrecto. Com urbanidade e gentileza. E se alguém ficar com o burro e quiser ir tomar ar durante uns tempos, tudo bem. Voltará mais tarde!
Mas acima de tudo, temos de conhecer o Homem que está por detrás de cada endereço de e-mail. A ele, à família, aos seus projectos, aos seu êxitos e percalços, aos seus sonhos ...
Pela minha parte, considero que estou a dar início às hostilidades. Quem quer seguir-me?
Esguenta pêssoal.
Vitor
2. Comentário de L.G.:
Meu caro Vitor: Tu deixaste soltar o homem, o português e o patriota que há em ti; depois de ti, outras histórias de vida serão bem-vindas e aqui publicadas: o convite está feito, a porta entreaberta... Na realidade, todos temos um rosto, um bilhete de identidade, um percurso, uma história de vida, antes, durante e depois da Guiné... Eu já tinha em tempos lançado o desafio, quiçá a provocação, para falarmos dos nossos amigos, refractários e desertores... Eu sei que os combatentes têm dificuldade em olhá-los de frente até mesmo aqueles que, tendo objecções de consciência ou discordando da política ultramarina, envergaram a farda e pegaram na G-3...
Um dia gostava de ver aqui no blogue o testemunho de alguém que nos viesse dizer, cara à cara: eu desertei; ou eu fugi a salto para França, porque não queria fazer a guerra, ou tinha medo de ir para a guerra... Tu, pelo contrário, vens dizer, em voz alta na caserna, que nas vésperas de ires para a Guiné andavas em Paris, tranquilo, com passaporte e tudo, e não desertaste... Eu não condeno ninguém: os refractários, os desertores ou os combatentes... Só quero compreendê-los...
No nosso blogue não há tabus. E se eu usei o termo politicamente correcto, foi só por brincadeira, a respeito da tua afirmação: A Guiné foram dois dos melhores anos da minha vida (4)... Eu acho que a nossa cultura de pluralismo e de tolerância, que temos vindo aqui a criar e a alimentar, já deu os seus frutos: somos capazes de viver com as nossas afinidades, com as nossas diferenças e até com os nossos conflitos...
Com o teu testemunho de vida, com a tua já reconhecida frontalidade, ajudaste-nos a não perder de vista o essencial desta tertúlia... Da tertúlia à rede social, à comunidade, vai um passo: já comprovámos isso na Ameira...
No essencial, estou de acordo contigo e subscrevo a tua proposta: "Discutamos, defendamos os nossos pontos de vista sem receio do inoportuno ou politicamente incorrecto. Com urbanidade e gentileza (...). Mas acima de tudo, temos de conhecer o Homem que está por detrás de cada endereço de e-mail. A ele, à família, aos seus projectos, aos seu êxitos e percalços, aos seus sonhos"...
Quanto ao binónimo saúde-trabalho, é defeito profissional: uma das minhas áreas de interesse, estudo, ensino e investigação é precisamente a protecção e promoção da saúde no local de trabalho. Como tu sabes na nossa cultura judaico-cristã, o trabalho e a saúde não combinam bem (contrariamente, a na ética protestante, calvanista e luterano, trabalho é realização, prazer, riqueza, talk na ética confuciana)... Nas línguas latinas a palavra Trabalho, em português (Trabajo, Trebal, Travail, etc., em castelhano, francês e catalão, respectivamente) vem do latim tardio 'tripalium', instrumento composto por 'tres pales', três paus, que no tempo dos romanos servia para 'tripaliare', ou seja, torturar, castigar ou justiçar... os escravos).
Temos expressões deliciosas (e racistas) sobre esta repulsa por (e desvalorização social de) o trabalho (manual): Trabalhar é bom para o preto, Trabalhar que nem um mouro, e por aí fora... No Rio de Janeiro, o malandro carioca dizia: Trabalho se fez para burro e português... Tens diversos textos meus sobre as representações sociais a respeito da saúde, da doença, da morte, do trabalho, do hospital, dos médicos e outros profissionais de saúde... Desculpa lá esta minha manifestação de erudição que te poderá parecer pretensiosa...
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. postes de:
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753
23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas
"Também espero poder falar-te um dia da minha experiência como emigrante em terras de França e do chorrilho de mitos e, principalmente estereótipos, que surgiram a respeito daqueles que aí procuraram melhores condições de vida. O fado estafadito de la valise à carton, dos bidonvilles de Champigny e outros sítios, assim como as propaladas fugas em massa à guerra colonial não traduzem a realidade da emigração portuguesa nos finais da década de sessenta. É que eu estive lá!" (...)
(2) Vd. posts de
10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1163: Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)
(3) Vd. post de23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1206: O passado não me pertence só a mim, é colectivo (Torcato Mendonça)
(4) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)
(5) Vd. post de 24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1208: Eu ouvi o passarinho, às quatro da madrugada (J.L. Vacas de Carvalho / Fernando Calado)
segunda-feira, 30 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1223: Soldado Comando Raimundo, natural da Azambuja, morto em Guidaje: Presente! (A. Mendes, 38ª CCmds)
Guiné > Região do Cacheu > Gr Comb da 38ª Companhia de Comandos > Dia de Natal: 25 de Dezembro de 1972. Subindo o Rio Caboiana, afluente do Cacheu, em LDM... O soldado comando Raimundo está assinalado com um círculo, a verde.
Texto e foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservados.
Mensagem do nosso camarada A. Mendes, ex-1º Cabo Cmd da 38ª CCmds (Os Leopardos) (Guiné, Brá, 1972/74).
Luís: A foto que postaste da LDM no Rio Caboiana (1), faz-me reviver com amargura esse tempo, pelo facto de que, ao olhá-la, gostaria de parar o tempo. Gostaria de parar o tempo porque nela está imagem de alguém que já não está entre nós, alguém que foi uma perca muito dolorosa para todos os camaradas da 38ª Companhia de Comandos.
Na foto o rapaz que está de camisola branca do lado direito, sentado na lateral da LDM, é o meu querido Amigo que perdeu a vida em Maio de 1973 nas valas de Guidaje (2) e a quem eu presto aqui a minha homenagem e a quem com as lágrimas nos olhos grito: JOSÉ LUIS INÁCIO RAIMUNDO, estarás sempre presente no meu coração e nas minhas memórias, que Deus te mantenha do seu lado direito e que, quando eu te voltar a encontrar, tenhas ainda esse sorriso tão simples e sincero que ainda hoje é lembrado na tua terra natal, a Azambuja. Descansa em Paz, querido amigo.
A.Mendes
_______
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 29 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1221: Lembranças de mais um marujo (Marques Pinto)
(2) Vd. post de 23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje
(...) "12 de Maio de 1973
"Cerca das três horas da manhã rebenta um violento ataque ao destacamento que é de meter medo. O IN deve ter as coordenadas das valas pois o fogo acerta todo dentro das valas. O barulho rebenta com os ouvidos. Dura cerca de 30 m. São centenas de projécteis. É de dar em doido!
"A nossa artilharia responde ao fogo e lá se consegue parar o ataque. Terminado o ataque vamos fazer a contagem e duas vozes não respondem. Um, o Soldado Comando Raimundo, meu camarada de grupo, um moço da Azambuja a quem nunca mais ouvirei a sua voz; outro, um soldado condutor que tinha vindo connosco. Ficaram os dois desfeitos na vala com morteirada 120 mm" (...).
domingo, 29 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1222: Lembrar ao Matos Gomes que a 38ª CCmds foi a primeira romper o cerco a Guidaje (A. Mendes)
Guiné > Brá > 38ª CCmds (1972/74) > Ex-1º cabo comando A. Mendes.
Texto e foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservados.
Conheci perfeitamente o então capitão Matos Gomes, na altura na Guiné, como meu 2º comandante do Batalhão de Comandos em Brá. Em todos os acontecimentos que tenho estado a relatar (1), nunca o capitão Matos Gomes esteve presente. E o curioso é que a minha companhia foi uma das forças que esteve sempre presente nos acontecimentos em Guidaje, em Maio-Junho 73, onde tivemos mortos, além deferidos graves e ligeiros. Ora no livro do Matos Gomes nem uma referência é feita à 38ª Companhia de Comandos. Sabe-se lá porquê!
Quando no livro se fala no cerco de Guidaje (2) e se menciona que (passo a citar)"em 12 de Maio, chegou a Guidajee uma coluna de reabastecimento constituída pelo destacamento de fuzileiros especiais 3 e 4"(fim de citação)... Pois é, mas a minha companhia já lá tinha chegado antes: fomos a primeira companhia a romper o cerco, só que na altura não estávamos integrados no Batalhão de Comandos mas sim afectos ao CAOP 1, sedeado em Mansoa. Só esquecimento (?) - penso eu e mais 150 elementos da 38º CCmds. Quero esclarecer que a minha companhia não fez parte da operação Ametista Real (3).
A. Mendes
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1199: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (1): Sete anos de serviço
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1200: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (2): Um dia de Natal na mata de Cubiana-Churo
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje
24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...
(2) Vd. post de 21 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1198: Antologia (53): Guidaje, Maio de 1973: o inferno (Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes)
(3) Vd. post de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) (João Almeida Bruno)
Texto e foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservados.
Conheci perfeitamente o então capitão Matos Gomes, na altura na Guiné, como meu 2º comandante do Batalhão de Comandos em Brá. Em todos os acontecimentos que tenho estado a relatar (1), nunca o capitão Matos Gomes esteve presente. E o curioso é que a minha companhia foi uma das forças que esteve sempre presente nos acontecimentos em Guidaje, em Maio-Junho 73, onde tivemos mortos, além deferidos graves e ligeiros. Ora no livro do Matos Gomes nem uma referência é feita à 38ª Companhia de Comandos. Sabe-se lá porquê!
Quando no livro se fala no cerco de Guidaje (2) e se menciona que (passo a citar)"em 12 de Maio, chegou a Guidajee uma coluna de reabastecimento constituída pelo destacamento de fuzileiros especiais 3 e 4"(fim de citação)... Pois é, mas a minha companhia já lá tinha chegado antes: fomos a primeira companhia a romper o cerco, só que na altura não estávamos integrados no Batalhão de Comandos mas sim afectos ao CAOP 1, sedeado em Mansoa. Só esquecimento (?) - penso eu e mais 150 elementos da 38º CCmds. Quero esclarecer que a minha companhia não fez parte da operação Ametista Real (3).
A. Mendes
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1199: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (1): Sete anos de serviço
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1200: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (2): Um dia de Natal na mata de Cubiana-Churo
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje
24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...
(2) Vd. post de 21 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1198: Antologia (53): Guidaje, Maio de 1973: o inferno (Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes)
(3) Vd. post de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) (João Almeida Bruno)
Guiné 63/74 - P1221: O Nosso Livro de Visitas: Lembranças de mais um marujo (Marques Pinto)
Foto: © Mário Dias (2005). Direitos reservados.
Guiné > Região do Cacheu > Dia de Natal: 25 de Dezembro de 1972 > Um Gr Comb da 38ª CCmds (Os Leopardos) (1972/74) subindo o Rio Cacheu, em LDM... Na foto são visíveis o poço e a porta de bater, da LDM, a que se refere o texto a seguir publicado.
Foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Texto do oficial da Armada, Marques Pinto, com data de 22 de Outubro de 2006:
Caro Camarada:
Por feliz acaso um camarada sugeriu-me o vosso blogue e lá fui meter o nariz. Para melhor me situarem direi que sou oficial da Armada, reformado, tendo feito duas comissões na Guiné (1966/68 e 1973/74).
Embora a minha unidade estivesse sedeada em Bissau - Primeira Secção de Mergulhadores Sapadores - , como as necessidades em pessoal eram superiores aos efectivos, fui várias vezes nomeado para comandar o agrupamento de LDM (Lanchas de Desembarque Médias) que faziam transporte logístico e pessoal e prestavam apoio nas deslocações em zonas de risco aos batelões civis.
Muitos dos nossos camaradas do Exército e Páras devem ainda guardar recordações de como eram amontoados aos cinquenta e por vezes setenta homens no chamado poço da LDM até serem largados por uma porta de abater frente a uma margem desconhecida e por vezes com contacto de fogo imediato, e a terem de se deslocar umas largas dezenas de metros no lodo e na bolanha.
Lembro-me de várias idas a Bedanda, após a subida do Cumbijã, e deslocar nas duas ou três horas de enchente do Rio Ungariuol a que na gíria maruja era o Rio Urinol (1). Recordo a passagem por várias vezes no porto de Cufar onde pelo menos duas vezes embarquei e larguei depois em zona IN uma companhia de Cavalaria que aí estacionava.
Percorri várias vezes o Rio Cobade, frente á Ilha do Como, lá recebi o meu primeiro abonanço de morteirada, felizmente sem consequências para o pessoal embarcado e lá fiz algumas entregas logísticas para o infelizmente célebre e tão martirizado destacamento do Cachil, que segundo me contaram pessoalmente alguns soldados tinham de fazer escolta armada para percorrerem os 300 a 400 metros que os separavam da água.
Na segunda comissão já numa situação, em gabinete, fui contudo muitas vezes a Bigene, Ganturé, Cacheu e Cacine, onde havia forças de Fuzileiros e porque tínhamos um pequeno avião civil ao dispor do Comando de Defesa Maítima da Guiné e eu era brevetado e pilotava; fazíamos (por vezes com o próprio Comandante Naval ) essas viagens de apoio ou por motivos operacionais.
Recordo hoje as vezes que só depois de estar já no ar lembrava aos acompanhantes a existência dos Strella (2) e da baixa velocidade do nosso avião ligeiríssimo, o que me permitia de imediato a autorização para voar baixo a sobrevoar os rios e brincar fazendo todas as curvas entre as arvores e o tarrafo das margens.
Enfim, naõ sei se são só recordações, se saudosismo, se um misto, mas sobretudo naquela idade as vivências que tivemos são impossíveis de apagar.
Um abraço de parabéns pela ideia e obra e peço desde já desculpa pelo tempo que este marujo roubou.
Manuel Marques Pinto
2. Comentário de L.G.:
Camarada marujo: Não roubas nenhum tempo, bem pelo contrário, só vens enriquecer a memória da nossa tertúlia. O teu ramo, a Armada, ainda está aqui mal representado: temos o Lema Santos e o Pedro Lauret, que foram imediatos do NRP Orion em momentos diferentes, e acabamos de publicar o testemunho do Alves de Jesus, que foi comandante do DFE 4... Julgo que estes três camaradas da Armada são teus conhecidos: o Lema Santos é do tempo da tua primeira comissão. O Pedro Lauret, por seu turno, não precisa de apresentações. Espero que o Alves de Jesus e tu também se juntem a nós. As nossas regras de convívio são mínimas e são simples, estando contidas na página relativa à nossa tertúlia. Independentemente da tua decisão, serás sempre bem-vindo, todas as vezes que quiseres e puderes vir conversar connosco.
____________
Notas de L.G.
(1) Afluente do Rio Cumbijã, passando junto a Bedanda
(2) Mísseis terra-ar, de fabrico soviético: foram usados, pela primeira vez, em 25 de Fevereirod e 1973, tendo abatido um Fiat 91 da FAP.
sábado, 28 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais Alves de Jesus (Pedro Lauret)
1. Mensagem de Pedro Lauret:
Caro Luís,
Envio-te o email do Alves de Jesus, hoje capitão-de-mar-e-guerra, na altura 1º tenente comandante do DFE4 [Destacamento de Fuzileiros Especiais, nº 4]. Trata o texto conforme entenderes, com a sabedoria que te é conhecida.
Envio-te tal qual o recebi pois é preferível não ser mexido por mais que uma pessoa, se for caso disso. Falei com ele por tm que me autorizou a publicar o que quiséssemos. Penso que ainda não estará disponível para pertencer à tertúlia, o tempo poderá fazê-lo mudar de ideias.
Um abraço
Pedro Lauret
2. Mensagem de Alves de Jesus:
Caro Pedro Lauret:
De facto já lá vão uns largos anos que o nosso contacto se perdeu, mas a vida é mesmo assim e cada um tem de percorrer a sua.
Relativamente à minha passagem pela Guiné (73/74), comandando o DFE 4, ela foi uma etapa da minha carreira militar bem marcante e indelével. As diversas situações de perigo porque passámos jamais serão esquecidas, muito embora compreenda que as mesmas tenham sido enfrentadas, por quem as protagonizou, de modo muito diferente.
Tudo aquilo ficou dependente da sensibilidade de cada um… pela minha parte sofri bastante e os pesadelos ainda surgem durante a noite e já vão escasseando à medida que o tempo passa.
Portugal enfrentou a guerra colonial em várias frentes e, sem menosprezo por aqueles que combateram em Angola e Moçambique, a guerra levada a cabo na Guiné, pelas suas características, foi, na minha opinião, a mais difícil e perigosa de enfrentar.
Nós, os que escolhemos, por vocação, a carreira das armas, não nos podemos queixar face aos milhares de cidadãos que partiram compulsivamente para combater nas ex-colónias.
Reflectindo sobre a minha vida militar e pelos diversos cargos que ao longo da mesma fui chamado a desempenhar, confesso que o Comando do DFE 4 foi, de longe, o que mais me marcou. Senti, de modo inequívoco, o peso da responsabilidade nas decisões a tomar e a noção das consequências que as mesmas poderiam ter sobre a vida dos comandados.
Senti uma aproximação que, presumo única entre o Comandante e o militar mais moderno da Unidade, ambos seres humanos, sofrendo as mesmas carências, executando o mesmo esforço físico e sujeitos de modo igual ao mesmo perigo.
Nestas condições a acção de comando é mais vulnerável, mas quando bem desempenhada, tem uma apreciação mais justa e respeitada por parte dos subordinados.
Sobre o que me solicitas, vou limitar-me a transcrever a parte do livro Guiné 1968 e 1973 (pág. 82/84) do Cor. Nuno Mira Vaz com a qual me identifico e por nela ter tido intervenção directa na tentativa do rompimento do cerco a Guidaje:
" (...) Na manhã de 22 de Maio partiu de Binta para Guidaje nova coluna logística, com a missão de, na volta, evacuar os militares e os civis feridos que ali tinham vindo a acumular-se por impossibilidade de evacuação. O deslocamento dos feridos parecia finalmente possível, face aos resultados alcançados no decurso da operação Ametista Real, a qual, de acordo com prognósticos generalizados, teria provocado uma grande desorientação nas fileiras do inimigo.
"Conforme planeado, a CCP 121 (1) encarregava-se da protecção próxima, a oeste da estrada Binta – Guidaje, cabendo a um Destacamento Misto de Fuzileiros (quarenta e dois elementos dos DFE´s nº 1 e nº 4), sob o comando do 1º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus, a protecção imediata, a leste. A responsabilidade pela picagem do troço de itinerário entre Binta e Genicó foi atribuída a um grupo de combate da Companhia de Caçadores nº 14, da guarnição de Farim; daí para a frente, a missão ficaria a cargo de um pelotão reduzido (treze elementos) da Companhia de Caçadores nº 3.
"O deslocamento iniciou-se pelas sete horas e trinta minutos, tendo-se desenrolado sem incidentes até Genicó, embora em marcha lenta, justificada pela necessidade de se proceder a uma picagem cuidadosa do itinerário. Além disso, foi também necessário utilizar um desvio com cerca de mil metros de extensão, para contornar o local onde se encontravam completamente destruídas e calcinadas várias viaturas, testemunhas silenciosas da violência registada em anteriores tentativas de reabastecimento a Guidaje.
"Transposto o desvio e percorridos menos de cem metros sobre o itinerário normal, um elemento da Companhia de Caçadores nº 3 accionou uma mina anti pessoal, reforçada com uma mina anti carro, que lhe causou morte imediata. A relutância com que os picadores vinham procedendo à picagem do itinerário, e que tem de se compreender face à sucessão de acontecimentos dramáticos ocorridos nas últimas semanas, tornou-se mais viva, forçando o 1º tenente Alves de Jesus e o alferes Gomes Rebelo, da Companhia nº 3, a deslocarem-se para a testa da coluna, onde podiam acompanhar de perto a picagem – um dos trabalhos mais perigosos e desgastantes em qualquer acção terrestre.
"Dez metros adiante, foi accionada outra mina. A explosão provocou a morte do picador, tendo além disso ferido com gravidade dois elementos e projectado pelo ar, embora sem consequências pessoais, ambos os oficiais e radiotelegrafista da coluna.
"Informado, em Guidaje, da ocorrência, o tenente coronel Correia de Campos deu instruções para que se retomasse a progressão logo que estivesse concluída a assistência aos feridos, se possível com maior celeridade e de preferência utilizando um desvio, uma vez que o itinerário normal aparentava estar abundantemente minado. Porém, no decurso do tratamento dos feridos, deflagrou nova mina, desta feita colocada fora do itinerário, que provocou mais um ferido muito grave. Durante o atendimento a este ferido, foi detectada mais uma mina na orla do itinerário, a qual não foi levantada por não existir na coluna pessoal habilitado para o efeito.
"Atendendo ao desgaste sofrido pela coluna, foi decidido reforçá-la com um grupo de combate que saiu de Genicó e se lhe juntou cerca das 12H00. A disposição geral era de grande desalento, sendo especialmente preocupante a situação de um dos feridos, o qual perdia muito sangue por ter a perna esquerda decepada um pouco abaixo do joelho, além de ferimentos nos braços e no olho direito. Tendo reavaliado a situação, o comandante do COP 3 deu ordem para abortar o reabastecimento, pelo que a coluna regressou ao ponto de partida, que atingiu cerca das 17H45" (...).
O ferido muito grave atrás referido, com a perna decepada, após ter sido devidamente assistido em Bissau, foi evacuado para Lisboa para tratamento especializado e colocação de prótese. Recordo tê-lo encontrado há alguns anos em pleno Rossio (Lisboa). Referiu-me que já ia na 3ª prótese de adaptação e desempenhava actividade profissional num armazém.
Para selar o nosso reencontro fomos beber alegremente uma ginginha.
Caro amigo e camarada
Para finalizar: aprendi que a amizade nascida das vivências resultantes do perigo e das vicissitudes da vida são eternas!
Forte abraço do
Alves de Jesus
________________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
Caro Luís,
Envio-te o email do Alves de Jesus, hoje capitão-de-mar-e-guerra, na altura 1º tenente comandante do DFE4 [Destacamento de Fuzileiros Especiais, nº 4]. Trata o texto conforme entenderes, com a sabedoria que te é conhecida.
Envio-te tal qual o recebi pois é preferível não ser mexido por mais que uma pessoa, se for caso disso. Falei com ele por tm que me autorizou a publicar o que quiséssemos. Penso que ainda não estará disponível para pertencer à tertúlia, o tempo poderá fazê-lo mudar de ideias.
Um abraço
Pedro Lauret
2. Mensagem de Alves de Jesus:
Caro Pedro Lauret:
De facto já lá vão uns largos anos que o nosso contacto se perdeu, mas a vida é mesmo assim e cada um tem de percorrer a sua.
Relativamente à minha passagem pela Guiné (73/74), comandando o DFE 4, ela foi uma etapa da minha carreira militar bem marcante e indelével. As diversas situações de perigo porque passámos jamais serão esquecidas, muito embora compreenda que as mesmas tenham sido enfrentadas, por quem as protagonizou, de modo muito diferente.
Tudo aquilo ficou dependente da sensibilidade de cada um… pela minha parte sofri bastante e os pesadelos ainda surgem durante a noite e já vão escasseando à medida que o tempo passa.
Portugal enfrentou a guerra colonial em várias frentes e, sem menosprezo por aqueles que combateram em Angola e Moçambique, a guerra levada a cabo na Guiné, pelas suas características, foi, na minha opinião, a mais difícil e perigosa de enfrentar.
Nós, os que escolhemos, por vocação, a carreira das armas, não nos podemos queixar face aos milhares de cidadãos que partiram compulsivamente para combater nas ex-colónias.
Reflectindo sobre a minha vida militar e pelos diversos cargos que ao longo da mesma fui chamado a desempenhar, confesso que o Comando do DFE 4 foi, de longe, o que mais me marcou. Senti, de modo inequívoco, o peso da responsabilidade nas decisões a tomar e a noção das consequências que as mesmas poderiam ter sobre a vida dos comandados.
Senti uma aproximação que, presumo única entre o Comandante e o militar mais moderno da Unidade, ambos seres humanos, sofrendo as mesmas carências, executando o mesmo esforço físico e sujeitos de modo igual ao mesmo perigo.
Nestas condições a acção de comando é mais vulnerável, mas quando bem desempenhada, tem uma apreciação mais justa e respeitada por parte dos subordinados.
Sobre o que me solicitas, vou limitar-me a transcrever a parte do livro Guiné 1968 e 1973 (pág. 82/84) do Cor. Nuno Mira Vaz com a qual me identifico e por nela ter tido intervenção directa na tentativa do rompimento do cerco a Guidaje:
" (...) Na manhã de 22 de Maio partiu de Binta para Guidaje nova coluna logística, com a missão de, na volta, evacuar os militares e os civis feridos que ali tinham vindo a acumular-se por impossibilidade de evacuação. O deslocamento dos feridos parecia finalmente possível, face aos resultados alcançados no decurso da operação Ametista Real, a qual, de acordo com prognósticos generalizados, teria provocado uma grande desorientação nas fileiras do inimigo.
"Conforme planeado, a CCP 121 (1) encarregava-se da protecção próxima, a oeste da estrada Binta – Guidaje, cabendo a um Destacamento Misto de Fuzileiros (quarenta e dois elementos dos DFE´s nº 1 e nº 4), sob o comando do 1º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus, a protecção imediata, a leste. A responsabilidade pela picagem do troço de itinerário entre Binta e Genicó foi atribuída a um grupo de combate da Companhia de Caçadores nº 14, da guarnição de Farim; daí para a frente, a missão ficaria a cargo de um pelotão reduzido (treze elementos) da Companhia de Caçadores nº 3.
"O deslocamento iniciou-se pelas sete horas e trinta minutos, tendo-se desenrolado sem incidentes até Genicó, embora em marcha lenta, justificada pela necessidade de se proceder a uma picagem cuidadosa do itinerário. Além disso, foi também necessário utilizar um desvio com cerca de mil metros de extensão, para contornar o local onde se encontravam completamente destruídas e calcinadas várias viaturas, testemunhas silenciosas da violência registada em anteriores tentativas de reabastecimento a Guidaje.
"Transposto o desvio e percorridos menos de cem metros sobre o itinerário normal, um elemento da Companhia de Caçadores nº 3 accionou uma mina anti pessoal, reforçada com uma mina anti carro, que lhe causou morte imediata. A relutância com que os picadores vinham procedendo à picagem do itinerário, e que tem de se compreender face à sucessão de acontecimentos dramáticos ocorridos nas últimas semanas, tornou-se mais viva, forçando o 1º tenente Alves de Jesus e o alferes Gomes Rebelo, da Companhia nº 3, a deslocarem-se para a testa da coluna, onde podiam acompanhar de perto a picagem – um dos trabalhos mais perigosos e desgastantes em qualquer acção terrestre.
"Dez metros adiante, foi accionada outra mina. A explosão provocou a morte do picador, tendo além disso ferido com gravidade dois elementos e projectado pelo ar, embora sem consequências pessoais, ambos os oficiais e radiotelegrafista da coluna.
"Informado, em Guidaje, da ocorrência, o tenente coronel Correia de Campos deu instruções para que se retomasse a progressão logo que estivesse concluída a assistência aos feridos, se possível com maior celeridade e de preferência utilizando um desvio, uma vez que o itinerário normal aparentava estar abundantemente minado. Porém, no decurso do tratamento dos feridos, deflagrou nova mina, desta feita colocada fora do itinerário, que provocou mais um ferido muito grave. Durante o atendimento a este ferido, foi detectada mais uma mina na orla do itinerário, a qual não foi levantada por não existir na coluna pessoal habilitado para o efeito.
"Atendendo ao desgaste sofrido pela coluna, foi decidido reforçá-la com um grupo de combate que saiu de Genicó e se lhe juntou cerca das 12H00. A disposição geral era de grande desalento, sendo especialmente preocupante a situação de um dos feridos, o qual perdia muito sangue por ter a perna esquerda decepada um pouco abaixo do joelho, além de ferimentos nos braços e no olho direito. Tendo reavaliado a situação, o comandante do COP 3 deu ordem para abortar o reabastecimento, pelo que a coluna regressou ao ponto de partida, que atingiu cerca das 17H45" (...).
O ferido muito grave atrás referido, com a perna decepada, após ter sido devidamente assistido em Bissau, foi evacuado para Lisboa para tratamento especializado e colocação de prótese. Recordo tê-lo encontrado há alguns anos em pleno Rossio (Lisboa). Referiu-me que já ia na 3ª prótese de adaptação e desempenhava actividade profissional num armazém.
Para selar o nosso reencontro fomos beber alegremente uma ginginha.
Caro amigo e camarada
Para finalizar: aprendi que a amizade nascida das vivências resultantes do perigo e das vicissitudes da vida são eternas!
Forte abraço do
Alves de Jesus
________________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > 1968 ou 1969> O Alf Mil Médico David Payne Pereira faz uma pequena cirgurgia a um militar da CART 2339, em condições precárias, à luz da vela... A qualidade da foto é fraca mas tem algum valor documental... (LG).
Foto: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Continuação da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça, que ele teve a gentileza de me fazer chegar, pelo correio, através de um CD-ROM. Chamou-lhe fotos falantes (1) .
O Torcato foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69.
5 . Um médico e um amigo, o Dr. Payne (2)
Não se acomodava ao conforto de Bambadinca e ia visitar as Companhias [do Sector L1]. Aqui veio tratar da saúde do pessoal de Mansambo. Á luz de fraca lâmpada faz uma pequena cirurgia a um sobrolho de um militar.
Tive agora conhecimento do seu desaparecimento (3). Lastimo profundamente.
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa
(2) Alferes Mil médico, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Era psiquiatra. Referido pelo Beja Santos no seu post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
(...) "Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar" (...).
(3) Em 1999, o Dr. David Payne Pereira foi entrevistado para a revista do Instituto do Consumidor (nº 81, 1999). No respectivo sítio, na Net, está disponível em linha um dossiê sobre o stress, em que o nosso amigo Payne é citado como médico especialista em psiquiatria, "com 30 anos de experiência". Creio que, em Bambadinca, foi substituído pelo Dr. Saraiva (4)
(4) Vd. post de 29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)
Há uma referência, nas minhas notas, ao médico da CCS do BCAÇ 2852 ("que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra"). Na altura (Março de 1970)era o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis):
(...) "Veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...
"O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...
"O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça [, 2º sargento da CCAÇ 12,] entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina (5), estive a ajudá-lo a fazer curativos"...
(5) Referência a outros médicos no nosso blogue: vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)
Que eu saiba, temos até agora apenas dois médicos na nossa tertúlia: O Dr. Vitor Junqueira e o Dr. Sadibo Dabo....
Foto: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Continuação da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça, que ele teve a gentileza de me fazer chegar, pelo correio, através de um CD-ROM. Chamou-lhe fotos falantes (1) .
O Torcato foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69.
5 . Um médico e um amigo, o Dr. Payne (2)
Não se acomodava ao conforto de Bambadinca e ia visitar as Companhias [do Sector L1]. Aqui veio tratar da saúde do pessoal de Mansambo. Á luz de fraca lâmpada faz uma pequena cirurgia a um sobrolho de um militar.
Tive agora conhecimento do seu desaparecimento (3). Lastimo profundamente.
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa
(2) Alferes Mil médico, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Era psiquiatra. Referido pelo Beja Santos no seu post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
(...) "Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar" (...).
(3) Em 1999, o Dr. David Payne Pereira foi entrevistado para a revista do Instituto do Consumidor (nº 81, 1999). No respectivo sítio, na Net, está disponível em linha um dossiê sobre o stress, em que o nosso amigo Payne é citado como médico especialista em psiquiatria, "com 30 anos de experiência". Creio que, em Bambadinca, foi substituído pelo Dr. Saraiva (4)
(4) Vd. post de 29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)
Há uma referência, nas minhas notas, ao médico da CCS do BCAÇ 2852 ("que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra"). Na altura (Março de 1970)era o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis):
(...) "Veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...
"O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...
"O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça [, 2º sargento da CCAÇ 12,] entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina (5), estive a ajudá-lo a fazer curativos"...
(5) Referência a outros médicos no nosso blogue: vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)
Que eu saiba, temos até agora apenas dois médicos na nossa tertúlia: O Dr. Vitor Junqueira e o Dr. Sadibo Dabo....
sexta-feira, 27 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1218: Sargento Cipriano: Morrer em Nova Lamego (José Martins, CCAÇ 5)
Foto: © José Martins (2006) . Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Nova Lamego > 1970 > Povoação e quartel velho de Nova Lamego (Gabu). Principais edifícios civis e militares (1).
Fotos: © Tino Neves (2006). Direitos reservados. Foto alojadasno álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Mensagem do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70), com data de
Caros Camaradas:
Regressei ao passado com o post nº 1160 [ , incluindo a foto com o complexo de edifícios do quartel velho]. Nesse complexo, no primeiro andar do edifício no espaço que está coberto
pela mangueira, situava-se o comando e secretaria da CCAÇ 5, desde 1 de Abril de 1967 até finais de 1968.
No edifício quadrado, que se situa entre entre as setas 4 e 5, no canto inferior direito da foto e com árvores nas traseiras, ficava a casa dos Graduados (messe e dormitório) dos oficiais e sargentos que estavam na sede da companhia e em passagem por Nova Lamego, vindos de (ou em regresso a) os destacamentos de Cabuca, Canjadude e Cheche.
Mas a razão do mail é a seguinte, dentro do nosso espírito de pormenorizar os factos: o Sargento que faleceu no ataque a Nova Lamego, e indicado como pertencente à CCAÇ 5, mais não é que o nosso Valente Sargento Cipriano que é referido num post do nosso blogue (2).
Nessa altura, apesar de já não pertencer à Companhia, continuava (e continuaria) a ser um militar de referência da unidade.
Em anexo segue o que consta sobre ele, nos elementos por mim pesquisados e sintetizados, e que virão a integrar a história da Companhia de Caçadores nº 5 que, apesar de nunca estar concluída - pois haverá sempre factos novos a integrar-, está prestes a tomar uma forma quase definitiva.
Um abraço
José Martins
_____________
Os homens da companhia > Africanos > Cipriano Mendes Pereira
2º Sargento Miliciano Enfermeiro, número mecanográfico 82034859, já se encontrava ao serviço da Companhia em finais de 1969, tendo assumido as funções de Comandante da Secção de Saúde.
Além das actividades inerentes à sua função, colaborou na construção do edifício destinado a Posto de Socorros e Enfermaria. Foi também professor das escolas primárias das crianças que residiam na povoação.
Foi abatido ao efectivo da Unidade em 10 de Outubro de 1970 por ter sido transferido para o Hospital Militar 241 / CTIG, em Bissau.
Veio a falecer em combate na noite de 16 de Novembro de 1970, durante a flagelação a Nova Lamego.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post 9 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1160: Lembranças de Nova Lamego (Tino Neves, CCS/BCAÇ 2893): A fatídica noite de 15 de Novembro de 1970
(2) Vd. post de 4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P839: O valente Sargento Enfermeiro Cipriano, da CCAÇ 5, morto em Nova Lamego (José Martins)
Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo
Guiné > Zona Leste > Sector L5 > Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2405 (1968/70) > Embora pertencente ao BCAÇ 2852 - cujo comando e CCS estavam sedeados em Bambadinca -, a CCAÇ 2405 não teve grandes contactos com o pessoal da CCAÇ 12. Daí que só agora, no encontro da Ameira, é que eu tive o prazer de conhecer pessoalmente o Rui Felício, a par de outro baixinho de Dulombi, o Paulo Raposo. Esta foto do Rui, sentado num abrigo - em princípio, de uma das tabancas de autodefesa abaixo referidas, em 1969 - , foi-nos enviada pelo Victor David, seu camarada, outro alferes da companhia e nosso tertuliano, que também terá servido de fotógrafo de ocasião, segundo presumo. Não tenho informações exactas sobre a data nem o local. (LG)
Foto: © Victor David (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Mensagem do Rui Felício, acompanhada de mais duas das suas estórias deliciosas (1), das quais publicamos hoje a primeira. Obrigado ao Rui pelo seu generoso contributo com vista a manter a chama viva na nossa caserna virtual... (LG)
Meu Caro Luis Graça:
Sem nenhuma razão especial, lembrei-me de te escrever de novo. Apenas porque cada dia que passa me sinto mais ligado ao blogue. Cada vez mais admiro o teu trabalho. Especialmente depois do encontro da Ameira que possibilitou que ao virtual se sobrepusesse o real. E, por isso, sinto necessidade de manter a chama viva, de te dizer e a todos os que regularmente aqui escrevem, que a chama deve sempre manter-se acesa... Não precisa de ser muito forte, basta que que nunca se apague, que tenha uma luz e um calor constantes....
Anexo duas estórias simples já escritas há muito tempo, que terás a paciência de ler e avaliar.
Um abraço
Rui Felício
2. Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo,
© Rui Felício (2006)
SINCHÃ LOMÁ
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
Agosto 1969
Sinchã Lomá é uma pequena tabanca a Sudoeste de Dulo Gengele e esta por sua vez fica a Sul de Pate Gibel [vd. as três localidades na carta de Duas Fontes].
Quando a CCAÇ 2405 chegou a Galomaro, destacou três dos seus Grupos de Combate para regiões circundantes da sede da Companhia com a missão de marcar posição no terreno e fazer ao mesmo tempo uma espécie de guarda avançada para protecção da Companhia.
A mim, coube-me ir para Pate Gibel, a tabanca mais a sul de Galomaro.
Depois de ter feito o reordenamento das populações próximas, concentrando-as em Pate Gibel, e após ter dado uma rudimentar instrução militar e distribuição de armamento (Mausers) aos homens mais jovens da tabanca, bem como construção de abrigos e colocação de arame farpado, fui enviado para Dulo Gengele para fazer a mesma coisa.
Após a conclusão da missão em Dulo Gengele, o meu pessoal tinha já as rotinas e a experiência necessárias neste tipo de trabalho.
Esclareço que paralelamente a estas missões continuávamos a fazer os patrulhamentos e operações programadas pelo Batalhão, o que trazia os soldados algo descontentes e cansados… Mas é a vida…
Porque o Agrupamento de Bafatá achava que o trabalho tinha sido bem feito em Pate Gibel e em Dulo Gengele, mandaram-me repetir a dose, desta vez em Sinchã Lomá… O mal na tropa é a gente dar nas vistas… Seja pelo bem, seja pelo mal…
Esta tabanca estava completamente isolada e só se encontrava tropa a muitos quilómetros de distância fosse em que sentido fosse: a Oeste, Samba Juli, perto de Bambadinca; a Sudoeste, Mansambo, a meio caminho entre Bambadinca e o Xitole, a Sul, o Saltinho, a Nordeste, Galomaro.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Vista aérea da tabanca de Samba Juli > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sedeada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos queridos nharros da CCAÇ 12. (LG)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados. Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Chegado a Sinchã Lomá, iniciei os trabalhos, dando prioridade, por questões de segurança própria, à organização da defesa da tabanca, estendendo arame frapado em redor do perímetro idealizado, e marcando os locais dos futuros abrigos, que decidi que fossem oito.
Ao mesmo tempo, seleccionei trinta recrutas entre os homens da população e incumbi o furriel Coelho de lhes dar alguma instrução militar e manuseamento do armamento que lhes iria ser distribuído. O objectivo era criar condições de autodefesa à população, evitando assim mais um destacamento militar do exército para o qual não havia efectivos suficientes.
Enquadrada a tabanca e os objectivos, passo à história propriamente dita.
Dada a experiência anterior já atrás referida, demorámos menos de metade do tempo que tínhamos gasto nas tabancas anteriores, para dar a missão como concluída. Para isso contribuiu também o dinamismo do Chefe de Tabanca que, ao contrário do de Dulo Gengele, colaborou activamente com a tropa, mobilizando praticamente toda a população para os trabalhos de construção dos abrigos.
Para quem não saiba, os abrigos eram buracos rectangulares, escavados até cerca de 1,20 de profundidade, em cujos cantos se colocavam quatro bidons cheios de terra que serviriam de pilares, nos quais iriam assentar os troncos de palmeira que constituíam a estrutura do telhado.
Feito o esqueleto do abrigo, cobria-se o telhado com uma camada de terra de cerca de 30 cm.
Tudo isto, sem cimento, nem máquinas e com rudimentares ferramentas ( pás, picaretas, martelos, pregos, serras manuais e pouco mais… ). E um Unimog que com o seu guincho eléctrico era de extrema utilidade. Tudo o resto, à base de esforço braçal…
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1968 ou 1969> O comandante do Pel CCAÇ Nat 52, alf mil Beja Santos, dirige a construção de um abrigo
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Porque eu sabia que após a conclusão da missão, regressaria para a sede da Companhia, interessava-me despachar-me o mais rapidamente possível.
Por isso, logo que achei que o trabalho estava feito, mandei um rádio para a Companhia, solicitando que alguém fosse vistoriá-lo para me ser dada a ordem de regresso.
Alguns dias depois, finalmente ouço o ruído de um helicóptero aproximando-se e fiquei ansioso para que tudo fosse visto e achado conforme.
O Heli pousou, pilotado pelo meu grande amigo de sempre, o Alferes Jorge Félix, mais tarde um quadro importante da RTP do Monte da Virgem em V. N. de Gaia.
Fiquei, porém, surpreendido pelas altas patentes que o acompanhavam! O Spínola, o Coronel Hélio Felgas (Cmdt do Agrupamento de Bafatá ) e o Capitão Almeida Bruno, à época oficial às ordens do Velho.
O Spínola dirigiu-se-me, cumprimentou-me e encaminhou-se para o abrigo mais próximo, consertando o monóculo e apoiando-se ritmadamente no seu bastão, à medida que ia caminhando.
Olhou, mirou, deu uma volta ao abrigo e, com ar admirado, deu uma segunda volta agora em sentido contrário… Dirigiu-se a um outro e repetiu a vistoria.
Batia nervosamente várias vezes com o bastão na terra poeirenta, olhava com ar inquisidor o Capitão Bruno e o Coronel Felgas e fez-me sinal para me aproximar…Pelo ar dele, senti-me pequenino e inseguro, embora sem ainda descortinar a razão da sua indisposição.
Olhou-me fixamente nos olhos, ficou em silêncio durante uns segundos e depois as palavras saiam-lhe da boca como se fossem pedras:
- Vocé é o alferes mais original da Guiné!
A frase seguinte, continha a explicação da sua irritação:
- Para que raio servem abrigos sem qualquer entrada?!
Nem me deu qualquer hipótese de resposta. Virou-me as costas e foi cumprimentar demoradamente o Chefe de Tabanca ao lado do qual se aglomeravam homens, mulheres e a criançada da aldeia.
E começou a arengar meia dúzia de frases feitas que ele adorava proferir :
- Vocês são o bom povo da Guiné, donos desta bela terra, que se desenvolverá harmonicamente sob a bandeira portugues... (E etc… etc… etc…).
Entretanto, enquanto decorria a parte política, o Capitão Almeida Bruno falou comigo, também ele intrigado, e perguntou-me porque razão eu mantinha os abrigos fechados, como se não tivessem portas de entrada.
Expliquei-lhe que os queria manter limpos e apresentáveis para a vistoria, estando previsto que, logo que aprovado o trabalho, eu retiraria uma série de grades que estavam colocadas nas futuras entradas dos abrigos, para ficarem definitivamente operacionais. É que se o não tivesse feito, à semelhança do que se tinha passado nas outras tabancas onde tinha estado, a população metia lá dentro os animais domésticos (cabritos, galinhas, patos, etc. ) que conspurcavam aquilo tudo. Para evitar isso, fechei provisoriamente os abrigos…
O Almeida Bruno, conhecedor profundo do estilo do General, disse-me que essa explicação não servia, e o Caco estava chateado que nem um perú. E que isso podia redundar em qualquer coisa desagradável para mim…
E aconselhou-me a ir explicar ao Spínola antes de ele embarcar de novo no Heli, o seguinte: (i) que eu tinha andado a ler uns livros sobre a guerra do Vietname; (ii) e que, num desses livros tinha ficado a saber que os americanos construíam uma grande quantidade de abrigos falsos, onde de facto não iriam estar quaisquer efectivos militares; (iii) e que o faziam para que o inimigo, quando atacasse, dispersasse o fogo por inúmeros pontos, muitos dos quais seriam meramente fictícios, diminuindo assim o poder de fogo e a sua eficácia; e, finalmente, (iv) que fora por isso que tinha decidido levar à prática a referida táctica.
- Por azar meu, logo aqueles que o General Spínola tinha vistoriado!
Estudada a lição, quando o Spínola, depois de discursar à população, se aproximou de mim para se despedir, pedi-lhe licença para lhe explicar o que atrás ficou dito. Não fez qualquer comentário e entrou no Héli que de imediato levantou voo, deixando uma enorme nuvem de pó sobre as nossas cabeças…
E um grande aperto no meu coração… O pior castigo que poderia sofrer era o de me cancelarem as férias na Metrópole já programadas para o Novembro próximo…
Recebi, uma semana depois, ordem de regresso à base e logo que cheguei, perguntei ao Capitão se havia novidades a meu respeito… Disse-me que não… Pelo contrário, o Felgas até tinha elogiado o meu trabalho. Mas nada comentou àcerca do incidente com o Spinola.
Enfim, do mal o menos… Ausência de notícias, boas noticías - costuma dizer a sabedoria popular.
Andava cansado e preocupado com tudo isto e pedi ao Capitão que me deixasse ir espairecer uns dias a Bissau, a pretexto de uma qualquer consulta externa que o pudesse oficialmente justificar.
Ao contrário do que era hábito, O Capitão condescendeu e dois dias depois rumei e Bafatá e daqui apanhei uma boleia num velho Dakota, para Bissau.
Depois de aterrar em Bissalanca, fui à messe de oficiais da Força Aérea e ali encontrei o Jorge Félix. Enquanto bebericávamos um copo, contou-me o que se passou no helicoptero, logo que levantaram voo de Sinchã Lomá.
- Eh pá… Tiveste muita sorte! – começou por me dizer… - O Velho estava com cara de poucos amigos quando olhou para os malfadados abrigos, mas logo que se sentou no helicóptero, depois de ouvir a tua versão táctica, olhou de soslaio para o banco a seu lado onde estava o Almeida Bruno e disse-lhe:
- Oh, Bruno aponta aí! Este alferes não é parvo de todo!
E pronto, a minha ansiedade distendeu-se.. . Percebi que, graças ao Capitão Almeida Bruno, as minhas férias de Novembro mantinham-se intactas… Como de facto se mantiveram!
Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
3º Grupo de Combate
CCAÇ 2405
_________
Nota de L.G.
(1) Vd. último post, de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG
Foto: © Victor David (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Mensagem do Rui Felício, acompanhada de mais duas das suas estórias deliciosas (1), das quais publicamos hoje a primeira. Obrigado ao Rui pelo seu generoso contributo com vista a manter a chama viva na nossa caserna virtual... (LG)
Meu Caro Luis Graça:
Sem nenhuma razão especial, lembrei-me de te escrever de novo. Apenas porque cada dia que passa me sinto mais ligado ao blogue. Cada vez mais admiro o teu trabalho. Especialmente depois do encontro da Ameira que possibilitou que ao virtual se sobrepusesse o real. E, por isso, sinto necessidade de manter a chama viva, de te dizer e a todos os que regularmente aqui escrevem, que a chama deve sempre manter-se acesa... Não precisa de ser muito forte, basta que que nunca se apague, que tenha uma luz e um calor constantes....
Anexo duas estórias simples já escritas há muito tempo, que terás a paciência de ler e avaliar.
Um abraço
Rui Felício
2. Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo,
© Rui Felício (2006)
SINCHÃ LOMÁ
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
Agosto 1969
Sinchã Lomá é uma pequena tabanca a Sudoeste de Dulo Gengele e esta por sua vez fica a Sul de Pate Gibel [vd. as três localidades na carta de Duas Fontes].
Quando a CCAÇ 2405 chegou a Galomaro, destacou três dos seus Grupos de Combate para regiões circundantes da sede da Companhia com a missão de marcar posição no terreno e fazer ao mesmo tempo uma espécie de guarda avançada para protecção da Companhia.
A mim, coube-me ir para Pate Gibel, a tabanca mais a sul de Galomaro.
Depois de ter feito o reordenamento das populações próximas, concentrando-as em Pate Gibel, e após ter dado uma rudimentar instrução militar e distribuição de armamento (Mausers) aos homens mais jovens da tabanca, bem como construção de abrigos e colocação de arame farpado, fui enviado para Dulo Gengele para fazer a mesma coisa.
Após a conclusão da missão em Dulo Gengele, o meu pessoal tinha já as rotinas e a experiência necessárias neste tipo de trabalho.
Esclareço que paralelamente a estas missões continuávamos a fazer os patrulhamentos e operações programadas pelo Batalhão, o que trazia os soldados algo descontentes e cansados… Mas é a vida…
Porque o Agrupamento de Bafatá achava que o trabalho tinha sido bem feito em Pate Gibel e em Dulo Gengele, mandaram-me repetir a dose, desta vez em Sinchã Lomá… O mal na tropa é a gente dar nas vistas… Seja pelo bem, seja pelo mal…
Esta tabanca estava completamente isolada e só se encontrava tropa a muitos quilómetros de distância fosse em que sentido fosse: a Oeste, Samba Juli, perto de Bambadinca; a Sudoeste, Mansambo, a meio caminho entre Bambadinca e o Xitole, a Sul, o Saltinho, a Nordeste, Galomaro.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Vista aérea da tabanca de Samba Juli > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sedeada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos queridos nharros da CCAÇ 12. (LG)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados. Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Chegado a Sinchã Lomá, iniciei os trabalhos, dando prioridade, por questões de segurança própria, à organização da defesa da tabanca, estendendo arame frapado em redor do perímetro idealizado, e marcando os locais dos futuros abrigos, que decidi que fossem oito.
Ao mesmo tempo, seleccionei trinta recrutas entre os homens da população e incumbi o furriel Coelho de lhes dar alguma instrução militar e manuseamento do armamento que lhes iria ser distribuído. O objectivo era criar condições de autodefesa à população, evitando assim mais um destacamento militar do exército para o qual não havia efectivos suficientes.
Enquadrada a tabanca e os objectivos, passo à história propriamente dita.
Dada a experiência anterior já atrás referida, demorámos menos de metade do tempo que tínhamos gasto nas tabancas anteriores, para dar a missão como concluída. Para isso contribuiu também o dinamismo do Chefe de Tabanca que, ao contrário do de Dulo Gengele, colaborou activamente com a tropa, mobilizando praticamente toda a população para os trabalhos de construção dos abrigos.
Para quem não saiba, os abrigos eram buracos rectangulares, escavados até cerca de 1,20 de profundidade, em cujos cantos se colocavam quatro bidons cheios de terra que serviriam de pilares, nos quais iriam assentar os troncos de palmeira que constituíam a estrutura do telhado.
Feito o esqueleto do abrigo, cobria-se o telhado com uma camada de terra de cerca de 30 cm.
Tudo isto, sem cimento, nem máquinas e com rudimentares ferramentas ( pás, picaretas, martelos, pregos, serras manuais e pouco mais… ). E um Unimog que com o seu guincho eléctrico era de extrema utilidade. Tudo o resto, à base de esforço braçal…
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Porque eu sabia que após a conclusão da missão, regressaria para a sede da Companhia, interessava-me despachar-me o mais rapidamente possível.
Por isso, logo que achei que o trabalho estava feito, mandei um rádio para a Companhia, solicitando que alguém fosse vistoriá-lo para me ser dada a ordem de regresso.
Alguns dias depois, finalmente ouço o ruído de um helicóptero aproximando-se e fiquei ansioso para que tudo fosse visto e achado conforme.
O Heli pousou, pilotado pelo meu grande amigo de sempre, o Alferes Jorge Félix, mais tarde um quadro importante da RTP do Monte da Virgem em V. N. de Gaia.
Fiquei, porém, surpreendido pelas altas patentes que o acompanhavam! O Spínola, o Coronel Hélio Felgas (Cmdt do Agrupamento de Bafatá ) e o Capitão Almeida Bruno, à época oficial às ordens do Velho.
O Spínola dirigiu-se-me, cumprimentou-me e encaminhou-se para o abrigo mais próximo, consertando o monóculo e apoiando-se ritmadamente no seu bastão, à medida que ia caminhando.
Olhou, mirou, deu uma volta ao abrigo e, com ar admirado, deu uma segunda volta agora em sentido contrário… Dirigiu-se a um outro e repetiu a vistoria.
Batia nervosamente várias vezes com o bastão na terra poeirenta, olhava com ar inquisidor o Capitão Bruno e o Coronel Felgas e fez-me sinal para me aproximar…Pelo ar dele, senti-me pequenino e inseguro, embora sem ainda descortinar a razão da sua indisposição.
Olhou-me fixamente nos olhos, ficou em silêncio durante uns segundos e depois as palavras saiam-lhe da boca como se fossem pedras:
- Vocé é o alferes mais original da Guiné!
A frase seguinte, continha a explicação da sua irritação:
- Para que raio servem abrigos sem qualquer entrada?!
Nem me deu qualquer hipótese de resposta. Virou-me as costas e foi cumprimentar demoradamente o Chefe de Tabanca ao lado do qual se aglomeravam homens, mulheres e a criançada da aldeia.
E começou a arengar meia dúzia de frases feitas que ele adorava proferir :
- Vocês são o bom povo da Guiné, donos desta bela terra, que se desenvolverá harmonicamente sob a bandeira portugues... (E etc… etc… etc…).
Entretanto, enquanto decorria a parte política, o Capitão Almeida Bruno falou comigo, também ele intrigado, e perguntou-me porque razão eu mantinha os abrigos fechados, como se não tivessem portas de entrada.
Expliquei-lhe que os queria manter limpos e apresentáveis para a vistoria, estando previsto que, logo que aprovado o trabalho, eu retiraria uma série de grades que estavam colocadas nas futuras entradas dos abrigos, para ficarem definitivamente operacionais. É que se o não tivesse feito, à semelhança do que se tinha passado nas outras tabancas onde tinha estado, a população metia lá dentro os animais domésticos (cabritos, galinhas, patos, etc. ) que conspurcavam aquilo tudo. Para evitar isso, fechei provisoriamente os abrigos…
O Almeida Bruno, conhecedor profundo do estilo do General, disse-me que essa explicação não servia, e o Caco estava chateado que nem um perú. E que isso podia redundar em qualquer coisa desagradável para mim…
E aconselhou-me a ir explicar ao Spínola antes de ele embarcar de novo no Heli, o seguinte: (i) que eu tinha andado a ler uns livros sobre a guerra do Vietname; (ii) e que, num desses livros tinha ficado a saber que os americanos construíam uma grande quantidade de abrigos falsos, onde de facto não iriam estar quaisquer efectivos militares; (iii) e que o faziam para que o inimigo, quando atacasse, dispersasse o fogo por inúmeros pontos, muitos dos quais seriam meramente fictícios, diminuindo assim o poder de fogo e a sua eficácia; e, finalmente, (iv) que fora por isso que tinha decidido levar à prática a referida táctica.
- Por azar meu, logo aqueles que o General Spínola tinha vistoriado!
Estudada a lição, quando o Spínola, depois de discursar à população, se aproximou de mim para se despedir, pedi-lhe licença para lhe explicar o que atrás ficou dito. Não fez qualquer comentário e entrou no Héli que de imediato levantou voo, deixando uma enorme nuvem de pó sobre as nossas cabeças…
E um grande aperto no meu coração… O pior castigo que poderia sofrer era o de me cancelarem as férias na Metrópole já programadas para o Novembro próximo…
Recebi, uma semana depois, ordem de regresso à base e logo que cheguei, perguntei ao Capitão se havia novidades a meu respeito… Disse-me que não… Pelo contrário, o Felgas até tinha elogiado o meu trabalho. Mas nada comentou àcerca do incidente com o Spinola.
Enfim, do mal o menos… Ausência de notícias, boas noticías - costuma dizer a sabedoria popular.
Andava cansado e preocupado com tudo isto e pedi ao Capitão que me deixasse ir espairecer uns dias a Bissau, a pretexto de uma qualquer consulta externa que o pudesse oficialmente justificar.
Ao contrário do que era hábito, O Capitão condescendeu e dois dias depois rumei e Bafatá e daqui apanhei uma boleia num velho Dakota, para Bissau.
Depois de aterrar em Bissalanca, fui à messe de oficiais da Força Aérea e ali encontrei o Jorge Félix. Enquanto bebericávamos um copo, contou-me o que se passou no helicoptero, logo que levantaram voo de Sinchã Lomá.
- Eh pá… Tiveste muita sorte! – começou por me dizer… - O Velho estava com cara de poucos amigos quando olhou para os malfadados abrigos, mas logo que se sentou no helicóptero, depois de ouvir a tua versão táctica, olhou de soslaio para o banco a seu lado onde estava o Almeida Bruno e disse-lhe:
- Oh, Bruno aponta aí! Este alferes não é parvo de todo!
E pronto, a minha ansiedade distendeu-se.. . Percebi que, graças ao Capitão Almeida Bruno, as minhas férias de Novembro mantinham-se intactas… Como de facto se mantiveram!
Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
3º Grupo de Combate
CCAÇ 2405
_________
Nota de L.G.
(1) Vd. último post, de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG
Subscrever:
Mensagens (Atom)