1. Mensagem de Ana Duarte, viúva do nosso camarada Sargento-Mor Humberto Duarte, que foi Fur Mil Op Esp / RANGER do BCAÇ 4514, Cantanhez -1973/74.
Um pouco de mim
Sou Ana Duarte, viúva de Humberto Duarte, Ranger que esteve na Guiné no BCaç 4514. Em 2000 foi considerado DFA e em 2002 reintegrado nas FA, fez o curso de Sargento Ajudante e infelizmente partiu em Fevereiro, sendo na altura o Sargento-Mor mais antigo de todas as FA no activo.
Sou moçambicana, vim em 75, éramos seis irmãos, casa sempre cheia de adultos e miúdos. Em casa era sossegada só lia e fazia
puzzles, na rua tinha a alcunha de
turra ou
chamuça, gostava de me sentar a ouvir os mais velhos e o descanso de subir muros e árvores era ouvir a conversa dos escuteiros mais velhos e tentar perceber porque aqueles rapazes tão bonzinhos quando iam pró norte fardados voltavam brutos. O primeiro contacto com stress pós-traumático, tinha eu 9/10 anos, foi com um dos tais rapazes que tinha boina vermelha e tinha estado lá em cima, perto de Tete.
Lutei ao lado do Humberto para conseguir que ele fosse considerado DFA e depois reintegrado. Depois disso foram vários os camaradas que foram por nós ajudados a iniciar os seus processos. Muitas vezes era eu que, nos almoços, jantares e na concentração do 10 de Junho, lhe chamava a atenção para este ou aquele.
Conheci alguns que um ano estavam impecáveis e no ano a seguir eu notava qualquer coisa no olhar que me dizia que o stress acumulado durante anos estava prestes a estoirar; quantos tinham empregos estáveis, uma vida familiar que parecia impecável e de repente tudo desmoronava e normalmente ficavam sós!?
Não estou a criticar familiares porque sei por experiência que não é facil viver com alguém que tenha uma percentagem grande de stress de guerra e muitas mulheres e filhos não têm conhecimento de causa daquilo que vocês passaram, a maior parte das fotos que elas viram foi em poses ou em descanso, falar normalmente quem verdadeiramente passou não fala e depois são alcunhados de malucos, bêbados... Têm problemas com álcool, muitos têm, mas porquê?
Eu tenho amigos que até me aturavam, mas como se habituaram a eu aguentar tudo, agora sou eu que não sou capaz de chorar ou queixar-me à frente deles, são as desvantagens de estar durante 12 anos na retaguarda de alguém com 40% de stress de guerra, sempre preocupado com os outros, sempre a querer ajudar, mas quando as coisas corriam mal tinha que explodir e o normal no ser humano é explodir com quem se gosta mais.
Tenho doze anos tão intensos que pessoas que viveram 40 anos juntas, não têm. Pessoas que não conheciam a nossa história, mas nos conheciam pessoalmente, agora ficam muito espantadas e há quem não acredite que só vivíamos juntos há 12 anos.
Tenho muitas histórias que talvez ajudassem mulheres que amem mesmo o seu companheiro, mas que lhes seja extremamente difícil por vezes aguentar quando por alguma razão há uma descarga de stress, mas ao mesmo tempo essas mesmas histórias lidas por quem não consiga perceber o que é o stress pós-traumático, podem servir para, como tanta vez infelizmente ouvi, [criticae], "eram uns assassinos e agora são bêbados, agressivos.."
Tinham que ser histórias filtradas por alguém competente, que eu não sou, pois eu rio-me delas e não é agora, porque quando passavam as crises e algumas foram bem grandes, eu falava com ele, ríamos juntos e muitas vezes ele acabava a dizer "eu não sei como me perdoas, como aguentas" e eu a responder "percebo-te, gosto de ti e amo-te".
Conhecem o filme
Nascido a 4 de Julho? Eu costumava-lhe dizer que era a vida dele, só que em vez de vir em cadeira de rodas, a cabeça dele é que tinha vindo.
Em 1998 vivia sozinho numa casa com um cão, uma cadela e um gato, água e luz com ligação directa, despensa e frigorífico vazios, de manhã bebia água e fingia que era leite, jantava em casa de um camarada, de vez enquanto tinha dinheiro que umas "amigas" lhe davam, deitava as beatas pela janela para as ir apanhar de madrugada, desfazê-las, secá-las na cloche e fazer novos cigarros. A 28 de Fevereiro de 2010 morre em casa nos braços da mulher, sendo o Sargento-Mor mais antigo das FA no activo, depois de reintegrado por streess pós-traumático.
Fico danada quando me dizem, como disseram ontem, "se não fosse a Ana..." porque a partir do momento em que o conheci, percebi o que tinha, gosto dele e o amo, só faço aquilo que tenho de fazer, ele também fez muito por mim, amou-me e casei, porque ele quase me obrigou para poder ter as regalias que tenho.
Gostei das fotos dos monumentos aos combatentes, mas já está na hora de isso passar para o outro lado, sair dos blogues dos ex-combatentes, passar para a nova geração, entrar nas escolas, nem que seja naquele dia em que o neto ou filho chegam dizendo que a professora quer um trabalho sobre o passado de Portugal ou o porquê do 25 de Abril.
A minha "guerra" era essa, ao lado do meu marido e agora continua, eu sou educadora, neste momento as idades com que trabalho não dá para isso (2/3 anos), mas trabalhei muitos anos com miúdos de primária e aproveitava sempre essas datas para explicar qualquer coisa àquelas crianças. Deu frutos, porque no dia 12 estive em Belém, e a minha companhia foram, um com 22 anos que é militar e foi o último a quem o meu marido impôs a boina, um com 19, um dos tais de quem fui educadora, um com 13, vizinho, que um dia estava aflito com um trabalho sobre o 25 de Abril e os pais não sabiam explicar, e o meu neto com 7 anos que se fica quieto quando do toque do silêncio aos mortos, e na altura do Hino, que o canta todo.
Outra coisa, o 10 de Junho tem de ser em Belém, é lá que suposta ou verdadeiramente estão os nomes de todos, é uma maneira de chamar a atenção da opinião pública, ou então arranjem um dia dos ex-combatentes e vão lá todos. Em Abril estive no Porto, fui entregar uma lembrança do meu marido a um Camarada, e ele levou-me a um jantar de caloiros e fez-me falar.
Detesto falar em público, mas fi-lo para lhes falar dos ex-combatentes e no fim vieram agradecer, porque tinham pais, tios... que estiveram lá fora, que eles percebiam que havia qualquer coisa, mas não sabiam nada da guerra, nem do que muitos sofrem em silêncio por causa dela.
Desculpem o desabafo, mas eu sei o que passaram, o que passam hoje, conheço bem alguns que com a idade as coisas só pioraram, as mulheres não perceberam e agora estão com dificuldades e sozinhos.
Ana Duarte
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 13 de Junho de 2010 >
Guiné 63/74 - P6591: O discurso de António Barreto no dia 10 de Junho de 2010 (3): O dia do ex-combatente devia ser comemorado noutra data (Ana Duarte)
Vd. último poste da série de 4 de Maio de 2010 >
Guiné 63/74 - P6310: As nossas mulheres (16): Hoje é Dia da Mãe (Felismina Costa)