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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16496: FAP (98): Pedaços das nossas vidas (2): "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel", por TGeneral PilAv José Nico - II Parte (José Nico / Miguel Pessoa)



1. Segunda parte do trabalho intitulado "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel!", da autoria do TGeneral PilAv José Nico, relatando o abate, em 28 de Julho de 1968, do avião pilotado pelo então TCor PilAv Costa Gomes, Comandante do Grupo Operacional 1201, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74)




PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS[1]

Cumpri muitas missões durante a minha carreira na Força Aérea Portuguesa. A comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida. A mim e certamente a todos os que, de algum modo, partilharam a mesma experiência. É dela ou de acontecimentos com ela relacionados, que vos irei dando conta… 


VII – “Marte[2], saia a Força Aérea, o Pirata[3] ejectou-se em Gandembel!”

Por TGeneral José Nico

II Parte

Gandembel 

Gandembel era um aquartelamento que tinha sido montado com o propósito de servir de base a uma companhia do Exército cuja missão era interditar o caminho de infiltração/exfiltração do PAIGC, conhecido como corredor do Guilege. Existiu desde princípios de Abril de 1968 até Fevereiro de 1969.

A ideia do Brigadeiro Arnaldo Schulz, na altura Governador e Comandante-Chefe, era boa mas o conceito operacional revelou-se um desastre e nunca foi corrigido satisfatoriamente. Participei na Operação Bola de Fogo com que se deu início à construção do aquartelamento e posteriormente efectuei numerosas missões de reconhecimento e de ataque na zona de Gandembel e no corredor do Guilege. Corredor que nas memórias de muitos ex-militares tem sido promovido ao estatuto de “corredor da morte”, certamente para enfatizar o sofrimento de quem serviu de alvo aos guerrilheiros em Gandembel ou ainda, para outros que insistem em vitimizar-se e, em última análise, a vitimizar-nos a todos nós perante os nossos inimigos da altura e que é uma qualificação da qual discordo completamente. Decorre do politicamente correcto com que os vencedores do 25A nos vacinaram e que ensombra a dignidade desse esforço sublime que foi a defesa do Portugal pluricontinental e multirracial cujos benefícios civilizacionais poderiam ter trazido muito mais vantagens a todos os povos envolvidos do que o que temos testemunhado nos últimos quarenta anos com as independências.


O aquartelamento da CCaç 2317 em Gandembel

Foi sempre muito difícil descobrir vulnerabilidades que pudessem ser exploradas para quebrar a capacidade militar do PAIGC. Tal como os outros movimentos que nos combateram, o PAIGC era apenas a ponta da lança de um vasto sistema adversário, de natureza quase global. Sistema que entroncava no programa de descolonização da ONU mas que era potenciado por diversos interesses, uns de natureza ideológica, outros económica, outros pura e simplesmente de afirmação no concerto das nações. Neste âmbito, refiro por exemplo o papel do que na altura acreditava ingenuamente ser um país irmão, o Brasil e, no fim de contas, de todos os países das Américas. Nenhum deles foi descolonizado nos moldes em que a descolonização foi imposta a Portugal visto que a administração dos respectivos territórios passou para as populações colonizadoras em vez de ter sido transferida para os autóctones. Tornaram-se independentes das metrópoles mas não foram descolonizados segundo os princípios do programa da ONU. Todavia foram activamente solidários com os movimentos de libertação anti-Portugal como se se tratasse de uma obrigação entre pares: apoiamos a vossa luta porque sabemos o que isso é, também fomos colonizados!

No sistema adversário que enfrentámos na Guiné tínhamos no terreno o PAIGC e os cubanos mas o determinante foi que a sua liberdade de acção para nos atacar foi sempre promovida por uma amálgama de entidades em que pontuavam as oposições internas, a URSS, a China, Cuba, os países do Norte da Europa, Senegal, Guiné-Conacri, Republica do Congo, Republica Democrática do Congo, Zâmbia, Tanzania, movimento dos não alinhados, Organização de Unidade Africana, Organização das Nações Unidas, etc.. Se não fossem estes apoios os movimentos de libertação, por si sós, nunca teriam sido capazes de lançar e manter operações de guerrilha sustentadas durante um período tão longo nem alcançar os seus objectivos como de facto aconteceu. No caso do PAIGC uma capacidade relevante foi a concessão de santuários nos territórios envolventes onde se reabasteciam, treinavam e organizavam para lançar ataques às posições portuguesas e para onde depois retiravam para se furtarem a eventuais perseguições.

Ao invés, do lado português não havia santuários de refúgio. Todo o território da Guiné-Bissau era uma responsabilidade nacional, as posições ocupadas eram bem conhecidas e por isso podiam ser atacadas sempre que o PAIGC quisesse e quando quisesse. Pudéssemos nós fazer o mesmo e a guerra certamente teria sido diferente embora nunca pudesse ser ganha dado o potencial estratégico do sistema adversário.

Neste quadro, as vulnerabilidades do PAIGC não eram muitas nem significativas. Tudo jogava a seu favor. Todavia, as linhas de infiltração para dentro do território nacional, apesar dos percursos relativamente curtos, ainda assim eram uma vulnerabilidade e ofereciam-nos algumas oportunidades. Se tivéssemos sido capazes de montar operações eficazes contra os movimentos de infiltração e exfiltração, portanto quando a guerrilha era vulnerável, podíamos ter desequilibrado pontualmente o inimigo. Foi essa a ideia que presidiu à construção de Gandembel que foi instalado a cerca de 4 Kms em linha recta do corredor do Guilege. O corredor do Guilege podia por isso ter sido um corredor da morte para o PAIGC mas não foi e, certamente, também não foi para nós. Para as guarnições do Exército, na área a haver um corredor da morte, só poderá ter sido a picada que unia Gadamael, Guilege, Gandembel e Aldeia Formosa. Foi nesses caminhos, onde transitavam as colunas de reabastecimento, que tivemos mortos e feridos em consequência das minas e das emboscadas. Não na linha de infiltração do PAIGC, conhecida por corredor do Guilege, como muitos parecem querer dar a entender.

Coube à Companhia de Caçadores 2317 guarnecer Gandembel mas, em vez de se constituir como ponto de apoio para o lançamento de operações de interdição no corredor do Guilege, a capacidade da unidade esgotou-se na defesa imediata do aquartelamento e na protecção das colunas logísticas vindas de Gadamael ou de Aldeia Formosa. Na prática oferecemos de bandeja um alvo vulnerável ao PAIGC que imediatamente concentrou numerosos efectivos na área e ficou a sitiar o aquartelamento até ser abandonado, menos de um ano depois. Apenas o reforço com grupos de combate do batalhão de pára-quedistas permitiu aliviar a pressão a partir de Agosto de 1968.

No dia 28 de Julho de 1968, quando o Tenente-Coronel Costa Gomes se ejectou, o aquartelamento de Gandembel estava praticamente deserto. Os grupos de combate da CCaç 2317 estavam na estrada para Aldeia Formosa, em apoio a uma coluna de reabastecimento que se aproximava. Alguns dos militares que estavam fora ouviram os disparos das AA e chegaram a ver o avião em chamas. No aquartelamento apenas se encontrava pessoal dos serviços, as guarnições dos dois obuses de 10,5, que eram negros do recrutamento local[21], e o Comandante da Companhia, o Capitão Barroso de Moura. O comandante da companhia também foi alertado pelo fogo AA e viu o avião libertando inicialmente fumo negro que foi evoluindo para um rastro de fogo. O mesmo aconteceu com o pessoal dos obuses e todos foram seguindo a trajectória até à ejecção que se dá para sudeste, acabando o pára-quedas por desaparecer por entre as árvores, a muito curta distância[22]. A reacção deste pessoal foi muito rápida. Barroso de Moura dá ordem para fazer soar as buzinas das viaturas e para serem lançadas granadas de fumo e sai com um pequeno grupo, em que sobressaíam os homens da artilharia, em direcção ao local da aterragem. Embora progridam com cautela demoraram apenas cerca de dez minutos até encontrarem o pára-quedas pendurado numa árvore e, apesar do comandante da companhia ir gritando repetidamente “piloto, somos nós, nossas tropas!”, não conseguiram dar com o piloto.


Afinal o inimigo não era ou “à noite todos os gatos são pardos”… 

Durante a descida em pára-quedas o Tenente-Coronel Costa Gomes memorizou a posição do aquartelamento de Gandembel em relação ao sol e à picada que passava a menos de 100 metros a este. Por isso, quando chegou ao chão, não tinha dúvidas que se caminhasse em linha recta paralelamente à picada Gadamael Porto-Aldeia Formosa, mantendo o sol à sua esquerda, iria literalmente chocar com o aquartelamento. A aterragem também tinha corrido bem apesar de ter caído em cima de uma árvore alta e ficado suspenso pelos cordões do pára-quedas a cerca de um metro acima do solo. Não teve porém muita dificuldade em desembaraçar-se do arnês e deixar-se escorregar para o chão.

Logo a seguir procurou orientar-se para determinar a direcção a seguir. Ao pesquisar o local onde se encontrava vislumbrou, por entre a vegetação, a picada e todas as dúvidas sobre a direcção a tomar se desvaneceram. Começou a andar o mais rapidamente possível mas passado pouco tempo sentiu vozes à sua frente. Parou imediatamente e manteve-se imóvel perscrutando nessa direcção e logo a seguir reparou na oscilação de alguns arbustos. Agachou-se e procurou a pistola Walter que trazia no cinturão sobre o fato anti-G mas o coldre estava vazio[23]. A cerca de trinta metros de distância descortinou então um preto de tronco nu, em calções, com uma fita de munições a tiracolo. Avançava cuidadosamente afastando a vegetação com as mãos. Atrás deste apareceu outro homem também preto e foi aí que o Tenente-Coronel pensou que estava perdido. Praticamente ficou deitado no chão e manteve-se assim, imóvel, durante alguns minutos. Depois, quando pensou que o “inimigo” tinha passado, começou a progredir a quatro, em direcção ao aquartelamento. Foi um esforço desgastante debaixo de enorme tensão. O Tenente-Coronel Costa Gomes, embora tivesse estado por diversas vezes em Gandembel, não sonhava que os obuses 10,5 cm eram operados por pessoal do recrutamento local. Ficou por isso convencido que os pretos armados que tinha avistado só poderiam ser guerrilheiros. Por acaso não eram, eram os homens do Capitão Barroso de Moura[24] que, apesar de ir gritando: “piloto, somos nós!”, nunca foi ouvido. Inicialmente a distância e a vegetação e depois talvez alguma desorientação induzida pela situação em que se encontrava terão impedido que o Tenente-Coronel se apercebesse dos chamamentos. Ele ouviu qualquer coisa e foi isso que permitiu detectá-los mas não entendeu o que era e depois de ter avistado aqueles dois homens armados só pensava em afastar-se deles, o que é lógico. Diz ele, com toda a razão que, mesmo que soubesse que existiam militares pretos em Gandembel, nunca podia ter corrido o risco de se revelar. Então e se eles não fossem dos bons?

Por precaução arrancou os galões e o nome que tinha cosidos no fato de voo.

Entretanto tinham começado a chegar os aviões que se encontravam mais próximo. Uma parelha de T-6 que se preparava para bombardear um alvo, possivelmente em Salancaur, cerca de 12 km para oeste de Gandembel, abortou o ataque quando ouviu a comunicação do Tubarão. Olhando na direcção de Gandembel o Alferes Miliciano Marinho de Moura[25] ainda viu o pára-quedas do Tenente-Coronel Costa Gomes penetrar na floresta e desaparecer. Demorou cerca de 5 minutos a atingir esse ponto e ao circular na zona acabou por detectar o piloto no chão muito próximo da picada, do lado oeste. Foi esta informação que passou a outro piloto que também se aproximava no DO-27 3333 e que, por isso, tinha melhores condições para manter contacto visual com o alvo, coisa que não era fácil de fazer com o T-6. Vindo de sudoeste, quando se encontrava a efectuar o “sector” de Buba, o Furriel Miliciano Graciano Gomes da Silva apanhou a estrada para Gandembel no cruzamento para o Guilege e terá chegado à zona cerca de cinco minutos depois dos T-6. Recorda-se que a informação que o Melro lhe passou foi que o Pirata se encontrava do lado esquerdo da estrada, relativamente perto desta e a sul de Gandembel. Desceu então para uma altitude adequada para melhor detectar os detalhes do terreno por entre o arvoredo que deslizava por baixo e, por sorte, avistou-o logo, de relance, numa pequena clareira, a cerca de 30/40 metros da estrada e a não mais de 200 da cerca exterior do aquartelamento. Lá em baixo, o Tenente-Coronel Costa Gomes sentira a aproximação do avião e procurara rapidamente um espaço com pouca vegetação, onde pudesse ser avistado do ar, no que foi bem sucedido. A seguir, o piloto do DO-27 iniciou imediatamente uma volta e preparou-se para passar novamente na clareira, desta vez a baixa velocidade. Foi assim que o ex-Furriel Gomes da Silva me relatou essa manobra:
“Dei início à segunda passagem, com tudo o que tinha para garantir o contacto: 
- Altitude quanto baste, flaps, baixa velocidade, janelinha de ventilação aberta e toda a carga emocional para visualizar e tentar ajudar o Pirata. 
- À vertical passei com o braço esquerdo fora da janelinha a apontar ferozmente a direcção do quartel. 
- Foi de tal forma convincente a informação que o Pirata, de braços erguidos na vertical a pedir ajuda, partiu sem hesitar, sensivelmente para norte, a corta mato na direcção do quartel. 
- Nesse momento o Pirata estava só e não avistei mais ninguém.” 

No solo, o Tenente-Coronel Costa Gomes percebeu claramente a sinalética do piloto do DO-27 que coincidia com a direcção que estava a seguir. Tendo-se desembaraçado dos presumíveis guerrilheiros, e agora sentindo o apoio do DO-27, o nível de confiança aumentou. Apressou então o passo mas entrou numa zona de mato cerrado e o Furriel Gomes da Silva deixou de o ver. Estava nessa altura já muito próximo do aquartelamento e poucos minutos depois desembocou na envolvente desmatada e ficou com o aquartelamento à vista. Ao aproximar-se deu depois com o caminho que ligava a “porta de armas” à picada Gandamael-Aldeia Formosa. Seguiu então por esse caminho e entrou sozinho na “parada” do aquartelamento que, à primeira vista, lhe pareceu deserta. Reparou depois num pequeno grupo de militares que olhavam para o exterior e um deles quando deu com ele ali especado terá exclamado para os outros: “Olha, o piloto está ali!”

Neste espaço de tempo o Furriel Gomes da Silva tinha iniciado uma volta mais larga no DO-27 para não denunciar a posição do Pirata e, quando pensa estar novamente a vê-lo, a cerca de 50 metros da clareira inicial, diz “que o vê a caminhar devagar já acompanhado de alguns “militares”, cerca de quatro, todos com andamento calmo, ligeiramente afastados uns dos outros.”

Confessa que não detectou o encontro do Pirata com o grupo porque isso deu-se numa zona arborizada mas recorda-se de os ver “semi-fardados”, alguns em calções e apenas com a arma, em campo aberto na zona desmatada e à vista, a caminhar em direcção ao quartel e que por isso não poderiam ser inimigos. Acrescenta que quando confirmou via rádio que tinha o Pirata à vista, o Melro avisou que se retirava da zona, e nos minutos seguintes, por se encontrar a baixa altitude e fixado naquele grupo, deixou de avistar os T6. Lembra-se também que ainda viu alguns elementos da guarnição fora do arame e na zona compreendida entre a estrada e o aquartelamento a caminharem ao encontro do grupo que rodeava o Pirata, tendo todos entrado para o interior do arame farpado, sem incidentes.

O que aconteceu na realidade foi que o Alferes “Chico” Trindade[26], que comandava um dos grupos de combate da CCaç 2317, tinha entretanto chegado ao aquartelamento, vindo da direcção da Ponte Balana, e foi ele que avisou, por rádio, o Capitão Barroso de Moura de que o piloto já lá estava. Como já referi, Barroso de Moura e os artilheiros tinham encontrado o pára-quedas em parte suspenso de uma árvore, mas não deram com o piloto. Ainda lhe seguiram o rastro durante algumas dezenas de metros mas depois perderam-no e já vinham a regressar quando receberam essa comunicação. É, portanto, o grupo do Capitão Barroso de Moura que o Furriel Gomes da Silva vê a aproximar-se do aquartelamento. Por essa altura o Tenente-Coronel Costa Gomes, completamente desgastado pela intensidade da odisseia que o acabara de atropelar bebia uma água “Perrier” que os militares lhe tinham oferecido e tentava recuperar o ânimo deitado num colchão de espuma de borracha, na caserna para onde o Alferes Trindade o levara.

Diz o ex-Capitão Barroso de Moura que talvez 20-25 minutos[27] após de ter saído do quartel entrou nessa caserna onde estava o Tenente-Coronel na companhia do Alferes Trindade e talvez de mais um ou dois militares. Diz que o viu visivelmente perturbado – o que é natural – e que procurou falar com ele, ao que ele repetia “não sei como foi isto (ou como isto aconteceu…).”

Destes momentos o ex-Tenente-Coronel Costa Gomes já não se recorda muito bem do que se passou, nem com quem falou, mas lembra-se perfeitamente[28] que, às tantas, ficou só na caserna deitado no colchão e apercebeu-se de uns militares atrás de si tendo ouvido um deles a sussurrar para outro: “- Eh pá, estás a ver, o gajo é velho!”.

Esta apreciação, numa altura em que ainda se sentia muito abalado, foi muito desconfortável e o Tenente-Coronel Costa Gomes nunca mais a esqueceu. De facto, como se não bastasse ter sido derrubado pela AAA do PAIGC, ainda por cima era visto como “um velho” pelos soldados. Hoje tudo me corre mal, pensou o comandante do grupo que fazia uma avaliação muito mais favorável da sua figura. Todavia a realidade é sempre inexorável e, naquele ambiente em que reinava a juventude, um homem de quarenta anos, cansado, suado e coberto de pó, perante jovens com metade da idade, seria sempre considerado um “velho”.

Dos aviões que convergiram para Gandembel eu seria o último a chegar à zona porque estava a uma distância maior. Ao fim de vinte minutos, e já muito próximo, percebi pelas comunicações do Furriel Gomes da Silva que o problema estava resolvido e voltei à minha missão inicial.

A zona desmatada, sobre a fronteira, onde estiveram instaladas as armas antiaéreas


Como reagiu o Grupo Operacional 1201

Houve outros aviões que estavam no ar na altura em que o Tenente-Coronel Costa Gomes se ejectou mas que não puderam dar apoio. Foi o caso de uma parelha de G-91 formada pelos tenentes Vasconcelos e Sá e Firmino Neves que tinha ido atacar um alvo na mata central do Como. Os pilotos estavam a regressar à Base quando ouviram a comunicação rádio do Capitão Vasquez mas não podiam fazer nada. Tinham que aterrar porque estavam com pouco combustível. Assim que chegaram ao estacionamento surgiu o Tenente Balacó Moreira, o único piloto de G-91 disponível na Base, a dar indicações aos mecânicos para aprontarem rapidamente outra parelha. Foi por isso que o Tenente Firmino Neves desceu de um avião e entrou noutro logo a seguir e depois descolou atrás do Tenente Balacó Moreira em direcção a Gandembel. A meio do caminho ouviram a comunicação que finalmente nos sossegou informando que o Comandante do Grupo tinha entrado no aquartelamento e estava a salvo.

Na Base, quando o oficial de dia ao CCAA tomou conhecimento da ejecção em Gandembel, não havia ninguém com autoridade para decidir a nível do Grupo. Os dois oficiais que detinham esse estatuto eram o Comandante do Grupo e, informalmente, o Comandante da Esquadra 121. Um tinha-se ejectado e o outro tinha dado a única ordem que podia naquelas circunstâncias: “Saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel!”

O oficial de dia ao CCAA chamou então os pilotos que estavam disponíveis para os inteirar do que tinha acontecido. Na Esquadra 121 só havia um piloto no chão, o Tenente Balacó Moreira, que decidiu o que acabei de relatar. O Comandante da Esquadra 122[29] era corredor de fundo e ainda estava em forma. Quando foi informado do que se passava deu instruções para saírem dois helicópteros, um deles armado para apoio de fogo. Depois, foi a correr para a linha da frente dos ALIII que distava uns 200 metros do Grupo Operacional. Quando lá chegou deu ordem a um Primeiro Cabo Mecânico para retirar as seguranças de um dos helicópteros que estava pronto e já se tinha sentado e amarrado quando se lembrou que não tinha nenhuma carta consigo. Libertou-se dos cintos rapidamente e, embora nunca se tenha descortinado o que o motivou, virou-se para o mecânico e disse-lhe:
-Venha daí! – e começou a correr novamente desta vez em direcção ao edifício do Grupo Operacional, seguido pelo mecânico que mal o conseguia acompanhar.

Quando chegou entrou no CCAA para recolher uma carta 1:50.000 do Guilege e depois iniciou nova corrida desenfreada, em sentido contrário, mas o Primeiro Cabo Mecânico que continuava a tentar segui-lo começou então a perder terreno e a distanciar-se cada vez mais. Tornou a subir para o helicóptero e amarrou-se novamente e, às tantas, reparou no mecânico que acabava de chegar completamente arrasado:
- O que é que você anda a fazer? – perguntou-lhe, não se lembrando já da ordem que lhe tinha dado.
- O meu Capitão disse-me para ir consigo e eu fui! - respondeu o mecânico.

Foram sem dúvida momentos de grande frenesim em que cada um procurou fazer o melhor que sabia e podia, o mais depressa possível. Tal como aconteceu com os G-91 também os pilotos dos ALIII tomaram conhecimento, a caminho de Gandembel, que o Tenente-Coronel Costa Gomes já se encontrava a salvo. Seguiram, por isso, directamente para o aquartelamento para recolher o Comandante do Grupo. O que podia ter sido um problema gravíssimo foi assim resolvido rapidamente e, apesar da perda do avião, ficámos todos aliviados.

A esquadra dos T-6 também reagiu tendo feito descolar uma parelha para dar protecção aos ALIII durante a busca mas que acabaram por fazer o mesmo durante o tempo em que os helicópteros estiveram aterrados em Gandembel.


Ao fim do dia no Comando-Chefe 

Como referi no princípio fazia parte da rotina diária uma reunião no Comando-Chefe, presidida pelo Brigadeiro Spínola, na qual se actualizava a situação operacional. Da parte da Força Aérea tinham assento nessa reunião o Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné, Coronel PilAv Rui da Costa Cesário, e o Comandante do Grupo Operacional 1201. Uma outra presença em apoio do Comandante do GO 1201 era normalmente um dos oficiais de informações do CCAA. O Tenente José Soeiro Arada foi, por isso, uma testemunha privilegiada da reunião do dia 28 de Julho de 1968.

Nesse dia, depois de regressar à BA12 vindo de Gandembel, o Tenente-Coronel Costa Gomes teve tempo para recuperar do trauma e preparar-se para explicar no Comando-Chefe a odisseia que vivera. Apresentou-se rejuvenescido e bem disposto como que a tentar anular o comentário com que tinha sido mimoseado pelos soldados em Gandembel. Naturalmente que todos o queriam ouvir e o episódio foi pormenorizadamente descrito com graça e alguma ironia. No final foi efusivamente felicitado pelos presentes.


A tese da armadilha e a manipulação da DGS pelo PAIGC 

Para concluir devo acrescentar que o PAIGC retirou imediatamente as armas AA que derrubaram o Tenente-Coronel Costa Gomes sem que tivesse havido qualquer ataque na nossa parte. Por curiosidade, num dos dias seguintes, fui ver onde tinham estado montadas as armas e procurar os restos do G-91 5411. Levei comigo uma câmara fotográfica portátil para fazer algumas imagens.

O que descobri deixou-me intrigado. A área desmatada onde as armas tinham sido colocadas era mesmo na fronteira e talvez estivesse já dentro do território da Guiné-Conacri. O terreno era inclinado e estava voltado na direcção de Gandembel. Parecia o primeiro balcão de uma sala de cinema. O campo de visão na direcção de Gandembel era tão óbvio que fiquei convencido que as armas tinham sido ali colocadas de propósito para tentar abater um avião qualquer que surgisse na zona do aquartelamento, o que acontecia com muita frequência. Também nada indicava que as armas se destinavam a proteger a passagem da guerrilha no corredor do Guilege, como na altura se aventou. Aliás, com um raio de acção eficaz de 2000 metros apenas, as DShK[30], só no limite do seu raio de acção poderiam interferir com as acções aéreas numas escassas centenas de metros no início do corredor. Nesta ordem de ideias, as notícias sobre a construção de um túnel foram provavelmente um engodo para atrair um avião para aquela zona. Não conseguiram abater o DO-27 do Capitão Vasquez mas conseguiram abater no dia seguinte o G-91 do Tenente-Coronel Costa Gomes. Mais, tendo sido bem sucedidos uma vez seria natural que tentassem uma segunda oportunidade, mas não. Fiquei por isso convencido que a instalação daquelas AA teve apenas um objectivo: tentar abater um avião qualquer e retirar logo de seguida para se furtarem à inevitável retaliação.

Por tudo isto, não consigo também deixar de fazer uma ligação entre a história do túnel e o trágico acontecimento, ocorrido anos mais tarde, no dia 28 de Março de 1973. Nesse dia, foi recebida no COAT uma informação da DGS segundo a qual estaria em curso uma reunião de altos quadros do PAIGC em Madina do Boé. Embora se tenha suspeitado de uma armadilha o Comandante do Grupo, que na altura era o Tenente-Coronel Almeida Brito, decidiu efectuar um reconhecimento visual e levou como asa o Capitão Pinto Ferreira. É o seguinte, o relato do ex-Capitão Pinto Ferreira, testemunho fiável deste acontecimento:

“Encontrava-me no COAT, pelas 12h00 do dia 28 de Março de 1973, quando chegou uma mensagem da DGS dando conta de uma reunião de quadros do PAIGC em Madina do Boé. Fui imediatamente falar com o Comandante do GO 1201, Tenente-Coronel Almeida Brito, comentando na altura que aquela informação me parecia ser uma armadilha. No entanto, o Tenente-Coronel Brito optou por ir investigar com os aviões da parelha de alerta. Durante o briefing para a missão decidiu que iria sobrevoar, a baixa altitude, a picada que passa por Madina do Boé, no espaço entre o Che-Che e a base do PAIGC em Kambera, na Republica da Guiné. De facto, a haver uma reunião na zona de Madina do Boé, era provável que o caminho entre Kambera e Madina do Boé fosse utilizado, ou na ida, ou no regresso. 

Tal como planeado, quando chegámos ao Boé, sobrevoámos para sul a estrada que vai de Che-Che até Kambera, o que me permitiu observar o cenário de várias viaturas militares destruídas, que por ali ficaram depois da retirada da guarnição de Madina do Boé, em Fevereiro de 1969. Não foi detectada qualquer reacção do inimigo, mesmo quando sobrevoámos Kambera. 

Depois deste ponto, iniciámos uma volta de 180º pela direita, novamente em direcção a Madina do Boé. À vertical daquela posição, quando voava a cerca de 500 pés sobre o terreno, fui surpreendido pela explosão do avião da frente, que seguia um pouco mais alto, cerca de mil pés, atingido por um Strela. O avião foi praticamente engolfado por uma bola de fogo, o piloto não se ejectou, e apenas um tanque externo de combustível se separou do conjunto. 

Como já tinha tido alguns encontros com Strelas, reagi de imediato, submetendo o avião a Gs elevados e picando para junto do solo, durante alguns segundos. Subi depois, voltando pela esquerda, para cerca de 8 mil pés, por forma a identificar o local do sinistro e informar as operações da Base do ocorrido. No entanto, devido à bruma existente, apenas me foi possível observar o fumo de um local, algures a norte de Madina, onde caíram os destroços do avião.” 

Do lado do inimigo, o comandante do PAIGC Manecas dos Santos, responsável pela operação dos Strela, contou uma história algo diferente não só quanto ao disparo do míssil mas também quanto ao local onde os destroços do avião ficaram.

Recorde-se que, por volta de 1996, o ex-Comandante da CCaç 1790[31], que foi a última unidade do exército que esteve destacada em Madina do Boé, colaborou na feitura de um documentário da SIC intitulado - "Madina do Boé - A Retirada".

Durante as filmagens desse documentário, o ex-Capitão Aparício viajou, acompanhado do Manecas dos Santos, até ao local onde este disse que o avião do Tenente-Coronel Brito caíra, a cerca de 18 Kms a nordeste de Madina do Boé, o que parece demasiado. O ex-Capitão Aparício teve então a oportunidade de fotografar o “quase nada” que restava do avião e ouviu da boca do Manecas dos Santos a seguinte descrição de como tudo se teria passado:
“Os aviões apareceram, um ficou mais alto e o outro desceu para observar um grupo de árvores mais altas que existiam no local. Foi disparado um míssil para esse avião que explodiu e se despenhou. Um segundo míssil foi disparado para o outro avião mas bateu no tronco de uma dessas árvores altas e perdeu-se.”

O Manecas dos Santos é certamente o melhor relator dos sucessos do PAIGC decorrentes do emprego daqueles mísseis. É óbvio, porém, que não pode ter assistido à maior parte dos disparos visto que ocorreram em diversos pontos do território[32]. E quanto aos abates, será que assistiu a algum? Acredito que aquilo que ele conta neste caso foi-lhe transmitido através de uma cadeia de informação por voz, tendo-lhe chegado com todas as distorções imagináveis. Nem sequer refere Madina do Boé como tendo sido o local do disparo[33] e que é um elemento central neste caso.

Quanto à tese da armadilha, não há dúvida que esta missão de reconhecimento foi originada por uma informação da DGS revelando a ocorrência de uma reunião de altos quadros do PAIGC em Madina do Boé. Ora, acontece que o PAIGC mantinha uma base, a curta distância, em território da Guiné-Conacri, equipada com infraestruturas para apoiar o treino da guerrilha e onde viviam assessores cubanos, entre outros. É pouco plausível que, sendo necessário fazer uma “reunião de quadros”, não a fizessem nesse local, em Kambera, e fossem para Madina do Boé onde não havia condições logísticas. O que temos a certeza é que, naquele dia, estava lá um grupo de mísseis, apesar das nossas forças não efectuarem operações no Boé há anos.

Nada disto faz sentido a não ser que se tratasse de um plano para atrair aviões. O argumento da reunião passado à DGS terá sido o engodo. Por sua vez a referência a Madina do Boé é um elemento fulcral porque como o míssil era de muito curto alcance os aviões teriam de passar muito próximo daquele ponto[34] para serem atacados com sucesso pelo grupo que lá tinha sido posicionado. Pela descrição do ex-Capitão Pinto Ferreira, penso que o grupo dos Strela estaria instalado no topo da colina adjacente ao antigo quartel, ou seja no Dongol Dandum. Era um ponto elevado e oferecia um campo de visão de 360º. Os outros pontos altos nas proximidades encontram-se todos a distâncias superiores a 2000 metros o que reduziria substancialmente as probabilidades de êxito.

Assim, tudo aponta para uma armadilha semelhante à da construção de um túnel à entrada do corredor do Guilege, em Julho de 1968. Neste caso, o Comandante do GO 1201 escapou com vida mas cinco anos depois, em Madina do Boé, o Tenente-Coronel Almeida Brito já não teve a mesma sorte.

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Notas:

[1] - Série de artigos inicialmente projectada para ser publicada na revista Mais Alto da Força Aérea.
[2] - Indicativo táctico do Centro Conjunto de Apoio Aéreo na Base Aérea 12 (CCAA). Anos mais tarde passou a ser designado Centro de Operações Aero-Tácticas (COAT)
[3] - Indicativo táctico do TCor Francisco Dias da Costa Gomes, na altura Comandante do Grupo Operacional 1201 21 - Informação do ex-capitão de Gandembel: Até Out68, todo o pessoal nativo que possuía pertencia ao Pelotão de Artilharia de Campanha (PelAC 55), de 10,5 cm, de recrutamento da província, comandado por um Alferes Miliciano.
[22] - O ex-capitão de Gandembel estima que o piloto terá caído entre 500 a 600 mts para Oeste do aquartelamente mas penso que terá sido a uma distância menor.
[23] - A pistola foi encontrada no dia seguinte pelos pára-quedistas e deve ter saltado durante a ejecção. Naquela altura, na Guiné, ainda não tínhamos um sistema adequado para o armamento individual problema que mais tarde foi resolvido com a adopção de um colete de sobrevivência.
[24] - Declaração do ex capitão de Gandembel: “O pessoal nativo que me acompanhou na tentativa imediata de resgate do piloto era apenas do PelAC. Tive de recorrer a este pessoal porque nesse dia quase toda a Companhia (inc. o Grupo do Alferes Reis) se encontrava em missão de segurança a uma importante coluna proveniente de Aldeia Formosa (Quebo). Pensei também que seria bom levá-los como pisteiros.”
[25] - Indicativo táctico: Melro
[26] - Conterrâneo e meu amigo que estava em Gandembel. Gravemente ferido em 26SET1968 e evacuado por ter pisado uma mina AP junto ao pontão de Changue-Iáiá
[27] - Este tempo de ida e volta naquelas circunstâncias indica que a aterragem do tenente-coronel Costa Gomes ocorreu necessariamente muito próximo do quartel.
[28] - Nos últimos trinta anos ouvi esta história inúmeras vezes contada sempre da mesma maneira.
[29] - Capitão PilAv António Figueiredo Rodrigues – indicativo táctico “Puskas”.
[30] - Metralhadora pesada 12,7mm fornecida pela URSS e satélites ao PAIGC.
[31] - TCor Infantaria Ref José Aparício
[32] - Entre 20 e 28 de Março de 1973 foram efectuados diversos disparos de Strellas em áreas tão distintas como Campada e Bigene no Norte, Guilege no Sul e Madina do Boé no Leste. Isto mostra que existiam diversos grupos de Strellas a operar ao mesmo tempo e o Manecas não pode ter estado em todos eles. Aliás, numa entrevista ao jornal Expresso, afirmou que estava no grupo que abateu o 1º avião, em 23 de Março de 1973, na zona de Cumbamori, portanto muito distante de Madina do Boé. Além disso, como é bem sabido, o 1º avião não foi abatido no dia 23 mas sim no dia 25 de Março, próximo do Guilege e não na zona de Cumbamori.
[33] - O testemunho do ex-capitão Pinto Ferreira é esclarecedor.
[34] - O míssil tinha um alcance máximo de 4.300 mts e voava a 440mts/s. No caso do G-91, se entrarmos em linha de conta com a velocidade normal durante o afastamento, que era sensivelmente de 154 m/s, então o míssil só seria eficaz se disparado com o alvo num raio de 2.800 metros.
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Nota do editor

Poste anterior de 16 de Setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16296: FAP (98): "Pedaços das nossas vidas" - "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejetou-se em Gandembel", por TGeneral PilAv José Nico - I Parte (Miguel Pessoa)

segunda-feira, 21 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15883: Convívios (732): Almoço do pessoal da CCAÇ 2317, dia 4 de Junho de 2016, em Espinho (Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo Atirador de Infantaria)



ALMOÇO/CONVÍVIO DA CCAÇ 2317

4 DE JUNHO DE 2016

ESPINHO

AMIGO E COMPANHEIRO:

Há cerca de 200 anos a zona de Espinho começou a ser utilizada para a pesca, ainda que de forma sazonal. Esses primeiros ocupantes não construíram habitações, permanecendo na costa apenas durante a campanha, para regressar à terra de origem no inverno, quando a violência do mar impossibilitava a pesca em segurança.

A fixação da população começou a fazer-se por volta do ano de 1776, quando surgiram as primeiras habitações (os palheiros), feitas em madeira com os telhados revestidos com terra. A transição da madeira para a pedra ocorreu lenta e gradualmente.

Mais tarde, muitas destas habitações seriam adquiridas e transformadas, por famílias de posses, dando origem à colónia balnear de Espinho. Em menos de meio século, Espinho tornou-se numa das zonas de eleição do Norte de Portugal.

Palheiros de Espinho
Com a devida vénia a d'EspinhoViva

O almoço deste ano, para mudar de ares, será realizado nesta bela cidade. A intenção é que desfrutem de um belo sábado, com uma bonita viagem de comboio para contemplarem assim a paisagem da orla costeira portuguesa. Outro dos motivos é a facilidade de acesso a esta cidade a que se soma o preço económico do bilhete de comboio.

O restaurante chama-se Espaço Z e a morada é: Rua 17, n.º 1237 – Espinho.


Contactos:
Joaquim Gomes Soares
Tel.: 225 361 952 / 936 831 517
Email: joaquim.gomes.soares@hotmail.com

Como todos os anos espero poder contar com a tua presença novamente.
Este ano, o encontro é no dia 4 de junho, calha a um sábado e a partir das 12 horas estamos à tua espera.
Agradeço que me confirmes a tua presença logo que possível.

Um abraço,
Joaquim Soares
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15865: Convívios (731): XXXIII Encontro Nacional dos ex-Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Guiné, dia 16 de Abril de 2016, em Fátima (Lima Ferreira)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14618: Notas de leitura (712): René Pélissier escreveu sobre a CCAÇ 2317, Gandembel (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
É sempre bom que se fale dos nossos livros, e em publicações de grande importância, como é o caso da Africana Studia.
O essencial respeitante ao livro do Idálio Reis já está dito e publicado no nosso blogue, em martírio que está gravado em bronze para a História.
Vale a pena ver a peça de um grande historiador que é René Pélissier, mais uma razão para o orgulho que temos no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


René Pélissier escreveu sobre a CCAÇ 2317, Gandembel

Beja Santos

Na conceituada revista Africana Studia, uma das poucas publicações científicas relacionadas com estudos africanos, editada pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, no n.º 20, de 2013, René Pélissier, que regularmente aqui publica as suas recensões sobre obra da literatura colonial, debruça-se sobre o livro de Idálio Reis, a "CCAÇ 2317 na guerra da Guiné. Gandembel/Ponte Balana", 2012.

É do conhecimento de todos que à CCAÇ 2317 coube o martírio de erigir junto do “Corredor da morte” um aquartelamento por decisão do Estado-maior de Arnaldo Schulz. Viveram literalmente enterrados no solo, como escreve Pélissier e o martírio acabou em 28 de Janeiro de 1969 quando Gandembel foi evacuado.
Entretanto, este posto avançado em terra de ninguém foi flagelado 372 vezes enquanto durou o suplício.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14597: Notas de leitura (711): "O Outro Lado da Guerra Colonial", por Dora Alexandre, A Esfera dos Livros, 2015 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14478: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel (O Inferno)

1. Em mensagem do dia 7 de Abril de 2015 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta memória da sua guerra que lembra a Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel.

Caros amigos
Tenho este trabalho pronto para encerrar o meu livro. Ele é fruto de alguns testemunhos que registam a participação da minha Companhia – a CART 1689. Portanto, perdoem-me a visão parcial e redutora dessa enorme e injustificada Operação que ficou bem marcada na história da Guerra Colonial.
Não sei se isto terá interesse para a publicação no nosso Blogue, até porque há vários testemunhos que já foram ali publicados.
Como hoje decorre o 47.º aniversário do início dessa Operação, lembrei-me de por o assunto à vossa consideração.

Um forte abraço do
Silva da CART 1689


Outras memórias da minha guerra

17 - Operação “Bola de Fogo” – construção de Gandembel 
(O inferno)



1 - DESTINO FELIZ OU PRÉMIO AO DEVER

Fui criado num ambiente extremamente humilde e bastante castigado pelo regime salazarista. Todavia, quando ouvi a minha Professora D. Irene, logo na primeira classe, ensinar-nos marchas e louvores a Portugal e aos nossos heróis, senti-me eternamente ligado à nossa Pátria. Recordo que, mais tarde, numa das redações que costumávamos fazer, exaltei o meu sentimento patriótico, prometendo que estaria disponível para dar a vida por Portugal. A Professora ficou comovida e, em lágrimas, aproveitou para me elogiar, arrancou a folha do meu caderno e colou-a na parede.
Orgulhoso pela história dos nossos antepassados, cimentei esse sentimento patriótico pela vida fora. Ainda hoje vibro de alegria ou choro de raiva, sempre que algum português se salienta ou é injustiçado.
Porém, quando a guerra do ultramar despoletou, já não sentia a mesma vontade e a mesma coragem de menino. No entanto, apesar de se notar bastante o interesse comunista em África, através da sua propaganda e apoio à libertação desses povos, era comum, entre nós, um sentimento de obrigação de lutar pela nossa defesa, pela defesa da nossa Pátria. Por outro lado, não havia grandes possibilidades de escolha; ou vais ou foges. Muitos fugiram porque tinham possibilidades financeiras ou contactos para fazer isso. Mais tarde, com o 25 de Abril, alguns deles beneficiaram, ainda, do estatuto de revolucionários, de antifascistas e de grandes patriotas.

Em 1965, quando ingressei no serviço militar, alimentava a esperança de que a guerra terminaria em breve. Porém, à medida que o tempo passava, as coisas pareciam piorar. Assim que me apercebi de que poderia ir para a guerra, procurei assimilar bem a instrução, especialmente quando tive que frequentar a especialidade de “Ranger” – Operações Especiais.
Na Guiné, tal como os outros combatentes, sofri com tristeza, raiva e angústia, os piores momentos da minha vida. Todavia, esforcei-me para dar o meu melhor na defesa dos meus interesses e dos meus camaradas, tendo participado nos maiores combates em que a minha CART 1689 esteve envolvida. Mas também tive a sorte de me safar positivamente deles.
Nunca faltei a nenhuma Operação até vir de Férias. Nem à OP Diabo Negro faltei (Vd. P7921 - Celebrando os meus 25 anos). Como fazia anos, poderia ter tido uma folga, normalmente concedida. Nessa altura o meu Pelotão estava mais desfalcado de graduados. Previa-se uma grande Operação e eu não me baldei. Quando falei nisso com o nosso Capitão, tive a oportunidade de lhe dizer:
- Enquanto estivermos em Intervenção, participarei em todas as Operações, mas quando regressar de férias “vou engolir um garfo” e não vou poder fazer mais nada!

Sempre soubemos que, depois de um ano em Intervenção, teríamos o chamado descanso. Por isso, programei as férias para Abril, com a convicção de que, atingido esse mês, poderia considerar-me livre de perigo.
Já de férias, enquanto me sentia efectivamente livre dos perigos da guerra e, ao mesmo tempo, já a entrar numa fase de projectos e de sonhos, coisas impensadas anteriormente, os meus camaradas da CART 1689 entravam (sem eu saber) na sua pior fase da guerra na Guiné.


2 - A CAMINHO DE GANDEMBEL
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

"Depois da saída de Catió, a 22 de Março e passada a noite ao largo de Bolama, recordo bem aquela calma e descontraída deslocação em LDG, a caminho de Buba.
Os militares foram-se acomodando junto das suas mochilas, já rompidas de tanto uso e de tanta mudança. Quase não falavam. Limitavam-se a poucas palavras mas a muitos pensamentos, interrogando-se e matutando neste momento apreensivo. Quem se mostrava mais inquieto era o Machado, que questionava:
- Estamos a poucos dias de fazer um ano de Intervenção, cheio de porrada, de cansaço e de ronco, porquê sacrificar-nos mais uma vez?
Logo respondeu o Viana:
- Vamos pagar o custo do nosso bom comportamento.
- Claro - acrescentou o Rodrigues, que concluiu:
- Orgulhem-se do reconhecimento ao nosso valor.
- Boa Rodrigues. Só esperamos que esse valor não nos fique caro. – acrescentou o Zacarias.

Entretanto, enquanto alguns, mais isolados, mexiam no saco das fotos, cartas e outras recordações, quase a meio da LDG, estava o nosso capitão, sentado num mocho, de cabeça curvada, mais parecido com um condenado à decapitação. Esperava a intervenção do nosso Barbeiro. Talvez com alguma apreensão devido à sua necessária apresentação formal ao Comandante do Sector, o coronel Celestino Rodrigues. O tal que viria a ser punido com dez dias de prisão agravada, por problemas nesta Operação Bola de Fogo. Coisa nunca vista num Oficial Superior – segundo lamentava o sargento Viscoso.
Passámos mais de uma semana de “férias”, com actividades de lazer e de treino de tiro. Ainda me rio de ver o Sargento Biscaia a tomar banho com umas cuecas, cheias de carimbos, a fazer de conta que eram calções de banho. Até ao dia 6 de Abril ocupou-se o tempo com patrulhamentos com pelotões alternadamente, fez-se instrução de tiro, com competições de tiro ao alvo e outras de índole desportiva.
Dia 7 de Abril deu-se início à OP BOLA DE FOGO, uma das maiores realizadas na Guiné. Foi, talvez, a mais difícil, mais violenta e mais estúpida, depois da tomada da Ilha do Como.

O objectivo apontava para a implantação de um Aquartelamento (Gandembel) para efectivo de Companhia, no Corredor do Guileje, na região entre Gandembel e Ponte Balana.
Durante a Operação e dias subsequentes, além da nossa Cart 1689, actuaram também:
3.ª Companhia de Comandos
5.ª Companhia de Comandos
CCAÇ 2316
CCAÇ 2317
CART 1612
CART 1613
Pel Sap do BART 1896
Pel Caç Nat 67
Pel Caç Nat 51
Pel Mil 138
Pel Mil 139
Pel Rec Fox 1165
Pel Rec Daimler de Aldeia Formosa
BEng 447
27 Carregadores de apoio

A ida para Aldeia Formosa, por terra, em coluna auto, fez-se sem grandes receios aparentes. Na chegada reinava a calma. Foi muito agradável termos jantado com a Companhia de Comandos e ter-me encontrado com o tenente Carapeta, meu comandante de pelotão em Vendas Novas.
Saímos dali, pelas 22h00, também em coluna auto, em direcção a Chamarra, onde estacionámos até as 03H00 (08.Abril.1968). Estava iniciada a OP “Bola de Fogo”, uma das maiores e mais perigosas de toda a Guerra Ultramarina".


3 - OPERAÇÃO BOLA DE FOGO
Por José Neto
(Memórias de Guileje (1967/68) – blogue “luísgracaecamaradasda guine”)

"(…) A abertura da picada estava a dar pelas barbas à nossa tropa.

Era impossível jogar com o elemento surpresa porque tornava-se necessário retirar abatizes, detectar e fazer explodir fornilhos (até uma viatura GMC em tempos abandonada pelas NT foi pelos ares porque se desconfiava que estava armadilhada) e, principalmente, derrubar árvores para substituir os troncos apodrecidos que, no leito dos regatos, serviam de ponte para a passagem de viaturas.
Os turras nem precisavam de atravessar a fronteira para morteirar os lenhadores. E nós não podíamos ripostar por respeito às convenções internacionais.
Ao fim de duas ou três semanas, com muitos ferimentos ligeiros, mas sem qualquer morto, o itinerário foi dado como praticável e ia seguir-se a segunda fase, que era a marcha da Companhia para Gandembel.

Parecia-nos que, das duas, a CCAÇ 2316 era a que ia avançar, já que a CCAÇ 2317 tinha sido inicialmente designada para nos substituir em Guileje, mas afinal veio a ser esta última, a do 1.º sargento Martins, comandada pelo capitão Barroso de Moura, a quem coube o petisco.
Ao mesmo tempo, como manobra de pressão, iniciou-se do lado norte a abertura da picada Chamarra – Gandembel.
A valentia e pertinácia dos bravos de Gandembel devem ter impressionado o inimigo que fez deslocar para aquela zona um potencial de fogo considerável.
Pelo itinerário de Chamarra juntou-se à CAÇ 2317 a CART 1689 e, com acções pontuais dos Paraquedistas e dos Comandos e o apoio do fogo de artilharia e bombardeamentos dos Fiat da Força Aérea a posição consolidou-se, mau grado as flagelações contínuas de que era alvo.
Mas o cerne da questão continuava. Como o IN precisava de manter o reabastecimento dos seus grupos que actuavam no interior do território, passou a utilizar trilhos um pouco a sul de Gandembel, perto de Paroldade, e esses trilhos cruzavam-se com as nossas colunas que também iam reabastecer o novo aquartelamento.
Nestas condições, cada reabastecimento nosso era uma autêntica operação de três, quatro dias, com fogachadas por todos os lados.

Na última das três operações desta natureza em que a minha Companhia e outras unidades estiveram empenhadas, houve três mortos, sendo um nosso (o 1.º Cabo José Augusto da Silva Leal), outro do Pel Caç Nat 51 (o Fur Mil Sebastião Dionísio) e o terceiro do Pel Rec Fox 1165 (o Soldado Manuel Vieira).
Dois soldados nossos foram gravemente feridos e evacuados para Lisboa, o Júlio Rodrigues Calado e o José Alves Pereira e mais doze, de várias patentes, dos quais três do Pel Rec Fox 1165, feridos com menos gravidade e evacuados para Bissau.

O regresso ao quartel foi difícil e dramático.

O Capitão Corvacho teve de pedir fogo dos obuses de 8,8 dando as coordenadas dum lugar já bem do outro lado da fronteira, mas que sabia ser o ponto de onde o IN o estava a atacar com armas pesadas. O alferes comandante da força de artilharia hesitou e, ao pedir a rectificação dos elementos de tiro, fez saber que o fogo ia cair na zona da fronteira da Guiné-Conacri. Pelo rádio percebeu-se bem a irritação do capitão que insistiu e perguntou ao alferes se desconhecia que ele era oficial de Artilharia.

Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. (…)
Mais ou menos por esta altura chegou à Guiné o Brigadeiro António de Spínola, logo depois promovido a General, para substituir o General Schulz no Governo e Comando-Chefe da Província.
Notou-se perfeitamente uma alteração na cadeia de comando principalmente porque, como diziam os soldados, enquanto o primeiro nunca tinha saído do asfalto de Bissau, o segundo aparecia em todo lado sem se fazer anunciar.
Uma das suas primeiras visitas foi ao inferno de Gandembel onde quase obrigou à força o tenente piloto do helicóptero a descer. Foi-lhe fácil concluir que a posição era pouco sustentável e ordenou a retirada progressiva de modo a salvar a face das nossas tropas.

Constou, não posso garantir, mas acredito, que naquela aventura, as NT tiveram cinquenta e dois mortos e muitos feridos graves”.

(P527 de 16 de Fevereiro de 2006 - blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


4 – Do primeiro dia da OP Bola de Fogo
(Texto do livro “Cambança Final” de Alberto Branquinho)

“SÃO JOÃO NO PORTO”

Havia muita tropa envolvida na operação junto à fronteira com a Guiné-Conakri. Uns vindos de norte, outros de sul, em coluna auto.
A tropa que progredia na mata no sentido norte-sul começou a ouvir água a correr em declive acentuado. Era o rio assinalado na carta, que tinham de atravessar. Quando começou a ser visível, constataram que, então, na época seca, era um riacho com três ou quatro pequenos braços de água. Água doce, sem lodo nas margens, devido à altitude, embora muito baixa.
O pessoal que ia à frente e se preparava para atravessar o rio, agachou-se atrás das árvores, aguardando autorização para encher os cantis. A zona era muito perigosa. Não passava por ali tropa havia muitos anos. A autorização foi dada, mas, antes disso, devia passar para a outra margem um número suficiente de homens, por razões de segurança. Quando os primeiros se tivessem abastecido, iriam os outros substitui-los e depois a coluna, seguindo-se andamento lento.

A primeira secção preparava-se para sair da mata e atravessar o rio, quando surgiu, descuidado, na outra margem, um rapaz com sete ou oito anos. Trazia um barrete camuflado. Acocorou-se e retirou da água um pequeno caniço, dentro do qual se debatiam dois peixes. Depois de um momento de espanto e indecisão, um soldado apontou-lhe a G-3 e ia fazer fogo. O alferes agarrou-lhe a arma pelo guarda-mão e empurrou-a para baixo.
- Jubi ! – chamou-o.

O rapaz olhou em volta, procurando de onde vinha a voz. Viu os militares. Levantou-se e ficou estacado, largando caniço e peixes.
- Jubi, bô bem. – e fez-lhe sinal com a mão para se aproximar.

O rapaz fez menção de ir dar um passo em frente, mas voltou-se e desatou a correr para uma baixa do terreno do outro lado da margem e desapareceu na mata, não muito densa. O mesmo soldado e outro levaram as armas à cara, mas o alferes gritou-lhes:
- Não!

Toda a secção desatou numa correria, tentando agarrar o rapaz. Os que vinham atrás correram, também, sem entenderem o que se estava a passar. O alferes foi incapaz de os deter porque estava a comunicar ao capitão, pela rádio, o que acontecera.
- Instalar! Passa a palavra: instalar.
A correria parou e alguns começaram a regressar.
O capitão e o alferes, agachados, passaram para o outro lado do rio. Um furriel, que fora na perseguição, veio ter com eles.
- Há gajos por aqui. Há fogueiras apagadas, com cinzas quentes.
O capitão chamou o guia e deu-lhe instruções.
Recomeçou a marcha, lenta e cuidadosamente.

Não tinham passado mais que dez minutos – uma emboscada. Pouco tempo depois - outra emboscada. A marcha prosseguiu assim, entre emboscadas e tiros de morteiro, disparados não de muito longe, causando só ferimentos ligeiros, de estilhaços e areias.
Sobre o meio da tarde ou porque se lhe escassearam as munições ou porque detectaram a coluna de viaturas vinda do sul, pararam os ataques.
Feito o contacto entre as duas colunas, começou a preparar-se a instalação para passar a noite.
Em pequenos grupos, foram encher os cantis no auto-tanque.

Mal a noite ficou bem cerrada, recomeçaram os ataques. Agora muito fortes. Ora de leste, ora de norte, ora de nordeste – armas ligeiras, metralhadoras pesadas, lança-granadas e morteiros. Ao rasto das tracejantes, silvos de balas, acrescentavam-se os rebentamentos, quase ininterruptos. Na escuridão da noite, sem qualquer abrigo adequado, era impressionante e aterrador.
O alferes, instalado com o pelotão no lado oeste, teve de mudar de lugar, onde estava bem abrigado atrás de um poilão, para não ouvir o soldado que o acusava:
- A culpa é sua, meu alferes. Se eu tivesse “lerpado” o “puto”, isto não acontecia.

Junto à nova posição de abrigo do alferes, um outro soldado, deitado de costas, com a G-3 ao lado, no chão, olhava para cima e dizia, repetidas vezes, em sotaque nortenho:
- Parece o São João no Porto, carago!»

(IN: “Cambança Final” de Alberto Branquinho – Página 199 – Edição Vírgula, Maio de 2013)



Gandembel

Fotos: © Alberto Branquinho (2012). Todos os direitos reservados


5 - O INÍCIO DE GANDEMBEL/PONTE BALANA
(Texto de Idálio Reis)

"(...)
E por via disso, na superior linha de festo do rio Balana, nos viemos a quedar nessa manhã, para de imediato dar início à odisseia que representou a construção de um posto militar fixo, que se viria a chamar Gandembel e mais tarde a uma anexa afastada apenas de poucas centenas de metros, de nome Ponte Balana.

Sob a vigilância directa de uma tropa já bastante mais experimentada - a CART 1689 -, que já reconhecera o local antecipadamente, e que teve uma acção extraordinária durante a permanência que teve connosco até à sua retirada a 15 de Maio, e que é de elementar justiça salientar o papel relevante que sempre demonstrou, começámos a arranjar as nossas guaridas colectivas, autênticos abrigos-toupeira, que nos ofertassem uma maior segurança pessoal durante o tempo de construção dos abrigos definitivos.

Mas antes do mais, houve que proceder à limpeza arbórea da zona, onde a única ferramenta mecânica - a moto-serra -, nos propiciou uma ajuda preciosa. Não foi assim, mestre-soldado Horácio Almeida? Tu que desde criança, tens tido uma vida mancomunada com a floresta.”(…)

(P1654 de 12 de Abril de 2007 – blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


6 - EM GANDEMBEL
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

"O furriel Marta, que se havia desviado para arrear a giga, ao sentir as formigas assassinas, a morder-lhe as partes, larga-se a correr agarrado às calças. Com este restolho, alerta uns turras que fugiram. Estavam a escamar peixe junto à margem. A nossa tropa, em descanso, não reagiu, para não espantar a caça.
Teríamos que continuar em direção ao Pontão, local apontado para nos juntarmos à CCAÇ 2317, futura defensora do aquartelamento a construir, com a designação de Toupeiras de Gandembel. Sob um sol escaldante, passámos entre um capim altíssimo, onde fomos atacados por moscas que, coladas ao suor, faziam de alguns de nós, pretos retintos. Seguíamos cautelosamente, tendo em atenção que o alerta já fora lançado, através dos fugitivos da beira rio.

Pelas 13H00, com o PCV e os T-6 à nossa vertical e quando já se ouvia o barulho das viaturas da coluna que vinha do Sul, o IN, instalado do lado Leste da estrada, desencadeou uma emboscada, cujo tiroteio demorou uns 10 minutos. Felizmente, tudo correu bem. De seguida avançámos para ver o ronco e fomos surpreendidos pelas abelhas. Situação resolvida e recebemos a ordem para avançar para o Pontão.
Inicialmente ficámos na dúvida se aqueles nativos, que vinham na frente. Seriam turras ou milícias. Valeu a nossa calma e uma dedução muito lógica: aquele barulho que os acompanhava não podia ser dos turras. Eles nunca se ouviam. Efectivamente, tratava-se da coluna que trazia os periquitos da CCAÇ 2317, acompanhados de outro pessoal, para iniciarem a instalação do aquartelamento. (…)
Fez-se a junção e procedemos à inversão de rumo, visando um local mais próximo do rio, para se fazer o aquartelamento. Guileje.
Mal nos distribuímos no espaço idealizado e logo sofremos um violento ataque de morteiros. Valeu-nos a 3.ª Companhia de Comandos, que acompanhava de perto a coluna e que deteve o avanço das tropas inimigas. Esta rápida intervenção dos Comandos deve ter tido grande influência intimidatória junto do IN, uma vez que passou a atacar mais de longe.

Nesta primeira noite em Gandembel, sofremos ataques às 20H00, às 23H30 e às 2h30.
Mal amanheceu, sofremos ataques às 6H00 e às 6H20.
Pelas 8H00, depois de reconhecido o local, procedeu-se à construção dos abrigos, cabendo à nossa CART 1689, a zona Norte e Oeste de um aquartelamento idealizado em forma de quadrado.
Neste dia 9, tivemos a primeira evacuação (por doença). Foi a de Joaquim Sousa Campos.
Grupos de 3 ou 4 elementos, com pequenas sacholas individuais, iniciaram escavações para se abrigarem do IN. Mal se cabia nas covas, cobriam-se com madeira e tudo que aparecesse. Enquanto uns trabalhavam no duro, outros tratavam da protecção da zona e do acesso à água. Apesar desta diminuta distância de 100 metros aproximadamente, o percurso foi sempre picado pela nossa CART 1689. Foram quase sempre os mesmos a fazer esta tarefa.

No dia seguinte (10 de Abril), pelas 10H30, sofremos um ataque que nos provocou dois feridos; João Inácio Sousa e o Eduardo Rodrigues Lopes.
O dia 11, que iniciou com um ataque sofrido durante 40 minutos, foi muito activo. Depois de uma boa resposta das NT, distribuímos pelotões por lugares chave, onde estiveram emboscados durante o dia. A partir deste dia, foi evidente o aparecimento de elementos doentes, que não podiam sair dos abrigos.
No dia 12, o ataque veio pelas 3H30. Nestes dias já encontrámos vário material deixado pelo IN e vestígios de sangue. Voltou a ser atacado pelas 22H30.
Este dia destaca-se pela chegada do primeiro correio e pelo início da construção da padaria.
Cedemos quatro “especialistas” para isso. O pessoal da nossa 1689, andava sempre ocupado em emboscadas e a montar segurança aos trabalhos da CCAÇ 2317, que veio a ser apelidada de “Os Toupeiras de Gandembel”. Abate das árvores e construção dos abrigos, eram trabalhos quase ininterruptos.
O tempo corria vagarosamente. Normalmente sofríamos ataques todas as noites. Por vezes, nem tempo nos davam para dormir.

Enquanto nós ansiávamos pelo regresso, cientes que terminaria o nosso período de intervenção, pensávamos nos desgraçados dos Toupeiras que iriam viver naquele inferno.
No dia 13 foi evacuado, por doença, Fernando Martins da Cunha.
No dia 17, quando faziam um patrulhamento de reconhecimento, foram atingidos por uma mina, o Furriel Belmiro Santos João e o nosso Capitão Manuel Moreira Maia. Foram evacuados para Bissau, onde viria a falecer o Belmiro.
No dia 19, dia em que deixou de haver pão, Foram atingidos por um dilagrama: Una Infalé, José M. Martins Costa Rêgo e Raul Pires. Foram evacuados para Bissau, onde veio a falecer o Una Infalé.
No dia 20, houve a primeira visita de um médico.

Dia 24. Já se havia entrado em comportamentos de rotina. Várias baixas, vários doentes inertes, dentro dos abrigos e muitos elementos debilitados, já se acomodavam ao esforço mínimo. Os Toupeiros, talvez mais cansados fisicamente, devido ao trabalho permanente, parecem agora pouco motivados e muito acomodados. Os militares da 1689, já com algumas baixas e sem o Capitão, chegaram a protestar por esta situação.
Lembro-me de termos ido montar segurança para protecção a uma coluna vinda do Guileje, comandada pelo Cap Corvacho, em que nos acompanhou um pelotão dos “Toupeiras”. Os turras soltaram as abelhas, que se dirigiram para este pelotão. Ia sendo um desastre! Estes militares descontrolaram-se e fugiram para o trilho, aos gritos, sujeitos a outro tipo de acção do IN. Muitos estavam tão inchados das ferradelas que nem se reconheciam. Regressámos ao aquartelamento e esperámos o que fazer. Chega a ordem para se voltar para a segurança à coluna e a maioria dos militares da 1689 recusa-se a fazê-lo, alegando o perigo da actuação da Companhia dos periquitos (Toupeiras). Estes apareceram mas, da 1689, só foram 14 elementos. Alguns, mais afoitos, isolam-se na coluna e provocam alguma confusão, porque outros não querem ir na frente. Rebenta um forte ataque do IN, que se havia emboscado à espera da coluna de Guilege. Aproximámo-nos do local do “assalto” e vimos o camião GMC carregado de cerveja, metido na cratera de um fornilho. Quando perguntei ao Corvacho o que iriam fazer à GMC e à cerveja, uma vez que estava a ficar tarde, ele disse:
- Não te preocupes, se a GMC não sair, rebento as garrafas com meia dúzia de granadas. Estes filhos da puta não vão beber nenhuma.

Felizmente a GMC saiu do buraco, para bem de todos e, muito especialmente, para os da 1689 que se abasteceram razoavelmente. Soubemos que no seu regresso a Guileje, esta coluna sofreu mais ataques em emboscadas e teve mais feridos.
Dia 26 de Abril, a nossa CART 1689 completava um ano. E todos os dias 26 davam motivo há maior bebedeira do mês. Ali, não havia Messes, Refeitórios ou Bares. Só buracos no chão e alguma água do rio. No entanto, sabe-se lá como, o nosso pessoal foi bafejado com a oferta de algumas garrafas de bagaço. Fracos e doentes como andavam, os soldados acusaram rapidamente o efeito exponencial de tais cargas etílicas. E o IN, talvez sabedor do significado desta data, resolveu atacar desmedidamente. Valeu-nos o ânimo bagaçal adquirido, para uma resposta compatível. E quando o festival acabou e se concluiu que ninguém havia sofrido ferimentos, foi a alegria generalizada".


7 – NOS PRIMEIROS DIAS

Vejo, pela História da Companhia, que a minha CART 1689 permaneceu naquele espaço, que veio a ser o quartel de Gandembel, cerca de um mês e meio.
Eu já tinha vivido com a Companhia a experiência de longos dias na construção de outro quartel totalmente novo (“Gubia”, no sector de Empada). Mas, devido a perigosidade da zona onde ia sendo construído o quartel de Gandembel, a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conakry, situado no chamado Corredor da Morte/Corredor de Guileje, eu calculava que os primeiros dias deveriam ter sido muito difíceis. Eram os ataques constantes de que falavam, a necessidade de água, organização do terreno para efeitos defensivos, para albergar (com a segurança necessária) duas-Companhias-duas num espaço tão limitado e em terreno praticamente plano.
Já tinha abordado estes aspectos com alguns graduados, mas a conversa derivava sempre para outros aspectos pessoais, de cada um, relacionados com a actividade operacional em período de tempo mais avançado e não durante a bagunça que, entendia eu, teriam sido os primeiros dias.

Num convívio da CART 1689 abordei este aspecto com alguns soldados:
- Então e nos primeiros dias, como é que foi? Muita confusão? E água? Havia água ou era cerveja?

Vou tentar reproduzir, com a realidade possível, partes do diálogo que as minhas perguntas causaram.
- Água? Água, a gente tinha. Havia um rio ali pertinho. Foi o único rio que eu vi na Guiné que não tinha água salgada.
- De dia os gajos atacavam, mas era só de longe. Com canhões e morteiros. Mas de noite os filhos da puta vinham de ao pé e com metralhadoras e tudo. E era todos os dias, de manhã e à noite e se não era de dia, chateavam-nos a noite toda.
- Então, quando a gente ainda estava a cavar os abrigos para três ou quatro de nós (que ficaram tapados com troncos em cimba e despois com chapas de bidões e depois com terra por cimba), não havia mais nada e tínhamos que ir “arrear o calhau”. Ora, pois! Como não havia inda onde ir, cagávamos do lado de lá das árvores maiores. Arreávamos as calças, púnhamos a G3 encostada às árvores, sempre com os olhos a olhar à volta. Feito o serviço, voltávamos p’rá picareta e p’rá pá. Quando os gajos vinham à noite p’rá atacar, deitavam-se ó detrás dessas árvores e cagavam-se todos. Eh! Eh! Eh! Eh! Eh!
- Póis! Mas as mais das vezes a gente andava a montar emboscadas e a fazer patrulhamentos de segurança às obras que os periquitos andavam a fazer.
- Mas, quando precisavas, também cagavas assim, daquela maneira, ou não?


8 - 15 de Maio – DIA TERRÍVEL
Primeiro ferido grave da CCAÇ 2317 – Furriel António Alves
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

“Julgo que era o segundo ou terceiro dia em que os Toupeiras efectuavam o trabalho do abastecimento de água. A Cart 1689 sairia neste dia de Gandembel e já deixara de o fazer.
A Companhia “Os Ciganos”, apesar dos seus cuidados bastante experimentados, tivera ali, em Gandembel, 2 mortes e dezenas de evacuados. Todavia, sempre manteve os cuidados essenciais de comportamento, incluindo, neste caso, a prática diária de picar esse escasso percurso de cerca de 150 metros.
Ora, os Toupeiras, ao contrário dos “Ciganos”, não sentiram necessidade de picar esse pequeno percurso. Claro que o experimentado IN estava atento a estes facilitismos e, logo no dia seguinte, ouviu o rebentamento das minas colocadas.
Disse-me o Cabo Mendes:
- Ó furriel, foi chocante ver o estado do seu colega que, com as pernas esfaceladas, dos joelhos para baixo, gritava:
- Tirem-me as botas! Tirem-me as botas!”


9 – No último dia da CART 1689 na OP BOLA DE FOGO
(Texto do livro “Cambança Final” de Alberto Branquinho)l

“DESPOJOS”

"Eram cerca de nove horas da manhã. O calor começava já a apertar. O pessoal da Companhia estava pronto e equipado para sair, com os seus pertences dentro dos sacos de lona. Estavam encostados nas sombras possíveis, na proximidade dos abrigos, prevenindo a necessidade de terem que se proteger em caso de ataque.
Aguardavam a coluna auto que estava a chegar, de norte, para, depois, saírem desse quartel fortificado, com as mesmas viaturas, em marcha apeada, fazendo o movimento de retorno. A norte ouviram-se três ou quatro (cinco?) rebentamentos de grande potência. A primeira reacção foi correr para os abrigos. Muitos estacaram imediatamente, porque, estouros com aquela força, não tinham nada a ver com “saídas” de canhão ou de morteiro. Todos os rostos se viraram, com expressão ansiosa para norte. Uma nuvem de fumo e pó começou a surgir e a avantajar-se muito ao longe.
- Que merda foi aquela?

A resposta chegou pouco depois, via rádio e retransmitida boca a boca: “Fornilhos”.
Chamam-se os enfermeiros e saem viaturas, com mais pessoal, em socorro.
A coluna tarda e não há mais notícias.
Chegam as viaturas que tinham saído. Os homens vêm com ar soturno. Duas viaturas tinham sido despedaçadas e havia muitos pedaços de corpos.
Quantos? Ninguém sabe responder.
As primeiras viaturas da coluna começam a chegar. Entra a viatura, de caixa aberta, com os pedaços de corpos. Alguns, curiosos, agarram-se às cancelas e espreitam:
- Foda-se! Queimados! Parecem todos pretos.

A viatura é coberta com panos de tenda amarrados, depois de enxotarem as moscas, que teimavam em ficar por debaixo dos panos.
Mais do que medo, uma raiva enorme, surda, irracional enche as cabeças e os peitos. Muitos cospem para o chão de forma maquinal, contínua, inconscientemente.
As viaturas são abastecidas de combustível para o regresso, directamente dos bidões, ao mesmo tempo que é retirada a carga que se destina ao quartel
Reorganiza-se a coluna para o regresso, com a indicação de que a viatura com os pedaços de corpos seguirá em último lugar. O pessoal da Companhia que aguardava seguirá apeado, espaçado, pelotão a pelotão, entre as viaturas.

Começa o andamento, desenrolando o “novelo” de viaturas e de homens. A raiva sobe-lhes às cabeças. Os dentes cerrados. Há indicação para estarem, também, atentos às copas das árvores.
Não demoraram muito tempo a chegar ao local de rebentamento dos “fornilhos”. Cabia um homem agachado dentro de cada buraco. Um furriel, quando viu um braço ou, talvez, uma perna, pendurado de um ramo, disse para um soldado:
- É pá, deixa aí a G-3 e vai lá em cima buscar aquilo, que a gente dá-te cobertura.
- Foda-se! Ir lá em cimba?! Bá lá bocê!

Frente à recusa, ficou parado, a olhar fixamente para “aquilo” e desistiu.
Ia recomeçar a andar e olhou para o chão. Viu, junto ao tronco de uma árvore, três ou quatro formigas grandes, pretas, que, com as pinças da cabeça cravadas, tentavam arrastar um pedaço de carne, ainda com um farrapo de farda camuflada agarrado. Com raiva, elevou o pé para esmagar as formigas (e, ao mesmo tempo, o pedaço de carne), mas susteve o pé no ar, com a perna flectida e acabou por dar um passo mais largo, passando adiante. Voltou-se para observar melhor e verificou que havia mais pedaços de carne, em volta. Ficou a olhá-los, sem dar conta que viaturas e homens iam passando por ele. Ele já não estava ali. Pairava, cérebro vazio…
Retomou a marcha, maquinalmente, devagar, muito devagar, titubeante e, entre dentes, ia repetindo Lavoisier: “Na natureza nada se cria… nada se… nada se… nada se perde… nada se perde… nada se perde…"

(IN: “Cambança Final” - página 157, edição Vírgula - Maio de 2013)


10 - O ALFERES MONTEIRO
(Texto do livro “Na Tenda do Mestre Isaías” de Emídio Soares)

"Quando passámos por Aldeia Formosa, onde jantámos na noite de 7 de Abril, tivemos a oportunidade de conviver com os militares ali estacionados. Dentre eles, destacamos o alferes Monteiro que, com a comissão quase terminada, aguardava, sem pressa, o seu regresso a Bissau e a Lisboa. Para além de manifestar essa satisfação do dever cumprido, o Monteiro, exteriorizava uma agradável camaradagem e uma evidente simpatia. Parecia que todos o admiravam. Todavia, quem mais o apreciava era o seu grupo de africanos com quem viveu intensamente quase dois anos.
No dia 14 de Maio, o Monteiro ainda estava em Aldeia Formosa. Precisamente nesse dia, o seu Comandante dava-lhe conhecimento que o seu pelotão teria que seguir de madrugada na coluna auto para Gandembel, a fim de levar materiais de construção e géneros alimentícios e, ao mesmo tempo, trazer de volta a CART 1689 que havia terminado a sua missão.
O Monteiro, numa atitude de solidariedade e de despedida do seu grupo, solicitou ao Comandante que o deixasse fazer esse último serviço.

A coluna seguia normalmente e cerca das nove horas já estava perto de Gandembel. Perante umas rajadas de armas ligeiras, a coluna parou e os militares atiraram-se para a as margens da estrada, a fim de se posicionarem e de se defenderem. Logo de seguida explodiram 12 fornilhos, transformando as valetas em crateras, e massacrando a maioria do pelotão do alferes Monteiro.
Seguiram-se cenas horrorosas na procura de corpos e pedaços de carne humana, espalhados em redor daquela zona de morte. Grande parte deles pendiam das árvores, para onde foram disparados.
(…)
No início desta recta, à terceira cratera, do lado direito, e junto à estrada, via-se um tufo de três palmeiras. Numa delas, estava uma perneira de calças de camuflado, com uma bota amarrada e pendurada na copa da palmeira. No tronco da palmeira central, estava a tampa do crânio de uma cabeça com cabelo loiro, à altura de um metro e quarenta, do chão. O resto do tronco até ao chão, era uma massa de carne e sangue, impregnada na casca da palmeira. Deduzimos que eram os restos mortais do alferes Monteiro. Ele era o único branco e loiro do pelotão”.(…)

(IN: “Na Tenda do Mestre Isaías” – página 120, de Emídio Soares, edição do autor)


11 – GANDEMBEL - A TERRA DOS HOMENS DE NERVOS DE AÇO

Por Idádio Reis

"(…) A briosa e colaborante CART 1689 despede-se definitivamente do nosso convívio, e a partida-separação deste bravo punhado de homens, deixou-nos claramente mais pobres, porquanto ficávamos francamente mais indefesos e inseguros. Em mais de um mês que nos acompanhou, até 15 de Maio [e 1968], desenvolveu um trabalho extremamente meritório, tendo-se empenhado denodada e esforçadamente em nos acompanhar. Passou também por graves vicissitudes, em que perde fatidicamente um furriel, alvo de um dos vários artefactos armadilhados por ela mesma, e sofre mais de uma dezena de evacuações, por ferimentos e doenças, entre os quais o seu capitão-comandante.” (…)

(IN: “No Corredor da Morte – A CCAÇ 2317, na guerra da Guiné” – página 112 de Idálio Reis, edição do autor – Fevereiro de 2012)


12 - HINO DE GANDEMBEL
Recolha de José Teixeira
Revisão e fixação de texto: L.G.

“Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte! (i),
Logo se ouve dizer.

Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.

A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (ii)
É preciso protecção.

Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.

Temos por v’zinhos Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.

Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!”

(P2319 de 1 de Dezembro de 2007 – blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


13 – NOTAS FINAIS

1 – Já em Catió, regressado de férias, deslocava-me amiúde para o Cais, esperando a chegada da minha Companhia. Na manhã do dia 24 de Maio ouvi um tiroteio a jusante. Era a LDG a ser atacada de ambas as margens, tendo-lhe sido causado dois rombos: um do lado esquerdo e outro à ré.
2 – Ao registar aqui a maior e mais perigosa OP realizada pela minha CART 1689, sem ter participado nela, pretendi somente transmitir alguns testemunhos que possam vincar a sua acção.
3 – Para assimilar melhor o que foi a guerra em Gandembel, aconselhamos o livro” No Corredor da Morte”, escrito pelo alferes Idálio Reis, da CCaç 2317, que esteve lá desde o início da OP Bola de Fogo até ao abandono do quartel, por ordem de Bissau (10 meses depois), do qual são transcritas acima algumas passagens.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12887: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (17): O Asdrúbal do Cu da Serra e os seus amores tardios

sábado, 14 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14363: Convívios (657): XXXII Encontro do pessoal da CCAÇ 2317, dia 30 de Maio de 2015, no Restaurante Choupal dos Melros - Quinta dos Choupos - Fânzeres - Gondomar (Joaquim Gomes Soares)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Gomes Soares (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835, Gandembel / Ponte Balana, 1968/70), com data de 12 de Março de 2015:

Amigo Vinhal
Conforme a nossa conversa aqui envio a ementa e o texto para comunicar aos meus companheiros o nosso almoço de convívio a 30 de Maio.

Joaquim Soares



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Nota do editor

Último poste da série de 12 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14352: Convívios (656): IX Encontro dos Combatentes do Ultramar do Concelho de Matosinhos, levado a efeito no passado dia 7 de Março de 2015, em Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13616: Os nossos capelães (4): O bispo de Madarsuma, capelão-mor das Forças Armadas, em Gandembel, no natal de 1968 (Idálio Reis, ex-alf mil, CCAÇ 2317, Gandembel / Balana, 1968/69)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > Natal de 1968 > Missa de Natal celebrada pelo capelão-mor das Forças Armadas, bispo de Madarsuma (*).


Foto: © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados [Edição de L.G.]


Idálio Reis (1968)
1. Excerto de um antigo poste  do Idálio Reis ex-alf mil, CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana 1968/69), engenheiro agrónomo reformado, residente em Cantanhede (**) e autor do livro de memórias "A CCAÇ 2317, na Guerra da Guiné: Gandembel/ Ponte Balana" (edição de autor, 2012):

(...) No início da semana de Natal [de 1968], foi-nos dado a conhecer que o capelão-mor das Forças Armadas viria celebrar uma missa campal.

Os preparativos para esse dia não poderiam ser de grande monta, mercê das circunstâncias que nos eram impostas, mas houve a alegria bastante para se proceder a uma limpeza mais esmerada da pequena parada, que serviria de lugar de culto.

Assim, numa quarta-feira, dia 25 de Dezembro, como habitualmente fomo-nos levantando aos primeiros raios do alvor. Era dia de Natal, e muito certamente o único que a Companhia passaria em Gandembel/Ponte Balana, e talvez mesmo em terras da Guiné, já que do tempo de comissão decorrido, tudo indiciava que a próxima Natividade seria passada no tão desejado aconchego familiar.

Bastante cedo, fomos procedendo às tarefas de rotina, e com um efectivo redobrado, seguimos até ao rio Balana buscar água; tudo haveria de correr de feição. O almoço haveria de ser mais avantajado e suculento, já que tínhamos recebido determinados víveres que deram azo a que a ementa fosse das melhores que durante esta longa estada nos fora proporcionado.

E ao princípio da tarde, vestidos a preceito (onde a camisa era indumentária de gala), esperámos o séquito que haveria de vir ao nosso encontro. E pouco tempo passado, irrompiam, nos ares do horizonte, um conjunto de helicópteros que aterravam celeremente no centro de Gandembel, donde iam saindo diversas personalidades. E logo, aquelas singulares máquinas alares - as únicas que nos puderam tantas e tantas vezes socorrer -, levantavam.

Recordo os que pisaram este chão térreo: uma comitiva do Movimento Nacional Feminino, onde pontificava a sua Presidente, D. Ana Supico Pinto; presbíteros liderados pelo Bispo de Madarsuma; o Comandante-Chefe António de Spínola com alguns militares do seu Estado-Maior; um jornalista do Diário Popular.

A Companhia postou-se junto a uma das casernas-abrigo e aprestou-se a dar as boas-vindas. Em silêncio (não em sentido), Spínola aproximou-se de nós e durante alguns momentos fitou-nos de frente [apresentava um fácies de olhar lânguido] e profere uma alocução muito breve em que abordando o tema do Natal, deu particular ênfase aos conceitos de Deus, Pátria e Família. Muito seguramente já havia tomado a decisão pela evacuação daquele aquartelamento, mas nada exteriorizou. De todo o modo, julgo que ao findar as suas palavras, parece ter-lhe perpassado um frémito de emoção, e repentinamente manda descer o seu helicóptero e segue um outro caminho, porventura menos ínvio e liberto que este.

As senhoras do MNF, em atitude bastante contida, simpaticamente fizeram uma pequena oferta a cada um de nós. O Natal de 1968 também nos obsequiara com o maior número de mulheres que Gandembel jamais tivera oportunidade de agregar, e ”nas conversas de caserna” referia-se que talvez fosse a maior prenda que o Pai Natal nos aportara.

Também se retiraram rapidamente.

Ficavam os membros do Clero, para a concelebração da missa. Um altar improvisado e uma Companhia em que a maioria dos seus homens eram católicos praticantes, sentida e contemplativamente ouvem e rezam em murmúrio dolente e fervoroso.

Mas, mal a missa acabou, começam a detonar uma série de granadas de morteiro 82, lançadas junto à fronteira. O bispo e seus acólitos ficam atónitos ante tal quadro e num relance meia dúzia de soldados vão em seu socorro, pegam-lhes nos braços e conduzem-nos para uma das casernas-abrigo. Passaram-se cerca de 10 minutos, terminam as deflagrações, e o helicóptero que devia estar em Aldeia Formosa é chamado, e os membros da Cúria também seguiram outros destinos.

Restou ente nós, o jornalista do extinto Diário Popular, que haveria de escrever um belo artigo sobre a guerra de Gandembel/Ponte Balana, e que o Blogue já o divulgou na sua quase generalidade. (...)


Capa do livro "A CCAÇ 2317, na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", da autoria de Idálio Reis. Edião de autor, 2012.


2. O bispo auxiliar de Lisboa, sob o título de bispo de Madarsuma, com funções de capelão mor das Forças Armadas, no período de 1967-1975. era D. António dos Reis Rodrigues (1918-2009), capelão e professor da Academia Militar, e procurador da Câmara Corporativa antes do 25 de abril (VIII Legislatura).





Ficha biográfica do bispo de Madarsuma, António dos Reis Rodrigues (Ourém, 1918 - Lisboa, 2009). Fonte: Sítio oficial da Assembelia da Repúblicia (Com a devida vénia)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 5 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13577: Os nossos capelães (3): O capelão do BCAÇ 619 ia, de Catió, ao Cachil dizer missa... Creio que era Pinho de apelido, e tinha a patente de capitão (José Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

(**) Vd. poste de 24 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3666: O meu Natal no mato (19): Spínola, as meninas do MNF, o bispo de Madarsuma e um jornalista, em Gandembel, 1968 (Idálio Reis)