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domingo, 8 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3852: As minhas andanças com a CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) (José Brás, ex-Fur Mil Trms)

1. Mensagem do José Brás (*): Caríssimos amigos Luís Graça e Carlos Vinhal Na sequência da apresentação do meu texto e da nota que o Carlos Vinhal me enviou, aqui vão os dados em falta para completar a entrada na Tabanca, A minha especialidade foi de Transmissões na Companhia de Caçadores 1622. Chegámos no Niassa numa noite de Novembro de 66 à vista das luzes do que nos disseram ser Bissau. Durante a noite fomos transladados para uma LDG que nos levou até Buba, navegando aquelas águas apertadas no escuro e na sombra da vegetação marginal. De Buba marchámos para Aldeia Formosa pela estrada principal, mais tarde alcatroada com festa e encerrada no mesmo dia. Em Aldeia Formosa mantivemos um Pelotão em destacamento em Cumbijã e outro de uma secção em Chamarra. Lá por Maio (se a memória não me atraiçoa), por troca com a Companhia do Capitão Cadete, rumámos a Mejo, onde ficámos quase até ao fim da Comissão, saindo para inaugurar um centro de recuperação em Bolama, após inspecção por junta médica deslocada a Mejo, concluir que a saúde daquela malta não permitia aguentar mais. Porque fiquei a entregar material, só saí de Mejo quando uma coluna fez o caminho de Guileje, onde vivi os primeiros dias da abertura de Gadembel. A estrada de Gadamael era já minha conhecida porque quase sempre me disponibilizei para deixar os rádios aos cabos e alinhar nas colunas, nas patrulhas, nas emboscadas, acho que num sentimento que, por um lado assumia solidariedade com os meus sacrificados irmãos, e por outro lado, mexia com a vontade de sentir aquilo por dentro, a ansiedade, algum medo e a espantosa alegria de regressar inteiro. De Gadamael rumei em batelão civil para Cacine, depois Catió (onde ia morrendo de intoxicação alimentar), Bolama (onde já não estava a minha Companhia) e, de Bolama a Bissau (à beira de um naufrágio), até Bissau, onde, de novo, já não estava a minha Companhia que, apesar de estar em Bissau para regressar, foi mandada para Teixeira Pinto. Chegado eu a Teixeira Pinto, a minha Companhia tinha ido para o Pelundo e só voltei a encontrá-la duas semanas depois para fazer parte de um coluna a Có. Todos juntos regressámos a Lisboa em Julho de 68. Com gente a menos, infelizmente, perdidos no corredor, em Chim-Chi Dari, na estrada Mejo-Guileje… E pronto! Como este texto é apenas para completar dados e como me parece já muito longo fiquemos por aqui com um abraço forte, longo e amplo. Montemor-o-Novo, 05.02.09 José Brás _________ Nota de L.G.: (*) Vd. postes de: 8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3851: Blogoterapia (89): Ninguém tem razão sozinho, viva o debate e o abraço (José Brás) 5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3842: Tabanca Grande (111): José Brás, ex-Fur Mil

sábado, 10 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3715: As Boas-Festas da Nossa Tabanca Grande (14): Em Gandembel - O Adeus à Guerra (Hugo Guerra)

1. Embora fora de tempo, não quisemos deixar de publicar esta mensagem do nosso querido camarada Hugo Guerra (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70), hoje Coronel, DFA, na reforma, com data de 18 de Dezembro de 2008. 

 Aproveitamos para deixar ao Hugo renovados votos de bom 2009, pleno de saúde e disposição para colaborar connosco. Prometemos estar mais atentos e sermos lestos na publicação dos seus trabalhos.


 

2. Vou passar as Festas à Bélgica a casa de uma filha. Estarei de regresso a partir de 04 de Janeiro. Esta página do Jornal que mandei digitalizar faz referência a velhinha memória de Gandembel exactamente a um dia qualquer do Natal de 1968. Tal como diz o Zé Teixeira fiquei admirado de o artigo não ter sido lancetado pela censura..... Como me pareceu ter lido que há aí uma rapaziada de Porto de Mós ou Leiria que está a preparar-se para lá dar uma saltada de Jeep, porque além do mais andei a estudar dois anos no Liceu da cidade do Liz em 1958/59, às tantas ainda tenho ex-colegas ou seus filhos nessa aventura. Um grande abraço de Boas Festas e melhores entradas em 2009, até ao meu regresso, como se dizia nessa altura prás famílias




 

Recorte da página do velhinho Diário Popular


Na foto está este vosso amigo entre o Cap Barroso de Moura e o Ex-Alferes Barge. Hugo Guerra
 ____________ 


 OBS:- Infelizmente a qualidade das imagens não permite ler o artigo referenciado, nem distinguir o nosso camarada entre os oficiais que refere. Fica a intensão. 

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3518: História de vida (18): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra, ex-alf mil, cmdt Pel Caç Nat 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70); hoje cor ref, DFA



Meia evacuação, ou... uma grande salganhada


Hugo Guerra
ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70), hoje Coronel, DFA, na reforma


Às tantas. Até nisto fui exagerado. Fui evacuado por duas vezes e meia.

A meia evacuação

E tenho que começar pela meia evacuação para se perceber como aconteceram as outras duas. Foi assim:


Em Julho de 1969, já eu estava na Chamarra, fora, portanto de Gandembel e Ponte Balana, quando vim de férias à Metrópole. Tinha 24 anos, acabados de fazer, e já tinha dois filhos.

Mal acabei de regressar a Aldeia Formosa/Chamarra recebi uma carta da minha mulher, que teve o efeito duma mina anti-pessoal. Dizia-me ela que tinha encontrado o amor da sua vida e que ia viver com ele para Moçambique, pois fora mobilizado para uma comissão naquele Serviço que fazia os filmes, das festarolas que aconteciam em Angola e Moçambique, onde vim a trabalhar mais tarde.

Isto não me podia estar a acontecer e ainda hoje culpo estes acontecimentos de tudo o que vem a seguir.

Como não podia ficar parado a assistir de longe a este percalço, meti-me a caminho e fui falar com o General Spínola, pedi-lhe 8 dias para voltar a Lisboa e esclarecer aquele pesadelo, e que de imediato me foram concedidos.

A minha ligação de amizade com os Páras e o Coronel Diogo Neto, a quem pedi uma boleia no 1º avião que saísse de Bissau, colocou-me em Lisboa na noite seguinte.

Esclarecida a situação, para mim completamente surrealista, pois mais parecia estar a viver um pesadelo, fui às Urgências do HMP [Hospital Militar Principal, à Estrela] em desespero de causa, mas com a ideia que tinha duas coisas a fazer: (i) Cumprir o que tinha prometido ao General Spínola; e (ii) fugir de tudo isto - os meus 24 anos e a época em que vivíamos, não eram compatíveis com a visão marialva da vida que tinha levado até então.

Fui muito bem atendido no HMP e drogaram-me o suficiente para chegar a Bissau, como era meu desejo. Podia ter acabado ali a minha comissão mas o orgulho ferido e a vergonha eram muito fortes e pensava que o melhor era pôr a distância entre mim e toda esta porcaria.

Lá embarquei num avião militar que fez escala em Cabo Verde e, como ia cheio de comprimidos, adormeci profundamente num banco de madeira que por lá havia e esqueceram-se de me acordar.

Só passado mais de meia hora deram comigo e lá segui, com uma carta do HMP para baixar de imediato ao HM 241, à Psiquiatria. 18 de Julho de 1969. Como o percurso foi ao contrário chamo-lhe meia evacuação.

Vamos à seguinte

Na Psiquiatria em Bissau vi os apanhados do cacimbo e outros que se faziam a isso.
Não era bonito de ver essa golpada, quando mesmo ao lado tínhamos verdadeiros heróis, todos esfarrapados e já com peças a menos, que só eram evacuados se houvesse a certeza que não morriam pelo caminho; eu estive lá a estabilizar e como queria regressar ao meu pelotão, o Pel Caç Nat 55, os médicos devem ter percebido que eu já não batia certo e despacharam-me mesmo para Lisboa.

Passados dias vim então, evacuado para a Psiquiatria do HMP.

Na Psiquiatria onde fiquei internado em camarata, pois claro, com janela virada para o Jardim da Estrela onde as moto-serras começavam o seu chinfrim às horas em que conseguia adormecer (durante a noite os pesadelos eram mais que muitos), dizia eu, na Psiquiatria, éramos atendidos por Psiquiatras novatos, muito junto uns as outros, de modo que uma consulta era muitas vezes partilhadas com os vizinhos do lado.

Acho que a medicação também devia ser standard , o que nos fazia parecer um bando de doidinhos.

Cansado disto e porque mais uma vez me encontrava em Lisboa onde me sentia altamente traumatizado e desconfortável, pedi para tratar-me em ambulatório, gozei uns dias de férias no Algarve e, ainda sem os 12 meses cumpridos, pedi outra vez que dessem alta e mandassem de volta à Guerra.

Fui a uma Junta Médica e consideraram que eu estava no meu melhor e apto... para todo o serviço militar. Mais tarde e, na sequência deste filme, a doença foi considerada como adquirida em Serviço de Campanha.

Ter ou não 12 meses cumpridos em zona de 100% era importante por ser norma, não sei se escrita, que o pessoal nessas condições fazia o resto da Comissão em Portugal. Nem disso quis saber...

E só regressei a Bissau depois do Ano Novo, 1970, Janeiro, porque as meninas do Depósito Geral de Adidos, com peninha de mim foram escamoteando o meu regresso até passar as Festas Natalícias.

Terceira e última

Cheguei a Bissau em Janeiro, salvo erro a 18, e queriam ficar comigo na cidade. Bati o pé, fiz birra e lá marchei para S. Domingos, zona calma onde os periquitos faziam a sua adaptação ao clima e ao barulho da guerra.

Foi aí que dormi pela primeira vez numa cama normal com lençóis e tudo. Trocava todo o meu vencimento da Guiné por garrafas de whisky, que bebia até esquecer... mas as o 1º da CCS não se esquecia e lá vinha fazer contas comigo. Levava as garrafas, ainda intactas, e passados dias eu já estava a refazer o stock.

Fiquei a comandar o Pel Caç Nat 60 e ainda tenho algumas lembranças de coisas que por lá aconteceram. Adiante.

No dia 13 de Março de 1970, ia comandar um patrulhamento até à fronteira e eis senão quando detectámos uma primeira mina reforçada, mas em tal estado de conservação que não houve qualquer problema para a levantar.

Tinha no Pelotão um Primeiro Cabo, de nome Seleiro, já com um longo historial de levantar minas e, depois de a vermos, concordei que ele a levantasse, o que foi feito sem qualquer problema. Passámos o detonador para a bolsa do enfermeiro e continuámos a progressão.

Como eu era sempre o terceiro ou quarto homem depois das picas, vi perfeitamente que os picadores tinham localizado qualquer coisa. Montada a segurança lá chamei de novo o Seleiro para conferenciarmos sobre aquela.

Depois de nos certificarmos que estava isolada, tinha que decidir se abortava a operação, rebentando a mesma e regressando a São Domingos, expostos a alguma emboscada do IN. Se fosse entendido desactivar a mesma, poderíamos ir ao objectivo e no regresso levantá-la sem qualquer perigo.

Um e outro rastejámos até à mina que parecia nova e eu comecei a dizer ao seleiro que a queria levantar. Ele acabaria a sua comissão dois meses mais tarde.

Comecei a suar por todos os poros e depois de olhar bem aquela malvada, disse ao Seleiro que não era capaz. Ele disse-me que não havia crise e tomou o meu lugar.

Deitado no chão a cerca de 5 metros, acompanhei todos os seus movimentos com angústia e só relaxei um pouco quando ele, de joelhos e com a mina na mão, prestes a desarmadilhá-la me chamou:

- Meu Alferes, olhe aqui.

Comecei a levantar-me e senti o estrondo infernal, o sopro que me projectou de costas, o sangue quente a escorrer na cara e os gritos dele a dizer que estava morto…

Mas não estava. Os nossos homens trataram-nos o melhor possível, pediram as evacuações e fizeram uma macas com bambus e camisas. Tinha medo de perder a consciência e passar para o outro lado.

Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Seleiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo.

Quarenta e oito horas depois chegámos ao aeroporto de Figo Maduro e, como já foi dito por um camarada nosso, fomos colocados dentro de ambulâncias militares e sem qualquer barulho para não acordar a cidade, levaram-me a mim para o HMP na Infante Santo e o Seleiro foi levado para o Anexo, em Campolide.

Fiquei num quarto com mais dois camaradas que estavam lá a repousar, duma operação a uma hérnia um, e de um quisto qualquer, outro.

Só passados cerca de 10 dias a minha família foi avisada e nada disseram aos meus Pais. Afinal ainda podia morrer. Recordo-me de ver dois vultos aos pés da minha cama e ouvir a voz da minha irmã mais velha dizer, lamuriante:

- O meu irmão era tão bonito.

Imagino o aspecto que teria todo queimado e cheio de cicatrizes na cara, cabeça e membros. Nessa altura já o médico me tinha dito que tinha ficado sem o olho esquerdo e começaria os tratamentos a seguir à Páscoa quando estivesse mais estabilizado. Só ao fim de dez ou quinze dias comecei a poder comer porque até aí os dentes abanavam todos.

Em meados de Abril já fazia a pé o caminho para as diversas clínicas que passei a frequentar e apanhei o primeiro susto quando tiveram que me amputar os restos do olho.

Foi horrível mas acho que foi o Luís (Graça) que pediu algumas vivências de camaradas da Tabanca que tivessem frequentado o HMP, tout court.

Não sei se esta parte da Guerra é publicável, mas eu limito-me a contar a minha história, como a vivi e sobrevivi.

A verdade é que com isto tudo estava outra vez em Lisboa e, assim que achei que estava operacional, em Agosto outra vez, pedi para me mandarem à Junta Médica (JHM) e fiquei livre da minha guerra de G3.

Assim pensava. Em Outubro já estava em Angola a tomar conta da Fazenda Tabi, em zona de guerra, perto do Ambriz e fiquei naquele belo País até Abril de 1974. Foi o tempo para lamber e sarar as feridas.

Um abraço do
Hugo Guerra

__________


Notas de vb:

1. Artigos do Hugo Guerra em

Guiné 63/74 - P3443: Guiné/Vietname. Por favor, deixem-me sair de Gandembel (Hugo Guerra)

2. E da série Histórias de vida em:

17 de Novembro de 2008 >Guiné 63/74 - P3464: Histórias de Vitor Junqueira (10): Santa Paz

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3406: Notícias da região de Tombali, Setembro de 2008: Chamarra e Guileje/Mejo (Nuno Rubim)

Guiné-Bissau > Setembro de 208 > Os dois "expedicionários" nas motorizadas que utilizaram: Moisés Caetano Pinto (Tino) e o Honório Correia (ambos trabalham na AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau).
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Chamarra > Setembro de 2008 > Uma placa que eles encontraram em Chamarra, os "Gatos Negros". Julgava eu que esse era o emblema da CCaç 5, mas os dizeres mostram CArt 16... ( creio que é 1612 ). Talvez algum camarada possa
explicar o facto (**).
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mejo > A Awa, viúva do Régulo Suleimane, de Guileje. A foto da direita foi tirada em Mejo e por ela se pode ver que os medicamentos que o Honório e Tino levaram para o tratamento da vista dela deu resultado (na ida levaram os remédios indicados por um oftalmologista, indicaram a posologia e no regresso puderam constatar dos resultados da sua aplicação).

Fotos (e legendas): © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.


1. Mensagem do Nuno Rubim, Cor Art Ref, membro da nossa Tabanca Grande, especialista em história da artilharia, ex-comandante da CCaç 726 (Guileje, desde o final de Jan 66 até Junho de 1966) e da CCaç 1424 (também em Guileje, de Junho até Dezembro de 1966). (Anteriormente tinha comandado a CArt 644 Mansabá, e a CCmds).


Aproveitando as suas férias, o nosso já conhecido Moisés Caetano Pinto (Tino) e o Honório Correia, que também trabalha na AD - Acção para o Desenvolvimento, deslocaram-se no final de Agosto / início de Setembro ao Sul da Guiné e realizaram algumas pesquisas que eu lhes pedi.

Tratou-se, fundamentalmente, de entrevistarem ex-combatentes de ambos os lados, Régulos e outra pessoas, fazerem o levantamento das Tabancas existentes junto às estradas e caminhos (para o que levaram Fichas de Tabanca a preencher ), visitar locais de antigos quartéis portugueses e bases do PAIGC, etc ...

Desempenharam-se da tarefa de forma muito positiva, entregando-se totalmente a esse trabalho, mau grado várias as dificuldades, a mais gravosa das quais a época pouco propícia (chuvas).

Considero altamente positivo o resultado final da "expedição" e com um pouco mais de experiência ambos poderão vir a constituir uma mais-valia importante nos trabalhos de campo que porventura venham a realizar. Espero eu contar com eles na próxima vista à Guiné.

O planeamento durou cerca de dois meses e o projecto aprovado foi realizado
praticamente na íntegra. Foram executadas várias medições GPS, tiradas mais de 300 fotografias e gravadas várias entrevistas.

Desta feita envio-vos três fotos interessantes [publicadas acima].

Um abraço

Nuno Rubim

____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3168: Ser solidário (20): Bissau: O triste caso da Cadi e a ajuda extraordinária do Tino, que trabalha na AD (Nuno Rubim)

(**) Vd. poste da I Série do blogue > 19 de de Janeiro 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

(...) Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3093: Estórias do Zé Teixeira (30): Uma Vida que Deixei Fugir (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro CCAÇ 2381 Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70
 
1. No dia 17 de Julho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso Enfermeiro José Teixeira, com mais uma das suas estórias.

Caros editores.
Mais uma estória minha, que é de nós todos.

Abraço fraternal
José Teixeira


2. UMA VIDA QUE DEIXEI FUGIR

Por José Teixeira

Saímos de Buba pela seis da manhã com destino a Aldeia Formosa, próximo poiso da CCAÇ 2381 durante alguns meses. Como companheiros tínhamos a CCAÇ 1792 - Lenços Azuis, que nos veio buscar a Buba.

Na coluna, seguiam cerca de três dezenas de viaturas carregadas de mantimentos para as tropas estacionadas em Aldeia Formosa, Mampatá, Chamarra e Gandembel, incluindo os três obuses de 14cm que iam reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes

A estrada (picada) está num estado lastimoso; buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros, foram percorridos em oito horas e meia.

A coluna seguia lentamente, cautelosamente. Os piras concentrados. As mãos de alguns, integrados no grupo de picadores, agarravam febrilmente as varas de ferro com que picavam a terra à procura de algo mais duro que indiciasse uma caixa de madeira ou chapa metálica, onde poderia estar a perigosa mina assassina, que muitos de nós nunca tínhamos visto nem imaginávamos como seriam. Ouvidos atentos aos sinais toc-toc que se repercutiam na terra e ao mais pequeno som diferente, logo ordem de paragem. Ninguém mais se mexia. Uma insistência, o rebuscar da terra envolvente, numa ansiedade indescritível.

Por vezes a descoberta de uma raiz ou uma pedra, provocava um respirar aliviado e a marcha continuava. O olhar atento que se desdobra em todas as direcções; o caminho que se vai trilhar em busca de sinais de terra remexida de fresco; a mata cerrada que nos cerca, onde o inimigo pode estar, aguardando o melhor momento para atacar e matar. Roubar a vida a quem ama a vida, obrigando a uma partida prematura, deixando o futuro cheio de saudades de quem parte e quem assim parte leva imensas saudades do futuro.

O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena núvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo, a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado e me arrastou para o meio de uns arbustos ali na mata. Ele foi a mão de Deus que me protegeu das picadas das abelhas. Não sei se o voltei a ver alguma vez, mas estou-lhe muito agradecido, pela lição que me deu, a qual não só me salvou de umas dezenas ou centenas de picadelas desta vez, como da outra em que eu voltei a cair em situação idêntica.

Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante de toda a gente que protegia a coluna de viaturas naquele sector. Se o IN tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo...

Que culpa teria aquele jovem que me morreu nas minhas mãos, sem eu lhe poder valer, que os homens não se amassem? Que os políticos não se entendessem?

A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.

Estava a comunicar via rádio com Buba a informar que se tinha passado uma zona considerada perigosa, o entroncamento da estada de Aldeia Formosa com a estrada que seguia para Empada em Sinchã Cherno, sem qualquer dano, quando a viatura em que seguia accionou uma mina anti-carro.

Era a quinta viatura, a mais frágil das que tinham pisado a estrada. Aparentemente estava livre de perigo das minas, dado que as anteriores viaturas eram extremamente pesadas, quer pela carga que traziam, quer pelos sacos de areia que substituam os bancos.

Logo atrás vinha o primeiro Obus de 14, um dos três que se destinavam reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes.


Foto 1 > Um dos Obuses já colocado em Aldeia Formosa.

Ouso pensar que o condutor talvez se tivesse desviado um pouco do rodado feito pelas viaturas antecedentes, sem pôr de parte a hipótese de a mina estar programada, para o carro do rádio ou eventualmente para o Obus.

Dos quatro camaradas atingidos foi o que aparentemente menos sofreu. Não apresentava ferimentos externos. Do estado de choque em que caiu, rapidamente foi recuperado.

Foto 2 > Os três enfermeiros da CCAÇ 2381 – António Lemos, o Jorge Catarino e o Zé Teixeira. Falta o Marques da Companhia dos Lenços Azuis a CCAÇ 1792, que connosco partilhou estes momentos.

Pouco tempo depois começou a sentir falta de forças e a cor da pele que reflecte a vida começou a fugir da sua face.

Sede. Muita sede e o corpo a arrefecer. A angústia e o desespero começa a tomar conta dele e de nós os enfermeiros, que nos apercebemos da situação, sem lhe poder valer. Com a queda tinha rebentado vasos sanguíneos internos, que implicava internamento urgente para ser operado a fim de se localizar a origem e se poder estancar a hemorragia. As forças fugiam a cada momento. Passado algum tempo gritava desesperado:

- Já não vejo! Já não vejo! Vou morrer. Eu não quero morrer, salvem-me!

Impunha-se uma evacuação urgente, mas como?

Os dois aviões que nos tinham acompanhado até aquele local e batido a zona, tinham-se ido embora. As comunicações via rádio foram destruídas pela mina.

- Que raiva, meus Deus!

De nada valeu a água que esgotamos, o soro que lhe demos, o carinho e... talvez as orações de alguns.

A morte veio matar o futuro daquele jovem. A vida fugiu-lhe rodeada de amigos que nada puderam fazer.

O destino marcou no tempo, aquela hora, aquela viatura, aquela vida cheia de vida, que deixou de ser vida. Partiu para sempre cheia de saudade de um tempo a que tinha direito a viver e nem sequer teve tempo para conhecer, porque o seu futuro deixou de existir.

A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficámos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista.

Isto foi a guerra... a dura guerra que vivi!

Zé Teixeira

Fotos e legendas © José Teixeira (2008). Direitos reservados.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2920: Estórias de Zé Teixeira (29): Um aborto e o porco (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

sábado, 29 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2698: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (3): O Abdulai Djaló

Foto 1> Mampatá 2008> A mãe da Maimuna, a minha bebé


Foto 2> Mampatá 2008> A Djubai, sempre alegre e bem disposta


Foto 3> Mampatá 1968> A Djuvai de olho zarolho, mais bonita agora do que em jovem. Como ela se lembrava de mim!


Foto 4> Mampatá 2008> A Adama, mãe do bebé que livrei do paludismo


Foto 5> Mampatá 2008> A família Baldé


Foto 6> Mampatá 2008> Os miudos de Mampatá


Foto 7> Mampatá 2008> A Farmara (ou Fatma) minha lavandera


Foto 8> Mampatá 2008> A Fatma com as cunhadas (mulheres do filho do Aliu Baldé)

Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.


Algumas notas soltas, mas sentidas (1)

(i) O Abdulai Djaló

Ainda não eram sete da matina quando o telefone tocou. Hora serôdia de uma segunda-feira de Páscoa para acordar, quem após muitos anos de labuta, se entregou ao descanso da merecida reforma.

Alô - sou o Abdulai da Guiné ! Quer falar cum sinhor Tissera.

Qual Abdulai seria? O que conheci em Buba? O de Chamarra ? O Abdulai Djaló qui firma na Catió e todas as semanas aparecia, em tempos idos, que muitos dos leitores recordarão, no programa de discos pedidos da emissora oficial da Guiné a pedir a canção Deixa o meu cabelo em paz, para dedicar à sua bajuda, não era com certeza.

Era o Abdulai Djaló meu amigo de Mampatá Forreá, pequena tabanca perto de Quebo, rodeada de guerra por todos os lados, que durante os seis meses que por lá passei, viveu uma paz relativa, pois que apenas sofreu seis ataques, quando Balana, Gandembel, Guileje, Gadamael, Cacine e outros, tinham festival quase diário.

O Abdulai que há dias procurei na sua morança, mas não encontrei.

O Abdulai que após a Independência se ausentou para o Senegal e por lá viveu longos anos, por amor à pele e voltou há alguns anos. Em 2005 ninguém sabia dele.

O Abdulai das longas conversas nocturnas.

Tudo começou quando já noite me recolhia ao abrigo para me entregar nos braços de Morfeu. Uma voz chamou: - Tissera, vem cá!

Era o Abdulai. Estava deitado na enxerga ao lado da esposa. Recém-casados e sem filhos, queriam kunversa cum Tissera. Queriam saber coisas da Metrópole. Difícil foi explicar-lhe que vivia num terceiro andar. Que havia casas com dez e vinte andares.

Como se seguravam? Como se subia lá para cima? Elevadores ? Eram coisas de branco maluco.
E um comboio? Muitas GMC atreladas umas às outras, mas só uma tinha motor e com rodas de ferro!

Na segunda noite estavam novamente à minha espera. Seguiram-se muitas noites di kunversa.

Um dia convidou-me a deitar na cama. Eu, a mulher e ele, ali ficávamos até vir o sono, conversando.

Há dias passei por Mampatá. Abraços, beijos e algumas lágrimas de comoção. A mulher estava lá, mas o Abdulai, esse tinha ido a Bissau. Deu para matar saudades e deixar um abraço.

Agora telefonou para pidir discurpa, dar um abraço e agradecer a minha visita.

Obrigado Abdulai. Até sempre.


(ii) - Mampatá Forreá, terra de gente querida

É a tabanca da Guiné-Bissau eleita pelo meu coração. Nos meses de convivência com as sua população aprendi muita coisa que me foi útil pela vida fora, sobretudo a forma de acolher um forasteiro, a solidariedade de quem vivia como se fossem ermons.

Os usos e costumes do povo Fula. Sentia-me útil e realizado no meio escaldante de uma guerra traiçoeira em que sobrevivia quem conseguisse atirar primeiro e acertar no inimigo, como em todas as guerras.

Voltei lá em tempos de paz. Recebi abraços e beijos, recordei vivências, momentos hilariantes, momentos tristes, momentos de angústia e sofrimento. Palmilhei os mesmos trilhos (continua a não ter ruas alcatroadas, água canalizada e saneamento). Entrei nas mesmas moranças. Encontrei a mesma simpatia nas pessoas. Brinquei com outras crianças.

Pude reencontrar amigos. A Farmara, minha lavandera, continua linda e com a alegria de sempre. O Braima, o Issa, a Answar, mãe da minha bebé, que não consegui ver, agora que já mulher, casou e foi viver para Kumbijá.

A Ádama, mãe da bebé que salvei da morte e passou a ser por opção da mãe, a minha mudjer. De manhã cedo lá vinha ela no colo da mãe trazer água fresquinha ou bananas.
- Mudjer de bó vem parte mantenhas e traz banana pra ti.

À noite lá estava ela na morança à espera que o fermero passasse para partir mantenhas antes de adormecer.

(iii) - Relendo o meu “Diário” > Novembro 1968 / Mampatá /1

... Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem, os que conseguem escapar na sua fase mais aguda.

A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.

Todos os dias de manhã tinha sua visita. - Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa

Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra!

Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.

Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé.

Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um anti-palúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reação negativa do coração. Então pensei que injectando na bébé umas milésimas destes dois produtos talvez salvasse a criança.

Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar.
A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelarado do coração e um avermelhamento da face.
Depois a acelaração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas.
Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia: - Tu mataste minina.
Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a acelaração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.

Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria.

Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro já não vomitou a mamada.
A recuperação foi de cerca de oito dias.

Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina. - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar).

Trazia-me água fresca, numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa).

Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava: - Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !"

Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.

Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé: Fámara, Binta, Auá, e Ádama e, da Answar a mãe da Maimuna...

A Djubai de olho zarolho, mais bonita agora do que em jovem: - Tissera! Mama garandi. Mama piquena, - dizia ela a rir-se enquanto apalpava com a sua mão os seios, hoje escondidos e talvez mais disformes do que eram na altura, recordando o que eu, atrevido, por brincadeira lhe fazia. Se o leitor apreciar as fotografias anexas entenderá melhor esta linguagem, que ela recordou com inaudito prazer e me fez reviver tempos tão belos, quanto perigosos da minha juventude.

A mudjer, ainda viva, do falecido régulo Aliu Baldé, alferes da milícia morto em combate em 1971.

O seu filho, talvez um dos miúdos que no meu tempo de estadia se pinha à porta da cozinha na esperança de “agarrar” uns restitos de comida, a quem agradeço a forma carinhosa e dedicada, como soube ser meu cicerone, nesta aventura.

A famíla da Djovo Ansato, ausente em Bissau, que se juntou toda para me receber.

(iv) - Do meu “diário” > Dezembro,1968 / Mampatá /29

... A bajuda Jobo Ansato ( Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas, com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida.

Eu, embora notasse essa mudança não conseguia compreender a sua razão de ser. Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra, as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer: - No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na tem firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.

Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa!...

As crianças que se acotovelavam para me tocar. Os dedos das minhas mãos, não chegavam para tantas mãos.

Calou bem fundo aquele convite da Djuvai: - Tissera volta para cá. Esta casa é para ti!...

Um dia voltarei... de visita.

José Teixeira
________________

Nota dos editores

(1) Vd. último poste da série, de 23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2676: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (2): Um abraço de ermons e (más) recordações do Comandante Manecas

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2545: Blogoterapia (41): Guileje, Gadamael, Mata do Cantanhez... e a memória das gentes (José Teixeira)


José Teixeira
ex-1.º Cabo Enfermeiro
CCAÇ 2381
Buba, Quebo, Mampatá e Empada
1968/70



1. Em 9 de Fevereiro de 2008 o nosso camarada José Teixeira enviou-nos este trabalho. Um relato extraído do seu Diário, mas complementado com um comentário actual, sentido, sofrido e violento, só no sentido filosófico porque ele é um pacifista nato.

É minha convicção que aquilo que ele escreveu ao tempo e o que escreve agora, é o reflexo do grande amor que ele nutre pela Guiné-Bissau e pelo seu povo, especialmente por aqueles companheiros que, escapando à morte no pós independência, ele vai encontrando nas sua visitas àquele País.

Não escondo a especial simpatia que tenho pelo Zé, com quem infelizmente privo muito pouco, pela actividade que desenvolveu para bem da saúde daquele povo, enquanto Enfermeiro Militar e, pela maneira desassombrada e aberta como fala da Guerra Colonial, onde esteve com o seu espírito humanitário e não bélico.

As suas palavras são para todos nós meditarmos e medirmos as nossas emoções, quando no correr da pena nos esquecemos que do nosso lado, estava a razão da força, contra a força da razão de quem se queria libertar do jugo colonial.

Fomos todos vítimas, de um lado e do outro, dos erros políticos de um regime autoritário. Os senhores da guerra, esses, nunca sentiram o cheiro da morte como nós.

C.V.

2. Guiledje, Mata do Cantanhez, Gadamael Porto... e a memória das gentes
Por José Teixeira

Como os camaradas navegadores do nosso blogue sabem, eu tinha por hábito passar ao papel do Meu diário alguns dos acontecimentos vividos.

Escrita feita a quente, sobre os efeitos psicológicos dos acontecimentos.
Diário, já passado na primeira série desta grande e frutuosa aventura iniciada pelo Luís Graça, o blogueforanada .

Hoje vou relendo o que escrevi. Vou apreciando as minhas contradições num tempo, marcado profundamente por uma educação de patriotismo elaborado até ao exagero, quer pelo Estado, quer pela Igreja a que pertencia. Vou reflectindo sobre as realidades vividas e dificuldades superadas. Sobre as amizades conquistadas de uma e outra banda, ou seja de portugueses, camaradas de luta e guineenses, da população autóctone e também camaradas da milícia local, que connosco se batiam, sob o lema Por uma Guiné melhor.

Sem saber muito bem porque o faziam e que tipo de Guiné queria construir para eles, aquele estranho de binóculo e pingalim na mão, que não era da sua terra, não conhecia os seus usos e costumes, as suas leis naturais e tal com tantos outros, um dia regressava a Portugal, com mais uns galões e uns milhões no bolso.

Olhando para o mais profundo de mim próprio e colocando-me lado a lado com os camaradas que se bateram em nome do meu País, sinto que de facto aquela guerra não era nossa. Estávamos lá forçados, quais escravos de uma força obscura e obscurante das mentes que nos fazia seguir o caminho, como carneiros, de camuflado e canhota ao ombro, porque, diziam eles, a Pátria o exigia.

O texto que se segue, escrito dois dias depois dos acontecimentos relatados, após saber via piloto da avioneta do correio, a conhecia DO ou Dornier de sua marca, que aterrou em Aldeia Formosa, dos resultados, possivelmente exagerados, da luta travada em Gadamael Porto e na mata do Cantanhez. Acontecimentos reais que eu, relativamente perto, vi (aviões – Fiat e T6 em constante movimento), ouvi e vivi os tiros e rebentamentos, por longas horas do dia e da noite.

Este texto expressa, creio eu, um pouco das contradições com que nos deparávamos ou nos deixávamos envolver.

Chamarra, 16 de Janeiro de 1969

Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN.
O resultado, pelo que dizem, demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem, não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1.ª vez, atacavam de longe e caíam tão afastado da povoação, ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio onde já não havia ninguém, daí pediram à FA para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN, foram metralhados por uma quádrupla anti-aérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os bombardeiros T6 apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculámos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou.

Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. Impondo-a, até certo ponto, através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas.

Uma população que quer viver na sua Tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...


Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impôr a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca e no seu lar com os seus filhos? Que os faz lutar? Que faço eu no meio disto tudo?

Numa re-leitura posterior acrescentei:

Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem.
Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem "estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora" como tantas vezes ouvi, do outro lado da mata, ou através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo, ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.

Um dia o Raul Fodé de Empada, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde, nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa Portuguesa, em Empada, pessoa culta, teologo árabe, disse-me:
- Tixeira nós queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca, mas deissa a arma, abandona o exército!

Ele, que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...

Hoje, passados trinta e oito do meu regresso, ao reler o texto, já enquadrado no Espírito de Guiledje, continuo a pensar que fui profundamente enganado pelos senhores do poder, à data dos acontecimentos do Ultramar. Não lhes perdoo-o tantas vidas de ambos os lados roubadas, na flor da idade, por uma guerra inglória e sem justificação, pois os ventos que corriam nos meandros dos grandes areópagos políticos mundiais, eram direccionados para a independência dos povos submetidos pelos países europeus, em muitos casos já concretizada.

A acrescentar os testemunhos das autoridades militares portuguesas da altura, que se propunham garantir condições de segurança para que fosse procurada uma solução politica. Permito-me deduzir que para estes, a solução de impor a soberania pelas armas já não era viável e hoje está mais que confirmado, nunca seria a solução possível, porque os ventos da História não invertem a direcção, pelo simples facto de um pequeno país teimosamente só, insistir na sua razão.

Infelizmente, por miopia política e ambições desmedidas, os poderes politico e económico, e alguns militares de carreira, teimosamente forçaram a manutenção de um estado de guerra, que redundou num terrível desastre, para ambas as frentes de combate, com milhares de militares mortos, milhares de estropiados e doentes. Populações dizimadas, culturas destruídas, fome, doença e miséria.

Alguns enriqueceram. Ficou mais pobre o meu País, pelos milhares de mortos. Jovens na força da juventude, a força do trabalho dos anos vindouros que se foi em parte.
Ficou mais triste o meu País, pelos lutos forçados, jamais esquecidos de mães, esposas, filhos, noivas ou namoradas.

Ficou mais pobre o meus país pelo esforço financeiro que teve de fazer e se reflectiu nos anos seguintes. Ficou mais pobre a Guiné Bissau, pela juventude e populações perdidas cujos números são imensuráveis, pelas culturas agrícolas e florestais destruídas como estratégia de guerra, pela destruição de uma economia centrada na exploração, dos nativos, sem condições para de imediato se desenvolver uma economia alternativa e igualitária.

Pelos abutres que logo de seguida se abateram sobre um País na miséria, sem rumo definido, à mercê dos espertalhões que logo aparecem com ar de santinhos benfeitores, para sugar tudo o que for possível. Pela perda da fé que animava aquelas gentes e lhe dava forças para avançar para a luta.

Era o General Spinola que gritava “por uma Guiné melhor” e arrastava populações inteiras, sem que estas se interrogassem quem era este tipo de binóculo e pingalim, surgido de repente, com promessas.

Não seria mais um que, tempos depois, voltaria, como tantos outros já o fizeram, à sua terra com mais alguns galões e uns milhões no bolso, ficando os guineenses à mercê do seguinte?

Ou, o Amílcar Cabral nos seus discursos a defender a independência como o caminho da libertação do seu povo que fazia movimentar milhares de homens e mulheres, para a frente de combate, numa luta desigual, certos da vitória final?

Tudo isto se esfumou num ápice. Um regressou à sua terra, o outro foi assassinado. A guerra, essa continuou, mais agressiva, mais mortífera. Tão violenta que mesmo depois de ter acabado e feitas as pazes, milhares de guineenses, acusados de traição, pelos vencedores, foram barbaramente assassinados.

Não tem perdão quem não teve coragem e força para os proteger. O meu País, a sua Pátria, como orgulhosamente lhe ensinávamos e eles sentiam, como país pluricontinemtal e plurirracial.

Os novos senhores da Guiné, que tanto lutaram pela sua liberdade e a perderam quando não souberam reconhecer como seus irmãos, os guineenses que se bateram do lado oposto, levados, na sua maioria por uma convicção, injectada nos bancos da escola ou pelos canais da sua história recente que os mais velhos cultivavam, de que eram portugueses e que com Portugal teriam “Uma Guiné melhor".

Agora é tempo de darmos as mãos. De abraçarmos os adversários de outrora, chorarmos os mortos e gritarmos: Guerra, nunca mais.


Zé Teixeira

Sublinhados da responsabilidade do autor
_________

Notas dos editores:

(1) Vd. último post da série de 10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2517: Blogoterapia (40): A nossa camaradagem sarou-me a maioria das feridas de guerra (João Tunes)

(2) Vd. último post do José Teixeira de 16 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2543: As Nossas Madrinhas de Guerra (2): Minha querida Madrinha de Guerra (José Teixeira)

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2312: Tabanca Grande (43): Hugo Guerra, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70)

Hugo Guerra, ex-Alf Mil, hoje Coronel DFA, Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70)


1. Mensagem do nosso camarada Hugo Guerra, em 24 de Novembro de 2007, para Luís Graça

Ainda e sempre Gandembel


Caro camarada e, desde já amigo, Luís Graça

Chamo-me Hugo Guerra, nasci em Estremoz em Abril de 1945 e estudei na Escola de Regentes Agrícolas de Évora onde acabei o meu curso em 1964.

Em Agosto de 1968, sem perceber bem como (depois hei-de contar), estava no Ana Mafalda a caminho da Guiné em rendição individual e, como a sorte nunca me bafejou, quando desembarquei já tinha guia de marcha para Gandembel onde fui comandar o Pel Caç Nat 55 que estava adstrito à CCaç 2317 [, Gandembel/Balana, 1968/69].

Passei por Aldeia Formosa, num heli, e aterrei, ainda em Agosto, em Gandembel.

Passei a maior parte do tempo em Ponte Balana e estava lá quando fechámos a porta em Janeiro de 1969 (1).

Nessa altura, e porque a sorte continuava alheia à minha odisseia, fiquei num destacamento logo a seguir, de nome Chamarra.

A CCAÇ 2317 foi para Buba e mais tarde foram acabar a sua martirizada comissão em território menos hostil.

Eu tive, mais tarde, uma passagem rápida por S. Domingos no comando do Pel Caç Nat 50 mas o suficiente para ficar ferido com o rebentamento duma anti-pessoal, salvo erro a 13 de Março de 1970.

Sou hoje DFA e Coronel.

Este é o meu primeiro contacto para ser admitido na tertúlia que acompanho há bastante tempo, mas sempre de longe porque os fantasmas ainda me provocam grandes pesadelos.

Qualquer dia farei uns relatos complementares aos do [Idálio] Reis sobre o inferno do Corredor de Guiledge onde fiz algumas incursões com uma Companhia de Páras que aceitaram levar o periquito para ver como era.

As fotos que junto foram tiradas nos seguintes locais:


(i) à esquerda, com uma granada ao cinto e toalha ao
ombro e sabonete na mão, ia tomar banho num regato
perto de Gandembel;

(ii à direita, junto ao paiol onde dormíamos em Ponte Balana;





(iii) à esquerda estou na Chamarra com um Alferes
que fui substituir;

(iv) à direita, em S.Domingos, com o 1º Cabo Seleiro
que ficou gravemente ferido no mesmo rebentamento que eu.

Por agora é tudo.

Se não tiver muitos pesadelos, esta noite prometo voltar. Moro em Lisboa e o meu contacto de email é: guerra68@tele2.pt e o Telemóvel 960085289.

Talvez nos encontremos em Março com o Pepito, de quem sou amigo e que me convidou; vamos ver se consigo ir.

Um abraço do
Hugo Guerra

2. Comentário de Carlos Vinhal:

Caro Hugo Guerra

Em nome do Luís Graça, Virgínio Briote, meu e de todos os tertulianos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, quero dar-te as boas vindas à Tabanca Grande.

Pelo que nos contas, foste um dos companheiros bafejados pela pouca sorte, ao seres apanhado pela arma mais traiçoeira que qualquer um dos lados de uma guerra pode utilizar, uma mina, contra o seu antagonista.

Estás connosco, o que é pelo menos um sinal de que estarás bem, neste momento, e pronto para nos dar a conhecer as tuas experiências. De um modo geral todos temos recordações mais ou menos pesadas, em termos psicológicos, dependendo do que cada viu, viveu e sofreu, mas se é verdade que falar nelas contribui para uma certa descarga emocional, falemos pois então.

Ninguém, a não ser outro camarada, pode entender e compreender o que vai no nosso interior. Para isso existe este blogue, para que cada um, à sua maneira, faça a sua catarse ao mesmo tempo que contribui com o seu testemunho para a História da Guerra Colonial que queremos deixar aos nossos vindouros.

A partir de agora estás mais acompanhado. Participa.

Recebe um abraço de boas vindas de todos os tertulianos.

___________

Nota de CV:

(1) Vd. post de 10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P440: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Chamarra, o guineense, menino no tempo da guerra colonial, entre o Albano (à direita) e o Camilo (à esquerda) levou-nos ao local onde era o posto avançado de Chamarra e havia esta placa guardada religiosamente: indicava Gatos Negros, CART 1612 (?)

© Albano Costa (2006)


Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...

© Albano Costa (2006)

Curta mensagem do Albano Costa:

Caro Luís Graça: Lembrei-me de enviar estas fotos de Chamarra... o José Teixeira merece ver estas fotos foram tiradas num dos postos avançados da Chamarra, em Novembro de 2000. O diário dele está muito interessante.

Um abraço,
Albano Costa.
__________________

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Mampatá, 5 de Janeiro de 1969
Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.

Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.

A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).

A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (1)...


Chamarra, 10 de Janeiro de 1969
Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Balde, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia (2) A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.

Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.


Chamarra, 16 de Janeiro de 1969

Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quárupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...

Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ? (3)


Chamarra, 23 de Janeiro de 1969

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.


Chamarra, 25 de Janeiro de 1969

A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...

Chamarra, 30 de Janeir de 1969

Já segui para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.

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Notas de L.G./J.T.

(1) Vd o resto do diário, referente à Maimuna, no post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira) (L.G.)

(2) Soube um ano depois, após a queda de Gandembel, que a situação piorou de tal maneira que foi lá colocada um Companhia (J.T.)

(3) Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem:
- Estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora! -, como tantas vezes ouvi, através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.

Um dia o Raul Fodé de Empada,, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa portuguesa, em Empada, pessoa culta, teólogo muçulmano, disse-me:
- Tixeira nos queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca.- … [Teixeira, queremos que tu fiques aqui. Deixa a tua arma e vem para a nossa tabanca]... Deixa a tua arma, abandona o teu exército!, ele que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...