1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 6 de Janeiro de 2009:Bom dia Carlos,
Envio-te mais um bocadinho de lenga-lenga, a ver se se faz alguma história. E a descrição de alguns venenos que poderiam atribular a pacatez da comissão.
Um grande abraço.
J.D.
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (32)
Reflexão conjuntaUns dias após a noite de Tabassi, ficámos a saber que o Pestana salvar-se-ia da morte prognosticada. Retiraram-lhe uma parte do frontal e da massa craneana, do que sofrerá algumas sequelas, mas viverá relativamente bem. Definitivamente não voltará ao serviço militar. Regozijámo-nos com esta notícia, que o dá como capaz para a vida.
Fizemos uma reflexão sobre os acontecimentos: em primeiro lugar, destacámos a disciplina do IN, pois foram detectados, tiveram ocasião para disparar sobre mim e o grupo que acompanhava o Virgílio Sousa, mas, talvez porque não estivessem todos ainda instalados, demoraram duas horas a atacar-nos, o que poderia constituir novo efeito surpresa. Em seguida, verificámos que a primeira
rocketada foi para o lugar referenciado pelo tiro do Virgílio, mais tarde confirmado, quando ali me dirigi e fiquei à conversa sem especial cautela. Falhámos ambos. E a confirmar todas os conhecimentos anteriormente adquiridos sobre as identificações de posições de combate, nomeadamente em período nocturno, foi o desencadear certeiro do ataque. Sairam-nos caro aqueles deslizes. Todos sabíamos como proceder correctamente, mas, na ocasião, subvalorizámos os indícios do IN. Correcto, teria sido ficarmos em rigorosa prevenção, e não adormecer debaixo da árvore, por um lado, por outro, antes do disparo, algum dos elementos daquela posição deveria ter-me informado das suspeitas.
Mas a refrega consumara-se a nosso favor, por isso, agora levantava-se outro problema: seria que o IN, mais tarde ou mais cedo, procuraria vingar-se de nós? Ninguém poderia responder a esta questão, mas avultava a necessidade de aumentarmos o cuidado, de termos especial atenção na estrada, onde mais facilmente poderiam concretizar os intentos. Cada um de nós teria que tornar-se mais responsável e preparado para enfrentar nova iniciativa do IN. Era certo que não os temíamos, como ficara demonstrado, mas teríamos que prevenir o grupo, pois em algumas situações as baixas são inevitáveis, salvo, quando as iniciativas são mal desencadeadas. Era, por isso, necessário intuir os procedimentos e comportamentos futuros, tendo em conta que só a homogeneidade do grupo poderia garantir o sucesso de cada um.
Estávamos todos de acordo e, no geral, compenetrámo-nos na acção colectiva.
O novo relacionamento com o COT-1Numa ocasião posterior deslocámo-nos a Pirada, em missão rotineira de recolha e transporte de mercadorias para Bajocunda. Na Companhia referiram-me para me apresentar no COT-1. Ali chegados, distribuí tarefas ao pessoal, após o que me informei da localização do Major-Comandante. Tratar-se-ia de uma pessoa de maus créditos, a avaliar pelos adjectivos e descrições que me fizeram. Entrei no edifício, passei por dois compartimentos vazios e, no terceiro, encontrei o Major deitado sobre um colchão. Cumprimentei-o com uma palada, e o Oficial ergueu-se, retribuíu sem cerimónia, pegou-me pelo braço deu-me os parabéns pelo magnífico grupo de homens que comandava. Perguntou-me se a viagem não levantara problemas, se tivera cuidados especiais à passagem pelo morro entre Tabassi e Pirada, um lugar fortemente provável para uma emboscada às NT. Menti, respondi-lhe que era meu costume mandar uma Secção a envolver o local, por forma a evitarmos surpresas desagradáveis. O Major concordou. Subitamente perguntou-me pelo pessoal, ao que respondi estarem no cumprimento de tarefas. O Comandante referiu que gostaria de os ter cumprimentado, e comprometi-me a, numa próxima oportunidade, proporcionar-lhe o encontro. O Major ainda fez considerações sobre a necessária segurança no mato, ao que anuí e acrescentei que por vezes conversávamos a propósito, o que era verdade.
Despedimo-nos, o Major deu-me uma pancada nas costas, notoriamente cordial, e que surpreendeu quem assistia, pois esta cena passou-se no exterior do edifício. Perfilei-me, e pedi licença para seguir, que me foi concedida.
Quando voltei a Pirada, preveni o pessoal para permanecerem ordeiramente sentados nas viaturas, com as armas sobre os joelhos, porque viria o Comandante do COT-1 em revista e a dar-lhes ordem para destroçar. Assim aconteceu. Dirigi-me ao gabinete para a necessária apresentação, que decorreu com cordialidade, e como o Major se alongasse na conversa, pedi licença, e perguntei-lhe se queria ver o pessoal antes de se dispersarem nas tarefas. Imediatamente colocou a boina e saíu na direcção das viaturas. O Foxtrot estava bem comportado, com ar confiante, e em atitude marcial, como que pronto a sair para uma missão de risco. Segui o Comandante que parou junto da primeira viatura, cumprimentou e disse qualquer coisa de elogioso ao pessoal, distribuíu duas ou três bacalhauzadas aos mais próximos, após o que me mandou dar ordens ao Pelotão.
Verifiquei assim, da parte do Exército, uma especial consideração por um Grupo de Combate, relativamente apresentável, mas com espírito de sacrifício, voluntarioso, e atitude combatente. Naturalmente, senti-me vaidoso.
Entretanto sairam meia-dúzia de louvores, contrariando a ideia que transmiti ao
Trapinhos, quando fui inquirido sobre o assunto, e lhe respondi que, justo seria num louvor colectivo, pois o que importava realçar, era, no meu entender, o espírito de grupo sempre evidenciado.
A seguir fiz uma coluna a Nova Lamego para os costumeiros transportes de víveres para a Companhia. Ali chegados, o pessoal foi às tarefas, e eu fui apresentar-me ao Major Segundo Comandante, acompanhado pelos restantes elementos para alguma eventualidade. Se corresse bem, teríamos tempo para umas cervejolas e, até para almoçarmos.
Apresentei-me à porta do gabinete, fiz a palada e apresentei-me. O Major, que falava com um Furriel, imediatamente levantou a voz para mim, questionando-me sobre o desalinho, se eu não tinha noção do modo como trajava; sobre as patilhas e a mosca, se estava autorizado para tal; e enfureceu-se quando viu um cinto estranho ao fardamento. Eu, acabrunhado, respondia sim e não, completamente surpreendido e irritado com a violência do interlocutor. Logo ali prometeu-me uma porrada e mandou-me desandar. Virei costas e saí, que era o que eu mais queria fazer. Ao chegar ao pátio lacrimejei de raiva por me sentir vexado. O que lhe devia ter dito, se falasse de igual para igual, era que lhe fazia o favor de andar a combater para sua excelência passar uma tropa porreira no remanso do gabinete, e garantir uma choruda conta bancária no fim da comissão. O pessoal notou que eu estava alterado, perguntaram-me qualquer coisa e respondi:
- Está a andar, é reunir as viaturas e partimos já.
Durante o regresso, acalmado pelos solavancos da picada, ainda me ri da cena com o Major, qual guerra dentro da guerra: é que a minha apresentação, não sendo muito original, era suficientemente distraída para esbugalhar o olhar atento de um Oficial Superior que medrou entre NEP's e regulamentos. O que eu envergava era botas de cabedal, calças verdes de serviço, camisa camuflada e boina da farda n.º 1. O cinto era o do turra. Enfim, não seria a apresentação mais compaginável com a desejada imagem do Exército, menos ainda com a de um herói de Hollywood.
Dois ou três dias depois fui chamado ao COT-1, onde o Major me referiu ter tido conhecimento do meu problema em Nova Lamego, e que pediu ao ao Segundo-Comandante para não me dar a porrada, contra a promessa de que eu me apresentaria com cara lavada e bem ataviado. Disse o Major, que eu me barbeasse, vestisse em conformidade, e fosse apresentar-me ao Major de Nova Lamego, lembrando-me que uma punição não interessava a ninguém. Agradeci-lhe e comprometi-me.
Outra guerraPoucos dias após, o
Trapinhos, durante uma conversa restrita e informal, revelou que estava atrapalhado para uma data próxima, com falta de pessoal para Tabassi. Fiz-lhe ver que no dia imediato ao da dificuldade tinha programada uma operação-psico numas aldeias do interior, relativamente próximas do Gabu, onde teria que me dirigir para apresentação ao Major, mas se a dificuldade persistisse, poderia contar com o Foxtrot para lá irmos passar a noite, na condição de regressarmos mais cedo do que o habitual, para banhos, pequeno-almoço, e saída imediata. Aliviado, o Capitão imediatamente acolheu a disponibilidade demonstrada, que transformou em ordem, e disse-me que faria o reforço à aldeia.
Entretanto chegou uma verba para mim, a título de prémio pecuniário pela captura de armamento. Decidi abrir um crédito na cantina a favor do Foxtrot e, a partir daí, todos os prémios que recebi tiveram o mesmo destino.
Tínhamos patrulhado de manhã, e fomos passar a noite a Tabassi. No regresso a Bajocunda dei indicações precisas para o pessoal se preparar rapidamente, tomarem o pequeno-almoço, e aprontarem-se para a saída. Eu faria a coluna até Nova Lamego, enquanto eles visitariam uma aldeia munidos de ração de combate. Depois esperar-me-iam perto da ponte, onde me juntaria a eles para prosseguirmos as visitas até ao dia seguinte. Durante a minha ausência o Pelotão seria comandado pelos Cabos Valentim e Andrade. Houve uns murmúrios sobre tanta actividade, mas nada de relevante.
Fui pôr-me bonito para a apresentação ao Major. Quando cheguei à parada vieram dizer-me que não tinham tabaco e não sabiam do Jesus, o cantineiro. O
Trapinhos também seguia viagem, mas ainda não aparecera, pelo que achei ainda haver tempo. A saída protelava-se bastante, e nem Capitão, nem Jesus. Quando o Capitão surgiu falei-lhe na dificuldade do pessoal em arranjar tabaco, ao que, descuidadamente, respondeu:
- Esses filhos da puta não precisam de fumar.
Ora, alguém ouviu e o Pelotão fez finca-pé. Sem tabaco não saíam. O
Trapinhos, já em cima de um Unimog, deu-me ordem para partirmos. Respondi-lhe que o pessoal tinha falta de tabaco, não tivera oportunidade de o comprar por ter passado o dia fora, e parecia razoável aviarem-se para outros dois dias.
- Dê-lhes ordem para subir. - Respondeu-me o Capitão.
- Eu? - Questionei-o na esperança de atender ao meu argumento.
- Sim, você! Não é o Comandante deles? - Respondeu-me.
- E você, meu capitão, o que é? - Perguntei-lhe farto da intolerância.
Alguém apareceu com um volume de maços de cigarros, porque a cena já era apreciada por muitos militares, o pessoal tomou lugar nas viaturas e partimos. Era visivel alguma confusão na segunda viatura, onde seguia o Capitão.
Em Nova Lamego apresentei-me ao Segundo-Comandante nas condições regulamentadas. A seguir teria que aguardar pelo regresso, sem qualquer missão, que não fosse o devaneio. Dirigi-me ao bar em frente do Comando, onde me sentei numa mesa com Páras. Momentos depois entrou na sala um Cabo a perguntar por mim. Identifiquei-me, e pediu-me para o acompanhar ao Comandante. Sentei-me ao lado dele no jipe, que atravessou a rua e parou no pátio interior. Subi ao gabinete no primeiro andar.
O Tenente-Coronel mandou-me entrar. Sentado, num canto, à minha esquerda e à direita da secretária do Comandante, estava o
Trapinhos. Levei uma piçada durante uma hora, em sentido, que nem eu pedira, nem ele me mandou pôr à-vontade. Pedi-lhe licença, mas retorquiu que ainda não acabara de falar. Alguns minutos depois deu-me autorização para argumentar. Comecei a expor as minhas razões, quando o Comandante me interrompeu, questionando-me se estava a acusar alguém. Não, não estava, respondi, apenas apresentava as justificações da minha defesa perante o que tinha sido referido. De soslaio, pelo canto do olho, via o Capitão a cruzar e descruzar as pernas, nitidamente nervoso. No final, o Tenente-Coronel, mais cortês, disse-me, que aos milicianos competia uma importante tarefa no enquadramento do pessoal e, que ainda tínhamos o dever, sempre que possível, de aliviar as tarefas do nosso Capitão, já assoberbado com outras funções que só ele podia desempenhar. Compreendi que ele percebera a extrema incompetência do Capitão. Depois, cordialmente, mandou-me sair.
Senti um grande alívio. Livrara-me de outra armadilha. Fui almoçar, descontraí, e voltei a encontrar alegria quando me juntei ao Foxtrot para prosseguirmos o caminho da psico, sugeito a algumas larachas por ter andado a passear e a banquetear-me na cidade. A operação de psico consistia no tratamento de feridas e distribuição de comprimidos, conforme as mazelas que a população apresentava, tratamentos exponenciados com alguma injecção, se o problema se mostrava mais gravoso. Davam-se conselhos para deslocação às consultas junto da tropa sempre que era aconselhado.
Muito pouco tempo depois, o Comandante do COT-1 foi substituído, e perdi um interlocutor de referência.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5562: História da CCAÇ 2679 (31): Ataque à tabanca de Tabassi em 30NOV70 (José Manuel M. Dinis