terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5825: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (5): São Domingos, 21 de Julho de 1961: É o princípio do fim, Benedita

Guiné > Bolama >  Agosto de 1935 > "Guarda do Palácio do Governador. Foto de Manuel Emídio da Silva, no âmbito do 1º Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Princípe e Angola, uma inciativa da revista O Mundo Português,  que juntou cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comeriantes"... O Director Cultural do Cruzeiro foi o Dr. Marcelo Caetano.  Esta "revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais", era dirigida pro Augusto Cunha, sendo propriedade da Agência Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional.




Guiné > Bolama > Agosto de 1935 > A chegada do vapor Moçambique, com os participantes do 1º Cruzeiro dee Férias às Colónias.


Fonte: O Mundo Português, Vol II, nºs 21-22, Setembro-Outubro de 1935 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos; fotos digitalizadas e editadas por L.G.; reproduzidas com a devida vénia).



1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da terceira parte do Capº III(*):



Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos




[III. 5]  Décimo terceiro solilóquio

Sinto-me um pouco mal com tantas interrupções que introduzo na narrativa da Benedita (**). Caí na asneira de lhe dizer que os poucos relatos que encontrei na Net são discordantes quanto ao número de feridos, até mesmo quanto à natureza dos estragos daquele ataque. Ficou furiosa, como se todos os outros pudessem duvidar da tragédia daquela noite e das suas implicações. Devem ter sido noites horríveis. É nestas descrições que eu mais aprecio o seu fio de memória, como narra os acontecimentos que a mais afectaram, a descrição que faz sobre a luz apagada à noite, o desaparecimento das pessoas, a chegada de uma tropa que vinha pouco convencida da possibilidade de um ataque.

O Albano procurava sacudir a pressão bebendo uísque, fumando e trabalhando naquelas questões da habitação que tanto o interessava. A Benedita também não esqueceu que acabou por ser influenciada pelos interesses do Albano e deu consigo a ler um calhamaço intitulado “A habitação indígena na Guiné Portuguesa” que lhe fora oferecido por um colega do Albano, Amadeu Nogueira. É preciso estar à beira de uma guerra, disse-me ela em tom trocista, para ler atentamente coisas como a casa dos Felupes e Baiotes, considerados em S. Domingos como os melhores construtores de casas em taipa, trabalhando para outras etnias como verdadeiros construtores.

A Benedita mostra-me uns papéis desbotados onde ela transcreveu o que lhe pareceu mais relevante. Leio o seguinte: as casas rectangulares são mais frequentes; a cobertura de todas as casas é feita sempre com palha; todas as casas possuem a sua varanda, cuja largura varia entre 1,50 e 2 metros, mas só na traseira; serve de sala de jantar para a mulher, de cozinha e de depósito de lenha; é aqui que se encontram os cachos de chabéu, cujo óleo há-de condimentar o arroz; a casa de Felupes e Baiotes dura uma vida e é demolida quando o seu proprietário morre; algumas casas apresentam exteriormente pinturas murais, geralmente zoomórficas e a tinta preta.

Estas palhotas têm portas fabricadas de uma só peça, geralmente em madeira de poilão, com 60 cm de largura, sendo sinal de grande desconsideração arrancá-las, indicando que os restantes elementos da povoação pretendem expulsar o proprietário; as janelas, quando as há, são pequenos rectângulos de cerca de 40 cm de cumprimento por 20 cm de largura, defendidos por pau de grossura de uma polegada; a iluminação é dada pela lenha que acendem no chão; o mobiliário reduz-se a uma cama que existe em cada quarto dos adultos, é nestes quartos que se podem encontrar bancos conhecidos por tripeças; as prateleiras são orifícios cavados, de cerca de 60 cm de cumprimento.

É espantoso como o ser humano descarrega a sua tensão transcrevendo num papel as suas impressões sobre as casas dos Felupes e dos Banhuns que ele vê todos os dias!

Interrompo a leitura destas folhas descoloridas para perguntar à Benedita se antes deste tiroteio de madrugada não houvera quaisquer outros sinais de agressão. Ela respondeu-me que sim, tinha havido uma tentativa de incendiar pontões entre S. Domingos e Bissau (havia 18). Tinha-se descoberto uma tentativa de incêndio de 2 pontões só que a chuva apagou o fogo.

Quando olhei, surpreso, a Benedita ela disse-me com a maior das naturalidades: “Não se esqueça que estávamos em Julho, naquela região Norte chove intensamente nesse tempo. Aproveitou para me recordar que havia uma grande lealdade das populações de S. Domingos com o Albano, ele era querido por todos, os seus próprios colaboradores da administração encarregavam-se de divulgar como ele era incorrupto, incapaz de uma maldade ou brutalidade.

Depois da sua vinda de Ziguinchor, onde assistiu à manifestação contra a política colonial portuguesa, o Albano reuniu-se com as famílias dos chamados civilizados, a todos contou que estava iminente um ataque. Reuniu também com a secção da tropa branca que fora mandada apresentar-se em S. Domingos depois do incêndio dos 2 pontões. A Benedita não recorda o nome de ninguém, lembra-se que havia um Alferes, que a tropa dizia muitos palavrões, era muito ruidosa, levantou muitos problemas no contacto com a população civil. Não resisto, peço-lhe todos os pormenores daquela noite do ataque, a noite que anunciou o princípio das hostilidades na Guiné.


Mais recordações da Benedita (décimo terceiro trabalho de casa)

Há 3 meses atrás, o assunto da Guiné era para mim um dossiê completamente arrumado, não me passaria pela cabeça partilhar com quem quer que fosse recordações tão queridas, íntimas e intensas, como o dia do meu casamento, o prazer que tive em viver em Bissorã, a admiração progressiva que fui ganhando ao Albano, ele foi um funcionário colonial exemplar, também considerava que era tabu o que eu vi em brutalidade no tratamento dos nativos.

Aprendi muito quando voltei a Lisboa, em 1963, apercebi-me que as pessoas só me ouviam porque tudo era exótico, mas era-lhes indiferente o modo como os guineenses viviam, a sua cultura, os seus costumes. Nunca me atrevi a contar a ninguém os comentários dos soldados brancos em S. Domingos, referindo-se àquelas gentes como se fossem uns atrasados.

Admiradora que sou da obra de Salazar, naquele tempo comecei a perceber que a revolta que veio depois tinha a ver com a necessidade de justiça e mais bem-estar. Tive o privilégio de conviver com Amílcar Cabral, era um homem de cultura superior, conhecia a literatura portuguesa como eu não conhecia, houve um serão em que falou de José Régio e de Miguel Torga, fiquei impressionada com os seus conhecimentos, a sua estatura moral.

Continuo indecisa acerca da utilidade deste relato. Eu fechei o dossiê da Guiné, é-me indiferente que tenha sido a FLING ou o PAIGC a atacar S. Domingos. Nunca tinha sentido qualquer tensão, qualquer comentário hostil à nossa presença na Guiné. É claro que vi muitos maus-tratos, havia claramente racismo, julguei que fosse tudo uma questão de tempo, a nova geração de brancos viria com outros sentimentos e certamente com muito mais amor cristão. O Albano e tantos outros funcionários exaltavam o trabalho do comandante Sarmento Rodrigues que eles consideravam o grande Governador da Guiné do século XX. Só vim a conhecer o Sarmento Rodrigues quando o Albano teve o primeiro ataque de coração e ele nos veio imprevistamente visitar. Fiquei com a noção de que se tratava de um homem superior, uma alma de eleição e que merecia os elogios do Albano.

Perdi todas as minhas memórias daquele tempo, os cadernos, os livros, as fotografias, tudo desapareceu. É a minha memória que esvoaça numa tremenda escuridão. Aquela noite do ataque alterou tudo, sobretudo o Albano tornou-se noutra pessoa, irei ouvi-lo vezes sem conta: “É o princípio do fim, Benedita, não tenho coragem de mudar de profissão, já me ofereceram lugares em Angola e S. Tomé, cheguei aqui imberbe, aprendi línguas, todos os rudimentos da administração colonial desde a tarimba, conheci homens muito estudiosos da mesma maneira que convivi com exploradores miseráveis, alguma da gente mais sórdida que há ao cimo da Terra. Não sei o que é que vou fazer deste amor que tenho pela Guiné. Talvez o melhor seja refazer a nossa vida na Europa”.

A doença acelerou esta previsão amarga. Em 1963, regressámos de armas e bagagens, o Albano doentíssimo, eu sem saber se não era necessário trabalhar, sabíamos que a pensão dele iria ser baixíssima. De 1961 a 1963, vi todos os dias o Albano, amargurado, a despedir-se da Guiné, a obra da sua vida.

E começa o ataque!
Não sei se já lhe disse, eu recusei partir com os civilizados, pedi mesmo ao Albano que a tropa branca recém-chegada ficasse a viver na administração, ficaram aquartelados em instalações improvisadas e combinou-se que, no caso de um ataque ao edifício da administração, nós iríamos pedir a protecção a esta tropa. Tínhamos 2 pistolas e havia na administração umas armas do tempo da 1ª Guerra, umas armas de repetição que já ninguém utilizava. Penso que foi na tarde de 20 de Julho que chegaram 2 funcionários para fazer o recenseamento, mas que logo ficaram contagiados pela grande tensão que havia entre nós. Mal sabiam eles o que os esperava!

Recordo que cerca de um mês antes do ataque tinha lá estado um dos administradores da Casa Gouveia, um tal engenheiro Norberto Velez, que olhou para as nossas coisas, os nossos haveres na casa e fez o seguinte reparo: “ Vocês não podem ter todos estes objectos à mostra, pode ser mais uma razão para eles vos assaltarem e esquartejarem!”. O Albano replicou que não queria mostrar medo, não aceitava mexer em nada. Mas, tempos depois da partida deste engenheiro Velez, ele reconsiderou e enviou encaixotados muitos dos nossos objectos pessoais para Bissau. Então, senti uma grande angústia. Fiquei despojada de muitos dos meus objectos, que me faziam tanta companhia, sentia-me praticamente uma reclusa.

Bom, vou voltar ao princípio do ataque, escusa de voltar a perguntar quem era o grupo, quem estava por detrás deles, eu não sabia, ninguém me deu informações, em Bissau, como verá mais adiante, ninguém me falou nessa FLING, falavam sempre em terroristas.

O Albano tinha combinado connosco como se iria organizar a defesa, cada um de nós tinha sempre a roupa à mão, a arma ao pé. O Albano não aceitava as instruções dos militares, isto é, de irmos a correr até ao aquartelamento deles, logo que começasse o tiroteio. Dizia-me frequentemente: “Estão doidos, fazem contas de cabeça, julgam que isto é aritmética, imaginam um pequeno grupo de selvagens, mal equipados e armados a dar uns tirinhos, quem sabe se não aparece aí um grupo bem armado que nos vai dizimar ou esquartejar. Não, Benedita, nós iremos a correr para o mato, conheço tudo como as minhas próprias mãos, ali não nos apanham”.

Eu ouvia isto tudo e estremecia, a pensar nas cobras e andar aos tropeções dentro da mata, a imaginar uma perseguição e ser morta à catanada. Mas eu confiava absolutamente no Albano e não me atrevia a pôr objecções. Então, pelas 2 da manhã, mais ou menos ouvi o primeiro tiro, partiu da mata em direcção à nossa casa, o Albano deu o grito: “Eles aqui estão!”, eu sei que isto não tem pés nem cabeça mas senti uma sensação de alívio, fomos todos até à varanda, de pistola em punho, quando digo nós incluo todo o pessoal da administração.

Continuo sem saber os termos militares, só posso contar aquilo que vivi, com os meus conhecimentos. Eles atiravam da mata para casa, senti as balas perfurar as paredes, a partir as telhas, a desfazer os vidros. Eu olhava na varanda a saída do fogo, o Albano ordenou que devíamos ir para a casa da alfândega, ali, como só havia uma varanda à frente, era mais fácil responder ao fogo deles. Um dos funcionários da administração gritou que estava ferido, caiu no chão. Juro-lhe que eu estava muito calma, o homem parecia desmaiado, tirámos-lhe as calças, estava bastante ferido numa das virilhas, fora um puro acidente, a pistola dispara-se quando ele escorregara. Alguém lhe deu uma injecção de morfina, lá o arrastámos para a casa da alfândega. Como não havia fogo sobre a casa da alfândega, procurámos ir até ao aquartelamento e aí disseram-nos que já havia 5 feridos. É nisto que damos conta que as luzes ali estavam todas acesas, foram então apagadas e começámos a transportar os feridos para este edifício onde o enfermeiro tinha mais meios.

Não sei quanto tempo depois voltou o silêncio total, tinham acabado os tiros. O Albano sentou-se a uma secretária e escreveu um relatório e disse-me: “Benedita, não sei se estou a proceder bem, peço-lhe que leve esta carta a Bissau, ao amanhecer tenho que dirigir a evacuação das mulheres e das crianças, vai com uma escolta militar, fico à espera que mandem mais reforços, ninguém pode adivinhar quando será o próximo ataque”.

Sentia-me embrutecida e distante, eu tinha uma outra ferida, muitíssimo profunda, não sei com que coragem lhe vou agora contar o que me atormentava. Durante aquele tempo que precedeu ao ataque, todas as noites ouvíamos a rádio Dakar, era ali que se referia sem nenhuma discrição que em breve as povoações com colonialistas, junto à fronteira com o Senegal, iam ser atacadas.

Uma noite ouvi mesmo dizer que onde o Albano estivesse (nunca referiram S. Domingos, só falaram no nome dele) eles fariam o menor número possível de mortos porque ele tinha sido sempre humano para os africanos. Uma noite fiquei gelada quando eles disseram num francês impecável: “Lembra-te Albano Toscano que já tiveste filhos africanos!”. Não foi uma sensação de traição que eu senti, o Albano tinha-me dito que não havia outra mulher na sua vida, o que eu verdadeiramente senti é que devia ter partilhado aquela informação, não era agora que ia perguntar ao meu marido se ele tinha filhos de outras mulheres, se estavam vivos ou mortos, aquela omissão recebi-a como uma bofetada, não era agora que eu ia perguntar ao meu marido se era verdade ou se era mentira, ele estava ao meu lado a ouvir a rádio Dakar, fez que não ouviu, senti-me maltratada, eu merecia uma explicação.

Sentia-me aturdida, aceitei partir para Bissau, vi à minha volta toda a gente a trabalhar, o Albano a içar a bandeira portuguesa e depois a liderar os preparativos para que todas as mulheres e crianças fossem retiradas de S. Domingos, nem todas aceitaram partir, mas muita gente foi de barco para Cacheu. Da janela do edifício da administração assisti àquela debandada., todos partiam com os olhos postos no chão.

Ao amanhecer, uma avioneta veio-me buscar, parti cheia de sofrimento, deixando ali o Albano, não tenho a menor recordação daquela viagem, só sei que quando cheguei a Bissalanca desmaiei. Lá me recuperei e segui para o Palácio do Governador. Acompanhada pelo comandante militar, fui prontamente recebida pelo Governador (****), leram os dois o relatório do Albano, disse-lhes que ele pedia sacos para fazer barreiras de protecção, tinha extrema necessidade de enfermeiros e, se possível, pedia mais reforços. É nisto que o governador me pergunta: “Onde é que a senhora quer que eu vá arranjar estes sacos?”. Respondi-lhe: “Não tem dificuldade, basta chamar o Turco, aquele comerciante que trabalha com o Pintosinho, ele vai falar com os arrozeiros, é um instante enquanto se arranjam os sacos, depois em S. Domingos é só enchê-los”.

Nesse mesmo dia, as autoridades enviaram para S. Domingos um pelotão para reforço daquele contingente que ficara tão combalido com o ataque da madrugada. Não me recordo bem, já disse várias vezes que todos estes papéis se perderam nas malas que vieram de S. Domingos para Bissau e que desapareceram sem deixar rasto, mas o Albano enviara no seu relatório a informação de que os atacantes só tinham utilizado armas de repetição entre as 2 e as 6.30 da manhã, hora em que tudo acabou.

Ah, espere, temos que voltar aos sacos. Depois de uma grande correria, lá se encontraram sacos, cerca de 600, e o Governador perguntou aos comerciantes como é que eles iam fazer chegar os sacos a S. Domingos. Eu estava com a cabeça tonta, meio adormecida, sedada por um tranquilizante que me tinham dado, olhava para aquilo tudo e perguntava-me qual a capacidade de resposta daqueles políticos perante uma emergência, se não eram capazes de encontrar uma solução apropriada para enviar 600 sacos vazios para S. Domingos.

Fiquei em casa da Ivone Leal, mulher de um advogado, lembro-me que dormi muito mal, foi um sono sobressaltado, sempre a pensar num próximo ataque, e eu longe do Albano., numa atmosfera de segurança. Na manhã seguinte, alugou-se uma avioneta que foi a S. Domingos levar mantimentos e os sacos, o Turco esteve a conversar uma hora com o Albano, as notícias que trouxe eram tranquilizadoras, tinha-lhe chegado informação que as dezenas de atacantes regressaram à região de Kolda.

Nessa noite voltei ao palácio do Governador onde me foi anunciado que este decidira que eu durante um mês não voltaria a S. Domingos, a justificação era que tinha a casa cheia de tropa. Só espero até morrer não voltar a viver um tempo de tanta ansiedade como aquele, a Ivone Leal e marido, os Nobre Lemos e outros casais tudo fizeram para eu me sentir bem, deram-me amparo e carinho, serenaram-me como puderam. Felizmente que o Governador dera ordens para que sempre que uma avioneta fosse a S. Domingos me levasse e trouxesse. Não imagina as peripécias que eu vivi! Oiça algumas.

Houve um piloto aviador que me deu uma palmada nas costas, em pleno aeroporto e à vista de toda a gente, eram um miúdo simpático, tratava-me por mana e bonitona, eu não sabia se me havia de rir ou zangar. Uma vez um outro piloto largou-me no Ingoré, disse-me que tinha de ir levar correio a Camamudo, vim numa carripana velha até S. Domingos, apareceu-me na estrada o Albano, afogueado, com uma escolta militar, o louco do piloto enviara uma mensagem a dizer que vira grupos estranhos à saída de Ingoré, talvez fossem salteadores, o melhor era protegerem-me. Na segunda visita ao Albano apercebi-me de grandes mudanças, as famílias brancas e até as de comerciantes mestiços consideravam o ataque a S. Domingos como o princípio da insurreição, anunciavam que iam partir, não queriam ser mortos à catanada.

Desculpe-me, começo agora a ter consciência que este relato é confuso, estou a misturar coisas, até escrevi aqui no meu caderno: “Dizer ao Mário que ao lado do nosso quarto, em S. Domingos, estavam 10 soldados e o rádio das transmissões. Quando voltei, estive quase um mês sem dormir a ouvir aquele besoiro, era uma gritaria em que o soldado no quarto ao lado usava uma linguagem codificada que me dava vontade de rir”.

Também escrevi no meu caderno: “Na mesma noite que os guerrilheiros atacaram S. Domingos igualmente flagelaram Suzana e o Albano mandou chamar o chefe de posto para S. Domingos, ele ficou aqui mas a mulher foi para Cacheu. Varela foi atacada mais duramente cerca de um mês depois, a bonita estância turística ficou completamente desmantelada, as casas turísticas desapareceram”. Agora peço-lhe que paremos, não pode imaginar a comoção que tive quando voltei a Varela e vi desaparecidos objectos pessoais que tinham para mim elevadíssimo valor estimativo. Quando vemos a nossa casa em derrocada, sentimos uma devassa incontrolável ao nosso património, ao mais nosso íntimo do nosso ser.


Décimo quarto solilóquio


Há qualquer coisa de patético neste funcionário colonial cujos avisos são ignorados em Bissau, impotente e talvez resignado com a incapacidade de resposta dos políticos, indiferentes à insurreição iminente. No último almoço, a Benedita contou-me que o Albano tivera a informação de que Varela iria ser destruída, nessa altura ela já tinha regressado a S. Domingos. Com o zelo de sempre, ele apelara para que houvesse movimentação de tropas para Varela, não houve, aquela linda praia que dispunha de um casario moderno ficou irreconhecível depois da depredação dos assaltantes.

Continuo a entusiasmar-me com os relatos da Benedita. As suas viagens da avioneta de Bissau a S. Domingos tiveram momentos delirantes, aquela história de um piloto que queria que ela visse os crocodilos e que baixou o aparelho até quase à linha de água, foi um dos maiores sustos da sua vida; e também aquela história em que viajou com um leitão destinado a S. Domingos, entretanto foi necessário ir a Cacheu de emergência e o funcionário local mal a viu desatou a chorar, agradeceu-lhe a amabilidade de ter trazido um leitão, ela nem teve coragem de lhe contar a verdade...

Nesse almoço com a Benedita também ficou claro que no círculo íntimo do Governador havia também quem, perversamente, insinuasse que o Albano estava feito com os africanos, seria um pro-independentista. Tomei igualmente nota das peripécias vividas em S. Domingos, com a tropa à volta. Por exemplo, estava a Benedita a dar aulas, rebentou um tiroteio, ela atirou-se para debaixo da secretária, afinal era um exercício na carreira de tiro, ninguém a avisara de nada.

Três semanas depois de estar em Bissau, o Governador autorizou que ela voltasse para o pé do Albano. Quando ela ali chegou já S. Domingos vivia um simulacro de estado de sítio, a tropa a circular permanentemente de Bula para cá e de cá para Bula, as ruas rasgadas por trincheiras, o Albano furioso sabendo que aquelas valas iam ficar cheias de água e inúteis, mal surgisse a época das chuvas. Acho que chegou o momento de registar esta coabitação com a tropa, as questiúnculas entre a tropa brancas e os Felupes, o fim das idas a Ziguinchor, quando o Senegal cortou relações com Portugal.




"Jangada no Rio Geba. Passagem entre Bafatá e Contuboel"... Imagem reproduzida  em O Missionário Católico, Boletim mensal dos Colégios das Missões Religiosas Ultramarinas dos Padres Seculares Portugueses, Ano VIII, nº 81, Abril de 1931, p.  169 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos). 

Imagem digitalizada e editada por L.G.


Em S. Domingos, à espera de uma guerra que não veio


Tudo mudou quando cheguei a S. Domingos, sabia perfeitamente que o meu idílio com a região acabara. Cercada pela tropa, a viver com a tropa em casa, a ouvir permanentemente os palavrões, com Varela destruída, com as medidas de segurança que nos obrigavam a circular com todas as cautelas, sem poder ir a Ziguinchor, refugiei-me na escola, nos livros, nos arranjos da casa, às vezes com a cabeça à razão de juros com aquele infortúnio, para mim incompreensível. Desforrei-me na cozinha, o Omaia foi dispensado de muitas actividades (é nesta altura, creio eu, que se descobriu que ele tinha lepra, antes de regressar a Portugal ainda o fui visitar à leprosaria, em Cumura), aprendi a fazer compota de caju e, pasme-se, atirei-me à jardinagem.

Eu nunca experimentara viver rodeada de arame farpado, agora estava a acontecer, tinha a tropa em casa, aquela convivência de caserna, os palavrões e o sargento a pedir-me desculpa pelos palavrões dizendo também mais palavrões...Embora isto pareça desusado, digo com toda a convicção que foi a fé que me valeu, eu escorregava naquela falta de valores, via o Albano triste e sobretudo muito doente, estava a sofrer muito de cálculo renal, houve momentos em que desesperei e, Deus me perdoe, cheguei a desejar um novo ataque para sairmos dali.

Pois bem, em Julho de 1962, depois de pedidos insistentes com relatórios médicos a comprovar o débil estado de saúde do Albano, ele recebeu autorização para irmos a Bissau. É precisamente na viagem de S. Domingos para Bissau que ele teve um aperto, saiu aos tombos do carro, ouviu-o dar um grito medonho dentro da mata, fui a correr em seu auxílio, ele disse-me com uma expressão aliviada, quando me aproximei ofegante: “Ai, Benedita, estou muito melhor, o cálculo renal já saiu!”.

Olhando para trás, posso dizer que vivi um tempo muito acinzentado. Depois de termos saído de S. Domingos, constou-nos que mataram um capitão num ataque àquela estrada e que continuaram de vez em quando a tentar destruir os pontões (havia na região de S. Domingos/Ingoré 18 pontões até Bissau como já lhe disse).

Agora apetece-me sorrir e até ser brincalhona no comentário que vou fazer: assentei praça em S. Domingos com a idade major e nem a cabo fui promovida, a recruta era de 3 meses, a minha excedeu um ano e meio.

Quando me vim embora, os soldados da companhia de S. Domingos colectaram-se para me dar um boné camuflado como presente. Até essa lembrança desapareceu naquelas malditas malas que se extraviaram, foi assim que perdi doces recordações.

O Albano fez tratamentos em Bissau, pela primeira vez senti que ele era um homem com o coração irremediavelmente destroçado e com a saúde arrasada e com cada vez menos sonhos. Quando comparo as fotografias que ele me enviou em solteiro, as que tirámos em Bissorã, em Teixeira Pinto ou no Gabu, com aquelas que guardámos dos últimos meses, em Bissau, que diferença! Ainda voltámos a S. Domingos, o Albano foi fazer a entrega oficial da administração ao seu substituto.

A despedida deixou-me debulhada em lágrimas. O aeroporto de S. Domingos, como em tantas outras pequenas localidades, limitava-se a uma pequena faixa de centenas de metros de terreno saibroso para o aterrar e o levantar voo das avionetas. Tínhamos uma multidão à volta da pista, os nossos criados com a tristeza estampada na cara, não sabiam quando voltariam a ver os seus patrões, vários régulos Felupes, Brames, Manjacos, trouxeram as suas numerosas famílias, o Albano e eu tínhamos um cortejo de afilhados com flores e outros presentes, não houve comerciante que não tivesse comparecido para nos ver partir. Guardo na retina aquela avioneta que deslizava aos roncos e os jovens a correr, com grande sorriso, e a saudar-nos entusiasticamente. Não aguentei, chorei muito.

Quero voltar à minha mágoa das malas desaparecidas. Tínhamos malas de porão, ali guardei a nossa roupa e os nossos haveres mais importantes. E foi graças a esta estúpida classificação que metemos em malas ligeiras as fotografias, os documentos, os livros e os mapas. Pedi ao condutor para entregar tudo (eram aí umas 5 ou 6 malas) em casa da Ivone Leal, dois dias depois de chegarmos a Bissau apurámos que as malas não apareciam, procurámos o condutor, ele garantiu a pés juntos que deixara tudo à entrada, ninguém assaltava as casas, naquele tempo. A verdade é que as malas nunca mais voltaram a aparecer, deve ter sido alguém que supôs que andavam por ali pratas e jóias, eu perdi coisas muito importantes para a minha memória, desapareceu a preciosa escultura dos Nalus, os panos Manjacos, os arcos de caça dos Felupes, lindos panos da Gâmbia, desenhos e aguarelas oferecidos por artistas locais.

Olhe à minha volta, está aqui tudo que testemunha o mundo em que nasci, bisavós, avós, pais e o Toninho, veja-me aqui no dia do casamento, ali com o Albano em cima de um hipopótamo morto, em plena ria de Cacheu (sempre lhe chamei ria, o Teixeira da Mota dizia mesmo que a Guiné só tinha um rio, o Geba). Tenho aqui os álbuns organizados, naquelas caixas de sapatos estão as fotografias que entraram nos livros do Albano ou ilustraram os seus artigos, guardo memórias de quase tudo, pode imaginar a falta que me faz o extravio daquelas malas. Felizmente, que muitos dos livros voltaram a ser comprados ou oferecidos, já lhe disse que nos primeiros tempos não me sentia atraída por todas aquelas histórias e por aquela diversidade cultural. Tudo mudou quando fui para o Gabu, agarrei-me aos livros, procurei compreender.

Num dos nossos próximos encontros até lhe queria falar dos artigos que o Albano escreveu no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, os objectos que ele ofereceu ao museu, este funcionava no edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa onde o Mário esteve tantas vezes, como observei na leitura dos seus livros, estudiosos como o Armando Cortesão, o Teixeira da Mota, o Rogado Quintino pediram ao Albano para comprar artesanato, ele comprava e não foram poucas as vezes que comprou com dinheiro do seu bolso objectos que iam para o Museu. Eu sei que sou muito má «aluna», registo caoticamente as minhas lembranças, ando permanentemente para trás e para a frente, mas tomei ainda nota de duas coisas que ainda lhe queria falar, depois paramos, estou muito cansada.

Tenho aqui escrito: jantar no palácio, em minha honra. Houve um ror de brindes, toda a gente queria discursar, o reitor do liceu comparou-me com a D. Filipa de Vilhena, desta vez ia desmaiando de riso; o Albano era tido por “trouxa” porque não fazia negociatas, punha na rua todos aqueles que lhe vinham propor negócios escuros ou procurar envolvê-lo em corrupção.

Deixe-me contar mais uma história. Nos últimos tempos de S. Domingos, foi lá almoçar um funcionário de Bissau que passava criminosamente cartas de condução. Alguns dos soldados vieram pedir-me para meter uma cunha a este senhor para lhes emitir carta, eles explicaram-me que não tinham dinheiro. Em pouco mais de duas horas ele passou para cima de 30 cartas de condução. No final, voltou-se para mim e perguntou-me se eu também não queria uma carta. É nisto que chega o Albano, tinha ido à povoação de Barro, por cauda das obras da estrada. Vendo-me aflita, perguntou-me o que se estava a passar e eu respondi que me estava a ser oferecida uma carta de condução. Olhou furioso aquele funcionário de Bissau e disse-lhe sem papas na língua: “Já chega de asneiras! Espero que durma mal a pensar nos desastres que vai provocar com a sua irresponsabilidade».

Verá mais adiante que o Albano me trouxe dissabores e grandes desgostos. Eu prefiro exaltar o funcionário incorruptível que tratou sempre correctamente os nativos e cuidou dos interesses da Guiné, nunca pactuando com qualquer tipo de crime. Só casei duas vezes, foram amores distintos, talvez a idade pese no juízo que fazemos dos homens que amamos, mas eu tive muito orgulho neste marido que desde que me conheceu me disse a verdade sobre a Guiné, foi bondoso e carinhoso comigo, tudo fazia para me ver feliz.

Bom, estou quase a sair da Guiné, agora preciso de descansar, ainda há alguns episódios que lhe quero contar, prometa-me que só vai escrever 2 ou 3 histórias se acaso vai publicar algum livro com esta maçadoria, é para mim mistério insondável o Mário encontrar algum encanto ou pitoresco nestes episódios que têm quase 50 anos e que estão definitivamente perdidos no tempo., dispensados pela História. Ou não estão?

(Continua)



[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série:

31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações

2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5747: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (2): Da Guerra do Turu-Ban ao Tubabo Tiló, passando pelo deslumbrante Corubal

4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...

9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!

(**)  Sobre o processo narrativo, explicou o autor:
 
"Queridos amigos, o livro 'Mulher Grande' é uma narrativa ficcionada, um relato de uma vida de memórias (memórias de uma vida). É a Guiné que aproxima a narradora e o seu arquivador/escriba. Benedita Dantas Estevão possui uma memória prodigiosa, viveu as agonias e os êxtases de toda a gente. A estrutura da narrativa baseia-se num processo literário explorado magistralmente por John Dos Passos, limitei-me a seguir-lhe as pisadas: há um episódio inicial em que o narrador descreve acontecimentos, o arquivador/escriba reflecte sobre eles (solilóquio) e o narrador dá uma explicação íntima para o que contou (recordações e trabalho de casa), é um círculo fechado de duas pessoas que falam a três vozes.
 
"O que ofereço ao blogue é matéria que se prende com a essência do nosso blogue: a Guiné em vias de entrar na guerra. O resto, caso venha a entusiasmar os tertulianos, fica para a leitura de cabo a rabo. Sugiro a sua publicação em pequenos episódios de duas ou no máximo três páginas, em consonância com a própria construção dos diálogos. Aguardo a vossa apreciação. Um abraço de amizade, Mário" (...)


(***) Excertos do Cap I:

(...) Vim ao mundo ao nascer do dia 24 de Novembro de 1920, em Lisboa. Nasci na Avenida da República, 70, no rés-do-chão de uma moradia que também tinha 1º andar e mansarda. (...)




(...) A casa fora alugada pela minha avó brasileira, a vovó Januária ou vovó Xanoca. No dia em que vim ao mundo, bateu à porta da nossa casa o capitão Edmundo Barreto, um dos fiéis de Sidónio Pais, e que era muito amigo do meu pai, vinha almoçar, isto era muito comum assim, recebíamos informalmente todos os amigos, eram poucos os que se anunciavam. Sabiam que o meu pai acabava as consultas no Curry Cabral pelas 13 horas, e que vinha imediatamente para casa, quem batia à porta almoçava. O meu pai contou-me que o foi receber à entrada, eufórico, estava todo desalinhado, sem plastrão, e lhe dissera: “Olha, desculpa, hoje não pode ser, nasceu-me uma filha, sou pai pela primeira vez, estou radiante, isto está tudo uma desordem mas estamos felizes. A Estrelinha está de boa saúde!”. A Estrelinha era a minha mãe. (...)


(...) Nasci num meio burguês, filha de um clínico geral que trabalhava no Curry Cabral e no banco de S. José e tinha consultório na Praça José Fontana, e de uma brasileira de Santos, menina prendada. Era um casal que se amava muito. À distância destes anos todos, reconheço que tive o privilégio de nascer num meio excepcional, rodeada de pessoas excepcionais. O pai, a quem meio mundo chamava o Catarinho (Catarino Palma d’Abreu Dantas) viera estropiado da Flandres, era um homem de uma curiosidade insaciável, uma grande alma, um grande carácter. (...)


(...) O Catarinho era monárquico por tradição e convicção, mas era um homem verdadeiramente popular, não aceitava injustiças, falava com toda a gente com a mesma elegância de modos. Uma vez, era eu pequena, ele foi abordado nos Restauradores por alguém, eu, a minha mãe e o meu irmão, não percebíamos o entusiasmo daquela conversa. Despediu-se do senhor e depois disse-nos: ”Era um dos meus doentes lá da Penitenciária, creio que era um grande criminoso que se regenerou. Ainda bem que o voltei a ver”. (...)


(...) O meu pai vivia politicamente na oposição à balbúrdia republicana, veio a aderir à Liga 28 de Maio, admirava profundamente Salazar e a sua obra. Fez sempre campanha a seu favor, tudo à sua custa, nunca quis cargos, o que ele queria era ser médico, viver com a família, estudar genealogia, história de arte, até mineralogia, tudo lhe interessava. Não passava uma semana que não fosse investigar na Torre do Tombo. A minha mãe era adorável, acabou por ser a minha filha. Isto é difícil de compreender até se conhecer a relação que estabelecemos, sobretudo nos últimos anos da sua vida, morreu já nos anos 80. Sempre que falo da minha mãe emprego o termo que usei sempre: a Estrelinha (Maria Augusta dos Santos Pimenta), ela era de facto uma estrela reluzente ao pé de nós, delicada no trato e sempre delicada na sua saúde. (...)


(...) A abundância em que nasci começou a desaparecer quando eu tinha 10 anos. Com a crise de 29, o meu pai perdeu as economias amealhadas que pusera no Banco do Minho e a Estrelinha perdeu muito do que tinha nos negócios de Santos, tudo herança do avô Valentim, que não conheci, ele morreu quando a avó Januária veio com duas filhas até à Europa. É verdade que ele era um nome na medicina mas não era suficiente, houve que cortar nas despesas, desapareceu o chofer e desapareceram criadas. E desapareceram muitas das visitas lá em casa. (...)


(...) Com o desaparecimento do meu pai, tudo mudou, eu ia fazer 21 anos. (...)


(...) Em 1950, soube que havia uma vaga na Embaixada dos Estados Unidos da América, na Duque de Loulé, fiz provas, no Verão, fui aceite. O meu emprego não era propriamente na Embaixada mas sim junto do serviço do adido militar, eu depois explico o que fazia. Por essa altura, o Raimundo pediu à minha tia para ir ter com ele ao Norte. A Ada pediu-me para a acompanhar. E foi assim que fomos para a Póvoa, de 15 a 30 de Agosto. Na primeira noite, fiquei em casa da Luísa Palma. Fui com ela ao Casino (...).


(...) Nisto chegou o meu primo Manuel Dantas Amorim que vinha a falar com um outro senhor e apresentou-me o Albano da Graça Toscano. Pouco depois, fui dançar com este senhor que era funcionário colonial, tinha ido quase adolescente para a Guiné, vivia lá há muitos anos, mais de 16, estava agora de férias. Ia começar o meu romance. No Casino da Póvoa, mal sabia eu, tinha o meu destino traçado para ir para a Guiné, onde vivi momentos tão belos mas também tão dramáticos. Ao longo destes anos, digo-lhe agora sem ironia, eu achava que era exótico falar da Guiné, quando eu falava os outros ouviam com atenção, ninguém sabia onde é que era a Guiné e como é que lá se vivia. Dou comigo agora a pensar que ir contar tudo quanto eu vivi tem aspectos melindrosos, ainda há algumas pessoas vivas, nem sei se vou contar tudo.


(...) E foi assim que ficámos noivos. Mas o Albano tinha que partir em Setembro, tinham acabado as férias, só poderia voltar dentro de 4 anos, encarou-se logo a hipótese de casarmos por procuração. É bom não esquecer que eu ia trabalhar para a Embaixada, em Outubro assinei contrato como operadora telefonista. Eu vivia uma situação de grande dilema, nem ele nem eu tínhamos idade para perdermos mais tempo, naquela época só havia cartas uma vez por semana, não me estava a ver num namoro como se fosse uma adolescente.


Era um dilema: pela primeira vez na vida eu estava a ter um emprego que me interessava, que me entusiasmava verdadeiramente, mas também a Guiné estava no horizonte, eu queria casar com o Albano. (...)


Casei na Igreja do Campo Grande, fui de braço dado com o maninho, fizemos a festa em nossa casa. E naquele mês de Setembro, com a Estrelinha e a Ada a chorar, emocionadas, parti da Portela, de madrugada. Eu saía pela primeira vez de Portugal. (...)

(****) Na altura dos acontecimentos em S. Domingos (21 de Julho de 1961), era governador da província da Guiné  António Augusto Peixoto Correia (1959-1962).  Sarmento Rodrigues tinha sido Governador do pós-guerra (25 de Abril de 1945 a 1950).

Guiné 63/74 - P5824: Notas de leitura (68): Memória, de Álvaro Guerra - A tiros de raiva e metal escaldante (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai mais uma recensão sobre o Álvaro Guerra.
Se houver uma alma caridosa que me empreste ou queira fazer a recensão de “Os Mastins” ou “A Lebre”, é só avisar.E se houver uma outra alma caridosa que me queira emprestar os primeiros livros do José Martins Garcia, ou fazer as competentes recensões, much better.

Um abraço do
Mário


A tiros de raiva e metal escaldante

Beja Santos

“Memória”, de Álvaro Guerra (Editorial Estampa, 1971) é um livro deliberadamente niilista, organizado por fragmentos por onde se dispersam as recordações da infância, da guerra, do tecido familiar, dos desacertos da vida. É talvez o último livro onde Álvaro Guerra regressa à Guiné. A obra abre com um discurso torrencial, não há pausas, não há condições para a retoma do fôlego, o leitor é forçado à correria, compete-lhe pontuar para encontrar o sentido das palavras: “no calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões...”. E logo a memória vai para a Ameixoeira no canto do pátio, no marçabril de cada ano, o autor recorda a casa da avó e as coisas lúbricas que praticou com a sua prima. Seguem-se textos que rondam episódios históricos, fala-se mesmo do império e depois partimos para a Ponta Tenente, lá no Rio Grande, é um regresso caótico, quase demencial, à Guiné, depois disserta sobre o machismo, o amor, as viagens dentro da Europa, brinca com as mensagens publicitárias, olha-se ao espelho e estabelece uma conversa que podia caber dentro do surrealismo de Dali, revela-se poeta, são fogachos atirados para os céus, vê-se como Álvaro Guerra apreciava o “novo romance”, as obras de Cortazar, os autores do absurdo, é um experimentalismo que vai estonteando o leitor transformado em cobaia de um escritor que parece não querer abrir o jogo. E, abruptamente, Álvaro Guerra volta ao nosso país: “Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sono, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade-destino”.

Há nesta viagem de um funâmbulo imagens que nos recordam Alexandre O’Neill e Herberto Helder, o combatente que regressou e foi estudar para Paris desorganiza e entrança as suas memórias entre o burlesco e o grotesco. E nisto chegamos à guerra, a uma verdadeira sinfonia para a guerra, com três andamentos. O primeiro, já aqui foi referido, vem citado por João de Melo na sua antologia “Os anos da guerra”, tem a ver com os preparativos e conta a história de um cadete que rouba o vinho destino à celebração da missa. O segundo andamento chama-se ocupação, é possível que trate a história da unidade a que pertenceu Álvaro Guerra quando chegou à Guiné em 1963: “A companhia recém-desembarcada dos três velhos aviões a hélice foi provisoriamente instalada no Liceu da Cidade que, para o efeito, se encontrava equipado com aquilo que habitualmente equipa um liceu: carteiras, mesas de professores, ponteiros, giz, globos terrestres, animais empalhados, provetas, tubos de ensaio... Quando a soldadesca saltou dos camiões, o capitão ordenou a formatura e disse para terem muita atenção em não escangalhar nada do que estava lá dentro, pois aquilo era Património do Estado e “quem escachaporrar alguma vez tem que s´haver comigo”, após o que se fez a distribuição dos militares pelas várias salas de aula, tendo o gabinete dos professores sido reservado aos oficiais e o laboratório aos sargentos... Apesar do apetite que a pressa claramente demonstrava, não foi a ementa muito apreciada, depois se descobriram mais tarde, nos quadros pretos, inscrições não muito elogiosas traçadas a giz incerto, das quais se dão alguns exemplos: “Oje o rancho foi uma merda”, “O cozinheiro que vai ensebar os cornos do pai com a sopa que fez”, “Grões igual a balas”, etc., tudo isto ilustrado com uma expressiva e assaz numerosa colecção de falus das mais variadas dimensões. Acomodados sobre a palha, entre carteiras, dispuseram-se a passar confortavelmente a sua primeira noite no liceu o que teriam conseguido se não fossem os permanentes e ferozes ataques dos mosquitos o que determinou colectiva manhã mal-humorada e salpicada de queixas aos superiores imediatos: soldado-cabo-sargento-alferes-capitão, com judiciosas quão oportunas observações do tenente-médico”. Tudo parodiado, como se a diversão fosse o óptimo condimento para chegamos ao terceiro andamento, o “massacre”. Prosseguindo o estilo delirante, a companhia anda aos tombos, chegou uma ordem, é o desconchavo total, a tropa vive o drama de um ataque de chatos, o dê-dê-tê, seria da comida? Seria da roupa? Vive numa inquietação geral quando a sinfonia culmina com o tema final: “Estavam nisto quando o ataque começou, choviam granadas e balas, assobiando sobre as cabeças e explodindo mesmo nos postos-chave das defesas tão inteligentemente concebidas, os soldados corriam de um lado para o outro, semi-vestidos, calças na mão e espingarda na outra, dando urros de dor por não sobrarem mãos para se coçarem, alguns tombaram logo na primeira vaga, gritando heroicamente “ai, nha mãezinha!”, outros, depois de alcançarem os abrigos, disparavam com uma das mãos e coçavam-se com a outra... Às três da manhã a companhia fora massacrada. Morreram como heróis, garanto. Morreram todos, menos eu, que escapei para contar a história”.

O burlesco na guerra tem longos e felizes antecedentes, basta pensar em “O bravo soldado Chveik” de Jaroslav Hasek, isto para não esquecer as sempre tão esperadas incursões do nosso Jorge Cabral. Ao deixar as suas memórias na Guiné com esta “Memória” mal sabia Álvaro Guerra que um outro niilista tão dissoluto ia chegar às lides literárias e não com menor talento, José Martins Garcia. Os estudiosos da literatura que procurem interpretar o fenómeno desses anos 70 em que os militares faziam a sua catarse divertindo-se, sabe Deus com que sofrimento a esvair-se da imaginação para os dedos.

O livro “Memória” passará a pertencer ao blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5820: Notas de leitura (67): O Disfarce, de Álvaro Guerra - Mais ou menos tão divertido como o teu exílio (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5823: Tabanca Grande (203): Domingos Fonseca, o arqueólogo e hoje comandante de Guileje

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberem > 6 de Dezembro de 2009 > Domingos Fonseca e a esposa, numa festa de casamento de amigos. Foto tirada por João Graça, médico e músico, de passagem por Iemberém.

Foto: © João Graça (2009). Direitos reservados.


1. Mensagem do Pepito, com data de 11 do corrente

Assunto - Adesão à Tabanca Grande

Luís:  O Domingos Fonseca acaba de me informar que é com muito orgulho que fará parte da nossa Tabanca Grande. Ele já era um indefectível e maior divulgador do nosso Blogue, mesmo que apenas tenha acesso a ele quando vem a Bissau. Segue foto do "arqueólogo". (*)

A AD pensa que o Domingos venha a ficar definitivamente em Guiledje, logo que tivermos condições de habitabilidade nesta zona.

Assumirá a reconstrução gradual do antigo quartel e gestão das suas infraestruturas (Museu), apoiará as comunidades locais em termos agrícolas e participará activamente na gestão dos recursos naturais desta zona do Parque Nacional de Cantanhez, em especial a dos dois corredores transfronteiriços de animais selvagens.

abraço
pepito

2. Comentário de L.G.:

É (era) da mais elementar justiça convidar o Domingos Fonseca (o comandante, como lhe chama o Pepito, das operações de renascimento e reconstrução de Guileje) para se sentar connosco à volta do poilão da Tabanca Grande... Afinal, o Domingos já convive connosco pelo menos desde 2006. Ele tem aparecido sistematicamente ligado a Guileje.  Foi também ele quem dirigiu, superiormente,  a equipa de apoio logístico à visita ao Sul da Guiné, com os participantes do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) (**). Foi nessa altura que o conheci.

Mas já aqui havíamos publicado, na I Série,  fotos  tiradas por ele, noutros lugares que estão intimamente ligados à história da guerra colonial, às nossas memórias e ao nosso imaginário. Estou-me a lembrar, por exemplo, das fotos tiradas no Xime que tanto emocionaram o nosso amigo José Carlos Mussá Biai, o "nosso menino do Xime", hoje engenheiro agrónomo, especialista em cartografia, a residir e a trabalhar em Portugal:

"O curioso de tudo isso, quem tirou as fotografias é um colega meu, o Domingos Fonseca, trabalhei junto com ele na Escola do Ensino Básico Preparatório Amizade Guiné Bissau - Suécia, em Bissau. Ele leccionava a língua portuguesa e eu matemática, antes de ele ir tirar o curso de engenheiro técnico agrário na Argélia. Estive com ele no ano 2000 em São Domingos onde ele estava como responsável de AD" (J. C. Mussá Biai) (***).

Recorde-se que, no seio da equipa da AD, o Domingos apresenta-se, ele próprio, da seguinte maneira:

"Domingos Fonseca: sou técnico do Programa Integrado de Cubucaré (PIC) e ocupo-me preferencialmente das acções ambientais em Cantanhez, nos domínios de eco-turismo, formação de professores das EVA [ Escolas de Verificação Ambiental], colecta de plantas medicinais e identificação de percursos naturais".

Domingos: desejamos-te as boas vindas a esta Tabanca Grande que é cada vez mais um traço de união entre portugueses e guineenses, com destaque para aqueles que foram actores e testemunhas da guerra colonial... Embora fosses crianças nessa altura, dás hoje - tal como o teu amigo J.C. Mussá Biai ou o Pepito - grande importância ao nosso esforço, de todos nós,  para preservar, proteger e divulgar a nossa memória comum ou partilhada.

Da tua parte espero que nos ajudes a dar voz aos antigos combatentes  da liberdade da Pátria. Quero que te sintas à vontade para nos mandares textos e fotografias sobre tudo o que directa ou indirectamente interesse aos amigos e camaradas da Guiné.  Bom trabalho, boa saúde.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5797: Grupo dos Amigos da Capela de Guileje (11): A recolha de fundos vai continuar... Saldo: 430 € (Manuel Reis / Luís Graça)

(**) 29 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2695: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (11): Iemberém, uma luz ao fundo do túnel

(...) "Quero destacar, antes de mais, a afabilidade e a hospitalidade da população local, que nos recebeu em festa. E depois tenho que falar, mais uma vez e antes que seja tarde, na eficácia e na eficiência da equipa de apoio logístico da AD - Acção para o Desenvolvimento que tomou conta de nós, que cuidou de nós. Eles merecem um destaque especial, nestas minhas notas de viagem à pátria de Cabral.


"Foram superiormente dirigidos pelo Domingos Fonseca, que jogava em casa, uma vez que é técnico do Programa Integrado de Cubucaré (PIC), de que é director o Abubacar Serra, ocupando-se preferencialmente das acções ambientais em Cantanhez, nos domínios de eco-turismo, formação de professores das EVA (Escolas de Verificação Ambiental), recolha de plantas medicinais e identificação de percursos naturais. Sob o olhar (discreto mas atento) do Tomané Camará e do Pepito, tudo funcionou às mil maravilhas. A tarefa não era fácil: no último dia, antes do nosso regresso a Bissau, o Domingos estava visivelmente cansado... Mais quinze dias, confidenciou-me ele, e baixava... à psiquiatria (que deve ser um supremo luxo na Guiné-Bissau!)" (...)

(***) Vd. poste de 19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

Guiné 63/74 - P5822: Estórias avulsas (27): Do Cumeré a Canquelifá (João Adelino Aves Miranda, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/73)




1. O nosso Camarada João Adelino Aves Miranda, 1° Cabo Radiotelegrafista, da 1ª Cia do BCAÇ 4610/73 - Cumeré, Canquelifá, Nhamate -, 1974, actualmente emigrado na Alemanha, enviou-nos, com data de 15 de Fevereiro de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,

A minha curta passagem pela Guiné está de alguma forma preenchida de recordações, na sua maioria boas.


Do Cumeré a Canquelifá


No entanto, recordo-me, por exemplo, de que quando acabei o IAO no Cumeré e me tive de juntar ao resto da Cia, creio que em Piche, eu e outros camaradas fomos enviados para o aeroporto e, quando lá chegámos, deparámos com um NorthAtlas a voltar, de uma viagem, para trás, com um problema técnico num dos motores.

Ouvimos dizer que ia ser resolvido o problema, e que, depois do avião levar ao seu destino os soldados que nele viajavam, regressaria para nos levar a nós.

Não queiram saber o desatino que foi entre a maioria da malta, ouvindo-se aqui e ali: “Eu não entro naquele avião nem morto”.

Outros chegaram à conclusão de que, se o aparelho fosse e viesse, seria sinal de que a avaria tinha sido bem reparada.

De facto a aeronave foi e veio, e levou-nos também ao nosso destino sem problemas.

Continuo na dúvida se realmente o destino do avião era Piche ou Nova Lamego, mas estou mais inclinado para a segunda hipótese.

Logo que chegamos, tínhamos à nossa espera uma coluna auto, na qual embarcamos, e vieram avisar-nos que, muito provavelmente, iríamos encontrar ao longo da picada elementos do PAIGC, mas que, em princípio, não haveria qualquer problema, já que nesta altura estávamos no pós 25 de Abril.

Por via das dúvidas acharam melhor seguirmos com a arma em pronta a fazer fogo.

De facto encontrámos alguns elementos do PAIGC, com uma cara muito séria a olhar para nós, o que me deixou muito pouco à vontade.

Enfim, chegámos a Canquelifá e fomos recebidos pelos velhinhos como verdadeiros VIPS, tivemos direito a “reportagens televisionadas pela RTP” e tudo (estão a imaginar aquelas câmaras de televisão feitas de caixas de papelão).

Depois prestaram-nos as “honras da casa”, mostrando-nos o aquartelamento e alguns buracos no chão da parada, feitos (segundo eles nos diziam) por mísseis. Como a guerra tinha acabado, não me assustei muito.

Eu pensava, até ter lido aqui no blogue que ouve tiroteio em algumas zonas da Guiné depois do 25 de Abril, que tinham cessado completamente as hostilidades na Guiné, e dizia-o, então, a toda a gente com quem conversava.

Puro engano meu, pelo que tenho vindo a constatar.

Assim, fiz a minha estadia de um mês e sete dias, se não me falha a memória, a dormir em cima de umas tábuas durante esse período, porque os velhinhos fizeram o “favor” de levar com eles os colchões do quartel.

Durante esse tempo recebíamos a visita de soldados do PAIGC, com certeza para estabelecer os trâmites da entrega do destacamento com o nosso Capitão.

Lamento não ter fotografias dessa entrega, nem qualquer outra foto de Canquelifá.


Bissau > Bissalanca > Junto do avião > Eu em pé, à esquerda, e, ao meu lado, o Sold radiotelegrafista Guimarães, o Cantineiro da Cia (cujo nome não recordo), o 1° Cabo Operador Cripto Rijo. Em baixo, o 1° Cabo Radiotelegrafista Dinis e a seu lado o Sold Radiotelegrafista Magalhães.

Um abraço,
João Miranda
1° Cabo Radiotelegrafista da 1ª Cia, BCAÇ 4610/73


Emblema e guião de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5821: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (9): A Presse Lusitana

1. Mensagem de Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 15 de Fevereiro de 2010:

Caros Editor e Co-Editores
Junto envio este texto que foi motivado pelas lembraças despoletadas pelos posts do Eduardo relativamente à folha informativa "Presse", que julgo que no 'meu tempo' se chamava 'Presse Lusitana'.
Duma forma ou doutra o texto aqui vai e espero que sirva para conhecerem melhor outras actividades, para além daquelas que eram comuns à maioria dos 'operacionais'.

Um abraço
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA (9)

A “PRESSE LUSITANA”


Os relativamente recentes artigos do Belarmino Sardinha sobre as Transmissões e as funções e trabalhos dos camaradas TSF e agora os artigos do Eduardo Campos com a apresentação de vários exemplares da “Presse” (Serviço noticioso para as Forças Armadas da Guiné – Notícias captadas da radiodifusão pelas Transmissões), fizeram recordar-me alguns aspectos da minha actividade nesse âmbito.

Devo dizer que não tinha comigo nenhum exemplar do meu tempo, nem de outro, coisa que agora já está resolvida por que o Eduardo fez questão de me presentear com três originais do ‘tempo dele’, o que muito me sensibilizou e que aproveito para agradecer publicamente.

Como entretanto podem ter reparado, o sub-título refere-se à “Presse Lusitana” que é como a minha memória recorda a designação do ‘meu tempo’, e não simplesmente “Presse”, como aparece nos documentos apresentados no Blogue. Posso estar a ser atraiçoado pelo desgaste do tempo mas era assim que me lembrava, por isso assim o indico.

Aliás, já em várias situações se tem verificado que as coisas foram mudando ao longo do tempo, na ocupação do terreno, na extensão territorial do conflito, nas diversas operações, etc., e também até já me apercebi, por textos colocados aqui no Blogue, que relativamente às Transmissões também houve modificações, adaptações a novas realidades operacionais.

No caso particular destas ‘folhas de notícias’, julgo recordar-me que houve camaradas de tempos anteriores ao meu que se referiram a procedimentos que não coincidiam com o que foi a minha prática, por isso nada melhor que relatar como foi comigo e deixar que cada qual faça as suas adaptações…

Não sei, não me lembro, onde é que a “Presse” era efectivamente produzida, ou seja, batida a ‘stencil’ e depois policopiada e distribuída, seria certamente ‘algures’ nas instalações do Agrupamento de Transmissões, mas tenho a certeza que, no meu tempo, a “Presse” era sempre composta por três grandes grupos de notícias, a saber: notícias do País, notícias do Desporto e a parte restante, para ocupar o espaço, notícias do Estrangeiro.

As duas primeiras partes, ‘do País’ e ‘do Desporto’ calculo que eram recebidas no Centro de Mensagens e era um serviço recebido ‘via Marconi’. Talvez também no início as notícias do estrangeiro viessem por ali, não sei, mas a partir do momento em que no Centro de Escuta desenvolvemos a parte de captação das diversas agências noticiosas ficámos com a tarefa de coligir umas quantas que depois um estafeta recolhia ao fim do dia. Afinal, havendo ‘fonte’ para as notícias do estrangeiro, sempre se poupavam tempos de ligação à Marconi, que não eram grátis…

Não me lembro de haver qualquer indicação de orientação ou critério para a recolha dessas notícias, pelo que quando estávamos de serviço íamos, a nosso bel-prazer, fazendo uma ou outra tradução (a maioria das captações estava em francês, mas também havia em inglês, espanhol e italiano) e quando o estafeta passava, levava o que havia.

Como era uma actividade que eu gostava, pois assim estava a par do que se passava no Mundo e muito mais informado que qualquer vulgar cidadão português, acabei por chamar a mim o grosso das traduções, já que o fazia durante qualquer que fosse o turno, e mesmo durante a folga deixei muitas vezes o ‘serviço’ adiantado bastando aos camaradas seguintes escrever mais umas poucas, se se dessem a esse trabalho.

Dum modo geral não havia muito espaço para as ‘notícias do estrangeiro’ pelo que fosse qual fosse o conteúdo das notícias por nós coligidas no Centro de Escuta, não se corria muito risco da passagem de qualquer notícia menos ‘normal’.

No entanto, como sempre acontece nestas coisas, há sempre um dia em que não é assim!

Como já vos dei a entender, era minha convicção de que aquele território não era continuidade física de Portugal, que entendia como natural que aqueles povos aspirassem a uma independência, tal como os povos da península Ibérica se opuseram ao ocupante romano, tal como as tribos cristãs empreenderam a reconquista desse território peninsular, tal como os Portugueses se opuseram aos leoneses, aos castelhanos, aos franceses e até aos ‘aliados’ ingleses, pelo que, por simples acto de me rebelar contra a circunstância de estar ali, às vezes, pelo meio de notícias perfeitamente inócuas, metia um conjunto de notícias que não seriam as mais simpáticas para a orientação política do governo português e ao seu esforço de guerra, como por exemplo fazendo referência às decisões da ONU e a desastres crescentes ocorridos no Vietnam, tais como bombardeamentos, por engano, das próprias tropas americanas.

Ora então acontece que o maior problema ocorreu num domingo de 72, já não me recordo exactamente quando, mas que teve a ver com as eleições americanas que entretanto decorriam entre o republicano Nixon e o democrata MacGovern.

Tínhamos notícias de várias proveniências, como algumas vezes já referi, da APS (Argel Press Service), MAP (Magreb Árabe Press), MENA (Midle East News Agency), Reuter, France Press, etc., e também de algumas que íamos pesquisando, entre as quais a ‘Prensa Latina’ de Cuba.

Ora, nesse dia em causa, as comunicações da Marconi falharam pelo que o pessoal da “Presse” (ou Presse Lusitana) apenas tinha a tal folha proveniente da Escuta com as “notícias do estrangeiro” pelo que tudo o que eu tinha traduzido foi impresso e distribuído.

Entre outras coisas apareceu esta ‘pérola’, traduzida da ‘Prensa Latina’ que se referia, naturalmente, de modo pouco abonatório para o presidente Nixon, candidato republicano à reeleição. Dizia assim: “Mientras el Presidente Nixon se enfrascava en la Convención de Miami, el candidato MacGovern proseguía su campanha ….” . A minha tradução foi à letra, apenas coloquei o enfrascava entre aspas e foi assim que saiu.

No dia seguinte, após o Comando da Companhia se ter inteirado de que o redactor das ‘notícias do estrangeiro’ era eu, mandou-me chamar e procurou que lhe desse boas razões para aquilo ter saído assim. Foi o que fiz. O Sr. Comandante ‘compreendeu’ mas sempre foi avisando que talvez lhe fosse difícil defender a situação ‘mais acima’, porque aquilo tinha dado celeuma e havia ‘algumas vozes’ a propor inquérito com vista a possível punição.

Não aconteceu nada e o meu Comandante nunca me chegou a dizer como as coisas evoluíram, e eu também não lhe perguntei, no entanto, mais tarde, fiquei conhecedor da sua participação e envolvimento no “Movimento dos Capitães”, o que me fez perceber melhor porque é que ele ‘compreendeu’ as minhas ‘manhosas’ explicações.

Caros camaradas, desculpem estas reflexões sobre “memórias de tempos de guerra” que, espero, possam contribuir para o vosso melhor conhecimento das actividades ocorridas noutros locais, noutras funções e, como já uma vez escrevi, podem crer que a guerra se travou em muitas frentes… e de muitas maneiras! Até para criar condições para acabar com ela!

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

Centro de Escuta
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

Guiné 63/74 - P5820: Notas de leitura (67): O Disfarce, de Álvaro Guerra - Mais ou menos tão divertido como o teu exílio (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Confesso que “O Disfarce” me impressionou pela sinceridade deste combatente que nos legou imagens tão impressivas, de grande recorte literário.

Um abraço do
Mário





Mais ou menos tão divertido como o teu exílio

Beja Santos

Álvaro Guerra (1936 – 2002) combateu na Guiné entre 1961 e 1963, regressa com um ferimento e em 1964 vai estudar na École des Hautes Études da Sorbonne. Volta a Portugal em 1969, ano em que edita O Disfarce, o seu segundo livro. Os Mastins (1967), O Disfarce, A Lebre (1970) e Memória (1971) são obras povoadas de recordações de um combatente que procura ajustar-se, por vezes com imensa dificuldade, a uma sociedade que se revela indiferente à guerra de África. Estes livros trazem já a marca de água de um talentoso escritor, Álvaro Guerra, a par de Armor Pires Mota, é nome cimeiro da literatura da guerra, sobretudo nos anos 60.

O Disfarce” corresponde a um tempo de desencanto, regista uma incapacidade de apaziguar a experiência da guerra junto de quem preferiu o exílio e vive na comodidade de Paris. Admito que no seu todo seja uma obra menor no conjunto da vasta biografia de Álvaro de Guerra, mas possui parágrafos belíssimos, irrecusáveis em qualquer antologia onde se pretendam registar os nomes perduráveis dos escritores combatentes. Logo o primeiro parágrafo de “O Disfarce”: “De narizes no ar, farejavam o céu, o motor do avião muito perto, muito perto, mesmo sobre as suas cabeças mas para além do nevoeiro cerrado, um grande insecto matreiro, invisível, irritantemente só nos ouvidos dos homens de narizes no ar, as armas na mão, empoleirados nos camiões estacionados no extremo da pista rodeada de pequenos grupos, para cada um sua metralhadora, as ligaduras brancas dos feridos quase brilhando entre os verdes e castanhos dos homens deitados nas macas, sentados nos jeeps, ou de pé, narizes no ar como os outros, ou ansiosos ou ciumentos, mas todos impacientes e, enfim, uma sombra aérea sobre a pista, por um momento, logo dissolvida naquele nevoeiro tão denso que molhava e, dentro dele, o bezoiro de prata que zumbia cada vez mais fraco, mais longe, até definitivamente se extinguir”.

São memórias sobrepostas, trata-se de alguém que vê e revê, que percorre Paris e outros locais europeus, que procura dar explicações sobre uma guerra onde esteve e que poucos querem ter notícia. O escritor transforma-se em agente figurante que em locais aprazíveis pode ouvir metralhadoras a crepitar, movimentos espasmódicos da culatra no seu vaivém. Por vezes alguém lhe pergunta se o braço lhe dói, o figurante responde que não e acrescenta “O que me está a doer é o sangue que lá perdi, a terra que ele não ensopou”. Toda esta narrativa é uma viagem, de amores precários, de tensões num mundo exilados, de recordações entre Bissau e Cacine, de uma mulher amada que se chama Maria e de que no final da obra nos apercebemos que é amor perdido. O figurante percorre as ruas de Paris e lembra-se de Safi, uma companheira acidental. Ele procura Jorge, o amigo que partiu para o exílio. Quando se reencontram, Jorge pergunta porque é que ele também não se exilou. E o figurante responde que não está arrependido: “Talvez eu não quisesse perder a oportunidade de ver e estar numa guerra ainda que sabendo estar nela no lado pior, longe de casa e a fazer horas para regressar”. Jorge responde-lhe que afinal fora divertido e o personagem desfecha-lhe sem uma hesitação: “Mais ou menos tão divertido como o teu exílio”.

Não nos interessa se esta Paris é autobiográfica, a cidade e o seu cosmopolitismo que não podem interpretar os barulhos do avião, o tumulto dos combates os gritos dos feridos. O figurante disfarça a vida que foi roubada ou postergada. Mas a memória está pujante de vida. A caminho da Holanda, ele recorda uma aldeia queimada, é um registo que não nos pode deixar indiferentes:

“Havia um cheiro adocicado, enjoativo, quando se aproximaram do que fora Lenguel, aldeia balanta, sinais de chamas recentes, devastação, e o povo escondido no mato. Tropeçou na carcaça calcinada de um boi cujos ossos amarelados se desconjuntaram, no meio de cinzas e destroços, pilões lambidos pelo fogo, cabaças enegrecidas, restos de primitivas enxadas de madeira, os gigantescos potes com as grandes bocas negras como os rombos enormes nos seus ventres vazios, e as paredes em ruína das cubatas sem tecto. Extensa, a bolanha estendia-se diante da aldeia queimada, a bolanha empapada, escaldante, febril, onde o arroz apodrecia na ponta dos calos amarelos a tombarem para a água”. O figurante pensa que a sua guerra é interminável, os seus pensamentos deslizam por uma corrediça tão extensa que chega à infância, à casa do tio João, mas cedo se embebe naquela floresta virgem, naquela terra de formigas pretas e de uma infinita saudade de gente que dá pelos nomes de Amadu, Gibril, Bubacar ou Malã.

O jovem escritor Álvaro Guerra revela-se pródigo em imagens que nos transferem sons, nos chegam aos sentidos, como se todo o corpo da guerra se tivesse colado à fisiologia. Por exemplo: “Com as pontas dos nervosos dedos, ele acariciou a granada suspensa de cobre da cavilha presa ao botão do casaco camuflado, sobre o peito, sobre o coração, a baloiçar a cada passo, de modo que ele podia permanentemente concentrar a atenção nesse levíssimo ruído das pancadas certas da granada contra o peito, ruído abafado, interior, só perceptível exteriormente pelo roçar do metal no botão da algibeira”. São imagens, convenhamos, de alguém na casa dos vinte anos que ainda não pôde filtrar tudo aquilo que é obra do tempo. Veja-se esta outra imagem de uma emboscada, vai ficar para todo o sempre: “Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de ar vergastado quedas e ramos partidos e pragas e explosões e gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre e nas mãos que disse “Ai, mãe!” e morreu”. Um sofrimento para toda a vida, porque são poucos os momentos desta tragédia, são instantes que vão ressoar no ser humano, por natureza mnésico, fraterno, comovido pela dor que pôde aliviar ou a morte que pôde obliterar. Esta a sinceridade de um tempo de disfarce, alguém que anda por Paris e veste uma mortalha, num mundo onde não se pedem explicações, parece que só os exilados é que têm direito à dor. Contido, o jovem escritor Álvaro Guerra deixou-nos esta memória discreta, efabulando uma mágoa tão poderosa que os seus amigos exilados até pensavam que era menor que a deles.

É pena falar-se tão pouco de Álvaro Guerra e do que ele escreveu sobre a Guiné onde se feriu, onde combateu, e cujo combate ele não escondeu.
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Nota de CV:

Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5817: Notas de leitura (66): Armor Pires Mota (8): A Cubana Que Dançava Flamenco - O amor é mais forte do que a guerra (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5819: O 6º aniversário do nosso Blogue (3): No início de Maio de 2006, tínhamos 100 tertulianos, 735 postes publicados e 3 mil páginas visitadas por mês (Luís Graça)


Ao fim de 735 postes (usávamos então uma numeração romana...), no início de Maio de 2006, o nosso blogue , I Série, tinha cerca de 100 membros, registados, e uma média de 3 mil páginas visitadas por mês... (No final de Maio de 2006, atingiríamos um total de 26500).

Hoje estamos nos 400 amigos e camaradas da Guiné, já publicámos mais de 5800 postes e estamos prestes a atinjir o milhão e meio de páginas visitadas...

São são uns pequenos elementos para a petite histoire do nosso blogue, cujo primeiro poste remonta a 23 de Abril de 2004 (*)... Daqui de Braga, com um chicoração para todos/as... LG

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Reprodução do poste de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXII: Entrevista a Fernando Pereira, correspondente do Expresso, sobre o Projecto Guileje

(i) Mensagem de Fernando Pereira, correspondente do semanário 'Expresso' na Guiné-Bissau:


Caro senhor: Sou Fernando Pereira, jornalista guineense, correspondente do semanário Expresso na Guiné. Estou a preparar um artigo sobre o projecto Guiledje, da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento. Nesse âmbito, queria saber o seguinte: (i) Que tipo de apoio o senhor e os participantes do blogue-fora-nada pensam atribuir ao projecto ? (ii) O que os atrai nesta iniciativa ? (iii) Já agora, quantas pessoas participam no fórum do vosso blogue ? (iv) Acha que a reconstituição do quartel de Guiledje e o lançamento de um turismo ecológico poderiam atrair visitas portuguesas a essas paragens ?

Se for possivel, agradecia uma resposta, o mais urgente possivel, a estas questões.
Cordialmente
FPereira

(ii) Respondi-lhe na volta do correio. O jornalista foi simpático, agradecendo-me de imediato "a atenção, assim como as interessantes evocações e opiniões".

P - Tipo de apoio que o senhor e os participantes do Blogue-fora-nada pensam atribuir ao projecto ?

Em cerca de 735 posts (ou textos) publicados no blogue, no espaço de um ano, uns 10% foram dedicados ou fazem referência a Guileje (ou Guiledje, segundo a grafia da Guiné-Bissau).


Guileje, o aquartelamento de Guileje, o corredor da morte de Guileje, a Mata do Cantanhez, mas também Madina do Boé, Gandembel e Gandamael, entre outros locais no sul, têm ainda hoje, passados mais de trinta anos sobre o fim da guerra colonial, uma enorme carga mítica, simbólica e afectiva para os ex-combatentes portugueses na Guiné...


A retirada de Madina do Boé saldou-se por um trágico acidente que vitimou quase meia centena de camaradas nossos; mas Guileje é considerado o único aquartelamento da Guiné que fomos compelidos a abandonar por razões militares e psicológicas: a pressão da guerrilha do PAIGC era de tal ordem que a situação se tornou insustentável...


Tanto para as tropas portugueses como para o PAIGC é um momento, se não de viragem (militar), pelo menos carregado de simbolismo...


Eu estive destacado, na zona leste, em Bambadinca, numa companhia africana, a CCAÇ 12, de Junho de 1969 a Fevereiro de 1971. Não conheci Guileje nem Gandambel. Mas no meu tempo contavam-se muitas estórias (falsas ou verdadeiras) sobre a degradação da situação militar no sul, e em especial em Guileje, Gadamael, Gandembel. Por exemplo, era extremamente popular a letra do Hino de Gandembel. Cantarolávamos, para espantar os nossos medos, exorcizar os nossos fantasmas e denunciar o absurdo daquela guerra a que estava condenada toda a juventude de um país, as quadras do Hino de Gandembel:


Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

(...) Temos por v'zinhos Balana ,
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três te protege
(...)


Numa primeira fase, apoiamos o projecto Guileje, da AD - Acção para o Desenvolvimento, dando-o a conhecer, divulgando-o na Internet, recolhendo documentação sobre a presença militar portuguesa em Guileje (incluindo testemunhos de militares que por lá passaram)...

P - O que os atrai nesta iniciativa ?

Citando o líder da AD e autor da ideia, Pepito, o projecto Guiledje representa o triunfo da vida sobre a morte, da paz sobre a guerra, da memória colectiva sobre o esquecimento e o branqueamento da história...


É importantíssimo que a Guiné-Bissau recolha e preserve os testemunhos dos guerrilheiros do PAIG que lutaram pela independência, e que pertencem a uma geração que está a desaparecer... É importante igualmente ouvir o depoimento dos ex-combatentes e das autoridades militares portuguesas...

P - Quantas pessoas participam no forum do vosso blogue ?

Temos já uma lista de cem membros com endereços por e-mail...Por outro lado, o nosso blogue tem uma média de 3 mil visitas por mês... Há um crescente número de pessoas que o visitam, dentro e fora do país...

P - Acha que a reconstituição do quartel de Guiledje e o lançamento de um turismo ecológico poderiam atrair visitas portuguesas a essas paragens ?

Há uma crescente interesse pela Guiné-Bissau, por parte de uma geração como a minha que fez a guerra colonial e que hoje tem disponibilidade, vontade e poder de compra para ir à Guiné, juntar o útil ao agradável: fazer a sua romagem de saudade, exorcizar os seus fantasmas, visitar os lugares e as gentes que estão na sua memória, reconciliar-se com o passado, evocar os seus mortos, fazer o luto, conhecer o país de hoje, contribuir também para o seu desenvolvimento através de projectos integrados e inovadores como me parece ser este, liderado pelo Pepito e a AD...

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes desta série:

14 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5815: O 6.º aniversário do nosso Blogue (2): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Joaquim Mexia Alves)

13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5807: O 6.º aniversário do nosso Blogue (1): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Jorge Félix / Carlos Vinhal)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5818: História da CCAÇ 2679 (33): Vesti toalha de praia para ir falar com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 9 de Fevereiro de 2010:

Meu Amigo Carlos,
Certamente já tinhas saudades minhas, face à delonga desde o último episódio da CCaç 2679. É para te ires habituando, porque vou fazer um interregno de um mês e meio numa deslocação a Bissau.
Pronto, agora que já sabes, faz favor de engatilhar no teclado e dar à estampa mais um trecho cá-do-je.

Para ti e para a Tabanca,
Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (33)

Toalha de praia


O calor fazia-se sentir intensamente, o que provocava bastante incomodidade e calanzeira. Não havia alternativa. Não havia ar condicionado, nem as ventoínhas funcionavam por falta de operacionalidade do gerador. O pessoal procurava sombras protectoras para minorar o efeito da canícula que quase nos deixava em prostração. Deitei-me sobre a cama no quarto da velha casa colonial onde tinha alojamento. Peguei num livro, mas não lhe dei atenção, pelo que o deixei escorregar ao lado da almofada. Entreguei-me a pensamentos de sublimação, imaginando-me com quem eu gostava, algures num local tranquilo e confortável, finalmente livre dos condicionamentos da guerra.

Quase adormecera. Deixara o tempo passar naquela modorra, quando vieram chamar-me, que o Trapinhos queria falar-me.

Agradeci, e respondi que já lá iria.

Levantei-me e olhei em redor. Aos pés da cama, o camuflado, calça e camisa, que se apresentava como indumentária pesada e transpirada da saída matinal. Imprópria para aquele abafo. Peguei na toalha, com côres transversais próprias dos modelas de praia, cingia-a ao corpo, como se de mini-saia se tratasse, e dei-lhe um nó de fixação nas pontas superiores. De baixo da cama retirei os chinelos de enfiar nos dedos, a coisa mais barata e comum para calçar sem cerimónia.

Com um ar de macaco mal disfarçado, fiz-me ao caminho, atravessei a parada solenizada pelo pau onde flutuava a bandeira nacional, directo ao edificio da secretaria, por onde se entrava para aceder ao gabinete do capitão. Ao entrar naquele ambiente de trabalho burocrático, dei as boas-tardes e os olhares incidiram para mim. Além dos sargentos e do escrita, os habituais titulares do lugar, também se encontravam à conversa três ou quatro furriéis. Entre eles o Marino que, velhaco, querendo sublinhar a minha apresentação, atirou-me com a pergunta jocosa:

- Então, vais para o Tamariz?

O pessoal sorria, como se vissem um simpático extra-terrestre.

- Não pá, eu faço tudo ao contrário. Primeiro vou encontrar-me com o agente de viagens, respondi.

Ainda houve uns dichotes sobre a minha maluqueira, mas não dei qualquer importância e apresentei-me ao Trapinhos. Este, que frequentemente andava de tronco nú, aproveitou as larachas relatadas para me chamar a atenção, ao que lhe perguntei com ar indignado, se me chamara para ver a indumentária, se não, que fosse direito ao assunto. De tal forma surtiu efeito, que, sem mais palavras, dirigiu-se ao mapa que servia de quadro de operações, deslocou a cortina que o tapava, e apresentou-me o programa para o dia seguinte: uma qualquer patrulha de combate, por uns quaisquer traços de diferentes côres e intensidades, representativos de linhas de água, rios, trilhos e picadas, sobre o fundo verde claro que significava a planura da savana.

Não me perguntou pelo pessoal, nem sobre o equipamento, nem sobre o que quer que fosse, porque não lhe interessava minimamente, nem queria saber disso para nada, como se nada lhe dissesse respeito. Por mim, como não esperava nada daquele senhor, e a patrulha era para se fazer nas melhores condições possíveis para o pelotão, coisa que me dizia a mim respeito, só lhe perguntei se era para vir almoçar. Respondeu-me que não, era para levantarmos as rações de combate. Todavia, logo a seguir, possivelmente lembrado do escasso stock de rações, disse-me para avisar, tanto o cozinheiro, como o padeiro, para providenciarem o pequeno-almoço bem cedo, e que regressaríamos pelas treze horas para a refeição.

Porreiro, uma passeata de cinco horitas, dava para chegar pelo meio-dia, e o resto do tempo ficava por nossa conta. Ainda lhe perguntei se era necessário falar com o Marino e o Vitor, para providenciarem acompanhamento de transmissões e enfermeiro, e respondeu que sim, eu que falasse com eles. Fiz um sinal de que tinha compreendido, recolhi a carta com o desenho do percurso, e ala!

Em seguida fui à arrecadação do material, onde tinha deixado a arma ao cuidado do Mário. Ali trabalhavam dois excelentes militares, sempre disponíveis, a quem eu costumava pedir que me embelezassem a canhota. Antes do jantar, pedi a um ou outro Foxtrot deambulantes, para avisarem o pessoal, que o pequeno-almoço seria às cinco, e a saída antes das seis, sem ração, o que era uma boa notícia.


A propósito de Brecht

Quando cheguei ao quarto deparei com o seguinte cenário: o Lopes sentado na berma da cama, ao fundo, onde havia uma penumbra permanente; o Jorge, em chinelos, completamente à pai-Adão, circulava com a mão esquerda a afagar os testículos, enquanto com a direita segurava um livro e falava em jeitos declamatórios. Eram os dois furriéis artilheiros que com o alferes Mendes, prestavam dedicação aos obuses. À sessão cultural também assistia o Abreu.
Transpus o umbral da porta, e o Jorge chamou-me a atenção para o poema que reiniciaria a ler. E era assim:

Caio a dormir de cansado
Quando a fome aperta.
Ouço-os gritar-me aos ouvidos:
"Alemanha, desperta!"

E vi muitos a marchar
Pra o Terceiro Reich - diziam.
Eu nada tinha a perder:
Fui para onde os outros iam.

E, quando eu marchava, marchava
O Pança-Gorda a meu lado.
Grito eu: "Pão e trabalho!"
"Trabalho e pão!" é o seu brado.

O chefe tem botas altas,
Eu cá vou de pés molhados.
E ambos os dois marchamos
No mesmo passo "irmanados".

Quero eu ir para a esquerda,
Bradam: "Direita volver!"
E deixei-me comandar,
Seguia cego, sem ver.

Para qualquer terceiro Reich
Os famintos lá marchavam;
A seu lado os bem-comidos,
Todos marchavam, marchavam.

E um revolver me deram.
Ordem: "Fogo ao inimigo!"
E o que era amigo deles
Era irmão meu, meu amigo.

Sei hoje que é meu irmão
E o que nos une é a fome;
E aquele com quem eu marcho
"Inimigo" é o seu nome.

E o meu irmão morre agora,
Eu mesmo lhe dei um tiro,
E ao vencê-lo sei bem
Que sobre mim mesmo atiro.


- Porreiro, refere mesmo os nossos sentimentos, não achas?

- Acho, respondi.

- É a mesma merda em todo o lado. Convencem-nos que é o dever, mas não passamos de peões ao serviço de poderosos, acrescentou ele.

- Pois eu também me sinto lixado, mas ainda não me deram a volta à cabeça. Eu sei que as relações humanas têm muito que evoluir no aspecto da solidariedade e do respeito.

- E eu estou-me cagando para quem me mendou para aqui, gritou o Calvo, que do outro lado da parede ouvia a conversa.

Fora a leitura de Brecht, um livro do Lopes, que suscitara a indignação. Fora um pequeno estímulo, e logo nos associámos à perplexidade do autor perante o poder. Por vezes a discussão ou a abordagem de assuntos políticos dominava as atenções. Normalmente, transmitiam estados de espírito, sem outras reflexões de carácter sistematizado ou ideológico. Aliás, ideologicamente andávamos muito longe dos conhecimentos teóricos, e pouco sabíamos acerca de ideologias políticas. Mas não ficávamos calados, e havia um sentimento de incompreensão relativamente ao sacrifício e aos riscos a que estávamos sujeitos.

O Aquino então declamava:

Lágrima,
Sorriso,
Cair.


A isto acrescentei numa alusão aos diferentes escalões de poder:

Com a mão apanhar,
No bolso meter,
Pra mais depressa encher.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5614: História da CCAÇ 2679 (32): Reflexões sobre Tabassi e o mau relacionamento com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)