quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12739: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (11): SOS, procuram-se os "Zorbas" Gualberto Rodrigues, Mário Triunfante Martins e José Augusto Barata Cardoso

Crachá da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68). Divisa,: "Os Homens Não Morrem"



1. Mensagem de Mário Gaspar,com data de ontem


Camaradas e Amigos


Vai mais um pedido!... APAREÇAM "ZORBAS"!

O Blogue espera-os.
Um abraço

Mário Vitorino Gaspar
ex Furriel Miliciano de Artilharia
Minas e Armadilhas
G3, e outras Armas

2 SOS, Zorbas!

- Em 14JAN67 - Alferes Miliciano Júlio César Sousa Moreira substituiu o

Alferes Miliciano Gualberto Rodrigues;

- Em 28MAI67 - Alferes Miliciano Mário Triunfante Martins substituiu o

Alferes Miliciano António Alfredo Matos Soares Póvoa;

- Em 30JUL67 - Alferes Miliciano Deolindo Ribeiro Abrantes da Silva substituiu o

Alferes Miliciano Mário Triunfante Martins;

- Em 28NOV67 - Furriel Miliciano José Augusto Barata Cardoso substituiu o

Furriel Miliciano Vítor José Correia Pestana e

- Em 07MAI68 - Furriel Miliciano Manuel Simões Casinhas substituiu o

2.º Sargento António Martins Reis Dores.


SOS, Procuram-se os ZORBAS:

- ex Alferes Miliciano Gualberto Rodrigues;

- ex Alferes Miliciano Mário Triunfante Martins e

- ex Furriel Miliciano José Augusto Barata Cardoso.


E toda a Companhia de Artilharia 1659.
Apareçam no Blogue

______________


Nota do editor:

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12738: In Memoriam (178): Carlos Schwarz da Silva (1949-2014)... Pepito ca mori! (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cananima > Na margem direita do Rio Cacine > 2 de março de 2008, visita ao sul do país no âmbito da Simpósio Internacional de  Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008), O Pepito, ladeado à sua direita pelo Zé Teixeira e à sua esquerda pelo Domingos Fonseca. Para os seus amigos e colaboradores, ele era uma verdadeira "força da natureza"...

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados.

Pepito, em Guileje, 1/3/2008
1. Amigos e camaradas: 

Recebi, ao fim da manhã, a notícia, brutal, inesperada, da morte do nosso Pepito! (*)...

Ele tinha vindo de Bissau há duas semanas, numa viagem penosa de 12 horas, pela Air Maroc, e foi de imediato internado no Hospital Curry Cabral, em Lisboa (**). A suspeita era de hepatite A, mas o diagnóstico médico era mais grave...

O último email que tínhamos trocado,  com ele ainda em Bissau, tinha data de 30 de janeiro último. Ele confirmou-nos que vinha cá, a Portugal, para estar nos anos da mãe, como sempre o fazia, religiosamente, todos os anos (***).  Aproveitava o ensejo para fazer sua "revisão médica" anual. Mas desta vez, a mensagem trazia maus augúrios:

Amigo Luís:

Vou de facto para o aniversário da minha mãe (dia 14), mas sobretudo para varrer os hospitais e ficar de papo para o ar. É que estou com uma crise de hepatite que me dá dores e me tem cansado 24 horas por dia. Os médicos que consultei exigiram todos: REPOUSO. Para mim isso não é tratamento, mas castigo. Como tenho culpas no cartório, sou obrigado a obedecer. (...)


Amigos e camaradas, o som do bombolom, com a trágica notícia,  já chegou à Guiné-Bissau e a Cabo Verde!... O Pepito morreu!... O Pepito morreu!... O Pepito morreu!... Do chão felupe ao chão nalu, passando pelo bairro do Quelélé um dor imensa varre a Guiné-Bissau, terra que o viu nascer, em 1949, e sobretudo que o viu regressar, a ele, à Isabel e à pequena Cristina, em 1975, para ajudar a construir um país novo!...

É uma perda imensa, irreparável, para todos nós, guineenses, cabo-verdianos e portugueses, seus amigos e admiradores!... Mais do que a obra, que há-de ser continuada por parte da vasta equipa da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento, de que ele foi co-fundador e era o diretor executivo, é o seu exemplo, a sua lucidez, a sua boa disposição, a bonomia, a sua capacidade de organização e de trabalho, a sua força da natureza, o seu entusiasmo, o seu visceral otimismo, o seu carisma, a sua frontalidade, a sua coragem (física e moral)... que nos vão fazer falta, e de que já estamos a sentir saudade...

Há seres humanos que são insubstituíveis, nas equipas, organizações e comunidades a que pertencem... A morte, precoce, do Pepito vai-nos deixar um tremendo vazio, difícil de preencher... É por isso que nos recusamos a admitir que o Pepito nos deixou para sempre. E voltamos a tocar o bombolom, em todas as direções:

Pepito ca mori!... Pepito ca mori!... Pepito cá mori!

Carlos Schwarz da Silva, nascido em Bissau, em 1949, era filho de  Augusto Silva (1912-1983),  cabo-verdiano da ilha da Brava, advogado, jurista, estudioso dos usos e costumes dos fulas, mandingas e nalus da Guiné, poeta, contista,  e de Clara Schwarz da Silva, que acabou de fazer, no dia catorze, 99 anos, sendo a decana da nossa Tabanca Grande.

Para a Dona Clara Schwarz (que ainda não teve conhecimento da notícia, que vai ser devastadora para ela!), para a nossa querida Isabel [Levy Ribeiro], para os filhos do casal, a Cristina (Pepas), o Ivan e a Catarina, para as suas netas Sara e Clara,  para os seus irmãos João e Henrique (Iko) e demais familiares, vai o nosso alfabravo (ABraço) apertado, fraterno e solidário na dor.

Mando também, em meu nome pessoal e da minha família (Alice, Joana e João, que estão consternados com a perda de um grande amigo e de um excecional ser humano), bem como da nossa Tabanca Grande, os meus profundos votos de pesar aos nossos amigos da AD, cujo trabalho merece todo o nosso respeito e admiração. Eu sei quanta esta terrível notícia os deixa inconsoláveis!

A funesta notícia deixa, também, os seus muitos amigos portugueses acabrunhados, infelizes inconsoláveis... O Pepito era um dos nossos grã-tabanqueiros da primeira hora, desde a I Série.

De qualquer modo, a melhor homenagem que podemos fazer, a quente, em cima da notícia deste terrível acontecimento, é reproduzir de novo, aqui, no nosso bogue, este texto autobiográfico admirável que é "A sombra do pau torto", que ele escreveu e nós publicámos em julho de 2008.

Até sempre, Pepito!


PS - Acabamos de saber, através da família, que o funeral é amanhã, às 16h00, no Cemitério de Barcarena, Oeiras (Rua Elias Garcia, EM 1351) [Vd. aqui localização no mapa]. O corpo será velado apenas pela família em cerimónia privada.


2. Texto autobiográfico > A sombra do pau torto  (****)
por Carlos Schwarz, 'Pepito'

Julho de  2008

Aos meus Pais,
Clara Schwarz e Artur Augusto
que me transmitiram
a necessidade de recomeçar sempre,
ensinando-me a aprender
com a História da nossa Família.


[Negritos da responsabilidade do editor, LG]

2.1. A EUFORIA DOS PRIMEIROS ANOS


Às 2 horas da tarde daquele dia 26 de Maio de 1975, aterrávamos em Bissau. A Isabel e eu, pais da nossa ainda única filha, Cristina (**), aproveitávamos a boleia do último avião militar português que se deslocava ao jovem país independente para transportar, de regresso à ex-metrópole colonial, o resto de quase 500 anos de presença portuguesa na costa da Guiné.

A alegria de voltar a pisar solo africano fez esquecer o calor tórrido e húmido desta época do ano. A Guiné-Bissau declarara em Setembro de 1973 a sua independência, ainda em plena luta de guerrilha, e agora, menos de 2 anos depois era o País de todas as esperanças.

De um amontoado de casernas militares espalhadas por todo o lado, havia que construir um país de paz e progresso, com a mesma coragem com que um reduzido grupo de 5 homens havia iniciado e liderado, 20 anos antes, uma epopeia libertadora do colonialismo, em que poucos na altura acreditavam.

Como agrónomos entrámos no Ministério da Agricultura, na altura designado por Comissariado. Passámos os primeiros dias sentados num gabinete à espera que a direcção do Ministério decidisse onde iríamos ser “colocados” e o que iríamos fazer. Com o início da campanha agrícola, começou a distribuição de sementes de arroz e mancarra aos agricultores que tinham regressado ao país depois da guerra, vindos dos países vizinhos, e que precisavam delas para a produção alimentar.

Ofereci-me para essa missão e é assim que após uma primeira paragem em Bafatá para distribuir sementes de arroz, carrego 20 toneladas de mancarra com destino a Catió, sul da Guiné-Bissau. Ao chegar a Bambadinca, o condutor do camião redobra de cuidados e atenções. É que, na mesma estrada que ligava a Xitole e depois a Saltinho, tinham “saltado” poucos dias antes, 2 camiões dos “Armazéns do Povo” que se desviaram ligeiramente das bermas da estrada e pisado uma mina.


De olhos esbugalhados, não era só o condutor a dirigir o camião. Também eu o conduzia, sem pestanejar, mas sem pedal nem volante. Era o meu baptismo de “fogo” nas estradas da Guiné-Bissau que continuaram durante alguns anos a ameaçar todos os que a utilizavam, sem que isso impedisse os técnicos de abdicarem das suas missões patrióticas.

Nessa altura fazíamos tudo e ainda nos sobrava tempo. À noite dava aulas de Geografia no Liceu Nacional Kwame N’Kruma para os trabalhadores, enquanto de manhã participava na campanha de protecção da cultura do arroz invadida por uma praga de brocas que estava a pôr a produção alimentar em causa, para voltar à noite a integrar as numerosas equipas de jovens que procuravam neutralizar a invasão de grilos.

É nessa altura que conheço Djibril Aw, agrónomo maliano e especialista de arroz na ADRAO, que marcou decisivamente a minha concepção e atitude profissional. Com um profundo conhecimento da orizicultura africana, uma argumentação técnica clara e convicta, um notável sentido organizativo e uma prática baseada na percepção que os agricultores tinham da sua actividade e das condições em que trabalhavam, não centrada nos “gabinetes de trabalho” [onde], afirmava, se devia passar apenas o mínimo tempo necessário.

Foi ele que me conduziu à paixão pela orizicultura e seus sistemas de cultura, pela história do arroz africano, pela pesquisa e experimentação varietal, pelo estudo e compreensão do conhecimento ancestral dos povos guineenses que o praticam. Ensinou-me a exigência de nós, técnicos, sermos pragmáticos e concretos nas propostas que fazemos aos agricultores. Fez-me ver a importância e necessidade de conhecer as experiências e avanços dos países da zona, como forma de evitar perdas de tempo e meios, sobretudo para um país tão carente como a Guiné-Bissau. Visitei e conheci o Ghana, Mali, Guiné-Conakry, Nigéria, Burkina Faso, Senegal, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa.

Levou-me a perceber que nas nossas circunstâncias, o essencial não é inventar, mas que a obra do artista se vê através da capacidade que ele tem em adaptar no seu país, as ideias e soluções que outros encontraram ou estão a desenvolver. O que aprendi com Djibril Aw foi determinante para a criação do primeiro departamento técnico do então Comissariado, o DEPA.

Percebendo que se ficasse à espera de directivas dos dirigentes, nunca sairia do ciclo de actividades avulsas e ocasionais prevalecentes, decidi iniciar em Dezembro de 1975, um programa de ensaios de arroz, a partir de 15 variedades fornecidas pela ADRAO. Negociei com a Central Eléctrica de Bissau, a título de empréstimo, um pequeno terreno e água desperdiçada. Era a primeira vez na minha vida que semeava qualquer coisa. Como técnico recém-formado estava em pânico, oscilando entre a falta de confiança no resultado e a expectativa de vir a ser um sucesso.

Já com a totalidade das variedades em plena floração, convido o Sub-Comissário para visitar o campo de ensaios.

À entrada do campo uma tabuleta dizia DEPA. Ele não olhou para o ensaio, fixou-se na tabuleta.
- O que é isto? - perguntou.
- É o Departamento de Experimentação e Produção de Arroz que criámos - respondi eu.
- E quem é que deu autorização para este nome?
- Escolha então você um outro - concluí eu.

Foi a partir daí que me comecei a aperceber do crime que havia sido cometido com a formação de quadros nos países do bloco soviético. Não do ponto de vista técnico, mas da cultura de passividade que “inculcava” ou “impunha” aos seus formandos. Saía-se de lá com o espírito de obediência passiva aos chefes, esperando sempre “directivas” vindas do alto sem nunca se estimular a capacidade criadora e inventiva dos técnicos, sob pena da mesma poder ser considerada um atentado à autoridade dos chefes e no interesse em substituí-los.

Os primeiros anos foram vividos neste clima, tendo mesmo um grupo destes técnicos, acabado por escrever um opúsculo intitulado “Os bem e os mal servidos do Ministério da Agricultura”. Aqui os técnicos eram divididos entre “socialistas”, os que estudaram nos países de Leste, e “capitalistas”, os que vinham de Lisboa.

Sucede que logo a seguir ao DEPA outros departamentos foram sendo criados, todos eles por técnicos que estudaram em Portugal e que traziam consigo a prática do “desenrascanso”, isto é, de não ficarem à espera que lhes dessem condições, mas serem eles próprios a criá-las. Esta postura havia sido adquirida nos movimentos estudantis e nas associações de estudantes geridas por recursos engendrados e inventados pela capacidade criadora dos líderes associativos para contrabalançar as perseguições políticas e o não-apoio do governo fascista português. Isto poderá ajudar a explicar a razão pela qual, apesar de ter havido tantos quadros técnicos superiores e médios, à quase totalidade vinda do Leste não tivesse correspondido um avanço dos programas de desenvolvimento agrícola.

É assim que, sem consultar nenhum dirigente superior do Ministério, não por querer pôr em causa a sua autoridade, mas apenas para evitar os bloqueios burocráticos que certamente seriam colocados, o DEPA cria em Janeiro de 1977 o Centro Nacional de Experimentação e Multiplicação de Arroz de Contuboel, junto ao rio Geba no Leste do País, e a Estação Orizícola de Caboxanque, em Maio de 1977, no Sul.

Era a primeira vez na história da Guiné-Bissau que se criavam dois centros de pesquisa vocacionados, numa primeira fase para a cultura de arroz e numa segunda para as outras espécies alimentares (feijão, mandioca, milho, sorgo, milheto, etc.).

Com base no que a equipa inicial do DEPA, o Alcalá Barbosa, o Malam Sadjo, o Joaquim Dias N’Djai e o Manlafi Mané, viu em Richard-Toll, no delta do rio Senegal, deu-se início pela primeira vez no país, em Janeiro de 77, à cultura do arroz na época seca. Das 300 famílias de agricultores que se inscreveram, apenas 12 iniciaram a preparação do terreno, a lavoura e a sementeira em viveiro. Todos os dias levantavam-se cedo e iam para os campos trabalhar. Atravessavam o centro da vila de Contuboel, ouvindo bocas de outros agricultores que não acreditavam que “o arroz se pudesse desenvolver sem receber água de cima”, isto é, sem ser das chuvas. Foram postas à prova as suas convicções ao ouvirem dizer diariamente que “estavam a trabalhar para nada” e “cansavam-se para acabar com o cérebro feito em pó”; era um teste às suas convicções e resistência.

Em Maio inicia-se a colheita. Uma excelente produção. Muito arroz num momento em que ninguém já tinha reservas de arroz em casa. Então os agricultores das 12 famílias passaram a sentar-se no mercado central, silenciosos, com os balaios (cestas) de arroz novo à frente, a ver os anteriormente descrentes, a correrem aflitos para as lojas a tentar comprar este cereal, base da sua alimentação. O olhar irónico e feliz dos que haviam sido postos à prova era uma verdadeira vitória que contagiou todos em especial nas tabancas à volta. Em 1990 eram já 12.500 pessoas envolvidas na dupla produção de arroz ao longo da bacia do rio Geba.


Tabanca de São Martinho do Porto > 21 de agosto de 2010 > Além de saber bem receber os seus amigos (na casa de verão da família, na praia de São Martinho do Porto onde passava férias, em agosto; ou em Bissau, na sua casa  do bairro do Quelelé), o Pepito tinha também uma  paixão clubística que o ligava, umbilicalmente, a Portugal: era uma adepto, afável, leal, constante, do SCP - Sporting Clube de Portugal... Nos bons e nos maus momentos, como de resto foi a sua vida de homem livre e de lutador de grandes causas.

Foto e legenda: © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados.


2.2. A POLÍTICA DA DESILUSÃO

Amílcar Cabral, a nossa maior referência política, parecia adivinhar os efeitos que Bissau iria provocar nas convicções dos dirigentes políticos do Partido que havia liderado a luta pela independência, o PAIGC. Analisou como ninguém as falsas partidas das independências concedidas pelas potências colonizadoras europeias às suas colónias, nos anos 60. Seguiu e apercebeu-se em directo das atribulações de Sekou Turé na construção de um país que resvalou rapidamente para o autoritarismo, a repressão popular e as divisões étnicas.

Porque conhecia de avanço os perigos e escolhas com que a Guiné-Bissau se iria confrontar depois da libertação total do país e porque sentia que a guerra estava militarmente ganha, Amílcar Cabral dedicou os seus últimos anos de vida à procura de um modelo de organização de Estado que minimizasse os perigos que decorreriam de um sistema organizativo baseado no modelo autoritário, fosse ele colonial ou pós-independente.

Percebeu, antes de todos os outros, que Bissau poderia ser o princípio do fim dos valores de dedicação à causa popular, à solidariedade ideológica e a uma postura de vida baseada em princípios de dignidade e respeito. Chegou a equacionar a possibilidade de cada Ministério ser colocado em cada uma das oito capitais de região, como forma de promover um desenvolvimento descentralizado.

Não teve tempo para desenvolver este conceito. Foi assassinado em 1973 a mando de Spínola, com a conivência expressa ou por omissão de muitos outros sectores, entre os quais militantes do PAIGC e políticos da Guiné-Conakry que não toleravam a sua independência de pensamento e acção. O que é certo é que, ao entrar em Bissau, os líderes e quadros do PAIGC decidiram-se pelo repouso do guerreiro, não resistindo ao charme fatal de uma forma de vida cantada pelas sereias do tempo perdido.

Quando chego a Bissau em 1975, trazia comigo uma carta de apresentação de militante do PAIGC da célula de Lisboa, assinada pelo seu responsável, o caboverdiano Santana. Guardei-a sempre comigo. Apenas via nela um certificado da minha militância e não um atestado para ascender às instâncias superiores do Partido. Perdi-a em 1998 no conflito político-militar.

Assim comecei a militar na Juventude do Partido, a JAAC, onde conheci o melhor dirigente político que alguma vez me dirigiu: João da Costa. Homem de uma cultura fora do vulgar, sempre adoptou uma postura analítica e crítica em relação ao seu próprio partido, à acção dos combatentes da liberdade da pátria, à interpretação da História.

Com virtudes humanas excepcionais e grande capacidade de liderança, com ele aprendi muito do que sei sobre a criação de equipas de trabalho, a sua motivação, a democracia de ser sempre o último a falar e a tomar posições permitindo a cada um colocar as suas perguntas e exprimir as suas ideias. Intransigente na salvaguarda da dignidade e na disciplina, cultivava um relacionamento humano em que a amizade assumia sempre um lugar de primazia.

Recusando-se sempre a “vender a alma ao diabo”, é perseguido sistematicamente nos anos 80 e 90, com falsas acusações de tentativa de golpes de estado, defendido por um advogado vendido ao poder, acaba por morrer durante o conflito político militar de 1998-99. Continua a servir-me de referência de postura e coerência política.

A minha maior desilusão partidária acontece com o Golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. Aos 30 anos de idade, da ideia que fazia do PAIGC, não cabia a resolução interna de problemas políticos de forma violenta. O debate devia sempre prevalecer. Neste caso, era o Primeiro Ministro [, João Bernardo 'Nino' Vieira, ] que dava um golpe ao Presidente [Luís Cabral,] que o havia escolhido, sem nunca o contestar abertamente ou nas instâncias do Partido.

Acabei por perceber mais tarde que, na realidade, o que estava em causa não eram divergências políticas, mas o assalto ao poder de uma ala retrógrada que havia perdido essa mesma batalha, sete anos antes, no assassinato de Amílcar Cabral. Incapaz de aceitar estes processos, dois meses mais tarde peço a demissão de dirigente da Juventude do Partido e abandono a vida partidária para me concentrar unicamente na luta política.

Outro momento duro de “engolir” veio alguns anos depois quando o Comandante Paulo Correia, combatente da luta pela independência é por duas vezes seguidas falsamente acusado de tentativa de golpe de estado, acabando miseravelmente assassinado por quem foi seu companheiro de armas durante longos anos.

Conheci Paulo Correia quando ele, depois de ter sido acusado pela primeira vez de tentativa de golpe de estado, é retirado de Ministro da Defesa e passa a Ministro da Agricultura.

Um dia, estando a passar férias em Lisboa, sou informado por um técnico do DEPA que um director do Ministério tinha desencadeado um ataque em força contra o DEPA, acusando-o de ser um “Estado dentro do Estado”, de não obedecer a ninguém e que tinha chegado a hora de pôr tudo na ordem. Regresso a Bissau e profundamente exaltado entro no gabinete do Ministro Paulo Correia a quem exponho de um só fôlego o meu protesto e revolta. Ouviu-me com atenção e toda a calma deste mundo.

Deixou-me acabar e não respondeu. Falou-me então durante uma hora, com todos os detalhes, sobre a forma como falsamente o envolveram na inventona de golpe de estado de que fora acusado. No fim olha para mim e diz: “já notaste que, depois disto tudo, estou aqui calmo e tranquilo?”. Acabara de me dar a resposta à minha revolta. Na realidade qual era a gravidade do meu caso, quando comparado com o dele, esse sim uma monstruosidade pelas consequências que viria a ter.

Saí com ele em visitas ao estrangeiro e habituei-me a apreciá-lo muito. Sempre o considerei como o melhor Ministro da Agricultura que tive, curiosamente o único que, por não ser agrónomo, fazia questão de ouvir todos antes de tirar as suas conclusões. Acabou por sair dali directamente para as masmorras da polícia onde foi assassinado conjuntamente com alguns outros combatentes pela independência.

Com o Golpe de 14 de Novembro de 1980 reintroduziu-se na história da Guiné a divisão étnica: no início a divisão era entre cabo-verdianos, apelidados de cavaleiros, e guineenses, chamados de cavalos. Esquecendo-se os seus promotores que uma vez estabelecida a primeira divisão étnica, outras se lhe seguiriam, surge a estigmatização dos balantas, tanto mística com o fenómeno iang-iang, como política com o caso Paulo Correia, prosseguindo com a divisão entre muçulmanos e animistas, e mais recentemente entre os naturais da cidade e os da tabanca. Tudo isto em função da conveniência e interesse da estratégia do líder político da ocasião.

Kumba Ialá, que viria a ser mais tarde Presidente, revelou-se neste domínio o maior, indo buscar algumas das carecterísticas menos ricas da idiossincrasia balanta, unificou-os à volta de conceitos demagógicos e populistas, em contraponto aos tempos idos de 'Nino' Vieira em que os membros do governo pouco variavam, limitando-se os seus titulares a mudarem de cadeira. Nessa ocasião, lembro-me de um Ministro que, com três pastas num só ano, bateu o recorde olímpico nacional.

Já o antigo animista Kumba Ialá, travestido agora de muçulmano com a designação de Mohamed Ialá Embaló, introduziu pela primeira vez o conceito de acesso universal ao governo, isto é, passou a promover a entrada para o governo de todos os cidadãos que se julgassem capazes e predispostos a serem ministros. Analfabetos houve que aproveitaram a ocasião… A partir dos anos 2000 assistiu-se à mais louca gestão de um Estado, de que há memória. No fundo até durou pouco tempo… porque, entretanto, o Estado desapareceu!

Foi nesse período em que tudo valia, que um dia, deixaram “cair” perto do meu local de trabalho um bilhete anónimo que dizia: ”neste fim de semana vais sofrer um atentado para te matarem”. Entendi isso apenas como uma tentativa de intimidação. Todavia, às 3 horas da madrugada desse dia, três ninjas (polícia especial armada), acorrentavam o velho guarda da casa e iniciam a tentativa de demolição das janelas. Só a intervenção determinante do nosso vizinho, Nelson Dias, nos salvou, a mim e à Isabel, perante o completo desinteresse da polícia que se escusara a prestar socorro. Os assaltantes, esses, nunca foram punidos, embora saiba que a polícia os identificou.



Tabanca de São Martinho do Porto > 13 de agosto de 2011 > O Pepito folheando, sob o olhar atento da sua mãe, Clara Schwarz, o livro sobre a baía de São Martinho do Porto, que lhe ofereceu o seu vizinho (e tabanqueiro) JERO, obra da autoria de Maria Cândida Proença (ed lit) [A Baía de São Martinho do Porto. Aspectos geográficos e históricos.Lisboa, Colibri, 2005].  A casa da família Schwarz é uma das mais antigas de São Martinho do Porto, remontando aos anos 20/30 do século passado.

Foto e legenda: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados.

2.3. O DESENVOLVIMENTO NO SEU LABIRINTO

Em 1991, incluído num grupo de guineenses do qual faziam parte José Filipe Fonseca, Nelson Dias, Isabel Miranda, Roberto Quessangue e Rui Miranda, entre outros, criámos uma organização não-governamental, a Acção para o Desenvolvimento (AD), que pretendia promover uma ética de desenvolvimento local centrada no homem e não no crescimento económico. A AD surgia assim para dar continuidade e potenciar de forma mais aberta as actividades de vulgarização do DEPA.

Num país de cerca de um milhão e meio de almas, onde coabitam 32 etnias, cada uma delas com as suas próprias culturas, organização social e sistemas de produção específicos, é entusiasmante ir descobrindo as suas diferentes lógicas de desenvolvimento e ao mesmo tempo participar com elas na procura de novos caminhos para o seu progresso.

Ao longo do trabalho nas zonas rurais fui-me apercebendo do quão errados e inadaptados são os métodos de concepção de desenvolvimento baseados na introdução dos chamados pacotes tecnológicos ou da visão estanque da promoção por culturas sem a compreensão dos sistemas de produção. A fraca capacidade dos pequenos agricultores impede-os de aderir à série de medidas propostas pelo pacote, o qual exige muito maiores recursos financeiros do que dispõem, ao uso de novas tecnologias que ultrapassam os meios humanos sobretudo familiares, e à mudança radical nos sistemas de cultura e produção, que vêm subverter profundamente os métodos tradicionais, impedindo o pequeno agricultor de controlar e gerir o seu próprio sistema de produção.

Mais difícil e eficaz é aliar uma boa capacidade de observação dos problemas com que os agricultores se debatem, aos diálogos informais com eles e usando o feelling que os agentes de desenvolvimento devem cultivar. Isto ajuda a compreensão do problema prioritário que se coloca e a procura de uma solução técnica ou tecnológica que se adapta ao seu modo de vida e trabalho.

Ouvi a muitos, sobretudo vindos de fora, que o nosso papel, enquanto agrónomos, é o de satisfazer as solicitações dos agricultores, elevando estes à categoria de semi-deuses, que tudo sabem e a quem tudo deve ser concedido. Creio que nada de mais errado existe. A postura mais realista e consequente é aquela em que o relacionamento entre agricultor e técnico se faz com os olhos situados ao mesmo nível, reconhecendo ambos que só da valorização dos dois tipos de conhecimentos, os tradicionais e os mais modernos, poderá haver avanço e progresso, construindo uma parceria baseada no respeito e complementaridade.

Alguns diletantes das questões do desenvolvimento partem do pressuposto que os agricultores tudo sabem e que as tabancas são um mar calmo sem conflitos e contradições internas, que os técnicos vêm subverter e perturbar com modernices. Em 1963, meu pai, Artur Augusto da Silva, no seu texto Pequena viagem através de África, já se referia a este tipo de pessoas que, com uma visão falsa e deformada, mal aportam à Guiné-Bissau ou a África em geral, começam logo a perorar e a fazer afirmações definitivas de quem já tudo aprendeu e tudo sabe.

Contava ele que “… ainda há poucos anos corriam na África Ocidental Francesa, umas notas de mil francos onde se via, em atitude de herói cinematográfico, um europeu, de largo chapeleirão colonial, camisa folgada, calções curtos e umas imponentes botas altas, empunhando uma arma e, arrogantemente, pisando um leão morto. Podemos dizer: a verdade da imagem correspondia ao exíguo valor da nota”.

Assim tenho visto passar pela Guiné-Bissau autênticas romarias de especialistas, pomposa designação que alguns se dão a si próprios ou que certas organizações internacionais atribuem a estes turistas do desenvolvimento. Lembro-me de um, do Banco Mundial, que feliz como uma criança dizia: “Aqui na Guiné-Bissau, sinto-me como o Pai Natal a distribuir presentes, dou dinheiro aqui, mais alí…”. Outros arranjam subsídios vitalícios para “turistarem” pela Guiné fora, recolherem duas ou três declarações avulsas, incluírem seis ou sete da sua autoria que muito ajudam a sustentarem e comprovarem as suas teses de partida que de forma cientificamente desonesta nunca ousam pôr em causa. À segunda publicação são já considerados especialistas, o que lhes permite frequentar e pavonear-se em colóquios e conferências internacionais afirmando a sua pesporrência científica.

No domínio do desenvolvimento rural, perfilhei desde o início a escola francesa, baseada numa visão global do território de desenvolvimento, da inclusão camponesa na pesquisa rural e na procura e seguimento do agricultor “fora-do-tipo”, como inovador de uma solução para um problema técnico, económico ou social que atinge uma comunidade. O facto deste último utilizar um sistema diferente pode significar que ele esteja a procurar a solução para o problema da falta de água, ou da diminuição da mão-de-obra familiar disponível, ou da falta de recursos financeiros para manter a sua unidade agrícola.

Como exemplo de um caso destes, recordo-me de um agricultor que redescobriu um processo de rega gota-a-gota, usando para isso uma grande cabaça de um fruto silvestre, por baixo da qual fez dois pequenos furos por onde escoava lenta e regularmente um fio de água que regava as suas bananeiras. Tinha encontrado, sozinho, uma forma de economizar a pouca água de que dispunha e respondido à reduzida quantidade de mão-de-obra familiar que não tinha na sua exploração.

Já de sentido inverso, a introdução nas tabancas de pequenas unidades de descasque de arroz e que representaram uma autêntica revolução para as mulheres, resultou exclusivamente da capacidade dos técnicos em identificar uma tecnologia localmente desconhecida que viesse aligeirar o seu penoso esforço físico de pilar o arroz, ganhar cerca de duas a três horas diárias de tempo que as mulheres passaram a utilizar noutras actividades sociais e produtivas, e a promover o associativismo de tipo mais moderno a nível das comunidades. Com estas descascadoras, as mulheres passaram a assumir-se como pessoas livres, afirmando-se que agora também elas se tinham libertado do seu colonialista: o pilão.

Uma das maiores dificuldades com que nos deparamos actualmente nos processos de desenvolvimento, é a da tentativa dos financiadores do Norte em padronizar, à sua imagem e semelhança, consideradas como modelos exemplares e de reprodução local necessária, métodos de programação, de intervenção, de organização e de avaliação, como se o progresso da humanidade se fizesse com roupagem pronto-a-vestir, informatizada ou robotorizada, e não com abordagens específicas caso a caso. A mudança de atitude de algumas organizações parceiras parecem querer abandonar a antiga cumplicidade existente na defesa de políticas progressistas de luta pelas populações mais excluídas e no combate político por uma sociedade mais justa, progressiva e solidária, para se deixarem deslumbrar e seduzir pelos modelos de organização e prioridades administrativo-financeiras de tipo neoliberal.

Tem-se a ideia de que certas ONG do norte se perderam no caminho, deixaram de crer nas suas vocações e se docilizaram perante as suas fontes de financiamento, assumindo um mero papel de executores, bons e baratos, das suas políticas governamentais. Para digerir o purgante, algumas passam anos a reestruturarem-se em termos de finalidades e formas organizativas, alimentando o espírito com supostos desafios novos, e acabamos por ter a sensação que, para essas organizações o essencial é que nós funcionemos administrativamente bem, em vez da obtenção de resultados que melhorem as condições de vida das comunidades locais.

Já a nível interno, do próprio país, certas elites políticas e intelectuais persistem numa cultura de recusa da discussão das grandes opções de desenvolvimento, da melhor forma de acabar com a pobreza e dos novos caminhos a trilhar, para se concentrarem nas formas de atingir um poder que sabem efémero e para o qual utilizam todos os meios, mesmo que violentos.

Esta situação assume proporções dramáticas quando se avalia o seu impacto junto das comunidades locais que apreendem rapidamente os sinais dessa cultura de confronto e intolerância e dela se começam a apropriar, introduzindo nas suas práticas as lógicas e os vícios que elas consigo transportam, traduzidos no recurso frequente à violência no seio das famílias e das tabancas como forma de resolver os problemas e contradições ou o obscurantismo da caça a pessoas normais acusadas de bruxaria. Surgem então as tendências tribalistas, de violência gratuita e ignorância.

Pratica-se hoje uma “amnistia sem rosto” para encobrir crimes que se foram cometendo ao longo destes anos, sem identificar e julgar os seus autores, erigindo a impunidade como objectivo político e valor cultural. Como ninguém foi condenado ou se assume como culpado, esta amnistia acaba por cobrir todos e ninguém, tanto os crimes políticos como os de sangue. Os que amanhã vierem a cometer quaisquer actos ilícitos, reclamarão os mesmos direitos que os seus antecessores tiveram, porque “para crime igual, impunidade igual”.

Quando em 1991, o ministro da agricultura de serviço resolveu impunemente aboletar-se com património do Estado e transferir o meio de transporte da coordenadora da pesquisa agrária do DEPA para o seu filho menor poder deslocar-se à escola, isto perante a completa passividade do governo, decidi abandonar a administração pública. Revoltado, expliquei a todos os agricultores e comunidades rurais com quem trabalhava, os contornos da arbitrariedade e a irreversibilidade da minha atitude. É então em Quebo que um velho Homem Grande e amigo me escuta com toda a atenção e perante a minha exaltação diz: “Nota que criaste demasiadas expectativas em relação a quem era e sempre foi medíocre. Julgaste ver o que não existia. Não te esqueças que a sombra de um pau torto nunca pode ser uma linha direita.”

Começava aí para mim, mais uma vez, uma nova vida, onde continuei a procurar viver os desafios do meu tempo. Depois do combate ao fascismo e colonialismo em Portugal, a luta pela instauração da democracia na Guiné-Bissau, a procura de caminhos alternativos ao neoliberalismo para um desenvolvimento justo e solidário e a participação no combate internacional à globalização enquanto expressão de desigualdades, exclusão e pobreza.

Na AD, a luta de uma organização que quer ser “ela própria” e não uma agência de execução de projectos ou de promoção de modas e clichés, sejam eles o ambiente, o género, a luta contra a pobreza, os desafios do milénio, etc... Colocarmo-nos lado a lado com as organizações progressistas do mundo, que se assumem com desafios de mudança, de procura de justiça social e de solidariedade entre as pessoas, povos e nações, integrando estas acções num ambicioso processo político de envolvimento dos actores locais na procura de respostas democráticas aos desafios do seu próprio desenvolvimento, na identificação de novas formas de organização do Estado que substitua o esclerosado e anacrónico aparelho herdado do colonialismo e retomado por um centralismo democrático, em tudo semelhantes.

O desenvolvimento implica ousar trilhar caminhos novos porque, no dizer do poeta, ao andar-se por caminhos já abertos e conhecidos não se perde nenhuma guerra, mas também não se ganha nada. É gratificante ter-se sido contemporâneo de um grupo de excelentes quadros que contribuíram para o surgimento e sucesso das primeiras vinte e cinco rádios e três televisões comunitárias da Guiné-Bissau que representam hoje a vanguarda neste domínio nos países africanos de expressão portuguesa; para a criação de escolas de tipo novo, designadas de verificação ambiental (EVA) em que é introduzido o princípio da prestação de serviços da escola à comunidade, a capacitação dos professores em ecopedagogia e a sua apropriação pelas populações rurais; o surgimento das primeiras associação de moradores dos bairros populares de Bissau.

Provavelmente um dos segredos do sucesso reside na capacidade de vivermos no coração das comunidades locais, tendo com elas o nosso único compromisso, sabendo identificar os seus problemas e anseios e, com eles, criar dinâmicas de apropriação de processos em que vão crescendo e amadurecendo. Este êxito decorre muito da postura de respeito, simplicidade de procedimentos e forte espírito de missão cultivado de forma natural pelos técnicos.

Outro segredo, poderá ser o facto de a imagem de eficácia resultar da não hipoteca dos resultados a discussões infindáveis e estéreis sobre procedimentos, tão do agrado dos que estão habituados a fazer o desenvolvimento a partir de manuais e computadores, menosprezando a capacidade das comunidades locais em elaborar e conceber elas próprias os seus procedimentos de análise e decisão.



Guiné-Bissau > Bissau >  Bairro do Quelelé > 20 de dezembro de 2009>  Pepito, Isabel e a neta, filha da Cristina (Pepas)... Na festa de despedida do João Graça, médico e músico (que acabaca de passar duas semanas na Guiné-Bissau) e de celebração dos 37 anos de casados do... casal Silva...

Este lado mais intimista de um homem público mostra a sua faceta de pai dedicado e de avô babado... O casa tem 3 filhos e 2 netas, que por certo irão sempre honrar a memória e partilhar o melhor dos valores e do exemplo de vida do seu pai e avô. Foi ele próprio que escreveu, em julho de 2008: "Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer."

Foto:  © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legenda: LG]


2.4. RENASCER SEMPRE

Em 1948, um ano antes de eu nascer o meu pai regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e, onde tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.

Com a minha mãe Clara e meus irmãos Henrique e João volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.

Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.

No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.

Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha e logo a seguir com o Ivan nascido em 1975 e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.

Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer.
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Notas do autor:

AD - Acção para o Desenvolvimento, ONG guineense
ADRAO - Associação para o Desenvolvimento da Orizicultura na África Ocidental
DEPA - Departamento de Experimentação e Pesquisa Agrícola
Homem Grande - Sábio
Iang-iang- Movimento místico-religioso protagonizado por balantas
JAAC - Juventude Africana Amílcar Cabral
Mancarra - Amendoim
PAIGC - Partido Africano da Independência de Guiné e Cabo Verde
Tabanca - Aldeia
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Notas de L.G.:

(*) Último poste da série >  12 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12711: In Memoriam (177): Senhora Dona Maria da Graça (1922-2014), mãe do nosso editor Luís Graça

(**) Vd. poste de 8 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12695: (In)citações (61): Pepito, Clara, Isabel, estamos convosco! ...E fazemos votos para que o bom irã, acocorado no alto do poilão da nossa Tabanca Grande, ajude a dar força, ânimo e esperança à família Schwarz, nesta hora difícil (Luís Graça)

(***) 14 de fevereiro de 2014 >  Guiné 63/74 - P12715: Parabéns a você (691): Senhora Dona Clara Schwarz, Grã-Tabanqueira, mãe do nosso amigo Pepito, que a partir de hoje fica a um pequeno passo do seu centenário

(****) 31 de julho de  2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (12): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)31 DE JULHO DE 2008d. poste de 

Guiné 63/74 - P12737: Notas de leitura (565): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 3 de 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Não vale a pena chorar sobre o leite derramado.
Grande era a expetativa de encontrar documentação consistente para apreciar intervenções necessariamente úteis ou pertinentes de um conjunto de intervenientes de primeira água à volta da descolonização da Guiné.
A parte técnica deve ter corrido muito mal, são frequentes as intervenções truncadas ou impercetíveis, a simples mudança de uma bobine mutilava os depoimentos. E no entanto, Almeida Bruno, José Manuel Barroso, António Ramos, Nunes Barata e Bethencourt Rodrigues são figuras incontornáveis. É o que há, felizmente, nalguns casos ainda é possível procurar recuperar a memória histórica.
Seguir-se-á a última intervenção, Carlos Fabião.

Um abraço do
Mário


A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas* (3)

Beja Santos

As jornadas de trabalho promovidas pelos Estudos da Arrábida prosseguiram em 29 de Julho de 1997, o depoimento-base coube ao General José Manuel Bethecourt Rodrigues, Ministro do Exército entre 1968-1970, Comandante da Zona Militar Leste de Angola (1971-1973) e Governador e Comandante-Chefe da Guiné entre 1973 e 1974. Como já se tem vindo a alertar os confrades, existe o site (www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/guine.htm), propriedade do Instituto de Ciências Sociais onde se poderão consultar os diferentes textos e poder confirmar que existem notórias dificuldades em tomar o pulso às declarações dos diferentes intervenientes: cassetes inaudíveis, intervenções de difícil compreensão, frases truncadas, intervenções impercetíveis de que não foi possível a transcrição, etc. etc.

Bethencourt Rodrigues, para pesar nosso, fez uma intervenção contida, formal, nitidamente à defesa. Deu explicações sobre o seu itinerário curricular, a partir de 1952, contou como, em 1958, se começou a ter a perceção de que algo iria acontecer em África, fez comentários ao golpe ensaiado por Botelho Moniz e outros oficiais para apear Salazar, elogiou o General Silva Freire, falecido no desastre do Chitado, considerou-o o melhor general da sua geração e pela sua premonição em perceber que era através da quadrícula que se poderia restaurar a confiança junto das populações africanas. Recordou o seu trabalho ao lado de Costa Gomes e comentou detalhadamente a sua ação no Leste de Angola.

Quanto ao que se passou na Guiné, considerou que o V Congresso do Povo foi o acontecimento político-social mais marcante do seu mandato como Governador. Abriu o jogo quanto ao que seria a retração do dispositivo, terá sido a primeira e única vez que explicou o que seria a retirada de inúmeros destacamentos e povoações: “Planeava converter as 225 guarnições em oitenta e tal. Mas já não tive tempo”. E confessou-se: “Reformado aos 55 anos, dediquei-me ao estudo. Pesquisei, li, meditei. E sabe a que conclusão cheguei? Que o país nunca teve um problema de defesa nacional em África. A tropa podia estar farta, mas obedecia”. Sempre muito cuidadoso, a certa altura deixa escapar um outro desabafo: que Spínola era muito facioso, para ele quem não tivesse andado no Colégio Militar ou não fosse Cavalaria era menos que zero.
E lamentavelmente é o que se possui sobre a intervenção de Bethencourt Rodrigues.

Em 1 de Agosto reaparece José Manuel Barroso e depõe o General João de Almeida Bruno, Ajudante de Campo do General Spínola e Comandante do Batalhão de Comandos Africanos. Barroso, sobrinho de Mário Soares, começa por referir o que tinham sido as relações entre Spínola e Soares antes do 25 de Abril. Barroso fora mensageiro entre Soares e Spínola, Soares enviara-lhe o livro “Portugal Amordaçado” com dedicatória, o General discordava substancialmente do conteúdo do livro, nomeadamente a visão sobre o Ultramar. Soares procurou encontrar-se com Spínola no Senegal, com mediação de Senghor, só que o assassinato de Amílcar Cabral tudo alterou. Foi este o pretexto para que a assistência e intervenientes logo regressassem ao tema do assassinato de Cabral. Barroso lembra-se de ter visto o inspetor Fragoso Allas a increpar: “Estúpidos, estes gajos de Lisboa são todos uns estúpidos, isto não se faz”. Spínola estava igualmente contristado, dizia repetidamente que o assassinato de Cabral iria criar ainda mais problemas no diálogo com o PAIGC. Mais adiante, Barroso referiu igualmente que no final de 1973 ou início de 1974 era convicção de Spínola de que a operação do assassinato podia ter tido origem em Lisboa, posição que irá corrigir mais tarde, atribuindo-a exclusivamente às questões internas do PAIGC.

Veio à baila o tema da politização dos Oficiais que se encontravam na Guiné, sobretudo a partir do momento em que passou a haver reuniões onde o derrube do regime era referido com todas as letras, e apreciou-se até que ponto a cultura política de certos Oficiais Milicianos terá sido determinante para um estado de espírito de golpe de Estado, independentemente do que se passara em Lisboa em 25 de Abril. A conversa foi novamente reconduzida para a guerra da Guiné e Almeida Bruno discreteou sobre a sorte que coube ao PAIGC com os primeiros abates de aviões: o Tenente-Coronel Brito, Comandante de Grupo da Força Aérea, figura central dos pilotos, foi abatido como na semana seguinte foi abatido o seu sucessor, Mantovani. Descreveu a sua ação e a dos Comandos Africanos durante o cerco de Guidage com a operação a Cumbamori, cuja base, afirmou, foi totalmente destruída.

Aos poucos, a conversa voltou a deslizar para fora do eixo principal, passou-se a especular sobre o comportamento de Spínola enquanto foi Presidente da República, qual a sua ideologia, como se deixou isolar, que aliança estabeleceu com Palma Carlos e Sá Carneiro, como a Comissão Coordenadora do MFA o foi encostando às tábuas. Barroso, no meio daquela diatribe, ainda tentou regressar ao quadro ideológico dos Oficiais ao tempo da Guiné de Spínola e depois próximo do 25 de Abril, teceu considerações que teriam sido úteis para a discussão, que não houve. Voltando à personalidade de Spínola, Almeida Bruno desentendeu-se com o antigo Governador da Guiné e criticou os erros políticos cometidos do 11 de Março em diante, Spínola por não estar na ribalta, não tinha uma visão pessoal do poder, era ambicioso e vaidoso.


Ciências Sociais em África, alguns projetos de investigação

Editado pelo Conselho para o Desenvolvimento da Investigação Económica e Social em África (CODESRIA), este livro foi editado em Dakar de 1992, é um levantamento de pesquisas bibliográficas que procuram identificar áreas-chave da investigação. O economista angolano João Gonçalves debruçou-se sobre as ciências sociais em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Destacou o trabalho do INEP – Instituto Nacional de Estudo e Pesquisa, reconheceu o papel motor do seu primeiro diretor, Carlos Lopes. O INEP tem tido uma relevante prestação em trabalhos sociológicos e antropológicos, com especial referência para a revista Soronda. E adiantou os seguintes elementos:
Diana Lima Handem apresenta os trabalhos mais consistentes com dois livros: um em português, enquanto coordenadora do seminário A Guiné-Bissau perante o ano 2000, e o outro em francês, sobre o poder no seio dos Balanta-Brassa.
Carlos Cardoso, o segundo diretor, também estuda os balantas, e Raul Fernandes, com o seu trabalho sobre os Bijagós, têm teses em preparação. Por várias vezes a revista Soronda publicou textos seus, assim como de Rui Ribeiro e Faustino Mbali, que prepara um mestrado sobre a problemática Estado-campesinato.

No domínio da economia, Eduardo Fernandes e Bernardino Cardoso estão na origem de textos que deverão ser considerados como pontos de partida para uma investigação mais aprofundada, ilustrada pela criação no INEP de um grupo de trabalho pluridisciplinar dedicado ao estudo do ajustamento estrutural.

Por outro lado, o CODESRIA participou por duas vezes na edição de trabalhos efetuados no quadro do INEP e sobre a economia política da transição na Guiné-Bissau.
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Notas do editor

(*) Vd.Poste anterior da série de 10 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12705: Notas de leitura (561): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 2 de 4 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12730: Notas de leitura (564): "Murmúrios do vento", da autoria do capitão Valdemar Aveiro, 3º livro de uma trilogia sobre a epopeia da pesca do bacalhau, que chegou a ser alternativa à guerra colonial (Prefácio de José António Paradela, arq) (Parte II)

Guiné 63/74 - P12736: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte I): Faz hoje 45 anos que partimos no T/T Timor... Numa manhã fria de terça feira de Carnaval. Partida inesquecível, dramática... Gritos de despedida e lenços a acenar...



CART 2479 (futura CART 11)  (1969/70) > > Jantar-convívio dos furrieis milicianos e sargentos em Espinho, dias antes do embarque , que será em 18 de fevereiro de 1969, no T/T Timor. O Valdemar Queiroz está ao centro, todo aperaltado, de gravata e casaco de xadrez...



Ordem de serviço 274/RPA 3/ 22Nov68  (Excerto) Nomeação do fur mil 02086066 José V[aldemar] R Q[ueiroz] Silva para o CTIG, integrado na CART 2479 / BART 2866...



T/T Timor... Navio, misto (carga e passageiros), de 2 hélices,  construído em 1950, em Inglaterra (e abatido em 1974), com o comprimento de 131, 48 m; arqueação bruta de 7,656 mil toneladas;: velocidade normal de 14,5 nós; tripulação: 120 elementos; lojamentos para 4 em classe de luxo, 60 em primeira classe, 25 em terceira e 298 em terceira suplementar, num total de 387 passageiros... Armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa (Fonte: Navios Mercantes Portugueses > Timor)




A bordo do T/T Timor > Fevereiro de 1969 >CART 2479 (1969/70) >  Da esquerda para a direita, os fur mil Pechinca, Valdemar Queiroz   e Abílio Duarte



T/T Timor > Viagem Lisboa-Bissau > De 19 a 26 de fevereiro de 1969 > Rádio, leitor e gravador, de marca Bigston ("Bigston FM/AM Radio Cassette Tape Recorder"), comprado a bordo... Um pequeno luxo, para a época...



Guiné > Bissau > Estádio Sarmento Rodrigues > 26 de fevereiro de 1969 > CART 2479  (1969/70) > Desfile dos futuros Lacraus... O Valdemara Queiroz está assinalado com uma seta...



Guiné > Bissau > Finais de fevereiro ou princípios de março de 1969 > CART 2479  (1969/70) > O Queiroz na avenida principal, tendo ao fundo a catedral de Bissau.



Guiné > Bissau > Finais de fevereiro ou princípios de março de 1969 > CART 2479 (1969/70) > O Queiroz na Solmar


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: L.G.]



1. Texto e fotos enviadas, em 9 do corrente, pelo Valdemar Queiroz, nosso novo tabanqueiro, nº  648  [, foto atual à esquerda]



Partida, chegada e os primeiros meses na Guiné (Parte I)


Inesquecível. Dramático. Gritos, principalmente das mulheres, no Cais de Alcântara, antes e depois de ouvido o Hino Nacional, com o afastamento do ‘Timor’. Gritos de despedida e lenços a acenar aos que partiam e nós a acenar aos que ficavam, no cais, aos gritos, e o Renato Monteiro sempre a acenar com um lenço vermelho à namorada, até à barra do Tejo, com Lisboa ao longe, numa manhã fria de terça-feira de Carnaval (18 de fevereiro de 1969).

Inesquecível. Indesejável situação tão dramática, para os que ficavam e para aqueles jovens que partiam para a guerra na Guiné. (Infelizmente continuou o mesmo espectáculo por mais uns anos).

E lá fomos, com paragem, por umas horas, na barra (já não vamos?), devido a avaria, seguindo para a Madeira, já com grandes enjoos e desejosos de lá chegar.

Chegamos à Madeira, de madrugada, ainda com as ruas iluminadas, que vista do mar poucos conhecem, ficando ao largo a ver o ‘presépio’ e a curar os enjôos da viagem, sem desembarcar.

Continuamos viagem, agora com todo o ‘comércio’ em exposição, até então escondido, que deu para comprar telefonias, gravadores, máquinas fotográficas, etc., a jogar à lerpa, a fazer exercícios e simulacros, a ver peixes-voadores e, à noite, deitados no tombadilho, de barriga para o ar, a ver o céu estrelado, passando os dias de enjôos até aparecerem os pilotos de barra, muito pretos e a falar (crioulo?) sem se perceber o que diziam, e o Alferes Pina Cabral a dizer-me 'Queiroz, agora é que chegamos à Guiné'.

Chegamos à Guiné. Terra vermelha. Bissau, sem colinas, céu cinzento, calor pesado, mosquitos e crianças a pedir ‘parte um peso’, (crianças que nós passamos a chamar jubis, mas jubi em crioulo quer dizer ‘olha’, ‘estás a ver’, ‘repara’, - bu ka na jubi riba / sem olhar para cima -, do verbo djubi = ver), tropa por tudo o que é sítio, com as camisas suadas, a dizerem-nos ‘salta, periquito’, ‘periquito, vai pró mato’, mas também muita gente à civil,  europeus e naturais, muito pretos,  e nós desejosos de uma cerveja fresca, fomos encaminhados para umas tendas em Brá, em que alguns tiveram os primeiros encontros com lacraus e todos com um discurso empolgante de Spínola que nos visitou.

Passamos uns dias em Bissau com muito calor, do que não estávamos habituados. Desfile no Estádio Sarmento Rodrigues, com mais um discurso empolgante do Spínola. Passeios pela cidade. Tardes na esplanada da Solmar a beber umas cervejolas 2M (MacMahon) ou uns whiskies com água Perrier, que era mais cara que o whisky, acompanhado com mancarra vendida, pelas bajudas, a meio peso, a observarmos os abutres em cima do telhado do mercado e a ‘deitar abaixo’ umas travessas de ostras, na esplanada do Nacional. 

Ouvimos falar de ataques, emboscadas, minas, na '5ª. REP’ (Esplanada do Bento,  da Amura) e também ouvimos rebentamentos, à noite, num ataque a Tite, no outro lado do estuário do Geba, mesmo em frente a Bissau. Ouvimos a guerra.

Depois, fomos para o mato. Subimos de LDG o rio Geba, com armamento, viaturas e outro material da nossa CART 2479. Rio acima,  sempre a mesma paisagem, sem se avistar povoações, desembarcando no Xime. 

O Xime, zona de guerra, que parecia uma terra de cowboys, só visto no cinema, com uns casebres velhos e esburacados (de ataques?), ruas de terra poeirenta e cães escanzelados cheios de moscas, com os tropas em cabelo, comprido e grandes patilhas, alguns sem camisa, só em calções e chinelos, com uma cor bronze-amarelada, agarrados às pretas, alguns com os camuflados cortados às tirinhas estilo Bufallo Bill, e sem se notar ninguém a comandar. Grande choque para todos nós. [A unidade de quadrícula do Xime era então a CART 1746,  Bissorã, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69, comandada pelo nosso querido cap mil e grã-tabanqueiro António Vaz] [LG].

Seguimos em coluna na estrada, de terra batida, vermelha, que tinha ‘embrulhado’ há dias, aparecendo-nos a milícia, com lenços vermelhos atados ao ombro, a fazerem a nossa segurança e que já tinham feito a picagem da estrada (mais tarde seriam os nossos soldados da CART 11 e da CCAÇ 12).

Árvores esburacadas por bazucadas, cápsulas de balas pelo chão, deram uma amostra de guerra. Com muito calor e a água a esgotar no cantil atravessamos a bolanha passando, ao longe, por Amedalai, tabanca em autodefesa, cercada de arame farpado e, depois, atravessamos por uma ponte cheia de ninhos de andorinhas, chegando a Bambadinca [, sede do BCAÇ 2852, 1968/70; a ponte só poderia ser a do Rio Udunduma] [LG].

Por Bambadinca, localidade também à beira do rio e de terra vermelha, com tropa e população e bem arrumada, passamos quase sem parar, entrando na estrada alcatroada, com descidas e subidas para o planalto de Bafatá, agora todos nas viaturas e sem segurança.

Vimos Bafatá lá em baixo (…que bonita é Bafatá!!!) e continuamos, na estrada alcatroada, todos nas viaturas seguindo para Contuboel, com os abutres a vigiarem-nos do alto do céu. 

Saímos do alcatrão e viramos para uma estrada de terra batida, atravessando uma ponte sobre o rio Geba. Entramos na estrada para Contuboel, com grandes árvores floridas, de cor azul-grená e bem cheirosas (jacarandás?) e vimos grandes construções de terra seca, ninhos de formigas baga-baga, e alguns macacos-cães a darem-nos as boas vindas.

Chegamos a Contuboel, situada no interior, leste da Guiné. Ruas de terra batida, umas casas de rés de chão e uma grande tabanca com muitas árvores estavam à nossa espera. Na rua principal, um cartaz pregado a uma árvore, a anunciar um filme a exibir nessa semana descontraí-nos à chegada e uma placa colocada num cruzamento indicava QUARTEL. É neste local, com clima mais ameno, que vamos ficar uns meses.

 (Continua)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Rua principal de Contuboel...

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados
_______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12726: Tabanca Grande (428): Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Os Lacraus (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70), grã-tabanqueiro nº 648

Guiné 63/74 - P12735: Manuscrito(s) (Luís Graça) (21): Que fazes aqui, Amílcar, / que já te mataram, Cabral ? / E de que traições podias falar, / se fosses vivo, tu, Osvaldo ? / E tu, Vieira ?





Guiné > Bissau > Quartel-General > O velho forte da Amura > Entrada principal > Foto nº 17/199 do álbum Guiné, disponível na página do Facebook, do João Martins.


Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. (Edição: L.G.) 



A velha Amura dos tugas
por Luís Graça


A velha Amura dos tugas,
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
num mar de belugas,
foi rampa de lançamento de lançados.
Dizem que aqui nasceu a Bissau colonial.
De linhas tortas,
as ruas direitas da capital.

Saúdo os ilhéus,
figuras de museu de cera,
de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo,
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito,
de peito feito
ao fogo do canhangulo.
Mais os seus soldadinhos de chumbo,
que eram uma ternura:
em linha, 

em formatura,
nas suas fardas multicolores, coloniais,
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria e à Rainha.
Aqui como em toda a parte,
onde o Império tinha engenho e arte.

Ah!, a velha Amura, 

inútil baluarte,
com os seus canhões
de bronze, incandescente...
Casamata, prisão,
dormitório, agora panteão,
nacional,
coberto de poilões.

Eram onze os soldadinhos,
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contei-os pelos dedos da mão.

Que fazes aqui, Amílcar,
que já te mataram, Cabral ?
E de que traições podias falar,
se fosses vivo, tu, Osvaldo ?
E tu, Vieira ?

E quanto a ti, Titina,
que incendiavas paixões
pelo Óio ?
Que fazes também aqui,
jazida entre os poilões,
debruados a branco,
da triste Amura ?
Cuidado, Silá,
que os tugas montaram-te cilada
na cambança do Rio Farim.

Vejo mais à frente o Domingos,
o valente Ramos,
herói de banda desenhada,
que irá morrer de morte matada,
em Madina do Boé.

E tu, Rui, e tu Demba, e tu  Djassi,
de quem eu não sei nada,
a não ser que morreste em 1964,
depois do tenebroso Congresso de Cassacá ?
Sei ainda que tens nome de rua,
Rua Djassi,
suja e esburacada,
na capital da tua terra,

ao pé do estádio Lino Correia,
outrora Sarmento Rodrigues,
transmontano de Freixo Espada à Cinta...

E tu, camponês, balanta, 
Pansau Na Isna,
herói do Como,
guerrilheiro-cowboy,
enfrentando as naves loucas dos tugas
com a tua Kalash de contrafacção ?

Na Amura fez-se história,
diz-me o guia.
Ou a história dos vencedores
que contam a história dos vencidos.

PS – Cuidado João, 

cuidado, Bernardo,
cuidado Vieira. 
Há quem te espere, 'Nino',
no Panteão Nacional.

Bissau, 7/3/2008.


____________

Nota do editor:


Último poste de 14 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12716: Manuscrito(s) (Luís Graça) (20): Gostei de voltar a Tavira (Parte IV): E de ter tempo para (re)descobrir a beleza e o brilho fascinantes do seu património edificado...

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12734: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - Contrastes do mesmo cenário [parte III] (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 9 de Fevereiro de 2014:

Caríssimos Camaradas Editores:
Luís Graça, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães. 
Os meus melhores cumprimentos.
O presente texto, ainda que continue a ter por panorâmica histórica o cenário do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, e o modus vivendi de quem por lá passou [1973], a sua introdução foge um pouco do que tem sido meu hábito em situações anteriores.
Este desvio, enquanto espaço de liberdade, foi influenciado por algumas reflexões surgidas recentemente neste espaço plural de partilha e, daí, deu este resultado.

Obrigado pela vossa compreensão!
Um abraço.
Jorge Araújo.
09Fev2014


O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA 
(XIME-BAMBADINCA)

- Contrastes do mesmo cenário [parte III] -

1. Introdução

De acordo com a intensão expressa nos textos anteriores [P12565 e P12586], volto hoje à vossa presença com o mesmo propósito de sempre: o de relatar, na primeira pessoa, os factos mais relevantes que marcaram a vida de um miliciano na sua passagem pelo CTIGuiné.

Assim, continuaremos a aprofundar o tema relacionado com o Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, onde estivemos o segundo semestre do ano de 1973 [já fez quarenta anos!], decisão confortada com as palavras solidárias do camarada António Rosinha ao defender que “cada um deve ter a coragem de dizer aquilo que na realidade presenciou e aprendeu”.

Mas, antes do mais, é justo endereçar aos camaradas, grã-tabanqueiros desta Tabanca que não pára de crescer, os meus sinceros agradecimentos pelos diferentes contributos/comentários produzidos neste âmbito, adicionando-lhe mais valor reflexivo e histórico, por efeito de aí terem passado uma parcela do seu precioso tempo, ainda que em momentos diferentes, em obediência à missão militar que lhes foi confiada/imposta.

Estão nesse caso os camaradas: Carlos Marques Santos [CArt 2339], Luís Graça, António (Tony) Levezinho e Humberto Reis [CCaç 2590/CCaç 12], Jorge Cabral [PCN 63], Paulo Santiago [PCN 53], Beja Santos [PCN 52] e Joaquim Mexia Alves [CArt 3492 e PCN 52], com especial deferência para o Carlos Marques Santos, por ter sido o primeiro a assentar arraial naquele espaço, no longínquo dia 29Mai1969, com tendas de três panos da 2.ª Guerra Mundial, e daí considerar-se, simbólica e carinhosamente, como o DINOSSAURO… da Ponte.
Estou de acordo!

No alinhamento deste texto, entendi incluir e apreciar a pertinência da reflexão do nosso amigo e camarada Pereira da Costa [que foi, durante cinco meses, CMDT da CART 3494, tempo suficiente para ter estado envolvido, entre outros, no episódio estúpido do Rio Geba] ao colocar a problemática do conflito militar a partir de duas perguntas filosóficas; porquê e para quê?

Com efeito, estas são, pela intemporalidade da sua pertinência, duas das principais questões em que nos deveríamos deter ao longo das diferentes fases da nossa vida [unindo o presente ao passado e aprendendo com ele, encontrando novos rumos para a dignificação do Homem], sendo o como e o quando, outras tantas a considerar de igual modo, pois sabemos que tudo é efémero neste nosso cosmos: tem princípio, meio e fim.

Mas, de facto, não tenho uma resposta assertiva e convincente, por ausência de dados, quiçá mais importantes do que aqueles que possuo, na medida em que a nossa ignorância se evidencia e cresce com o saber, em resultado do número de questões ser sempre superior ao das respostas, e daí não haver explicações definitivas.

Retenho-me, por ora, num simples mas importante detalhe que influenciou o nosso comportamento naquele contexto. Quando, dando cumprimento ao programa de treino multidisciplinar de preparação para a guerra, me diziam: “Ranger-Araújo: tu-vais-ser-chefe!” [futuro], omitiam em que condições e com que recursos materiais e humanos tal ia acontecer, para logo a seguir afirmarem: “tu-és-carne-para-canhão!”, expressão [massificada] que viria a ser repetida manga de vezes ao longo da comissão, em particular quando o psicológico dava sinais de algum desânimo, deixando, assim, ao livre arbítrio a construção/reconstrução de um conceito ideológico temperado pela prática concreta do dia-a-dia.

Pelo exposto, e como ficou demonstrado ao longo do tempo, nunca me conseguiram explicar o porquê e para quê, uma vez que a explicação pressupõe antes uma compreensão, que é um processo incompleto e equivocado, e daí haver um deficit dessa compreensão em cadeia. Ou seja, primeiro será necessário compreender para, depois, tentar explicar, pelo que este é um processo que ainda não se encontra encerrado.

Num cosmos onde tudo muda: as pessoas, a sociedade e o mundo, e em que só a mudança é imutável; depois duma ordem, vem a desordem para dar lugar a uma nova ordem [sociologia da ordem e do progresso], por influência da tríade [tróica] TER-PODER-SABER – eis, então, a fórmula que nos comandou… e continua…!

Ainda assim avanço com um elemento mais desta fenomenologia, para prosseguir a reflexão.

Pode ler-se na brochura editada sobre a História do BART 3873 [de autor(es) desconhecido(s)] que “A sede do BArt 3873, decorridos já 5 meses, não teve qualquer ataque ou flagelação o que se percebe pelo cordão protector que a rodeia a dificultar, ou a impedir mesmo, a retirada da força atacante” [p.70].

Da interpretação deste parágrafo nasceu em nós uma outra dúvida: será que o efectivo reduzido a doze unidades, existente no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, no âmbito da missão de fazer segurança a duas Pontes, era também parte desse cordão?

Do ponto de vista do significado/significante, o conceito “Segurança” significa acto ou efeito de segurar; afastamento de todo o perigo; condição do que está seguro; garantia; confiança; tranquilidade de espírito por não haver perigo [Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Texto Editora. Abril/2004; p.1339].

Será que esta era a questão principal da nossa missão?

Importa salientar, todavia, que nenhum fenómeno sociocultural, no qual se inclui o socio-militar, é neutral, na justa medida em que não há nenhum sistema totalmente fechado em si, nem é plenamente autónomo. Isto significa que qualquer que seja o seu objecto [de estudo] este emerge de um processo construído pela filosofia da época, a partir do funcionamento sistémico entre todos os elementos que o constituem, como foi referido anteriormente.

Daí julgar que se devem aceitar estas pequenas histórias, com a sua independência e cronologia específica, mais que não seja para se identificarem os contrastes ocorridos nos mesmos cenários [diferenças/semelhanças], e ainda como legado particular de um tempo de vida, que foi o meu, em que, felizmente, saí vitorioso em todos os “contextos”, o mesmo não acontecendo com outros meus semelhantes que não tiveram, lamentavelmente, direito a “bilhete de volta” [expressão do camarada Tony Levezinho], aos quais presto, neste espaço, uma sentida homenagem.

Deste modo, o porquê e o para quê continuará a fazer todo o sentido se antes das decisões a tomar, eles contribuírem para esclarecer as consequências de cada uma delas, numa dupla dimensão: qualitativa e quantitativa. Como teriam feito todo o sentido se tivessem sido colocadas a Winston Churchill (1874-1965), enquanto primeiro-ministro britânico, após o discurso proferido no âmbito de uma Moção de Confiança ao seu governo, em 13Mai1940, a propósito da sua visão futurista no conflito militar emergente da 2.ª Guerra Mundial, quando afirmou: “não dou pré, nem quartéis, nem provisões. Dou fama, sede, marchas forçadas, batalhas e morte”, plagiando a ideia expressa anteriormente pelo general italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882).

Curiosamente, estávamos, então, na época da adolescência dos nossos pais e/ou nos primeiros anos de vida daqueles que foram os pioneiros da Guerra Ultramarina. Eis como os factos históricos continuam a ser cruéis para a humanidade.

Daquela expressão brutal, nasceu uma outra mais reduzida: “Sangue, suor e lágrimas”, e que, entre tantas apropriações, deu nome ao poema “Fado Sangue, suor e lágrimas” [P9122] do camarada Manuel V. Moreira, da CArt 1746, nosso antepassado nas lides da Ponta do Inglês e do Xime - 1967/69, e escrito, segundo creio, em 20Dez1968, no Xime.

Em suma, com o decorrer dos anos, o Poder [pois é ele que decide sobre estas e outras matérias] continua a ser cego, surdo [ou faz de conta!]… e é teimoso, até que o “cordão”… se parte e se desfaz.

Dito isto, avancemos para o ponto seguinte, apresentando mais algumas imagens referentes ao enquadramento geográfico onde nasceu o “Destacamento da Ponte…” e o modo de vida de um tempo organizado em interface com outros tempos, onde a natureza de cada tempo influenciava o outro que vinha a seguir.


2. O Contexto do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma

Foto 27 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma] – imagem aérea dos espaços circunvolventes às duas Pontes: a velha danificada em 28/29Mai1969, a cima, e a nova construída pela empresa TECNIL e inaugurada no início do ano de 1972, paralela, a baixo.

O rectângulo a vermelho corresponde à área onde foram construídas as primeiras instalações de apoio aos sucessivos contingentes militares para ali enviados, vulgo abrigos, concebidos a partir de buracos abertos no chão e alinhados entre si, virados para a mata/o mato.

É de referir, em nome da verdade, que o camarada Carlos Marques Santos e o efectivo do seu Gr Comb (o 3.º), da CArt 2339, sediada em Mansambo, e que liderou, foram os primeiros habitantes daquele território.

A imagem de fundo é de Humberto Reis [P12647], com a devida vénia.

Foto 28 – Estrada Xime-Bambadinca [Pontes do Rio Udunduma - 1973] – As duas pontes vistas de frente e o Rio Udunduma. Bambadinca fica para a esquerda e o Xime para a direita.

Foto 29 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem longitudinal da estrada nova, à esquerda, e a velha, à direita. Ao fundo fica Bambadinca, a quatro quilómetros, e à esquerda a estrada termina no Cais do Xime, localizado a sete quilómetros, em cujo Aquartelamento, à data, esta instalada a CCAÇ 12.

Foto 30 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem da estrutura da nova ponte.

Imagens [postal] dos contrastes no roteiro triangular: Bambadinca – Xime – Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, entre 1972/1973. 

Bambadinca, sede de Batalhão, era o local identificado do “ar condicionado”, onde tudo estava muito limpinho e arranjadinho… O Xime foi o destino inicial da CART 3494, onde permanecemos treze meses: de finais de Janeiro/1972 a início de Março/1973 e onde vivemos muitas emoções… O Destacamento da Ponte foi um tempo e um espaço, e um modo de vida… pouco/nada digno, mas que acabou por ser superado com alguma criatividade.

Foto 31 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem de um plano de água do Rio Udunduma, procurando-se identificar potenciais locais de “armadilhas” e outros de risco efectivo…

Foto 32 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – População do Aldeamento A/D de Amedalai que ali se deslocava diariamente para lavar roupa e fazer a sua higiene pessoal. Ficava a 1 km [+/-], na direcção do Xime. Estávamos, com efeito, na Estação das Chuvas… o caudal do rio era, naturalmente, maior.

Foto 33 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – O mesmo da legenda anterior, reforçada com a presença do camarada Joaquim Cerqueira, para compor o enquadramento.

O Cerqueira, como era conhecido, foi o militar da CArt 3494 que nas saídas para o mato, no Xime, era quase sempre o último a transpor o arame farpado e, naturalmente, o último a chegar ao Aquartelamento. Por isso, vastas foram as vezes que lhe dissemos para ter cuidado, pois um dia poderia ser apanhado à mão. Felizmente que não lhe aconteceu nada. Um abraço para ele.


3. O Tempo de novas Emoções versus Tensões

O dia 13 de Setembro de 1973, 5.ª feira, estava a ser semelhante à grande maioria dos já contabilizados, até então, no Destacamento da Ponte. Porém, deixou de o ser quando no exterior dos buracos, aos quais se chamavam “abrigos”, o pessoal se organizava para superar mais uma noite, depois de ter ingerido a terceira refeição da jornada: o jantar.

O sol já se tinha escondido no horizonte e a claridade do dia diminuía a cada minuto. O equipamento que nos auxiliava na visão de proximidade [petromax] estava a ser preparado. E eis senão quando a nossa atenção mudou de sentido por efeito de mais um “festival pirotécnico”, pleno de luz e som, que se apresentava à nossa frente. Rebentamentos e rajadas de kalashnikov, também conhecidas por “costureirinhas”, entravam pelos nossos ouvidos, provocando um natural aumento do ritmo cardíaco. Não vinham na nossa direcção [por enquanto!], mas não estavam muito longe. Quem estaria, naquele momento, a “embrulhar”? Era a pergunta mais banal naqueles momentos dramáticos.

Como o som dos rebentamentos tinham níveis diferentes, muito provavelmente estaríamos perante vários ataques em simultâneo na direcção do Xime. E nós…? O que fazer naquelas circunstâncias…? Iríamos, também, ser contemplados com uma visita relâmpago…? Estas e outras interrogações nos surgiram no pensamento… E agora o que devo fazer… na qualidade de líder [chefe] do Grupo… com apenas doze elementos.

Lidar com ele, entre emoções e tensões, aliás como acontece com todos os Humanos que estão em situações complexas, como foi o nosso caso no CTIG… e como serão certamente em todas as guerras, independentemente dos lugares.

Sei/sabemos hoje, no quadro teórico das neurociências, por exemplo, que o conceito emoção traz à mente uma taxonomia de seis emoções ditas primárias ou universais; alegria, tristeza, medo, cólera, surpresa ou aversão. O rótulo emoção também tem sido aplicado por impulsos e motivações e a estados de dor e prazer.

Como já tinha estado em situações francamente mais difíceis, como já dei conta nas narrativas sobre as duas emboscadas na “Ponta Coli” [P9698; P9802 e P12232] e a do “Naufrágio no Rio Geba”, em 10Ago1972 [P10246], ou ainda nas várias flagelações sofridas pelo colectivo da CART 3494, no Aquartelamento do Xime, durante os treze meses que aí permanecemos, procurei/procurámos, em função do quadro que estávamos a observar, manter o melhor autocontrolo possível.

Para saber algo mais concreto, recorremos ao único instrumento de comunicação aí existente – um rádio emissor/receptor AVP1 – mas sem sucesso. Ruídos e interferências… e mais ruídos… e mais interferências… até que desistimos. E os rebentamentos continuavam ali tão perto ajudando a iluminar a noite… que já o era.

Largos minutos depois surgiram, ao longe, as primeiras viaturas militares vindas do lado de Bambadinca, o que nos permitiu entender o contexto com mais tranquilidade. Mas, como elas não pararam na Ponte… que “cena” estaria a acontecer, na medida em que a duração do[s] ataque[s] levava já um tempo francamente excessivo em relação a situações anteriores?

Por exclusão de partes, chegámos a conclusão de que o ataque mais próximo de nós seria no Aldeamento em Auto-Defesa [A/D] de Amedalai, situado a escassos mil metros [+/-]. O outro, muito provavelmente, seria no Aquartelamento do Xime, onde estava agora a CCAÇ 12. E bateu certo!

Essa noite foi, como seria de esperar, passada ao relento e mais uma em “branco” num cenário de Lua Nova; escura como breu. Porque não abandonámos o nosso contexto, os relatos acima correspondem, tão só e apenas, ao que sentimos e vivemos naquela noite. Porém, para completar esta ocorrência histórica, recorremos ao que se encontra expresso na publicação sobre a História do BART 3873. Eis a sua transcrição na íntegra:

“Em 131835SET73 [a hora não corresponde aos meus registos; seria mais tarde!], o Xime e Amedalai são flagelados simultaneamente durante 15 e 45 minutos respectivamente, por numeroso grupo IN. Sobre o 1.º, o inimigo utilizou R.P.G, Morteiro 82 e Canhão s/Recuo. Sobre o 2.º, R.P.G. e armas automáticas. 1 GrComb da CCS/BART 3873 e 2 viaturas do Pel. Rec. Daimler 8681, acorreram em socorro da A/D de Amedalai, sofrendo uma emboscada na Estrada Xime/Bambadinca. NT e Pel Mil. 241 (Amedalai) sem consequências, bem como os civis. Houve apenas a registar o incêndio de 2 moranças daquela A/D.

O inimigo deu mostras de maior agressividade nas referidas flagelações, ao prolongar a sua acção contra a A/D por três quartos de hora, sabendo que o acesso das NT a Amedalai seria facilitado pela estrada asfaltada e proximidade de Bambadinca e Destacamento da Ponte do Rio Udunduma. As forças IN, provenientes do Poindon/Ponta do Inglês, vinham reforçadas pelo grupo de Artilharia do Quinara” [pp 119/120].

Termino esta terceira narrativa sobre o “Destacamento da Ponte…” dando conta de um facto omisso na História da Unidade relacionado com a imagem abaixo.

Foto 34 – Estrada Xime-Bambadinca [Aldeamento A/D de Amedalai a 1 km do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma] – Estado em que ficou uma Daimler na sequência do ataque.

Porque pertenço à última geração de ex-combatentes que viveu, conviveu e sobreviveu no contexto do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, tenciono voltar a este tema, numa próxima oportunidade, dando continuidade ao seu aprofundamento histórico, divulgando outras peripécias enquadradas por novas imagens.

Estes meus relatos históricos poderão ser, de facto, os últimos, na medida em que, se a memória não me atraiçoa, o contingente da CART 3494 ali destacado, foi substituído, em Fevereiro/74, por um PCN, como, aliás, acontecera em situações anteriores.

Não é crível, por isso, saber-se o que, entretanto, aí aconteceu até ao 25 de Abril.

Obrigado pela atenção!
Um forte abraço para todos.
Jorge Araújo.
09.Fev/2014.
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Nota do editor

Vd. Postes anteriores da série de:

10 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12565: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte I) (Jorge Araújo)
e
15 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12586: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte II) (Jorge Araújo)