terça-feira, 6 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13105: Os Nossos Regressos (31): O meu regresso prematuro por doença (Joaquim Cardoso)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Cardoso (ex-Soldado de TRMS do Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74), com data de 29 de Abril de 2014:

Caríssimo amigo Carlos Vinhal
Completando-se no próximo mês de maio, 40 anos do meu regresso da Guiné, eis-me aqui a dar-te de novo trabalho, enviando-te este texto, que descreve o que ainda consigo ler no meu arquivo neurológico, relativamente ao referido regresso.
Sem mais, para ti Carlos Vinhal e toda a tertúlia, um grande abraço.
J. Cardoso


O meu regresso prematuro da Guiné

Foi em meados do mês de abril de 1974.
Passados que foram 40 anos, não recordo o exato dia da semana nem a quantos dias do referido mês, porém, tomando como ponto de referência o 25 de abril, em que, quando este acontece, tinha sido hospitalizado há cerca de uma semana, presumo que rondasse o dia 20, somando por isso nessa altura, 20 meses de Gabu - Nova Lamego.

Pelas 14 horas de um desses dias, foi-me diagnosticada uma hepatite e, uma ou duas horas depois, fui evacuado para o Hospital Principal de Bissau num avião Nordatlas que se encontrava ocasionalmente estacionado na pista de Nova Lamego. A hora da descolagem do avião, aligeirou os meus preparativos de partida, seguindo com a farda que na altura envergava e, na mala de viagem, mais algumas peças de roupa militar, alguma roupa civil e, umas pequenas lembranças que havia adquirido na área.

Apesar de me encontrar em estado muito débil, (o meu peso rondava os 48 kg), pensava regressar a Nova Lamego, mas efetivamente não regressei!

Concluída a viagem, dei entrada no Hospital ao anoitecer, tendo sido colocado imediatamente a soro e, posteriormente fiquei a cumprir receituário.
Alguns dias depois de ter sido internado, ouvem-se notícias de um golpe de estado na Metrópole provocado por militares revoltosos que haviam destituído o Governo de Marcelo Caetano, e tomado o poder.
Era a revolução dos cravos, o 25 de abril, a implantação da Democracia em Portugal.

Após cerca de três semanas de internamento, numa consulta de rotina, o médico pergunta-me se estaria interessado em regressar à Metrópole! A esta pergunta fui tentado a responder com outra, perguntando se aquela, era pergunta que se fizesse! Mas, depois de uma breve pausa, inferi qual a razão por que a fez.

O médico informou-me que, devido à nova situação na Metrópole, estavam a facilitar o regresso dos militares hospitalizados com casos mais complicados, por ali haver cada vez menos condições para os tratar. Aceitei de imediato. No dia 18 de maio, embarquei em Bissau num avião 727 dos TAM de regresso a Lisboa, onde cheguei ao fim da tarde.

Tal como havia acontecido na ida, viajei isolado dos meus camaradas. Na ida, viajei mais tarde cerca de um mês, por motivos por mim desconhecidos. Na volta, viajei mais cedo, por doença, ou seja: fui mais tarde e vim mais cedo em relação aos meus camaradas.

Após a chegada a Lisboa, foi servido o jantar aos presentes num refeitório algures nas redondezas. O prato que escolhi tinha como condimento o azeite e, quando me preparava para começar a jantar, uma das senhoras do Movimento Nacional Feminino que acompanhavam e davam apoio, abeirando-se de mim, perguntou qual era o meu problema de saúde, uma vez que estava muito magro e amarelo! Quando respondi que estava com hepatite, a senhora pretendeu retirar-me o prato, dizendo, muito aflita que, com tal doença, não poderia comer gorduras, como era o caso e, que me serviria um prato diferente.

- Não se incomode - disse - Deixe-me comer que este é meu prato preferido e, se isto me faz mal, o que comi na Guiné já me tinha morto há muito tempo!

A senhora insistia com os seus argumentos, e eu contrariava com os meus, acabando ela finalmente por desistir.

Terminada a refeição, fomos transportados em autocarro para os diversos destinos. Durante a viagem vi, claramente visto e não presumo, (como dizia o poeta), o que jamais havia visto, o entusiasmo, para não dizer loucura, de pessoas anónimas que nas diversas ruas por onde ia passando o autocarro militar, batiam palmas, faziam com os dedos o V de vitória etc.
Sentia-se que a revolução estava em marcha, e era notório o sentimento carinhoso do povo para com o MFA!

Fiquei internado no HMDIC (Hospital Militar de Infeto-Contagiosas). Ali, senti a enorme diferença nos tratamentos administrados, em comparação com os do Hospital de Bissau.
Na Guiné não me recordo se alguma vez comi algo à base de dieta. No HMDIC, todas as refeições eram confecionadas nessa base, nada de gorduras e, a tomar soro em permanência.

Ao terceiro dia de internamento aconteceu-me o que na Guiné seria considerado normal, mas que, enquanto lá permaneci, nunca me tinha acontecido, um ataque de paludismo!
Passei cerca de 2 dias como que em estado de emergência. Recomposto deste último susto, ali continuei internado, e ao fim de um mês e meio, aproximadamente, fui transferido para o Hospital da Estrela, onde estive cerca de um mês. Dali, segui para um Quartel de Adidos, na Graça, para convalescença, indo a partir daí ao Anexo fazer as várias análises.

Após uma junta médica realizada no Hospital da Estrela, cito o que consta na minha caderneta militar:
Por despacho de 22 de outubro, foi confirmada a opinião da SHI (?), reunida no HMP em 27 de setembro, tendo sido julgado pronto para todo o serviço! (Fim de citação).

Regressado a casa após tão redutora sentença, alguns dias depois fui fazer o espólio ao RI 15 em Tomar. Ao entregar cerca de metade da roupa que me tinha sido distribuída, o militar do armazém perguntou pelo que faltava. Respirando nessa altura já ares de um país em liberdade, respondi-lhe com ironia que, nada mais tinha para entregar por ter vindo evacuado da Guiné, mas que aguardasse que era provável que um dia chegasse pelo correio!
E para admiração minha, chegou mesmo!
Não pelos Correios, mas pelos Caminhos de Ferro. Mais de 1 ano depois de ter regressado, recebi um postal da CP, avisando-me que na estação de Vila Meã, tinha uma encomenda para levantar.

Embora de nada estivesse à espera, compareci e, foi-me entregue a respectiva encomenda. Tratava-se de um caixote em madeira, com cerca de 70×70 centímetros, remetida pelo Ministério do Exército.

Duvidando que fosse eu o destinatário da dita, ali mesmo e na presença do chefe da estação, se retiraram duas tábuas ao referido caixote, para se verificar o que continha. E o que continha, era roupa militar. Mas nada que se estivesse em boas condições, que eu pudesse usar, dadas as suas dimensões, muito menos em farrapos como era o caso.

No meio de toda aquela miséria, a única peça que se "salvou", foi um quico camuflado, dado a um amigo, a seu pedido que, querendo ser figurante militar por momentos, o colocou na cabeça, batendo a pala ao pessoal presente.
De seguida, solicitei ao chefe da estação o favor de se dignar mandar colocar toda aquela farrapada no lugar correspondente, (caixote do lixo), ficando complementado desta forma o espólio respetivo.

Peluda... Regresso à vida civil.

 Nova Lamego - Eu junto ao obelisco da CCS do BArt 6523

Nova Lamego - Mostrando a nossa musculatura, o camarada Graça à esquerda, ao centro o António Santos e eu à direita.

Nova Lamego - Eu de guarda redes, que não era a minha posição em tempos de bola, e o António Santos, amigo inseparável, a rematar em tribela. Não me recordo se deu golo.

 Nova Lamego - Eu junto ao obelisco do pessoal das Daimlers.

Nova Lamego - Eu à direita com o António Santos, junto à porta do Centro de mensagens e Posto de Rádio onde fazíamos serviço.

Nova Lamego - Parte da equipa de futebol. Na fila de cima, só recordo o nome de dois: o Morim ao centro de camisola encarnada e à direita o António Santos. Em baixo, à esquerda: eu, o Pereira, o Cunha e o Graça. 

Castelões - Penafiel, aos 29 dias do mês de abril de 2014

J. Cardoso
Ex-Soldado TRMS
Nova Lamego - Guiné
1972/74
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12978: Os Nossos Regressos (30): A nossa vinda foi, em Abril, há 40 anos (Jorge Araújo)

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13104: Estórias do Juvenal Amado (51): Amendoins e bajudas, cheiros antigos

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 28 de Abril de 2014:

Carlos e Luís
Cá vai mais uma historieta.
Mando algumas fotos de bajudas de Galomaro mas se alguma delas for a Jarulema será a que vai a na 1ª foto a cores. Parece-me ela mas não tenho a certeza.

Um abraço
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL

51 - AMENDOINS E BAJUDAS, CHEIROS ANTIGOS

Tem estado um clima pouco amistoso. Com chuva e algum frio, mas fazendo jus ao ditado que diz que Abril tira e põe a velha no covil, só fica admirado quem não compra o Borda D´Água, ou não se lembra dos ditados antigos. Mas não é sempre assim e intercalado nesses dias pouco convidativos, tem aparecido um aqui e outro ali, que nos faz despir o casaco.

Hoje foi um desses dias e é de dele que eu venho falar.
Está um dia claro e solarengo bem apetecível e há muito desejável. Sempre que posso saio de casa no meu passeio, passo pela rotunda Sul sigo pela Alameda do Santuário, ultrapasso-o e finalmente do lado Norte existe uma praça com várias esplanadas agradáveis e bastante convidativas.

Sentei-me na esplanada com vontade de beber uma imperial. Passa-se tempos sem que beba, mas hoje veio-me aquele desejo irresistível de beber uma e vai daí passei da vontade ao acto.
Chamei o empregado, pedi uma imperial e juntamente trouxesse também uns amendoins para fazer peito.

Passado um bocado lá chega ela loira, transbordante e a acompanhá-la, vem a decepção na figura de um pequeno saco onde se lia “amendoins com mel, sal e piri-piri” em vez dos com casca tão simples, tão honestos, tão usuais em qualquer sítio que se preze, pelos menos há algum tempo.
Perguntei se não havia doutros! O empregado num português lá dos lados do Brasil disse-me que não e que se eu quisesse, também havia uns pacotinhos de caju com o mesmo tempero ou parecido. Disse-lhe que deixasse estar, pois teria que ser mesmo com aqueles que eu iria matar o desejo. Mas nestes amendoins processados industrialmente, se não estou em erro por empresas espanholas, não há o encanto de descascá-los, soprar as finas películas que ainda os envolvem e só depois trinca-los, sentir o estaladiço crocante deles bem torrados sem mais temperos.

Parte do prazer de comê-los está aí, faz parte do vício, assim dizia o meu avô Lino, quando parava o que estava a fazer, calmamente tirava a onça de tabaco do bolso com as respectivas mortalhas e fazia o cigarrito, saboreando o momento mesmo antes do acender. Também eu fumei e muitos anos, tentei combater o vício fazendo como ele fazia, mas não me valia de nada pois os hábitos e a vida agitada, ditavam a rapidez com que eu os fumava por vezes acendendo-os uns nos outros. Por graça dizia então que era para poupar nos fósforos. Enfim uma estupidez.

Mas os amendoins e a imperial fizeram-me voltar atrás mais de quarenta anos, quando na Guiné ansiava por uma. Que eu soubesse só havia um local em Bissau que servia cerveja a copo e por isso mesmo ainda hoje, opto sempre por beber uma, em vez da tradicional cerveja em garrafa.
Em Galomaro, todos os dias por volta das cinco horas da tarde, juntamente com as lavadeiras, vinha a Jarulema da “mancarra” com a dita dentro de uma cesta de verga larga e rasa, que era comum as mulheres usarem para vários dos seus afazeres. Era uma bajuda de mama firme, muito sorridente, olhos marotos, mas que era do tipo toca e foge. Quero eu dizer com isto, que ela prometia o Céu mas não se passava da terra. Aquando de alguma aproximação de algum soldado mais assanhado, ela sabiamente lá ia desviando as mãos dos mais afoitos e ia vendendo o amendoim que ela própria torrava.
Enquanto para nós a mancarra era divertimento, para os naturais da população ela era a vida como se poderá assim dizer. Pelo caminho ficavam os soldados, que fazendo uso de um charme rasteiro e de mau gosto, eram pura e simplesmente afastados do seu convívio e mimoseados com uns palavrões ditos nas duas línguas, com o devido encaminhamento para as mães e pais, senão para toda a família.

Binta, a bajuda mais bonita de Galomaro e arredores

Com a devida vénia a José F.S. Ribeiro do BCAÇ 2912

Com a devida vénia a Manuel Madeira Guerreira do BCAÇ 2912

Ainda hoje é melhor cair em graça, do que ser engraçado lá diz o ditado e assim uns com mais jeito e falas mais mansas, podiam aproximar-se dizer-lhe coisas, que a levariam aos arames ditas por outros. Tinha fama de já não ter cabaço. Fama que já vinha das “más línguas” da companhia 2912 aquando da nossa chegada.
Feitas as apresentações às lavadeiras e à Jarulema, a tal fama passou da boca dos desejosos, espalhou-se pelos invejosos do 3872 qual “pústula” passou a bajuda a padecer. Não sei se era verdade ou não, mas ela por vezes ria-se com os nossos avanços, naquele jogo de sedução que nos deixava assim como arrebitados, mas que nunca esclarecia as dúvidas.
Ficávamos com a água na boca e os amendoins para enxugarmos umas Cristais, se os comprássemos, senão nem isso.

Porta de armas de Galomaro - Juvenal Amado, José Manuel e Confraria

Passados alguns meses, correu o boato que ela era a mais que tudo de um graduado, por sinal boa praça, que alinhava com a malta, desde que o comandante não o bispasse. Confraternização entre praças e graduados era coisa proibida em Galomaro.
Inicialmente como bons “machos” latinos, não se quis acreditar que tal fulano tivesse passado a perna à malta e se tivesse chegado à frente no caso da vistosa bajuda. Com preconceito e chauvinismo, entenderam que ela não estava à altura de quem a partir dali desfrutaria os seus favores. Mas lá vem a velha questão sobre as razões do coração, porque há razões que a própria razão desconhece.

Bastou isso para que os assédios à Jarulema abrandassem, porque o respeitinho é muito bonito e recomendava-se. Ela nunca deixou de aparecer à porta de armas com o seu sorriso, os seus panos coloridos e a sua deliciosa mercadoria, por vezes reforçada com castanha de caju.
Toda ela cheirava ao perfume torrado dos seus produtos.

Foi esse cheiro essa imagem que me veio à cabeça quando pedi amendoins ao empregado da esplanada.
Provei o saquinho de amendoins com mel, sal, piri-piri, decididamente fiquei triste e decepcionado.

Um abraço para todos
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12559: Estórias do Juvenal Amado (50): Em Alcobaça, assinaturas do tempo

Guiné 63/74 - P13103: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (11): Comunicado de Osvaldo Vieira, sobre a atividade operacional do PAIGC, nos dias 30 de junho e 1, 2, 3, 5, 6 e 10 de julho de 1963, na região do Oio, incluindo Bissorã, Dandu, Olossato e Fajonquito, em que se contabilizariam... 116 mortos entre os soldados portugueses, quase 3 vezes e meia mais do que o total dos nossos mortos em combate nesse ano (n=34)...

1. Documento disponível na Casa Comum, da autoria de Ambrósio Djassi [nome de guerra do caboverdiano Osvaldo Vieira,  de seu nome completp, Osvaldo Máximo Vieira, 1938-1974]

[Clicar aqui para ampliar o documento]

Instituição:Fundação Mário Soares

Pasta: 04613.065.158

Título: Comunicado [Região 3]

Assunto: Comunicado de Ambrósio Djassi sobre a sabotagem às pontes Mansabá-Mansoa, Mansoa-Bissorã, Mansoa-Bissau, Bissorã-Olossato e Olossato-Farim, a emboscada na estrada Bissorã-Dandu, o bombardeamento da tabanca de Dandu, o ataque ao quartel de Olossato, a emboscada entre Olossato e Fadjonguito, a emboscada na estrada Mansabá-Bissorã e o ataque dos soldados portugueses à base de Matar.

Data: Julho de 1963

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste).

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos

Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Fonte: (1963), "Comunicado [Região 3]", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40691 (2014-5-5)

2. Transcrição e fixação do texto por L.G.:

Comunicado [, manuscrito, de 2 páginas, contendo  a última apenas  o nome do signatário]

Página 1: 

R[ecebido] em 18/7/1963

Domingo dia 30 [de junho de 1963]
Foram saboetados [sic] as seguintes pontes: Mansabá-Mansoa; Mansoa-Biossorã; Mansoa-Bissau; Bissorã-Olossato: Olossato-Farim.
Neste mesmo dia também a jangada do Burro foi queimada.

Segunda feira, dia 1 [de julho de 1963]. 
Numa emboscada na estrada entre Bissorã e Dandu forma mortos 37 soldados portugueses e [houve] um grande número de feridos. (**)

Terça feira, dia 2. 
A tabanca de Dandu foi bombardeada por dois aviões portugueses [d]onde resultou 2 mortos e um ferido da tabanca [Posteriormente, corrigido, com letra diferente, talvez do Amílcar Cabral: “vários feridos, mulheres e crianças (?)" ].

Quarta feira,dia 3. 
Ataque no [sic] quartel do Olossato, foram mortos 9 soldados portugueses e muitos feridos.

Sexta-feira, dia 5. 
Os soldados portugueses caíam na emboscada entre Olossato e Fadjonquito [sic] [d] onde resultou 25 mortos. (***)

Sábado, dia 6. 
Numa emboscada na estrada Mansabá e Bissorã foram mortos 15 soldados portugueses e um camião queimado; e os outros soldados fugiram a pé.

Quarta-feira, dia 10. 
Os soldados portugueses atacaram a base de Matar à[s] 6 h da manhã. E resultou 21 mortos na parte do inimigo.(***)

Até agora da nossa parte não houve nenhum morto, não [?] 2 feridos [Correção posterior, com outra letra, em francês, possivelmente do punho de Amílcar Cabral:  “9 morts,  [et] autant [de] blessés”, 9 mortos e   e outros tantos feridos]

Pagina 2: De: Ambrósio Djassi [nome de guerra de Osvaldo Vieira]

(**) Não há registos de quaisquer mortos do Exército, em combate, no TO da Guiné,  nesta data (1/7/1963).. CDE qualquert modo, este número (fantasioso) de 116 mortos ultrapassa o total dos nossos mortos no ano de 1963 que foi de 54, por todas as causas, segundo os nossos registos oficiais: 46 da metrópole e 8 do recrutamento local... (Em comabte, foram 34, nesse ano).

Guiné 63/74 - P13102: Os Nossos Cartazes de Propaganda (4): Parte IV (Fernando Hipólito): Na mata (no CTIG dizia-se "no mato"...) só há fome e doenças...




Cartaz nº 12


Cartaz nº 13



Cartaz nº 14



Cartaz nº 15


Cartazes de propaganda das Forças Armadas Portuguesas, s/d, neste caso mais especificamente dirigidos a população que vivia "na mato" (na Guiné, dizia-se "no mato"), acentuando as virtudes da paz, sob o controlo das autoridadees portugueses, contra os males da "vida na mata" (doença, morte, terror imposto pelos "bandidos") ... Foram recolhidos entre 1969 e 1971, pelo nosso camarada Fernando Hipólito e por ele digitalizados. Tudo indica que tenham sido usados no TO de Angola. Na Guiné, aos novos aldeamentos chamavam-se "reordenamentos". E aos cartazes eram escritos em crioulo ou em português e crioulo.

Imagens: © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


1. Estes cartazes pertencem à coleção do Fernando Hipólito [, foto atual à esquerda, ].

O Fernando passou pelo CISMI, Quartel da Atalaia, Tavira, 3º turno, 1968, antes de ser mobilizado para Angola. Foi fur mil, CCAÇ 2544, 1969/71. Esteve a maior parte do tempo no leste de Angola, em Lumege. Está reformado da sua atividade de vendedor numa empresa de tintas de impressão.

Estes cartazes foram recolhidos por ele entre 1969 e 1971, têm hoje um real valor documental e historiográfico. São documentos avulsos, que estamos a publicar ao longo de vários postes (*). Estetica e graficamente  eram, em geral, pobres. Não sabemos qual era a eficácia comunicacional destes cartazes: presume-se que fosse baixa. Eram provalmente feitos por gente em Lisboa que pouco ou nada comnhecida da realidade local...  O serviço de propaganda do exército tinha a obgação de fazer muito mais e melhor (*)

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Guiné 63/74 - P13101: De Lisboa a Bissau, passando por Lamego: CART 527 (1963/65). Parte I: Caió, Bula, Olossato, Fajonquito, meados de 1963...





Guiné > Região do Oio > CART 527 (1963/65) > Olossato > Julho de 1963 > Fardas novas, capacete de aço. os graduados equipados com a pistola metralhadora FBP: em primeiro plano, o fur mil António Medina (em cima); a secção do António Medina (em baixo) (montagem de L.G.)

Nota do AM: "Vasculhando os meus arquivos encontrei a foto que faço juntar, que diz respeito à mata em Olossato. Eramos todos maçaricos na altura, com a farda ainda nova. Quem tirou a foto não me lembro."... Está bastante estragada, do lado esquerdo, pelo que teve de ser recortada e editada... (LG).


Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem, com data de 21 de abril último, do nosso camarada da diáspora (, natural de Santo Antão, Cabo Verde, a viver nos EUA) António Medina, ex-fur mil inf, CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65):

Olá, amigo Graça,

Terminei o meu artigo , conforme te informei havia de to enviar logo que possível para ser publicado no blogue. Lamento nao ter fotos da area de Olossato que pudessem sustentar esse meu escrito, mas procurei ser o mais realista possivel. Ficarei aguardando as tuas noticias.


Um abraco camarada e amigo.


2. Resposta de L.G.:

António: Que memórias frescas!... Vou publicar e arranjar fotos... Diz-me se vais dar continuidade, e quantos textos ainda queres escrever sobre a tua vida na tropa e na guerra, e em particular sobre a história da tua CART 527... O que me mandaste podia ser "partido" em dois...Temos que fazer render o peixe... Mas, pelo que sei, tens mais histórias na forja... Vou abrir uma série, "De Lisboa a Bissau, passando por Lamego"... O início da guerra no TO da Guiné, em 1963, precisa de ser melhor documentado no nosso blogue... Vocês faziam coisas impensáveis no meu tempo (1969/71), só com um pelotão!... O que é feito do teu antigo comandante, o ex-alf mil Correia ? Tens notícias dele ?

Outra coisa: vê este documentário, de 1 hora, "Kolá San Jon é Festa di Kau Berdo", com cenas filmadas na Cova da Moura (Amadora), São Vicente e Santo Antão, a tua ilha, pode interesar-te. Foi realizado pelo Rui Simões, com produção da Real Ficção, em 2011... Está à venda em DVD:

Abraço grande. Luis

3. De Lisboa a Bissau, passando por Lamego: CART 527 (1963/65): Parte I: Caió, Bula, Olossato, Fanjonquito, 1963

por António Medina

Cumprindo o serviço militar na Companhia de Caçadores 2, em Mindelo,  São Vicente, Cabo Verde, contando pelos dedos da mão os dias que já me faltavam para passar à peluda, inesperadamente fui mobilizado pelo RAL 1, de Lisboa, com instruções para me apresentar no Centro de Operações Especiais, em Lamego.

Deixei Cabo Verde naquela mesma noite no N/M Alfredo da Silva, revoltado e frustado por ver o meu tempo de serviço aumentar mais dois anos, e o perigo a que me iria sujeitar no teatro da Guerra. Como funcionário publico que era, tinha a garantia de retomar o meu emprego logo assim deixasse a tropa.

Fui então incorporado na CART 527. Se sucederam treinos variados, destacando a resistência física que foi a mais penosa e estafante, em especial quando se subia e se descia em cross a longa escadaria de Nossa Senhora dos Remédios. [vd foto a seguir].


Lamego: as célebres escadarias do Santuário
de N. Sra: Remédios. Foto: Wikipédia
A 29 de Maio deixámos Lamego e no dia seguinte, de Lisboa partimos para a Guiné, chegando a 4 de Junho em Bissau cerca do meio dia.

O sol era abrasador, o calor asfixiante, o suor escorria pelo rosto de todos, alguns sentindo ainda o mal estar do enjoo. Do navio atracado se via a banda militar, um primeiro sargento e seus “cometas” davam-nos as boas vindas à terra que se dizia ser portuguesa e que teríamos de defender com unhas e dentes até à última gota de sangue.

Estivemos duas semanas no Quartel de Amura. Nesse interim foi indicado Comandante da CART 527 o Capitão Antonio A. Varela Pinto que por sua vez dependeria do Tenente-Coronel Hélio Felgas do Batalhao de Bula [, BCAÇ 507]. O comando da companhia, o primeiro e o segundo pelotão ficariam sediados em Teixeira Pinto, o nosso terceiro pelotão em Caió e o quarto em Cacheu.

Em meados de Junho de 1963 deixámos Bissau a caminho de Teixeira Pinto, atravessámos o rio Mansoa pela jangada de João Landim. Foi o nosso primeiro contacto com o mato.

Chegamos à pequena vila de Caió onde se encontrou um pelotão independente que terminara a comissão e aguardava qualquer momento para o embarque de regresso. Como é óbvio, tinham eles alegria no rosto, enquanto mostravamos saudade, medo, preocupação e vontade de também querer partir.

Em principios do mês de Julho o inimigo já infiltrado se mostrava activo nas zonas Norte e Leste. Do Comando de Bula [, BCAÇ 507,] chegara em cripto instruções para o nosso Alferes Correia, que juntos com o quarto pelotão tomássemos o caminho de Bula prontos a entrar em acção (sic). 

Pela estrada fora um dos condutores do quarto pelotão adormeceu ao volante e o Unimog bateu numa árvore, devido a ferimentos graves o nosso Furriel Severino perdeu a vida, lembro-me de ter rezado baixinho para ele, fazendo o sinal da cruz antes do seu passamento.

Bula estava em pé de guerra com tropas chegadas de Mansoa
e outros quartéis, como reforço para a operação Morés.

Antes do Sol nascer,  e sob o comando do Tenente-Coronel Felgas,  partimos em coluna pelas estradas de Binar, Bissorã, Mansabá até chegarmos a Morés onde se dizia existir abrigos subterrâneos do PAIGC. Durante o percurso não houve contacto com o inimigo. Dois aviões Fiat lançaram foguetes para dentro do mato em Morés sem qualquer resposta, regressando à base em Bissau.

À tardinha foi então dada ordem de retirada para Bula, excepto ao nosso terceiro pelotão que. em vez, foi desviado para Olossato, na região do Oio, a reforçar a secção do furriel Campos que pertencia a uma companhia de Cavalaria, aquartelada em S. Domingos ou Farim.

A secção de Cavalaria ocupava um celeiro, porque o espaço não chegava para todos,  eu e o colega Fidalgo ficámos numa parte do edificio da Escola Primária. Coube-nos o chão cimentado que não era de todo mau para se passar a noite, mesmo assim alguns preferiram as carteiras da escola para que mesmo sentados tivessem algum descanso.



Guiné > Mapa da província >1961 > Escala 1/500 mil > No tempo em que um pelotão dava à volta a meio território, ou pelo menos, saía de Bissau, era colocado em Caió, dependente de Bula, ira reforçar o Olossato, participava numa operação no Morés  e ia acudir as gentes de Fajonquito... Estamos de meados de julho de 1963!.. Oficialmente a guerra tinha começado com uns tiros em Tite, no dia 23 de janeiro de 1963... Por sorte, ainda não havia minas... (LG)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)


Batismo de fogo em Olossato e Fajonquito: início de uma guerra
Guiné, Região do Oio,
Olossato, 1963. CART 527. Fur mil
António Medina, equipado
de pistola metralhadora FBP



De madrugada fomos flagelados por um bando armado tentando atingir as nossas sentinelas, ao qual respondemos prontamente com o fogo das G-3. Não houve baixas.

De manhã reconhecemos a vila com casas cobertas de colmo,  outras com chapas de bidons e aluminio, formando uma pequena avenida. Deparamos com uma padaria pertencente a um casal libanês e mais abaixo, quase no principio da estrada que seguia para Farim, uma sucursal da Casa Gouveia.
Na quarta noite um guarda noturno da Gouveia nos informou que um grupo armado do PAIGC estava saqueando a empresa. Que alguns posicionaram-se ao longo da pequena avenida de Olossato entre as residências, para emboscar qualquer forçaa que se atrevesse a avancar.

O nosso Alferes determinou que eu saísse a pé com o guia por uma vereda que nos levaria às traseiras da Gouveia. O Furriel de Cavalaria que saisse alguns minutos mais tarde, de Unimog com metralhadora fixa pela avenida abaixo, então foram surpreendidos pelo nosso fogo cruzado

Constatámos no dia seguinte que o inimigo se retirou furtivamente no escuro da noite, deixando mercadorias ao abandono. Entretanto o casal libanês foi raptado e nunca mais se soube deles.

Destacados para Olossato vindos de Morés apenas com armas e munições, o que o Furriel tinha em stock não bastava para alimentar um pelotão por muito tempo. Por isso, o nosso colega Cruz,. desprezando o perigo,  saiu de Olossato a caminho de Mansoa à procura de mantimentos para voltar practicamente de mãos vazias, apenas com um saco de arroz e algumas folhas de bacalhau.



Guiné > Região do Oio > Olossato  > 1958 > O senhor Reis, da Casa Gouveia.  Foto nº 2267,  do nosso camarada   Leopoldo Correia (ex-fur mil, CART 564, NhacraQuinhamel, Binar, Teixeira PintoEncheia e Mansoa, 1963/65).

Foto (e legenda): © Leopoldo Correia (2013) Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


Aliás, o colega Cruz durante o seu caminho para Mansoa viu passando em certa érea algo estranho, árvores caidas atravessando a estrada, cratera de minas que explodiram e sangue, mais tarde confirmado que naquela madrugada a tropa de Mansoa caira numa emboscada com muitas baixas.

À tardinha, um dos guardas do Posto Admninistrativo acabara de chegar dando-nos a notícia que um grupo armado do PAICG esteve na tabanca de Fajonquito, aliciando, intimidando e recrutando pessoal, onde decapitaram dois dos habitantes que, para eles,  eram supostos colaboradores da tropa colonial.

O nosso alferes resolveu fazer um reconhecimento à tabanca no dia seguinte de manhã cedo. Connosco levámos alguns batedores com catanas e que iriam à frente em linha, abrindo caminho naquele mato cerrado cheio de espinheiras. Tivemos de atravessar uma bolanha de arroz, com água até aos joelhos,  para que se chegasse a Fajonquito.

A tarefa não foi facil, já  cansados avistámos a tabanca de Fajonquito, em terreno descoberto,  cultivado de mancarra à volta. O inimigo nos surpreendeu,  abrindo fogo do lado direito do terreno onde começava a mata, redireccionámos os nossos homens e contra-atacámos com as G-3, o furriel de cavalaria com a bazuca e o morteiro. O tiroteio durou algum tempo, depois fugiram deixando a minha secção com duas baixas sem gravidade.

Devo realçar o sangue frio do 1º cabo aux enfermagem  que mesmo debaixo de fogo não se poupou a cuidar daqueles feridos que mereciam receber os primeiros socorros, antes de serem evacuados para o Hospital de Bissau.



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1964/66 > Sérgio Neves e um camarada em cima de uma autometralhadora Daimler > Foto nº 15, do álbum fotográfico de Sérgio Neves (ex-fur mil, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66), a falecido, irmão do nosso camarada Constantino (ou Tino) Neves.

Foto (e legenda): © Constantino  Neves (2010) Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


Mas aonde estaria o nosso Alferes Correia, que é feito dele ?

De inicio pensámos o pior, finalmente encontrámo-lo sentado no chão, abrigado em um monte de baga-baga. Como cristão que era, calmamente rezava seu terço. Sempre o trazia com ele, para fazer suas orações nas horas certas.

Em fins de Julho o nosso alferes nos informa que de imediato aprontássemos para o nosso regresso a Caió. É que o pelotão de Caió tinha recebido ordem de marcha e cabia agora a nós segurar aquela zona.

Euforicamente arrumámos o nosso material, tomámos as viaturas e partimos em alta velocidade pela estrada fugindo a qualquer emboscada que se avizinhasse, passando por Mansoa e Bula até chegarmos a Caió,  sãos e salvos. Olossato ficara para trás mas serviu para nos mostrar a determinação do inimigo em querer lutar pela sua ideologia e futura independência.

Doente e dando sinais de um certo desiquilíbrio,  o que na altura bastante lamentámos, o nosso alferes foi levado a se apresentar na junta médica em Bissau, que o desqualificou do serviço e o evacuou para Portugal.


Guiné 63/74 - P13100: Notas de leitura (586): "O Tráfico de Escravos nos Rios da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)", por António Carreira e "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
António Carreira é um nome incontornável de toda a historiografia da Guiné portuguesa.
Neste seu trabalho publicado em 1981, de forma esquemática dá-nos um quadro das últimas décadas do comércio negreiro, e quando chegou o seu termo qual foi o profundo impacto que teve nas economias de Cabo Verde e dos rios da Guiné.
Com base nestes elementos, pode igualmente estender-se o estudo às consequências do “povoamento” cabo-verdiano no espaço guineense, agora direcionado para a economia agrícola.

E sugere-se a leitura de um livro que adapta a tese de doutoramento de David Castaño para se ter uma visão integrada, do lado português, do conjunto de vicissitudes em que decorreu o processo de reconhecimento da independência da Guiné-Bissau onde Mário Soares teve um papel de indiscutível relevo.

Um abraço do
Mário


O tráfico de escravos nos rios da Guiné na 1ª metade do século XIX

Beja Santos

Devemos a António Carreira algumas das mais significativas peças da historiografia envolvendo a Guiné Portuguesa bem como Cabo Verde. No seu trabalho “O trafico de escravos nos rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”, edição do Centro de Estudos de Antropologia Cultural da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1981, que Carreira chama subsídios ou sucintas notas que possam contribuir para o esclarecimento de alguns dos variados e complexos problemas do tráfico negreiro na área geográfica situada entre o rio Senegal e a Serra Leoa, revelam-se algumas surpresas que os estudiosos não podem ignorar.

O proeminente investigador começa por recordar os pontos fundamentais da regulamentação do tráfico nos rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde. Quando se fazia um contrato de arrendamento de uma área de tráfico ficava acordado que os navios que se dirigissem àquelas paragens teriam obrigatoriamente de registar a entrada na Alfândega de Ribeira Grande, de Santiago; e completada a carregação do navio, este era obrigado a voltar à Ribeira Grande, pagar os direitos devidos e depois seguir para os portos de destino. As autoridades das praças da Guiné ficavam, pois, limitadas a fiscalização e cobrança de propinas pela entrada de mercadorias, com este dinheiro pagavam-se os seus ordenados. Também deste modo se controlava a saída de escravos. A situação não era do agrado tanto das autoridades dos rios como dos traficantes, era uma operação morosa que agravava despesas e acarretava mortandade nos escravos. Mas a Coroa não transigia no papel da ilha de Santiago no apoio ao comércio dos rios. Com a Restauração, surgiu a ideia de se autorizar o despacho dos navios nos portos de carregamento, o que permitia o pagamento de direitos dos escravos em Cacheu destinados aos portos do Brasil. Esta medida concorreu para aumentar o tráfico clandestino que não era detetado pelas autoridades de Cacheu, Ziguinchor e Bissau, o resto era verdadeira “terra de ninguém”. A Praça de Cacheu recebeu um provedor da Fazenda e era obrigada a rigorosa escrituração. Traficantes sediados em Cabo Verde passaram a comprar escravos nos rios, levando-os para o arquipélago e depois exportando-os tanto para as Antilhas como para o Brasil. Acelerou a concorrência estrangeira, a legislação torna-se ineficaz, criou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde e assim se levou por diante a construção da fortaleza de Bissau. Carreira enuncia a cobrança de taxa por escravo e a sua evolução. Compulsada a documentação, Carreira chegou a números de escravos destinados ao Maranhão, ao Pará e outras paragens, no século XVIII Cabo Verde deixara de servir de entreposto à exportação de escravos.

Pelo Tratado de Viena de 22 de Setembro de 1815 decretou-se a proibição do tráfico de escravos ao norte do Equador. Em 1836, a legislação portuguesa decretava “proibida a exportação de escravos, seja por mar, seja por terra, em todos os domínios portugueses sem exceção, quer sejam situados ao norte, quer ao sul do Equador”. Mas no período intercalar havia taxa de direitos de entrada no Brasil oriundos dos rios da Guiné e Cabo Verde, o que significa que os acordos eram para inglês ver. O que Carreira observa é que se assistiu a um declínio do tráfico lícito e ao agravamento da crise económica e financeira na região dos rios da Guiné e o arquipélago de Cabo Verde. Cabo Verde assistia ao definhamento dos pequenos comerciantes, em 1772-1774 houve uma grande fome, uma hecatombe que inviabilizou a recuperação económica. A economia cabo-verdiana teve de se recentrar no apanho da urzela e na tecelagem de panos. As crises sucediam-se e a Corte declarou-se incapaz de acudir à crise de negócios nas ilhas.

Nos rios da Guiné também o comércio em geral decaia, os Djilas tornaram-se figuras de indiscutível importância. É neste contexto que os espanhóis que sempre tinham fugido a embrenhar-se diretamente no tráfico de escravos, passaram a fornecer mercadorias diversas e dinheiro aos traficantes cabo-verdianos – era a corrida ao abastecimento de Cuba. Escreve Carreira: “De 1835 a 1839 circulavam na área, afetos ao tráfico clandestino de escravos, 55 navios registados em nome de cabo-verdianos (…) A um mesmo tempo nos rios da Guiné os conflitos entre as diversas etnias do território, longe de se aplanarem, prolongar-se-iam até aos últimos anos do século XIX, com as inevitáveis repercussões nas relações comerciais e sociais entre as gentes do mato e as das praças e presídios. Entre 1820 e 1850 estes núcleos eram, no Norte (Cacheu e Ziguinchor), liderados por algumas famílias abastadas e em Geba e Bissau treze negociantes principais".

Carreira dá-nos um quadro da atuação do coronel Joaquim António de Matos e de Caetano José Nosolini, dois dos principais negociantes de escravos da época, fica com má imagem dos diferentes locais onde se iam abastecer e em que quantidades. Nosolini será protagonista das incursões inglesas em Bolama em tempos de grande tensão em que a Grã-Bretanha se julgava com direito absoluto sobre a ilha de Bolama.

Por último, uma palavra sobre o combate ao tráfico a cargo dos cruzeiros britânicos e o aprisionamento de navios e de escravos. De 1835 a 1839, com escravos a bordo foram referenciados 36 armadores com um total de 55 navios, 39 foram condenados a penas de multa, com ou sem confisco do casco e carga; do conjunto de navios, 15 eram espanhóis e 40 portugueses. Havia também navios considerados “suspeitos” já que transportavam apenas mercadorias destinadas ao “negócio da escravatura” (aguardente, pólvora, espingardas, terçados, barras de ferro, tabaco, vinho…). Para além destas mercadorias, também estavam sujeitos a apresamento os navios que tivessem escotilhas com grades abertas; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção, quantidade extraordinária de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho, quantidade extraordinária de comida, etc. A confiar na documentação existente, o comércio de escravos reduziu-se bastante a partir de 1841 devido à vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira considera que encontrou uma reduzida documentação, deparou-se com lacunas nas fontes de informação e foi forçado a desistir do propósito do seu estudo.

Imagem retirada do site Revista de História.com.br, com a devida vénia

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Leitura recomendada: "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño

“Este livro procura responder a uma simples questão: ao conseguir traçar o seu próprio destino terá Mário Soares contribuído para condicionar e alterar o destino coletivo?”.
Com base na sua tese de doutoramento, o historiador David Castaño procura apresentar um retrato rigoroso e objetivo da afirmação política de Mário Soares nos anos decisivos da revolução de Abril. Trata-se do livro “Mário Soares e a Revolução”, por David Castaño, Publicações Dom Quixote, 2013.

Em síntese, e exclusivamente para os propósitos desta nota, Castaño começa por descrever a formação ideológica de Soares, a sua passagem pelo PCP, as principais etapas da sua oposição ao Estado Novo, a formação da Ação Socialista (embrião do PS), o seu exílio em Paris, o regresso em 28 de Abril de 1974, momento em que se encontra pela primeira vez com Spínola que imediatamente lhe pede apoio para publicitar os propósitos do levantamento militar junto de instâncias internacionais, com relevo para os partidos da Internacional Socialista. É nessa ocasião que Soares pede a Spínola um esclarecimento que reputa de fundamental, quer conhecer o seu desenvolvimento, direito ou indireto, no assassinato de Amílcar Cabral. Spínola responde-lhe prontamente que não teve qualquer comprometimento com a morte de Cabral.

Soares começa o primeiro périplo europeu como enviado da Junta de Salvação Nacional. Após a formação do primeiro governo provisório inicia-se o processo que conduzirá à descolonização. Recomenda-se a todos os interessados por conhecer o enquadramento das diligências que levaram aos acordos de Argel e ao reconhecimento do PAIGC pelo Estado português que consultem esta obra entre as páginas 115 e 168, está aqui o registo das conversações, das tensões entre Spínola e Soares e as manobras diplomáticas desenvolvidas em vários continentes.

É indiscutivelmente uma súmula de factos que dão a visão do lado português desses momentos cruciais que conduziram de facto à independência da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13081: Notas de leitura (585): "O Pano Artesanal na República da Guiné-Bissau", por Isabel Borges Pereira Mesquitela (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13099: Parabéns a você (730): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo da CCAÇ 2317 (Guiné, 1968/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13092: Parabéns a você (729): José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 2716 (Guiné, 1970/72)

domingo, 4 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13098: Efemérides (153): Inauguração do Memorial aos Combatentes da Guerra do Ultramar - 1961-1974 do Concelho de Matosinhos (3): Convívio na Sede do Núcleo da LC, em Leça do Balio (Carlos Vinhal)

INAUGURAÇÃO DO MEMORIAL AOS COMBATENTES DA GUERRA DO ULTRAMAR - 1961-1974 DO CONCELHO DE MATOSINHOS 

DIA 25 DE ABRIL DE 2014 

3 - CONVÍVIO COM LANCHE E ANIMAÇÃO NA SEDE DO NÚCLEO DA LC

Terminada a sessão solene no Salão Nobre da Câmara Municipal, quem se havia inscrito previamente no lanche com animação, deslocou-se para a sede do Núcleo de Matosinhos da Liga do Combatentes, sediada em Leça do Balio, local onde havia de terminar, em grande, este dia 25 de Abril.

Antes do lanche ainda iriam decorrer duas cerimónias protocolares presididas pelo Tenente-General Chito Rodrigues.

A primeira, a inauguração de uma belíssima exposição de pintura do nosso camarada e sócio da LC, Major Simões Duarte, e uma exposição de Capelas em madeira, trabalho do nosso camarada e sócio da LC, José Francisco Oliveira (Mestre Cartaxo).
A propósito, vejam no Poste 3092, publicado no nosso Blogue em 24 de Julho de 2008, uma exposição mais completa das Capelas e Igrejas da Freguesia de Leça da Palmeira, executadas pelo Mestre Cartaxo.

A segunda, a entrega de Testemunhos de Apreço aos sócios da Liga com mais de 40 anos de associados. Entre estes, um sócio recebeu um Testemunho de Apreço por ter completado 50 anos.

Destes acontecimentos ficam alguns instantâneos.


Momento em que o Ten-Gen Chito Rodrigues inaugurava a exposição de pintura do Mestre Simões Duarte (Major Art.ª Ref)

De baixo para cima podemos apreciar: o Rio Leça em Santo Tirso; um retrato do compositor e maestro Fernando Lopes Graça; Vista do Porto de Leixões e um retrato do Prof. Joel Cleto

Mais obras expostas. O retrato sempre presente.

Nestes três quadro podemos apreciar o retrato do realizador Manoel de Oliveira; um incêndio na Petrogal e um auto retrato do artista enquanto oficial de Artilharia.

Esta obra teve direito a foto individual, com a devida permissão do seu autor, porque tem como título: "Guiné, maternidade".

 Dois dos trabalhos expostos pelo Mestre Cartaxo, a Capela de Monte Espinho, à esquerda, e a Capela da Quinta da Conceição, à direita. Nos seus interiores pode-se apreciar os pormenores mais ínfimos dos altares, bancos, etc.

O senhor Ten-Gen Chito Rodrigues com o Mestre Cartaxo junto de duas das Capelas expostas

Início da cerimónia de entrega dos Testemunhos de Apreço aos sócios com mais de 40 anos de associados da Liga dos Combatentes, com o Presidente da Direcção Central da LC no uso da palavra.

Destaco na foto o Comandante da Zona Marítima do Norte; o Coronel Barbosa Pinto da LC e o Major Ref Simões Duarte, um dos sócios da LC agraciado com um Testemunho de Apreço.

E porque também de pão vive o homem... e de momentos de alegria também... assim se fez.

Na hora do repasto. Mesa de honra. Se derem pela minha falta, nesta ou noutras fotos, é porque estava nas funções de fotógrafo.

Também houve animação com música ao vivo

O animador

Os mais e os menos animados

 Os mais animados são normalmente as mulheres, logo passemos isto para o feminino, as mais animadas

Como se pode ver pela amostra: Abel Santos e José Francisco Oliveira, os homens o que querem... bem... são menos animados e gostam mais de dançar sentados.

Estava tudo animado quando o senhor General Chito Rodrigues se lembrou que tinha de fazer mais de 300 quilómetros para regressar a Lisboa. Alto e pára o baile.

O senhor General procedeu ao corte do bolo comemorativo dos 5 anos do Núcleo de Matosinhos da Liga, e teve a gentileza de oferecer a primeira fatia a uma das senhoras que se encontrava junto dele.

O Bolo Comemorativo e a espada que o cortou

O Coro juntou-se informalmente e entoou, acompanhado pelos presentes, o Parabéns a Você, ao menino Núcleo de Matosinhos.

Foi esta a última missão do nosso Presidente antes de se despedir.
Agradeceu a forma como foi recebido, gostou de nos conhecer... e quem sabe se brevemente voltará a Matosinhos para novo convívio, já que este foi mais de trabalho do que de folia.

E nós dizemos, até breve senhor General, gostamos muito de o ter entre nós.
Carlos Vinhal

Fotos de Abel Santos, Carlos Vinhal e Ribeiro Agostinho
Texto e legendas das fotos de Carlos Vinhal
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Nota do editor

Vd. postes de:

2 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13084: Inauguração do Memorial aos Combatentes da Guerra do Ultramar - 1961-1974 do Concelho de Matosinhos (1) (Carlos Vinhal)
e
3 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13091: Inauguração do Memorial aos Combatentes da Guerra do Ultramar - 1961-1974 do Concelho de Matosinhos (2): Sessão Solene no Salão Nobre da Câmara Municipal (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P13097: (Ex)citações (230): Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) > Depoimento do general Bethencourt Rodrigues (Excertos, com a devida vénia...)



Página de rosto do 

Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa (o link original foi descontinuado: ver aqui em Arquivo.pt)


"O Arquivo de História Social publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente. Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.

"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." 



1. Estudos Gerais da Arrábida  > A descolonização portuguesa >  Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997)  > Depoimento do general Bethencourt Rodrigues

(disponívbel em Arquivo.pt: 


[ Excertos, com a devida vénia: corrigimos  o nome do general que é Bethencourt e não Bettencourt  (, foto à esquerda, na base naval do Alfeite, em 30/4/1974; foto do álbum da família do cor inf António Vaz Antunes, a quem a agradecemos a gentileza, na pessoa do seu filho Fernando Vaz Antunes).

[Como se vê, pelo depoimento, ele foi avaro (e por isso dececionante) em palavras e emoções no que respeita ao "assalto" ao seu gabinete, na Amura. ] (*)

(…) Luís Salgado de Matos:

Passando agora para a Guiné. O sr. general chegou a organizar algum Congresso do Povo?

General Bethencourt Rodrigues: 

Sim, o quinto. Foi até o acontecimento político-social mais marcante do meu mandato como Governador. Para sua informação, eu descrevo isso com algum detalhe no depoimento que o Paradela de Abreu me solicitou em tempos, Vitória Traída. Mas houve também os congressos regionais, de onde eram cooptados os delegados para o Congresso Provincial.

Tudo isso movimentou na altura milhares de pessoas, completamente à margem do PAIGC.

Manuel de Lucena: 

Mas essa não interferência do PAIGC era deliberada por parte deles…

General Bethencourt Rodrigues: 

Incapacidade militar, meu caro amigo!

Luís Salgado de Matos: 

Havia alguma reflexão no Estado Maior sobre a táctica que o general Spínola estava a desenvolver na Guiné?

General Bethencourt Rodrigues: 

Ele fazia a sua política, era lá com ele. Cada um tinha as suas características próprias. Volto a repetir: os comandantes militares gozaram sempre de uma larga autonomia.

Quando cheguei à Guiné em 1973, habituado como estava à largueza de Angola, o que mais me impressionou foi a pequenez daquilo tudo. A Guiné é um país cuja área varia em função da maré!

Manuel de Lucena: 

Na Guiné, o sr. general chegou a pensar numa concentração do dispositivo?

General Bethencourt Rodrigues: 

Sim, planeava converter as 225 guarnições em 80 e tal. A dispersão é inimiga da eficácia. Mas já não tive tempo,

Manuel de Lucena: 

Por outro lado, a quadrícula dispersa é sinal de presença efectiva, possibilita o contacto directo com as populações…

General Bethencourt Rodrigues: 

É uma outra forma de ver as coisas. Simplesmente, havia que fazer uma opção.

Luís Salgado de Matos: 

Manteve o acordo do general Spínola com os Felupes, em que estes recebiam 100 escudos por cada cabeça de guerrilheiro abatido?

General Bethencourt Rodrigues: 

Não estava ao corrente desse acordo, mas se ninguém o denunciou…

Manuel de Lucena: 

Quando chegou à Guiné encontrou uma tropa bem preparada, motivada, com bons quadros? Faço lhe esta pergunta porque a ideia que normalmente se tem acerca do estado de espírito da nossa tropa na Guiné é a de uma desmoralização generalizada.

General Bethencourt Rodrigues: 

Sobre isso direi o seguinte: só se morre uma vez, não há mortes provisórias. Quando se combate com convicção e tenacidade, quando se tem a certeza de um trabalho bem feito, a motivação é coisa que não falta.

Manuel de Lucena: 

Mas o MFA na Guiné, ao nível dos quadros, aparentava estar bem organizado, tinha um número muito significativo de adesões. Qual era a sua percepção?

General Bethencourt Rodrigues: 

Não tive conhecimento disso, Que as condições eram terríveis, não contesto. Agora dizer que a tropa estava desmoralizada, de maneira nenhuma! Em Angola podia cumprir-se uma comissão alternando sítios fáceis com difíceis. Na Guiné não; vivia-se num sobressalto permanente. Por isso é que na Guiné as comissões duravam 21 meses e em Angola 24. Só quando os strelas entraram em cena é que as comissões passaram a 24 meses. O general Spínola deixou ficar os que lá estavam e aumentou o contingente com tropas frescas.

Manuel de Lucena: 

O 25 de Abril foi então uma surpresa para si?

General Bethencourt Rodrigues: 

Tanto foi que me assaltaram o gabinete! Embora quase tivesse assistido ao golpe das Caldas, quando vim a Lisboa em Março de 1974, não dei por nada. Quando a Revolução estalou, estava perfeitamente inocente.

Luís Salgado de Matos: 

O sr. general tinha confiança na tropa das informações? Na Marinha, onde fiz o meu serviço militar, corria que o Exército, na Guiné, estava infiltrado pelo PAIGC de alto a baixo.

General Bethencourt Rodrigues: 

Em geral tinha. Nas Informações trabalhava-se em estreita colaboração com a DGS, reconhecidamente competente nesse campo. O PAIGC, de resto, não tinha técnica para entrar um jogo desses.

Diz-se que um dos efeitos da contra-subversão é a lassidão, Mas a lassidão também os afectava a eles. O PAIGC não estava menos exausto que nós.

Manuel de Lucena: 

De qualquer forma, de todos os MFA's, não restam dúvidas de que o MFA da Guiné era o melhor estruturado. Basta atentar nos nomes proeminentes do 25 de Abril que saíram da Guiné. Se eles fossem fracos, o sr. general, no dia 25, ter-se-ia rido na cara deles e dado voz de prisão. Depois, o evoluir dos acontecimentos logo após o 25 Abril veio a demonstrar que na Guiné a vontade de regresso à Metrópole se sobrepunha praticamente atudo.

General Bethencourt Rodrigues: 

Olhe, como dizem os brasileiros, quando um general passa à reserva vira historiador. Foi o que sucedeu comigo. Reformado aos 55 anos, dediquei-me ao estudo. Pesquisei, li, meditei, E sabe a que conclusão cheguei? Que o país nunca teve um problema de defesa nacional em África. A tropa podia estar farta, mas obedecia. Faz parte da nossa natureza. A esse respeito nunca tive dificuldade - fui sempre obedecido. Raramente tive de usar de expedientes punitivos; escolhi sempre a via do exemplo: quando era preciso suportar dificuldades, eu fazia questão em suportá-las.

Quando estive em Lisboa em Março de 1974 - vim cá buscar 150 contos -, achei isto uma coisa horrorosa. Tinha havido a remodelação ministerial, a última do professor Marcelo. Senti um mal-estar generalizado, uma atmosfera pesada. Felizmente, o episódio da «brigada do reumático» apanhou-me já a caminho da Guiné.

Manuel de Lucena: 

Como foi a reacção ao golpe das Caldas na Guiné?

General Bethencourt Rodrigues: 

Irrelevante. O Ultramar ficava muito longe.

Luís Salgado de Matos: 

O facto do general Spínola ter saído após Guileje foi entendido como uma derrota? Não afectou as pessoas que lá estavam?

General Bethencourt Rodrigues: 

Note: o general Spínola esteve lá oito anos, fora nomeado no tempo do do Salazar. Eu até dizia: o Spínola não deve sair da Guiné senão por limite de idade ou de caixão. E, caramba, oito anos na Guiné é de morrer! A partir de determinada altura, admito que as coisas terão deixado de lhe correr de feição, nomeadamente porque o Governo não lhe dava todo o dinheiro que pretendia para a sua política de aliciamento das  populações.

Apesar de cada um ter a sua maneira de comandar, eu não enjeitei a sua política de melhoria desenvolvimento das populações autóctones. Mas com uma diferença: eles não me metiam a mão no bolso! Quer dizer; não lhes satisfazia todos os pedidos. Recordo-me de um dia ter  ido a uma sanzala e de um grupo de mulheres me ter pedido rádios. Vejam bem: rádios para falar com os maridos quando estes iam a Bissau! Não fui para a Guiné para agradar a toda a gente. Fui lá para cumprir o que devia ser cumprido.

Manuel de Lucena: 

Na conversa que teve com o professor Marcelo, antes de ir para a Guiné, não ficou com a sensação que a saída do general Spínola lhe causava a ele, Marcelo, um problema bicudo?

Luís Salgado de Matos: 

E a isso eu acrescento: a implicava a admissão da derrota de Spínola na Guiné?

General Bettencourt Rodrigues: 

Leiam o Depoimento do professor Marcelo Caetano. Ele narra a nomeação a reunião com os altos comandos.

Manuel de Lucena: 

E quando é nomeado para a Guiné tem outra entrevista com o professor Marcelo ...

General Bethencourt Rodrigues: 

Naturalmente. No entanto, o pretexto dessa conversa até foi outro assunto, designadamente, a negociação de um contrato publicitário entre a RTP e a Movierecord - eu nessa altura em administrador delegado da RTP. Só depois é que o Presidente do Conselho me assediou para a Guiné, onde a situação se deteriorara nos últimos tempos.

Luís Salgado de Matos: 

Mas porque é que saltaram a escala hierárquica e o escolheram a si? Não foi pela aura vitoriosa que trazia do Leste de Angola?

General Bethencourt Rodrigues: 

Sim, pode aceitar-se essa leitura.

Manuel de Lucena:

 Mas o sr. general Bethencourt e o sr. general Spínola são comandantes de estilos e escolas diferentes, não é assim?

General Bethencourt Rodrigues: 

O mais possível.

Manuel de Lucena: 

De resto, a «terceiro-mundialização» que o Exército português conheceu durante o PREC - e que se traduzia em ordens por despacho, ultrapassagem das hierarquias, etc. – não procedeu da organização do general Spínola na Guiné?

General Bethencourt Rodrigues: 

Mas note que, ao contrário do que muita gente pensa, o general Spínola não era assim tão popular na Guiné.

Manuel de Lucena: 

Quando fui subordinado do major Salles Golias, que servira sob as ordens do general Spínola na Guiné, e depois se tornou seu inimigo figadal recordo-me de ele ter dito que era capaz de tudo para evitar que o general Spínola, já depois do 25 de Abril, voltasse a pôr os pés na Guiné. O major Golias estava ciente que o general Spínola deixara uma multidão de indefectíveis, tanto cá como na Guiné.

General Bethencourt Rodrigues: 

Mas esses fiéis - o Monge, o Bruno, o Fabião, etc. - já haviam todos regressado quando fui para a Guiné. O sr. general Spínola, lamento dizê-lo, era muito faccioso. Para ele, quem não tivesse andado no Colégio Militar ou não fosse de Cavalaria era menos que zero.

Texto fixado por Pedro Aires Oliveira, a partir de notas suas e de  Fátima Patriarca.

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13096: (Ex)citações (229): O MFA na Guiné-Bissau: comentário do ten cor ref Jorge Sales Golias sobre os acontecimentos de 26 de abril de 1974, em Bissau: o gen Bethencourt Rodrigues e os oficiais que com ele se solidarizaram foram tratados com deferência e cordialidade (Carlos Pinheiro / Bento Soares)

4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13095: (Ex)citações (228): O golpe de 26 de abril de 1974, o MFA, o Com-Chefe, gen Bethencourt Rodrigues, e o comandante interino do COMBIS, cor inf António Vaz Antunes (Luís Gonçalves Vaz, que tinha 13 anos, e vivia em Bissau, sendo filho do cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz, último chefe do Estado Maior do CTIG)

Vd. também:

1 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I

Guiné 63/74 - P13096: (Ex)citações (229): O MFA na Guiné-Bissau: comentário do ten cor ref Jorge Sales Golias sobre os acontecimentos de 26 de abril de 1974, em Bissau: o gen Bethencourt Rodrigues e os oficiais que com ele se solidarizaram foram tratados com deferência e cordialidade (Carlos Pinheiro / Bento Soares)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro [ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70, e nosso grã-tabanqueiro, foto à esquerda]

Data: 2 de Maio de 2014 às 23:35

Assunto: MFA na Guiné-Bissau


Camarigo Luis Graça, camarigo Carlos Vinhal


Perdoem-me,  os meus amigos,  mas sinto-me obrigado, mas também muito honrado, em transmitir-vos a mensagem abaixo do meu Comandante do STM em Bisssau, então Capitão Bento Soares, hoje Major General na Reforma sobre os dias 25 e 26ABR74.

Um abraço com amizade

Carlos Pinheiro


2. Mensagem de Bento Soares, maj gen  ref, e leitor do nosso blogue, e de quem não dispomo de nenhuma foto:

Caro amigo Carlos Pinheiro:

Como sabe,  tomei por seu intermédio conhecimento do Blog Luís Graça & Camaradas da Guiné, TO onde batalhamos no STM e por isso vejo sempre com agrado as historietas do Blog que regularmente fazem o favor de me enviar.

No último envio do blog deparei-me com o relato do Cor Vaz  Antunes sobre os dias 25 e 26 ABR74. Fiz então um reenvio para camaradas amigos meus que estiveram na Guiné.

Porque a todos interessa a verdade exacta sobre os documentos históricos (como é o caso daquele relato), envio-lhe um comentário do TCor Jorge Golias que viveu pessoalmente os acontecimentos narrados e, aliás, é citado no próprio relato.

Autorizou-me este oficial a fazer uso do seu comentário pelo que lhe pedia a fineza de o endereçar para os responsáveis do Blog, uma vez que o meu amigo é ali uma figura grada e conhecida.

Um abraço amigo
Bento Soares

3. Comentário ten cor ref Jorge Sales Golias Jorge Sales Golias, [ex-cap, eng trms, membro do MFA, Bissau,   adjunto do CEME, Gen Carlos Fabião - 1974/75, administrador de Empresas] [, foto à direita, cortesia da página Avenida da Liberdade, da associação 25 de Abril]

26 de Abril de 1974 em Bissau

O MFA resolveu actuar em face de uma escuta telefónica em que o senhor General Bethencourt Rodrigues deu ordem à PIDE para seguir os movimentos dos capitães do MFA em Bissau e pelo facto de não ter reconhecido a JSN [, Junta de Salvação Nacional], tal como já havia feito o Comodoro Almeida Brandão, comandante marítimo.

A entrada no gabinete do General comandante foi feita por oficiais desarmados que apenas lhe comunicaram que vinham depô-lo porque ele não reconheceu a JSN. Ele perguntou se se devia considerar preso e foi-lhe dito que não, que se considerasse detido em nome do MFA, e que preparasse a bagagem para embarcar para Portugal.

O Brigadeiro Leitão Marques dramatizou, dizendo que se solidarizava com o General e que queria que o fuzilassem. Foi esta a parte dramática e que teria sido bem escusada porque a intervenção do senhor Brigadeiro não tinha qualquer justificação. Tanto assim que o General comandante se levantou e, com toda a liberdade de movimentos, interpelou um a um os seus principais operacionais,  questionando-os por terem sido tão leais e agora estarem a colocá-lo naquela situação. Foi-lhe respondido que ele não soube assumir a posição que se esperava, naquela altura dos acontecimentos.

A carga dramática advém ainda do facto de todos nós considerarmos o General Bethencourt Rodrigues como um dos mais brilhantes do Exército, mas que na altura certa estava do lado errado da História.

Quanto ao senhor Coronel Vaz Antunes, soubemos no local que o mesmo tinha abandonado as instalações do Comando-Chefe na Amura sem autorização, dado que a PM [, Polícia Militar,] tinha ordens do Capitão Sousa Pinto, para não deixar sair nem entrar ninguém e receou-se que fosse ao COMBIS tentar obter meios para atacar os militares do MFA. Talvez por isso estava à sua espera um pelotão dos comandos africanos, mas esta parte eu só tomei conhecimento através do escrito no blogue Luís Graça [& Camaradas da Guiné].

En suma,  que fique claro que o senhor General Bethencourt e os oficiais que com ele se solidarizaram foram tratados com toda a deferência que lhes assistia e com a máxima cordialidade da nossa parte.

O capitão miliciano José Manuel Barroso (e não Alfredo Barroso) falou com o Comodoro Almeida Brandão, mandatado pelo MFA, porque era o único que o conhecia. A sua mulher, ao tempo, Dra. Emília Barroso, era professora em Bissau e foi depois distinta professora universitária em Lisboa.

O Tenente-Coronel Mateus da Silva foi indigitado pelo MFA para Encarregado do Governo, aceite provisoriamente pelo General Spínola, que ao tomar conhecimento dos factos sucedidos em Bissau o saudou e lhe disse que iria rapidamente nomear um substituto, que seria o Brigadeiro Carlos Fabião.

2 de Maio de 2014

Jorge Sales Golias

[Negritos do editor, L.G.]

[Vd. também Universidade de Coimbra > Centro de Documentação 25 de Abril > J. Sales Golias > A descolonização da Guiné .]

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13095: (Ex)citações (228): O golpe de 26 de abril de 1974, o MFA, o Com-Chefe, gen Bethencourt Rodrigues, e o comandante interino do COMBIS, cor inf António Vaz Antunes (Luís Gonçalves Vaz, que tinha 13 anos, e vivia em Bissau, sendo filho do cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz, último chefe do Estado Maior do CTIG)