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segunda-feira, 15 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17360: (De) caras (64): Quando o Papa era outro, italiano, e se chamava Paulo VI... Em 1/7/1970 recebia, no Vaticano, 3 católicos africanos, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos que, por acaso, eram dirigentes do MPLA, PAIGC e FRELIMO, respetivamente... Este acontecimento provocou na altura uma grave crise diplomática entre a Santa Sé e o Portugal de Marcelo Caetano (Recortes do "Diário de Lisboa", de 5/7/1970)

















 Recorte do Diário de Lisboa, nº  17075 Ano: 50  domingo, 5 de julho  de 1970, 1ª edição  (Director: Ruella Ramos)
Fonte; Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares >  Pasta: 06615.153.24906 >  Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos

Fonte; (1970), "Diário de Lisboa", nº 17075, Ano 50, Domingo, 5 de Julho de 1970, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_6990 (2017-5-11)


1. No dia 1 de julho de 1970, um dia de semana, quarta-feira, o então Papa Paulo VI  recebeu Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral, na qualidade de dirigentes do MPLA, FRELIMO e PAIGC, respetivamente, reunidos em Roma por ocasião  da "Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas". 

No final da audiência, o Papa deu a cada um deles uma cópia em português da carta encíclica "Populorum Progressio" (1968) [Do esenvolvimento dos Povos], documento  que continha o pensamento da Igreja sobre a descolonização, a autodeterminação e o desenvolvimento dos povos.

Este acontecimento foi um série revés para a diplomacia portuguesa, embora a Santa Sé tenha procurado depois minizar o significado político da audiência, face aos protestos diplomáticos de Portugal, alegando que os três dirigentes nacionalistas africanos teriam sido recebidos, a título privado e na sua qualidade de católicos... 

O acontecimento desencadeou, na altura, uma crise nas relações entre o Governo português e o Vaticano. Anos mais tarde, a Rádio Vaticano vem falar de uma "histórica audiência" que tem que ser vista à luz do Concílio Vaticano II (concluído em 1965) e da Encíclica “Populorum Progressio”, publicada em 1967…

Submetidos à censura, os jornais portugueses da época, tais como o  "Diário de Lisboa" ou o "Diário de Notícias" (**), só deram a notícia quatro dias depois.

A Rádio Vaticano recordaria, em 2012,  34 anos depois da morte de Paulo VI, as palavras do cardeal Achile Silvestrini, que em 1970 colaborava com o então Secretário de Estado, o cardeal Agostinho Casaroli, e que, nessa qualidade, acompanhou de perto o processo que levou ao referido encontro do Papa com os três líderes africanos de língua portuguesa. Essas palavras foram proferidas num congresso sobre a figura e obra de Amílcar Cabral, realizado em Roma, na Rádio Vaticano, em 31/12/1999. Nele participaram, além do Cardeal Achile Silvestrini, outras personalides, "nomeadamente, Luís Cabral, primeiro Presidente da Guiné-Bissau independente e irmão do herói guineense" (sic)...  (O PAIGC, muito em particular, sempre teve na Itália fortes grupos de apoio à sua luta, incluindo comunidades e personalidades da Igreja Católica).

Achile Silvestrini ajuda-nos a perceber melhor o contexto em que se realizou o encontro do Papa com os 3 dirigentes nacionalitas lusófonos  (***):

"Tinha terminado não há muito o Concílio Vaticano e esta Encíclica veio como uma espécie de grande mensagem do interesse e do apoio da Igreja à promoção de todos os povos da África, da Ásia, e também da América Latina, que de algum modo estavam em condições de sujeição: ou de colonialismo, ou de subdesenvolvimento, ou de uma coisa e outra. Uma grande Encíclica que ainda hoje se lê com enorme admiração, porque foi um passo enorme. 

"Na minha experiência, que tive, se tivesse que dizer quais são os dois grandes acontecimentos da vida da Igreja nos últimos 50 anos, diria sem dúvida: o Concílio Vaticano II (sobre o qual estamos todos de acordo), mas o outro acontecimento paralelo é a descolonização.”

O Papa Paulo VI, o primeiro a vir a Portugal, em 1967, no 50º aniversário das aparições de Fátima,  não era das simpatias de Salazar, nomeadamente desde a sua visita a Bombaím, em 1963. Recorde-que em em finais de 1961 forças da União Indiana tinham invadido e ocupado os territórios de Goa, Damão e Diu.  A visita de Paulo VI a um congresso eucarístico a Bombaím foi vista pelo regime de Salazar, e o próprio Salazar, como uma grave ofensa a Portugal e ao catolicismo português. (****)

Para Amílcar Cabral, este terá sido um dos seus momentos de glória. Numa carta para Carmen Pereira, datada de Conacri, 13 de julho de 1970, comenta os sucessos da diplomacia do PAIGC nestes termos: "No plano internacional, acabamos de ter uma grande vitória contra o inimigo, com a conferência de Roma e com a entrevista com o Papa".
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Notas do editor:

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16831: Estórias cabralianas (92): Natal de 1970 em Missirá...E os Três Reis Magos Foram Adorar o Menino Braima! (Jorge Cabral)




Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho (simulando tocar um instrumento tradicional,talvez um "nhanheiro"...) com  uma bajuda e o Amaral (sentado). [Segundo aoportuna observação do nosso amigo e consultor permanente para as questões étnico-linguísticas,  Cherno Baldé, "o instrumento, na lingua fula, chama-se 'Hoddu', é mais antigo e, provavelmente, serviu de inspiração para a criacão do Kora dos Mandingas.]

Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Estórias cabralianas (92) > Natal de 1970


por Jorge Cabral

[Foto à direita, o ex-alf mil art, cmdt, Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71; jurista e professor universitário reformado; contador de estórias do antigamente e que, todos os anos,  pelo Natal,  nos surpreende com mais uma das suas jóias literárias; são "short stories", que já há muito mereciam estar editadas em papel; pode ser que haja por aí um Pai Natal, amigo da Tabanca Grande, que queira  dar uma boa  ajuda para o início de um "crowdfunding", permitindo em 2017 editar finalmente o tão desejado livrinho com as 100 estórias cabralianas que o alfero Cabral se comprometeu a escrever antes da decisão heróica de entrar, vestido de fato de amianto, no formo crematório, à procura dos Antepassados.]


Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos. Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, Missirá 1970, nunca esqueci. Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas, Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.
–  Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho. 

E eu para o cozinheiro Teixeirinha:
–  Quanto tempo esteve de molho?
 – Esqueci-me,  meu Alferes, mas o Pechincha, disse que na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.
– Porra,  Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha… 

Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.

Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:
Alfero! Alfero! Já nasceu! É macho! É macho!
– Eu não te tinha dito?! 

A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido. Mas não trouxera só a viúva, mas também uma velha, muito velha, a bisavó, que se chamava Maimuna, mas que o Alfero alcunhou logo de a Antepassada. Meia cega passava os dias à porta da morança, dormitando de boca aberta…Nunca falou comigo, mas quando eu passava, sorria mostrando o único dente que conservava:
– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus! 
– Desculpa,  Alfero! Tem que ser Braima! 

 E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o  Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:
– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima! 

 Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos,  um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem Antepassados… 

 Jorge Cabral

Lisboa, 7/12/2016




Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 63 > c. 1970/71 > O "alfero Cabral" mais o seu pequeno amigo Malan. "Regressado de uma operação, tinha sempre à minha espera o meu amigo Malan".


Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2005). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) / CCAÇ 12 (1969/71) > O fur mil at inf Arlando Roda, fotografado no presépio montado em Bambadinca, possivelmente no Natal de 1969, no primeiro ano da CCAÇ 12 (que, de julho de 1969 a agosto  de 1974, esteve ao serviço de 4 batalhões, sediados no setor L1:  BCAÇ 2852 (1968/70),  BART 2917 (1970/72), BART 3873 (1972/74) e BCAÇ 4616/73 (1974). O "alfero Cabral" é contemporâneo da "primeira geração" de graduados da CCAÇ 12.

Foto: © Arlindo Roda (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Nota do editor:

Ùltimos cinco postes da série > 

9 de janeiro de  2016 >  Guiné 63/74 - P15598: Estórias cabralianas (91): Alfero Obstetra, mas também Dentista de Balantas... (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, aí pelas três horas, fui acordado pelas Mulheres Grandes, que me pediram para levar uma parturiente a Bambadinca.

Embora a bolanha de Finete estivesse transitável, seria impossível atravessar o rio, acordando o barqueiro. Claro que os partos eram assunto de mulheres e foi com muita relutância que me deixaram observar a situação. Não só observei, como colaborei activamente no nascimento de uma menina. (...) 



22 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)


(...) Foi no dia 25 de Dezembro de 1970.

Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco,  o Sitafá, o puto que vivia connosco, interrogou-me:
– Alfero, o que é a Pátria? (...)


3 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)

(...) Grande escândalo em Missirá. A bela bajuda Mariama, apareceu grávida. Sobrinha do Régulo e há muito prometida a um importante Daaba de Bambadinca, era preciso averiguar..,

Reuni com o Régulo e chamámos a rapariga, Após um interrogatório cerrado, ela, muito a medo, esclareceu:
– O pai era o Alfero…
– Mas quando e onde?
– É que uma noite sonhei com ele. (...)



29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15054: Estórias cabralianas (88): A bebé de Missirá (Jorge Cabral)

(...) Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas… Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. (...)


18 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14761: Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o alferes Sá de Miranda e a Borboleta que sonhava que era rapariga (Jorge Cabral)



(...) Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava. (...)



Outras estórias cabralianas de temática natalícia:


16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)

(...)  A 24 de Dezembro pela manhã, fomos a Bambadinca. Trouxemos bacalhau e o correio.  Para mim chegou uma carta dos meus sobrinhos, escrita pela minha irmã. Dentro dela, um desenho do Pai Natal. Barba branca e uns óculos na ponta o nariz. Tal e qual eu ,agora…

À noite consoámos. Nem tristes, nem alegres. (...)


18 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)


(...) Também houve Natal em Missirá naquele ano de 1970. Na consoada, os onze brancos e o puto Sitafá, que vivia connosco. Todos iam lembrando outros Natais. Dizia um:
– Na minha terra…

E acrescentava outro:
– A minha Mãe fazia… (...)



16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2354: Estórias cabralianas (29): A Festa do Corpinho ou... feliz o tuga entre as bajudas, mandingas e balantas (Jorge Cabral)

(...) Porque estamos no Natal, recordas o teu de 1969 e um ataque a Bissaque. Eu passei o meu em Fá, e dias antes, noite dentro, quando já o comemorava por antecipação, acorri a defender a Tabanca de Bissaque, guiado pelo Marinho.Este era um velho, seco e pequenino, guardião das instalações de Fá, desde os anos 50(...).

21 de Dezembro de 2007 >. Guiné 63/74 - P2369: Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro (Jorge Cabral)

(..) Amanheceu igual, só mais um dia em Missirá. Para o Mato Cão, vai o Alferes, uma secção, e o maqueiro Alpiarça. É lá chegar, esperar, ver o barco e voltar. Não há tempo para o sonho – do outro lado nem Gaia, nem Almada…Já estamos de regresso, ouvimos restolhar. Vem aí gente. Neste lugar só podem ser os turras. Claro que, como sempre, o Alferes empunha apenas o seu pingalim e, em vez do camuflado, enverga camisa branca e calções de banho (...).

13 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá


(...) Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.

– Alfero, Alfero, é Spínola! –  gritam os meus soldados (...).

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15718: Efemérides (212): O Carnaval de 1970 (Jorge Picado, ex-Cap Mil)

1. Em mensagem de ontem, dia 6 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada Jorge Picado (ex-Cap Mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72) fala-nos do Carnaval de 1970, sem dúvida um dos mais tristes da sua vida.


CARNAVAL DE 1970 

Como o tempo passa…
Foi há 46 anos… mas tenho ainda bem presente essa época carnavalesca da minha vida…
Não por qualquer acto festivo e alegre próprio de folias, brincadeiras, diversões ou outras actividades burlescas usuais do entrudo. Antes pelo contrário. Por ser Carnaval, o que me pregaram foi, no mínimo, uma “partida de mau gosto”… e só podia advir da Instituição Militar, pois já não era a primeira vez que o faziam.

Embarquei para a Guiné no dia 9 de Fevereiro de 1970, segunda-feira de Carnaval. Assim, no domingo, dia 8, efectuado o almoço de despedida, antecipado, já que naquele tempo a viagem de automóvel para Lisboa era bem demorada e, os que me iam levar, teriam de regressar nesse mesmo dia a esta santa terrinha ilhavense.

Habitava então uma casa arrendada na Rua de Camões, bem perto da dos meus Pais e numa área onde decorreram os melhores anos da minha infância e parte da juventude.
Presentes, todos os familiares mais chegados, fazendo os adultos os possíveis por “camuflar” o triste momento do significado deste acto que nos reunia em volta da mesa, já que os meus filhos e sobrinho, pensava eu, que dada a pouca idade, de tal não se apercebessem.

Embarque rápido, para evitar cenas mais patéticas, acompanhado por meu sogro e no assento traseiro ladeado por dois dos meus filhos, Jorge e João, assim seguimos rumo a sul, pela EN2, via Vagos-Figueira da Foz, até apanharmos a EN1 em Leiria.
Caminho tão conhecido por tantas vezes percorrido, mas com outra disposição, nas minhas frequentes idas e vindas para Lisboa. Só que neste dia sabia que ia… mas… e o regresso?

Percurso tão longo, em que os silêncios eram maiores do que as poucas frases que pretendiam ser animadoras, mas sem efeito visível. Eu já não era o mesmo de há meio ano atrás. Desde que tinha interiorizado que a partir do CPC, não poderia evitar um qualquer lugar numa das Colónias em guerra, pratiquei, digamos, uma auto-terapia de mentalização, tipo “narcoterapia” que “descondiciona” a pessoa, diminuindo-lhe a ansiedade e fazendo-a andar “meio adormecida”. Enfim, tipo “anda no mundo por ver andar os outros”.

Por isso naquela viagem, já quase não dava por nada. Só senti um leve despertar, quando ao desembarcar nos Restauradores, onde pernoitei numa Pensão que existia quase junto do cinema Eden, vi o meu filho Jorge atirar-se para o assento do carro meio a chorar. Ficou em mim gravada essa imagem e a ideia de que afinal, ele com os seus pouco mais de seis anos apercebia-se da minha futura ausência. Mas, posso ainda garantir, que mesmo isso pouco me afectou, pois já “andava nas nuvens”, como depois sempre pela Guiné andei.

Embarquei portanto na segunda-feira de Carnaval, com bom tempo e a “partida de mau gosto”, sentia então mais funda, quando o N/M Alfredo da Silva sai a barra e… ruma a Norte, quando o destino era o Sul!
Aí sim, tive um momento de lucidez e senti uma grande revolta interior. O navio não seguia como TT, mas em viagem normal que eu bem conhecia. Lisboa-Leixões-Mindelo-Praia-Bissau e volta.

Privaram-me de menos dois dias de companhia com a família, já que poderia embarcar na terça-feira durante a tarde em Leixões. E quão importantes eram, naquele tempo de incertezas, todos os momentos passados junto de quem amávamos. Só quem viveu esse período das nossas vidas sabe dar valor a esses pormenores, que afinal eram bem grandes.

Escusado será dizer, que nessa terça-feira, durante aquelas horas que passamos em Leixões, apenas deambulei pelo cais e proximidades, não telefonando sequer para casa, para não agravar mais a saudade.

E assim foi o meu Carnaval de há 46 anos.
Viagem por terra para Lisboa, cruzeiro marítimo para Leixões, passeio pelo cais nesse porto sem vislumbrar qualquer mascarado, mas fantasiado de Capitão do Exército com um grande melão.

Abraços para todos os Tabanqueiros do
JPicado
 
Em primeiro plano, à direita, o Cais Sul da Doca 1 do Porto de Leixões, local habitual para atracação dos navios da Sociedade Geral a que pertencia o "Alfredo da Silva". A foto não representa a época.

Foto: Fonte Internete, com a devida vénia ao eu autor
Legenda: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15714: Efemérides (211): "Desastre na Guiné", título de caixa alta, da 2ª edição do "Diário de Lisboa", de 8/2/1969

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9531: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (10): As vozes da nova música popular portuguesa (incluindo o Zeca Afonso) que chegavam ao CAOP1 através das ondas hertzianas da rádio

1. Pela rádio chegavam ao TO da Guiné vozes, música, notícias... de todo o mundo. Captava-se, em onda curta,  a BBC, mas também-se a Emissor Nacional, a Voz da América, a Rádio Moscovo... Pelo menos, em Teixeira Pinto, Mansoa, Cufar, que foram sucessivamente sede do CAOP1...

 No seu diário, o António Graça de Abreu (ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74) dá-nos conta de alguns desses encontros hertzianos com o mundo... A internet ainda estava para nascer, dali a 20 anos, mas o mundo já era cada vez mais global. E em 1973 acabava a época dos 30 gloriosos, os trinta anos de crescimento económico ininterrupto, os anos do milagre económico do Ocidente... A primeira grande crise petrolífera, a de 1973,  era também o primeiro grande sinal de alarme sobre o esgotamento de um certo modelo de produção e de consumo... 

 José Afonso (1929-1987), que morreu fez agora  25 anos, em 23 de fevereiro de 1987, é referido pelo AGA como tendo passado na emissora nacional (Bissau) com o seu belíssimo Traz Outro Amigo Também, um verdadeiro hino à amizade e à camaradagem (Do álbum do mesmo nome, gravado em Londres, nos estúdios da PYE, e editado em 1970; o que muita gente não sabe é a forte ligação, emocional e musical, do Zeca Afonso, a Africa, e em especial a Angola e Moçambique).

Por gentileza, generosidade e camaradagem do AGA, aqui ficam aqui mais quatro excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*).



(....) Canchungo, 17 de Julho de 1972

Soube pelo “Diário Popular” de anteontem, que traz fotografia e tudo, que em Cabo Ruivo foram postas bombas em treze camiões Berliet destinados ao nosso exército que sofreram assinaláveis estragos. É um protesto contra a política bélica do Marcello Caetano.

Na rádio, ouvi também o relato do sucedido. Tenho no meu quarto uma ligação a uma antena com 40 metros de altura, montada pelo meu companheiro, alferes Tomé, o chefe das transmissões do CAOP. Com o rádio em onda curta captam-se inúmeros postos com uma nitidez sensacional, é a BBC, Moscovo, a Voz da América, Tirana, a Rádio Voz da Alemanha, Argel, etc. Mais um entretenimento útil de que benificio e sou rapidamente informado do que acontece nos quatro cantos do mundo.

(...) Canchungo, 31 de Agosto de 1972

Na Guiné existe apenas uma emissora de rádio, prolongamento da Emissora Nacional. É divertida, tem anúncios locais, passa discos pedidos, acção psicológica, etc.

Há dias ouvi por várias vezes o seguinte mimo, mais ou menos nestes termos: “A Casa Pinto lamenta informar os seus excelentíssimos clientes que a aguardada remessa de camisas Lacoste foi mais uma vez desviada entre a origem e a cidade de Bissau pelo que não poderá ainda desta vez satisfazer as encomendas dos seus estimados clientes e amigos.” Onde foram parar as Lacoste, desviadas para onde e por quem?

Ao fim de quase dois meses a ouvir música fraquíssima, fui hoje surpreendido ao ouvir o meu bom amigo e colega de faculdade António Macedo cantar o “Cavaleiro cavalgando no meu sonho” e o José Afonso, o homem da “Grândola”,  a cantar “Traz outro amigo também”. Quer isto dizer que os discos existem em Bissau, só que os passam pouco. Deve ser por causa do calor e dos mosquitos que pousam no vynil dos LPs.

Outra surpresa nas minhas leituras de hoje, foi encontrar uma citação do Antigo Testamento. Diz: 'Os teus seios são semelhantes a dois filhotes de gazela pastando no meio de lírios'. Isto foi escrito há dois mil e novecentos anos pelo rei Salomão, no Cântico dos Cânticos e publicado, quem diria!, no Jornal do Exército português, número de Junho de 1972.

(....) Mansoa, 1 de Março de 1973

Escrevo deitado na cama, a prancha de contraplacado a servir de escrivaninha, por cima tenho a ventoinha a mandar vento.

Ouvi o Festival da Canção em directo de Lisboa, via rádio de Bissau. Ganhou a “Tourada” do Fernando Tordo e do Ary dos Santos, e muito bem. Se há reacções dos reaccionários é sinal de que vale a pena espetar “as bandarilhas da esperança” na fera cavernosa que há tantos anos decide o destino político de Portugal, este regime velho e caduco. Seremos um dia livres, na “Praça da Primavera”.

A poesia do Ary dos Santos, “poeta castrado, não!”, mas engordado e feminino, parece-me por vezes demasiado fácil, demagógica. É inferior a muita outra poesia aparentemente “chata” que se escreve em Portugal, mas a do Ary tem uma vantagem, chega facilmente à compreensão de grande número de pessoas. É importante porque abala as gentes, intervém.


(...) Cufar, 7 de Março de 1974

Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção.

Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.

Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.

Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. (...)  Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9511: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (9): Circo... e bombas que não eram de carnaval ... em 1974

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9195: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (11): O nosso Natal de 1970, em Bambadinca





Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > BART 2917 (1970/72) > Natal de 1970 > O presépio construído pelo Alf Mil Capeleão, Arsénio Puim... Na foto, o Fuir Mil At Inf Arlindo Roda, da CCAÇ 12 (1969/71), junto ao presépio e na capela da missão católica de Bambadinca.

Fotos: © Arlindo Roda 2010). Todos os direitos reservados


1. Mensagem, com data de 16 do corrente, do nosso muito estimado amigo e camarada Arsénio Puim, açoriano de Santa Maria, ex-capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72):

Amigo Luís Graça

Volto hoje a mandar um pequeno trabalho para o blogue, evocando, a propósito, o Natal que passámos em Bambadinca em 1970.

Para ti um abraço, com os meus melhores votos de Natal e de Ano Novo, extensivos à tua família.

Arsénio Puim


2. Recordando os meus Natais na tropa, e em especial o de 1970, em Bambadinca
por Arsénio Puim
De todos os Natais que, na minha já longa vida, passei, em localidades e situações muito variadas, não foram menos marcantes e significativos os dois Natais que vivi na Tropa, como alferes capelão.

O primeiro, a que já me referi num texto que escrevi neste blogue há uns três anos, foi vivido no Regimento de Artilharia Pesada 2, na Serra do Pilar, em Gaia. 

Terminado o Curso de Capelães Militares, em Lisboa, eu chegara há um mês àquela Unidade, onde estava a ser mobilizado o Bart 2917, que integrei desde então. Era o ano de 1969.

Uma impressão forte que guardo deste Natal, o primeiro que passei fora das ilhas dos Açores, é a ausência e o vazio causados pelo despovoamento do Quartel em razão da partida da quase totalidade dos militares – penso eu, umas boas centenas – para as suas terras naquela noite. Só ficou atrás um reduzido número de soldados – talvez menos que uma dúzia - necessário para a guarda e o funcionamento mínimo do Quartel. 

A consoada foi a grande celebração dessa noite, que aquele «resto» do Regimento do Pilar protagonizou, no Bar dos Oficiais, com todas as praxes e circunstância, discursos e saudações, farturas e magia próprios da noite natalícia. O serão, pela noite dentro, caracterizou-se por boa comida e bebida, muita cordialidade, conversação calma e evocativa e um clima de emoção e saudade, que o horizonte, já próximo, da partida para a Guiné naturalmente aguçava.

O outro Natal foi na Guiné, em Bambadinca, onde havíamos chegado no dia 31 de Maio de 1970.

Aqui, houve Missa do Galo, na capela da Missão, situada na área do Quartel, muito desejada pelos militares e bastante concorrida por estes assim como pelas crianças e civis nativos. 

Fizemos um bonito presépio a céu aberto, na parada, com a colaboração do cabo sacristão, Mário Baptista [, ou 1º Cabo Serviço Religioso   Mário Augusto Teixeira Alves, de seu nome completo] , e outros soldados, que foi apreciado pelos militares e alguma população nativa. 

A gruta do Menino era em forma de tabanca, feita de capim e ramos, albergando as figuras tradicionais do presépio, de boas proporções, tudo inserido num cenário natural de selva africana e dispondo de iluminação coada e música de fundo. Faltou talvez, neste presépio, a integração de algumas figuras de raça negra - para além do Rei Mago Belchior, que até não sei se estava lá presente - para lhe dar um ainda maior enquadramento no meio e um sentido mais universalista.

Organizámos ainda, nesta quadra, um jornal de parede ou de caserna, com colaboração muito inspirada e espirituosa, e promovemos uma festa de Natal, com variedades e um conjunto musical, a qual teve muito brilho e nível. Num mundo de várias centenas de militares, de formação, graduação e origem diferentes, como era o caso das Companhias de Bambadinca, encontram-se sempre elementos com notáveis dotes e capacidades em diversas áreas.

E não faltou também o almoço de confraternização, para todos os militares estacionados na CCS, em ambiente familiar e natalício.  

Na ocasião, o comandante do Batalhão [, ten cor art Domingues Magalhães Filipe, já falecido, ] leu uma mensagem do Comandante Chefe e Governador da Guiné, general Spínola. Exprimia, em bom estilo, ideias cristãs de paz, amor e afastamento dos ódios neste dia de Natal, um ideal que, por certo, não pode ser visto a prazo nem pairar acima das guerras que os homens fazem.

Foi assim que, no pequeno e vistoso planalto de Bambadinca - situado no centro da Guiné, tendo o grande Geba a passar por perto e os arrozais, as tabancas e abundantes espaços florestados em redor – foi celebrado em 1970 o Natal de Jesus, num clima, por sinal, isento de acções bélicas, onde não faltou a festa, a magia e também aquela saudade que a quadra natalícia sempre proporciona, com maior razão, entre os soldados destacados em zonas de guerra.

Aproveito a oportunidade para saudar todos aqueles com quem passei estes dois Natais, e todos os companheiros do Batalhão 2917, com os meus sinceros e cordiais votos de Bom Natal e Bom Ano Novo.
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sábado, 28 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8342: O Nosso Livro de Visitas (112): Campelo de Sousa, ex-radiotelegrafista de rendição individual (Bafatá, 1970; Nova Lamego, 1971/72), relembrando a sua passagem por Bambadinca



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > A parada do quartel de Bambadinca, a capela (que servia também de casa mortuária...)  e, à direita, a secretaria da CCAÇ 12 (1969/74)

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados

1. Dois comentários, do nosso leitor Campelo de Sousa (de quem não temos o endereço de e-mail), ao poste CXXXI, da I Série do nosso Blogue (*):

 Data: 27 de Maio de 2011 17:38
Assunto: [Luís Graça & Camaradas da Guiné (I Série)] Novo comentário sobre Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (*)
1. Eu também passei por Bambadinca, estive em Bafatá no Posto de Transmissões em 1970. Em 1971 fui para Nova Lamego, também para o Posto de Transmissões pois eu era Radiotelegrafista.

Estive em Nova Lamego até Setembro de 1972, tendo regressado a Lisboa em 14 de Outubro de 1972.

Parabéns pelo exelente Blog. 

2.  Esqueci-me de dizer que fui mobilizado em rendição individual que embarquei em Lisboa a bordo do barco Ana Mafalda , no dia 18 de Setembro de 1970, desembarquei em Bissau na manhã do dia 24 do mesmo mês e ano.

Também terei algumas histórias para contar, inclusive uma,  e talvez a mais marcante, passada em Bambadinca, quando entrei pela primeira e única vez na capela e estavam lá expostas três urnas com soldados mortos em combate !!
Mais uma vez parabéns pelo excelente Blog !!
Cumprimentos,
Campelo de Sousa


3. Comentário do editor:

Caro camarada Campelo: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Conheces as regras do nosso blogue... Mandas duas fotos tuas, de tipo passe, uma do antigamente da guerra e outra actual, e constas uma história (por exemplo, a tua visita à capela de Bambadinca, naquele dia transformada em casa mortuária, como também eu a conheci)... Isso dá-te o direito de te sentares, para a eternidade, no bentém da nossa Tabanca Grande, sob o nosso secular, mágico, frondoso e fraterno poilão... que já dá sombra, protecção  e inspiração a mais de 500 amigos e camaradas da Guiné (Vd. coluna do lado esquerdo, estática, do nosso blogue). Escreve-nos para o endereço do blogue. De qualquer modo, obrigado pela tua visita. Que fica aqui devidamente assinalada. LG

PS - Faz hoje anos que Bambadinca foi atacada em força... 28 de Maio de 1969... Vinha eu no Niassa, prestes a chegar a Bissau... Também lá passei, a caminho de Contuboel, dois ou três dias depois... Ainda havia uma cheirinho de pólvora no ar...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 Julho 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969) (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 10 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8077: O Nosso Livro de Visitas (111): António Luiz Figueiredo procura saber notícias do pessoal que com ele conviveu na sua comissão

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7525: Notas de leitura (181): Tempestade em Bissau, Ano 1970, de Mário Gonçalves Ferreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2010:

Queridos amigos,
Que eu saiba, é o primeiro médico a afoitar-se nas incursões literárias da guerra da Guiné. Não é uma grande lançada em África mas dá para saudar as reconstituições de atmosferas e vivências militares.

O autor centra-se em Tolentino Menezes, o que certamente o fascina é mostrar como nestes períodos de mudança o ser humano defende-se ignorando o que vê à volta. Depois morre e não pode participar na tempestade…

Um abraço do
Mário


Tempestade em Bissau (ano 1970)

Beja Santos

Mário Gonçalves Ferreira, cardiologista, nascido em 1937, foi médico do BART 2917, em Bambadinca. Iniciou a sua actividade literária com o romance “Tempestade em Bissau (ano 1970)”, Pallium Editora, 2007.

Sem nunca iludir que se trata de pura ficção, o autor faz desfilar, com jocosidade e uma acidez temperada personagens da vida civil e militar que todos conhecemos na atmosfera da guerra: a pesporrência e a vacuidade de alguns discursos: a chegada e a partida de tropas no mítico cais do Pidjiquiti; a encenação da vida dos funcionários coloniais, as suas cumplicidades e o seu quadro de ambições; a vivência dos oficiais e suas famílias em Bissau… recorrendo a um discurso retórico e a uma efabulação grotesca, fazendo irradiar a acção à volta do obscuro Tolentino de Sá e Menezes, o autor risca os traços mais pronunciados do drama desse funcionário colonial que vai perdendo referentes e se ausenta da realidade da evolução de uma guerra onde ele não encontra lógica nem adaptação.

Tolentino nasceu em Goa, veio cedo para Bissau, tomou posse do lugar de 3º escriturário do Tribunal Civil. Aprendeu a curvar a cerviz, a fechar os olhos a mais ou menos graves ilegalidades, apaixonou-se pela lavadeira Famatá Sanhá, dessa relação irão aparecer André e Lamine Sanhá Menezes. A irmã de Famatá imiscui-se na vida de Tolentino, vai crescer uma relação conjugal triangular. 

Chega a guerra, alterou-se a pacatez daquele pequenino cosmopolitismo, progressivamente vamos assistindo a divisões ideológicas, à consciencialização das asperezas daquela guerra. André até vai a Bambadinca visitar membros da família e conhece um primo guerrilheiro que o impressiona com a sua determinação. A saúde de Tolentino deteriora-se, assolado pela diabetes. André partirá para a guerrilha, Tolentino para a metrópole, vai fazer exames, é submetido a tratamentos rigorosos. 

O autor engrossa a escrita colocando episódios bélicos, assistimos até ao Natal do soldado e ao envio de saudações para as famílias em Portugal. Um certo alferes Gonçalves envia uma carta para a namorada e depois vai a Fá Mandinga encomendar uma peça de ourivesaria. O artesão disse-lhe: “O que eu tenho de mais valioso é esta peça de prata fina que tem incrustada uma moeda de oiro. Mas para a trabalhar a uma semana e usar o saber de muitos anos de uma experiência acumulada”. 

A viagem de regresso vai culminar numa tragédia, o Unimog pisará uma mina, o condutor e o jovem alferes morrerão. E sobre o alferes Gonçalves fica escrito: “Tinha um lenço atado à volta do coto que restava da sua perna esquerda. E no bolso foi encontrado um colar feito de prata fina, com uma medalha em filigrana onde estava incrustada uma moeda de oiro que tinha, em relevo, as seguintes gravações: Victoria D: G: Britannia R: Reg: F: D:, com a efigie da rainha; na outra face ostentava, também em relevo, a imagem de um cavaleiro a matar um dragão e uma data: 1884; e, por baixo, artisticamente desenhado, um nome: Lena.”. 

Tolentino adoece gravemente em Lisboa, aqui vai falecer. Na celebração das exéquias na catedral de Bissau uma tempestade sacode Bissau.

O que sobressai do relato é o pendor para exibir as misérias do mundo e a incapacidade de fazer a leitura das mudanças à nossa volta. As descrições de Mário G. Ferreira são pouco lisonjeiras para as individualidades do regime, para os militares em Bissau, para os esteios administrativos guineenses. É uma mordacidade que não se dissimula. É uma tempestade que muitos recusam ver. A prosa é barroca, a linguagem privilegia o obnóxio, o discurso espalhafatoso, os guerrilheiros heróicos e ingénuos. Vamos ficar à espera da continuidade literária deste médico de Bambadinca que tomou gosto pela escrita.
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Notas do Editor:

(*) Vd. último poste de 28 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010

Vd. último poste da série de 25 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7501: Notas de leitura (180): Poemas, de Vasco Cabral (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7502: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (19): José Barros Rocha, de Penafiel, ex- Alf Mil, CART 2419 (Mansoa, 1979/70)

Região de Tombali > Guileje > 1969 CART 2410, Os Dráculas (Junho de 1969; Março de 1970) > Alf Mil José Barros Rocha, reformado da actividade bancário, natural de Penafiel, se não erro... [,foto à esquerda].

1. Notícias de um camarada José Barros Rocha (não confundir com o com popular José Rocha, ex-Alf  Mil da CCS/ BBCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, amigo do António Pimentel, nosso amigo também, membro da Tabanca de Matosinhos, mas que ainda não se inscreveu na Tabanca Grande: estranha contradição, quem pertence à Tabanca Pequena deveria passar automaticamente a pertencer à Tabanca Grande, mas não: as regras são diferentes, a filosofia organizativa também é um bocado diferente...).  

Estamos a falar de um camarigo do Norte, um homem que na Guiné esteve no sul, e eu eu conheci por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje... membro da nossa Tabanca Grande desde Fevereiro de 2007. Foi ele quem nos alertou para batalha de Sangonhá. (LH)


De: José Rocha

Data: 24 de Dezembro de 2010 14:12

«Então, Luís:
Que raio de de maleita essa - ciática - te havia de apoquentar e numa altura destas!!!....
Só quero desejar-te as mais rápidas melhoras e que consigas uma noite de Consoada o mais tranquila possível na companhia dos que de ti estão e são mais próximos.

As tuas melhoras!
Feliz NATAL!

Aquele abraço "camarigo"!
José Rocha


P.S. - Os votos de melhoras são extensivos a todos os "camarigos" que neste momento se encontrem menos bem.

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Nota de L.G.:


ÚItimo poste da série > 25 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7499: Agostinho Gaspar, de Leiria ( 3ª CCAÇ / BCCAÇ 4162, Mansoa, 1972/74)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7222: Blogues da nossa blogosfera (39): Vitor Mendes, marinheiro radiotelegrafista, N.R.P. Orion, 1970/1971






O Blogue do Vitor Mendes, com uma bela foto da LFG Orion, algures na Guiné...Legenda: " LFG (Lancha de Fiscalização Grande) Orion, da classe Argos, num rio da Guiné [ 1970/71].Deslocamento: 210 toneladas; Dimensões (em metros): 41,7 x 6,7 x 2,1; Armamento: 2 canhões Bofors 40mm/70, metralhadoras 7,62mm e granadas de dilagrama; Propulsão: 2 motores diesel Maybach Tunel MD 440/12 accionando dois hélices, totalizando 2400cv; Velocidade: 17,3 nós; Autonomia: 1660 milhas náuticas; Tripulação: 24. Os navios desta classe usados na Guiné eram parcialmente blindados"...


1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Vitor E.I. Mendes, que foi tripulante do NRP Orion (1970/72) (*)


De: Vitor E. I. Mendes [vitorinacio.mendes@netvisao.pt]
Enviado: quinta-feira, 4 de Novembro de 2010 16:17
Assunto: N.R.P. "Orion" Guiné 1970/1971

Caro Luís Graça:

... e eis senão quando, em busca de dados sobre a "Orion", eu,  que durante quase dois anos fui dela um dos dois marinheiros Radiotelegrafistas, durante as operações e nos anos acima citados o mais antigo, (a antiguidade era um posto, não era?...), descubro um blogue de ex-camaradas de guerra e não apenas da Marinha!

Tenho estado a ler alguns posts do seu blogue e a minha memória já de 61 anos transporta-me para muitas das situações idênticas às descritas e às reflexões inevitáveis do que todos vivemos -  e o Luís Graça no mesmo período que eu...

Tenho estado a escrever qualquer coisa parecido com memórias no meu blogue http://comunidade.sol.pt/blogs/vitormendes/default.aspx  que gostaria de partilhar consigo. Recordar é viver - máxima que poderá também ser o contrário... Dizia um poeta: "partir é morrer um pouco"!...

Disponha, se quiser e puder responder-me.

Com consideração
Vitor (Emanuel Inácio) Mendes
vitorinacio.mendes@netvisao.pt


2. Comentário de L.G.:

Anda tão discreta, escondida  (ou submersa ?),  a nossa marinha, que é difícil encontrar um marinheiro, mesmo dos velhinhos como tu que bateram os rios e os braços de mar da Guiné...A surpresa também é, pois, da nossa parte, ao deparar nas andanças da blogosfera um camarada como tu, marinheiro radiotelegrafista... Parabéns pelo teu blogue. Fico à espera dos próximos episódios do teu herói de carne e osso(**). Incentivo-te a que continues e convido-te, inclusivamente, a ingressar na nossa  Tabanca Grande que já conta com cerca de 460 camaradas, todos eles heróis de terra, mar e ar... E claro, de carne e osso, como o teu. Não estranhes o tratamento, romano, por tu: afinal, fomos todos camaradas de armas...Bons ventos para as tuas viagens de regresso ao passado. Prometo voltar a visitar-te. Um Alfa Bravo. Luís


PS - Registo a primeira frase que escreveste no teu blogue, em Março de 2007: "Então por que é que não havia eu de entrar neste mundo algo misterioso da blogomania?...No fundo tenho tanta necessidade de me fazer ouv(e)r como qualquer outro pobre mortal deste planeta"...Registo igualmente uma das tuas citações da Bíblia, que é um dos teus livros de cabeceira: "O que foi, isso é o que há-de ser, e o que se fez, isso se tornará a fazer; DE MODO QUE NADA HÁ DE NOVO DEBAIXO DO SOL. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós." (Livro do Eclesiastes, ou do Pregador).
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Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série > 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7066: Blogues da nossa blogosfera (38): Breve História da Tabanca dos Melros (Carlos Silva)

(**) Com a devida vénia este teu primeiro naco de prosa:

(...) Chegara a Bissau, capital da então Guiné Portuguesa, no dia 1 de Fevereiro de 1970. Após uma longa madrugada a enganar o sono enroscado em cima de um caixote de madeira, a bordo de uma lancha de desembarque grande (LDG), cujo nome esqueci, desembarquei na ponte-cais que servia também de base naval. Saco-mochila de lona às costas, como se dentro dele transportasse um cadáver, aos primeiros alvores da madrugada tropical, tinha de encontrar o navio para o qual eu havia sido destacado. 

Havia vários, lanchas de fiscalização grandes e outras embarcações menores, mas qual a “Orion”, que esperava um radiotelegrafista para rendição individual? Interroguei um africano, eventual estivador que por ali estava à espera de trabalho em navio mercante prestes a chegar, se me podia satisfazer a curiosidade. Admirado pela pergunta de um marinheiro branco alvamente fardado, supostamente no seu ambiente, apontou-me a mancha cinzenta característica da pintura dos navios de guerra ali atracados. Peças de artilharia à vante e à ré, antenas de radar e de TSF verticais e horizontais, pára-raios, balanceavam ao sabor da viragem da maré no Rio Geba. Ouviam-se os sons do marulho da água nos pilares de sustentação do cais enquanto descia, meio ensonado e vagueando, a escada do primeiro portaló dos vários “patrulhas” atracados de braço dado.

O primeiro ser humano surgiu – um escola, como nos tratávamos, o “cabo de dia”, de familiar pistola “Walter 9 mm” à cintura, a sair estremunhado de uma noite de vigia. Não estava no navio que eu procurava, mas reconhecendo em mim um “piriquito”, algo pálido até pela falta de descanso, ofereceu-me café quente que tinha acabado de fazer para ele e disse-me que estávamos a bordo ou da “Cassiopeia”, ou da “Lira” ou da “Hidra”, os "patrulhas" ou LFG’s gémeas, eu sei lá, mas que a “Orion”, a outra irmã, estava numa das posições seguintes e que eu tinha tempo porque ainda estava tudo a dormir… O apito da alvorada ouvir-se-ia daí a instantes. (...)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6945: Notas de leitura (145): Liberdade ou Evasão, de António Lobato (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,


Há páginas muito curiosas neste testemunho do Major Lobato. Pena é que não tenhamos o seu relato mais detalhado da Guiné, entre 1961 e 1963. Dá que pensar o que era a implantação do PAIGC no Sul, logo em Maio de 1963. E sente-se o amadurecimento de um resistente numa prisão tenebrosa, num estatuto infame de criminosos de guerra.


Um abraço do
Mário


Major António Lobato, o mais longo cativeiro da guerra colonial

Beja Santos

Alistou-se na Força Aérea como voluntário, em 1957. Embarcou para a Guiné, em 1961. Em 1963, em consequência de uma colisão entre dois aviões, depois de uma operação na ilha do Como, foi feito prisioneiro pelos guerrilheiros do PAIGC. Começava um longo cativeiro que só iria terminar com a operação Mar Verde, em finais de 1970.

O seu relato intitula-se “Liberdade ou Evasão” (Editora Ausência, 2001). É um documento de real importância: fica-se a saber a implantação do PAIGC no sul da Guiné, logo no primeiro ano da luta armada, a sua mobilidade até à República da Guiné; as ambiguidades de ser prisioneiro de guerra e de viver em silêncio, sem poder comunicar com a família e com o país; temos acesso a conversas com dirigentes do PAIGC e o que deles pensa o prisioneiro; acima de tudo, o testemunho da tragédia do isolamento, o modo como se procura ultrapassar o abismo de viver rodeado de outros camaradas, num cocktail com presos do regime de Sékou Touré.

A despeito de diferentes contradições (como aquela de estar plenamente informado sobre a ditadura de Sékou Touré quando é enclausurado na Maison de Force de Kindia com o rótulo de criminoso de guerra, ele, sargento Lobato, que dizia nada saber de política) é um documento que de longe regista as múltiplas dores e sofrimentos de estar preso em terra alheia, sem nunca vacilar diante das propostas de desertar ou mancomunar-se com o inimigo. É um relato por vezes minucioso, confessional, dá pormenores relevantes sobre a vida em campo de concentração.

Vejamos o que diz do seu encontro com Nino Vieira, pouco depois da sua captura na região de Tombali:


“Sentado no tronco seco de uma velha árvore, o jovem chefe guerrilheiro, vestido de kaki verde-escuro, pés nus e espartilhados por sandálias de plástico, braços ornamentados com grossos anéis de madeira e couro, um pedaço de corno pendurado ao pescoço por uma tira de cabedal, mais parece a estátua inerte de um deus negro expulso do Olimpo, de que o temível turra a quem todos obedecem, porque é “imune às balas do tuga”. 

Metido numa prisão em Boké, manifesta o nojo pela degradação a que sujeitam o ser humano:

 “A luz que a grade filtra é agora um pouco mais intensa do que ontem, à minha chegada. Sento-me na cadeira-cama em que dormi e fico a olhar a parede em frente, a menos de meio metro do meu nariz… Não tem qualquer cor definida, está cheia de nódoas indecifráveis, de sulcos cavados no reboco, de matéria que sobre ela deve ter sido projectada, que aderiu à superfície e solidificou com o tempo: sangue?… escarros?… fezes?… É uma parede suja, muito suja, uma daquelas paredes de calabouço que só conhecemos através da imaginação dos romancistas”.


Começam os interrogatórios, é perguntado sobre o regime político em Portugal, o que é uma república unitária e corporativa, o que é que ele pensa sobre a guerra colonial. Depois encontra Otto, um cabo-verdiano, ex-radiotelegrafista da Aeronáutica Civil que trabalhou com ele no aeroporto de Bissau. Otto leva-o até junto de guineenses que se juntaram ao PAIGC. E escreve, sentenciador:

“Os pobres guineo-portugueses fitam-me com um ténue sorriso nos lábios gretados pelo calor e pela subnutrição e naqueles olhos esbugalhados pela surpresa, lê-se a esperança longínqua de um regresso à terra-mãe, ao doce chicote do colonizador que durante quinhentos anos lhes garantiu a banca fresca, pão, água e alguma aprendizagem técnica, científica e cultural”. 

Transferido para Conacri, é de novo interrogado: a guerra que Salazar faz em África é justa? O que sabe sobre as prisões políticas em Portugal, explique-nos a organização da PIDE, o que pensa da conferência da Adis-Abeba, quer trabalhar com o general Humberto Delgado? Nega a responder, recusa colaborar, vai direitinho para a Maison de Force de Kindia. Assim se inicia a longa etapa da sobrevivência, é um prisioneiro posto à disposição não se sabe bem de quem e como. Vai sofrer estados de revolta, sentir as entranhas corroídas pela angústia.

Um homem da Guiana, ali preso por roubo, oferece-se para mandar uma mensagem até à família. É tocante o que escreve, a revelação dos seus sentimentos. Temos depois um dos pontos mais altos do seu relato, a descrição da vida do Forte, a situação dos degredados, os seus gritos, a observação que faz para ver se pode fugir, a luta contra os percevejos, os exercícios de ginástica. Começa a receber encomendas por via da Cruz Vermelha, recebe as visitas de Amílcar Cabral, inabalável, recusa colaborar. Depois tenta fugir. É interessante comparar a sua descrição com aquela que fez o alferes Rosa, e que já aqui publicámos no blogue. Ajuíza positivamente o comportamento de dirigentes do PAIGC como Fidelis Cabral, Aristides Pereira ou Joseph Turpin dizendo que são homens bons, moderados e sensatos.

Até que chegamos a 22 de Novembro de 1970, a operação Mar Verde. Refere o seu encontro com o capitão tenente Alpoim Calvão e a partida de Conacri. E, por fim, as peripécias da chegada a Portugal e a sua amargura quanto a atitudes e comportamentos de oficiais da Força Aérea, que o desiludem. Termina o seu relato citando Emanuel Mounier: “Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão”.

Chegara a hora de recomeçar a vida, vencida estava a duríssima etapa de sobrevivência, anos e anos a viver à beira do desespero (*).

Este livro passa a pertencer à biblioteca do blogue.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6941: Notas de leitura (144): Amílcar Cabral Documentário (Mário Beja Santos)

(*) Relacionado com este poste,  vd. 27 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

(...) Depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008). As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo.

Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correio, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-me para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, cujo T 6 foi abatido em 1963, na Ilha do Como .

Feito prisioneiro pelo PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde. "Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta.

Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... "Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. "Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao seu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada...(...)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6822: Efemérides (48): A CCAÇ 5 e as comemorações do 11.º aniversário dos acontecimentos do Pidjiguiti (ou Pindjiguiti) (José Martins)


1. Mensagem de José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 2 de Agosto de 2010:


Boa noite camaradas
Junto nota do que se passou em 3 de Agosto de 1970.

Abraço
José Martins




Vista do aquartelamento de Canjadude

Fotos: © José Corceiro (2010). Direitos reservados


Gatos Pretos
Companhia de Caçadores n.º 5

Camaradas de Armas que partiram há 40 anos

João Purrinhas Martins Cecílio

Furriel de Infantaria, NMEC 46341858, prestava serviço no Batalhão de Caçadores 10 quando foi mobilizado.

Foi aumentado ao efectivo da Companhia em 28 de Maio de 1970, vindo da Companhia de Caçadores 2464 e da situação de evacuado, assumindo as funções de Comandante de Secção.

Foi abatido ao efectivo da Unidade em 3 de Agosto de 1970 por ter falecido em combate, devido a ferimentos graves contraídos aquando do rebentamento de uma mina.


Carlos Alberto Leitão Dinis

1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro, NMEC 09227569, natural de Oliveira do Hospital, prestava serviço no Batalhão de Caçadores 8 quando foi mobilizado.

Foi aumentado ao efectivo da Companhia em 30 de Março de 1970, assumindo as suas funções na Secção de Saúde.

Foi abatido ao efectivo da Unidade em 3 de Agosto de 1970 por ter falecido em combate, devido a ferimentos graves contraídos aquando do rebentamento de uma mina.



Como o PAIGC comemorou, na zona de Canjadude, a passagem do 11.º Aniversário do Massacre de Pi(n)djiguiti

Actividade Operacional

3 de Agosto de 1970 - O Inimigo implantou uma mina anticarro no itinerário Canjadude - Nova Lamego e flagelou o aquartelamento pelas 22 horas. Estas acções devem prender-se com as comemorações do dia 3 de Agosto. Destas acções resultaram 2 mortos para as Nossas Tropas.

(Nota sobre a data de 3 de Agosto de 1959 – Acontecimentos de Pidjiguiti ou Pindjiguiti, em Bissau, com violenta repressão de estivadores grevista, causando várias dezenas de mortos)

Relatório da Flagelação feita pelo IN ao Aquartelamento de Canjadude em 03AGO70

01. Situação Particular

Em 030745AGO70 accionamento de 1 mina anticarro no Uelingará, itinerário de Canjadude-Nova Lamego.

Desde 02SET69 que o IN não se revelava no Sector da Companhia. O último ataque ao Aquartelamento deu-se em 11JUL69.

02. Missão da Unidade

Defesa do Aquartelamento com as forças existentes neste, segundo o plano de defesa, atendendo a que 1 Pelotão se encontrava de reforço a Nova Lamego.

03. Força Executante

a) Alferes Miliciano de Infantaria Deodato Santos de Carvalho Gomes

b)
1.º Pelotão – Furriel Miliciano Borges
3.º Pelotão – Alferes Miliciano Sousa
4.º Pelotão – Alferes Miliciano Martins
Pelotão de Milícia n.º 254
Formação

c) Meios constantes em b).

d) ____________

e) Armamento e equipamento orgânico do pessoal e de defesa do Aquartelamento.

04. Planos Estabelecidos

A defesa do Aquartelamento segundo o plano estabelecido.

05. Desenrolar da Acção

Em 032210AGO70 um grupo IN de cerca de 50 elementos desencadeou a flagelação ao Aquartelamento com Morteiro 6 cm, RPG 2, RPG 7 e armas automáticas das direcções Leste e Nordeste do Aquartelamento e a cerca de 800 metros. O pessoal dos postos de sentinela reagiu imediatamente assim como o Morteiro 81 do Aquartelamento, seguindo-se a reacção conjunta de toda a guarnição segundo o Plano de Defesa, tendo o IN retirado cerca das 22H25, continuando as nossas armas a bater a zona de retirada na direcção de Canducuré.

O IN utilizou a estrada de Ganguiró e Canducuré-Canjadude na aproximação e retirada. Feito o reconhecimento da base de fogos IN e do itinerário de retirada, encontraram-se poças de sangue no local de instalação assim como ao longo da estrada. Em Ganguiró o IN dispersou na direcção de Cabuca, seguindo cerca de 5 elementos na direcção de Rio Buoro-Siai.

06. Resultados Obtidos

Devido à reacção imediata das NT o IN foi forçado a retirar, tendo deixado no local da instalação o material indicado no anexo b), tendo-se encontrado manchas de sangue, o que leva a pressupor ter tido o IN alguns elementos feridos e provavelmente dois mortos.

07. Serviços

Nada

08. Apoio Aéreo

Nada

09. Ensinamentos colhidos

Devido aos resultados obtidos pelo accionamento da mina anticarro em 030745AGO70, o IN certamente pretendeu aproveitar uma possível desmoralização do pessoal

10. Diversos

Nada.

Documentos anexos

Anexo A

1 - Material extraviado:

Causas do extravio:
Reacção ao ataque IN ao Aquartelamento
1 Porta granadas m/964 – distribuído ao Furriel Miliciano Borges;

2 – Material danificado

Causas da ruína:
Reacção ao ataque IN ao Aquartelamento
1 Percutor partido da Metralhadora Ligeira Dreyse 7,9 mm n.º B-974

3 – Munições consumidas

Causas do consumo:
Reacção ao ataque IN ao Aquartelamento
a) 8.000 Cartuchos 7,62 mm
b) 2.000 Cartuchos 7,9 mm
c) 50 Granadas explosivas Morteiro 60 mm;
d) 60 Granadas explosivas Morteiro 81 mm
e) 2 Granadas incendiárias Morteiro 81 mm
f) 30 Granadas explosivas LGF 8,9 cm;
g) 20 Dilagramas

Anexo B

Material IN recolhido após o ataque:
a) 2 Granadas RPG 2
b) 2 Cargas propulsoras RPG 2
c) 2 Carregadores de Kalashnikov

Anexo D

Elementos dignos de realce devido a sua conduta durante o ataque IN ao Aquartelamento

1.º Cabo NM 01432766 – Francisco José Mocinho Ferra – Apontador de Armas Pesadas.

É de salientar o comportamento do 1.º Cabo Ferra, pois logo que se desencadeou a flagelação, correu para o Morteiro 81, do qual é apontador, e logo que foi localizada a posição IN bateu-a com rara pontaria, provocando quase de seguida o silencia do IN.

Foi graças, em grande parte, à sua reacção plena de energia que a flagelação durou apenas alguns minutos. Sempre calmo e cumprindo as ordens do Comando, continuou a bater a zona e o possível itinerário de retirada e que veio a constatar-se posteriormente, ter sido feito com grande eficácia.

(Elementos retirados do estudo para a elaboração da História da Companhia de Caçadores n.º 5)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6788: Patronos e Padroeiros (José Martins) (13): Avós - Santa Ana e S. Joaquim

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6821: Efemérides (46): Acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no Pindjiguiti, Guiné (1) (Leopoldo Amado)