Mostrar mensagens com a etiqueta Belmiro Tavares. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Belmiro Tavares. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11039: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (35): O perfeito, senhor Correia

1. Em mensagem do dia 22 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (35)

Manuel Correia

O prefeito, Sr. Correia, era uma figura algo carismática, trágico-cómica, incontornável, meio caricata etc. etc. que passou vários anos no COA. Chegou lá na primeira metade da década de cinquenta do século passado, muito provavelmente no princípio de 1954; vindo de Santo Tirso, donde era natural; era um adepto indefectível do Clube Futebol da sua terra; veio ocupar o lugar deixado vago por um tal Sr. Fernandes que – não sei o motivo – deixou o COA naquela época.

Uns tempos depois, devido ao aumento do número de alunos, teve como ajudante, um rapaz – cujo nome “já se me varreu” - que seria filho dum GNR e creio que era ex-seminarista; não aqueceu o lugar; sentiu que a “barra” era pesada, pôs o chapéu… e foi-se.

O segundo auxiliar e aprendiz de prefeito foi um tal Areal; era alto e jovem, com ares de cinéfilo também oriundo de Santo Tirso. Embora ali permanecesse algum tempo mais que o anterior, a sua passagem pelo COA foi também efémera. Digno de registo, recordo apenas uma briga – troca de murros – entre ele e o Castanheira II (o Francisco?), no “beco” que conduzia ao internato.

Eis que de seguida surge o sr. Pinheiro, talvez da mesma idade do Sr. Correia, mas mais alto e menos corpulento. Aguentou-se ali pouco tempo, também.

Dele recordo que, durante um “estudo” da manhã, o Sr. Correia não estava presente no salão; o Sr. Pinheiro foi, automaticamente, promovido a chefe, assumindo o comando das operações; ele “passeava” calado por entre duas filas de carteiras duma ponta à outra do salão. Lentamente, o sussurro foi aumentando, chegando à barulheira; antes que se tornasse infernal, o Sr. Pinheiro tomou lugar sobre o estrado e, daquele “púlpito” emitiu, sem preliminares, o seu elevado pensamento matinal:
- Dizem os filósofos que o estudo da manhã é o melhor; e um estudo mais “profique”!

Talvez o “profique” fosse fruto da imaginação dos alunos; este dito foi parafraseado pelo Abrantes no nosso sarau.
Houve gargalhada geral! O homem perdeu o pio!

Os alunos estavam habituados aos berros (autênticos urros) e às agressões verbais – e também muitas vezes corporais – do Sr. Correia e não acataram aquele paleio meio pilhérico logo ao amanhecer. Em breve pôs-se na alheta.

O Sr. Correia aguentou-se no colégio durante vários anos, porque era um “democrata” e usava métodos bem ... convincentes. Passei pelo COA, várias vezes, em 1962 e ele ainda andava por lá. Era uma figura castiça, autoritário q.b. (mais do que isso); era cumpridor, em absoluto, das ordens emanadas da Direção. Para não deixar transparecer que apenas cumpria ordens, frequentemente, afirmava, categórico:
- Não é assim, porque, nós, a direção, decidimos que…

Adorava que os alunos reconhecessem a sua autoridade e agissem de acordo com a sua vontade. Que os alunos, sempre que lhe pediam o que quer que fosse, agissem com reverência ou mesmo com subserviência, mesmo quando pretendiam infringir as regras; ele bem conversado (engraxado) até colaborava, colocando em risco o seu lugar.

Sempre que eu pretendia dar uma volta pela vila, ouvir no exterior (na pastelaria do outro lado da Avenida), o relato de um jogo internacional de hóquei patinado, ou mais tarde, em 1961, ver na TV, o jogo do Benfica, na extraordinária final de Berna, eu solicitava “reverentemente” ao Sr. Correia que me autorizasse a sair e ele logo me facultava a chave do portão secundário, o do pequeno jardim que separava o internato da avenida, recomendando apenas: cuidado! Que o Senhor Almeida não te apanhe! Eu respondia eu sei onde ele se encontra (na leitaria); se houver azar... eu saltei o muro. Todas as minhas saídas foram sempre bem sucedidas, porque eram bem planeadas

Provavelmente, era eu quem lhe preparava mais judiarias, mas ele sempre nutriu muita consideração por mim.

Se um aluno lhe solicitava algo que ele não autorizava e o aluno apresentava argumentos, ele punha termo à conversa, sempre do mesmo modo:
- Faz o que te mando e conta ao diabo o que sabes!

Usava, segundo a situação, outras frases igualmente “convincentes”:
- Levas uma bofetada que até engoles os dentes da frente”!; “Levas uma sova que te mijas todo!”; “falta pouco para que faças o pino sem apoiar as mãos no chão!”

O homem sofria de hemorróidas! Dizem tratar-se duma complicação altamente dolorosa! “Altamente” encaixa bem no texto! É advérbio que usava a todas as horas.

Muitas vezes, antes de se deitar ouvíamo-lo gemer com dores na casa de banho; enchia o bidé com água fria e assentava lá o traseiro (era o vulgar banho de assento) e ali ficava durante meia hora ou mais, pelo menos até que o frio lhe atenuasse as complicadas dores

Quando se sentia aliviado daquelas dores impertinentes, dirigia-se à camarata. Sentava-se na cama e, por vezes, esta desarticulava-se… por obra e graça de determinado aluno que a “armadilhava”; outras vezes não conseguia estender as pernas, porque um dos lençóis estava cuidadosamente dobrado – Cama à francesa. Ele proferia, logo ali, umas tantas baboseiras e, com a ajuda dum qualquer aluno ainda acordado, rearmava a cama ou estendia o lençol para… dormir o sono dos anjos.

No salão de estudo, sempre que a “crise” (então não havia Troika) apertava, ele estendia o tronco sobre a secretária, mantendo os pés no chão; levantava a cabeça, esbugalhava os olhos grandes, salientes e escuros para ver o que se passava na sala e, com gritos de dor e raiva, mantinha a rapaziada em silêncio; ali permanecia naquela posição caricata durante quase duas horas ameaçando a terra, o mar e o mundo, usando (e abusando) algumas das frase já citadas. À sorrelfa, alguém sussurrava, cautelosamente:
- Foi assim que a Alemanha perdeu a guerr”!

Se, durante uma hora de estudo, um aluno, com uma requisição na mão, lhe pedia para ir à secretaria, ele replicava: -“fora no intervalo”! – Posso pedir um lápis? – “ Pedira no intervalo!”

O Alcides S. Costa e o Leonel C. Nunes, dois cómicos irreverentes (mais cómico o primeiro e mais irreverente o segundo) criaram a seguinte frase, alegando que o Sr. Correia era o autor: - “iria no intervalo, porque agora já não vara!” ele não foi certamente o pai de tal dito: foi invenção daqueles alunos, mas...

Nos primeiros tempos em que esteve no COA, ao domingo à tarde, ele acompanhava os alunos mais novos na visita a uma aldeia próxima; entrava numa tasca e bebia dois copos… os outros já não eram contados - estava embriagado.

O Tirsense estava colocado quase no topo a tabela classificativa da 2ª divisão (correspondia à Divisão de Honra dos dias de hoje); se ganhasse, no estádio Carlos Osório, o terreno da U.D.O, subiria à 1ª divisão. Perdeu! O Sr. Correia encontrou conterrâneos e bebeu uns copos... para afogar as mágoas; chegou enxaropado, cambaleante, ao COA; falava pelos cotovelos:
- A Oliveirense jogou alta e poderosamente; só assim conseguiria vencer a temida e possante equipa de Santo Tirso!

Quando tinha nas veias tanto álcool como sangue (o que a princípio era vulgar) ele cantarolava a seguinte quadra:

Se aquilo que a gente sente
Cá dentro tivesse voz...
Muita gente… toda a gente
Teria pena de nós!

Era um poeta… qual E.A. Poe! Sem Ofensa ao americano... nem ao Sr. Correia

Num dos últimos anos da década de cinquenta entrou para a primária (ou para o 1º ano?) um aluno de cujo nome já não me lembro; sei que era natural de Arrancada do Vouga (região de Águeda); bom conversador (para a idade), simpático, extrovertido e bom argumentador. Tinha uma pecha: todas as noites urinava na cama!

O Sr. Correia tinha o supremo cuidado de o acordar de madrugada mas quase sempre... já era tarde! Ele zurzia-o desalmadamente (creio que chegou a usar cinto dobrado) e obrigava-o, àquela hora, a tomar banho de água fria – autêntica barbaridade! Outra vítima era um miúdo escuro, creio que venezuelano; o Sr. Correia batizou-o de Matateu. Sofreu a bom sofrer mas, pela calada, dava resposta adquada.

Penteava o cabelo para trás com uma risca sensivelmente ao meio. Se durante o dia, o pêlo desalinhava, ele cuspia abundante e “higienicamente”, nas mãos e esfregava-as na cabeça ; de seguida usava o pente para alinhar o cabelo. Era o seu fixador... eficiente e barato!

Podemos dizer, certamente: Paz à sua alma! Que a terra lhe seja leve! E que perdoe as minhas macaquices!

Janeiro de 2013
BT
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 29 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11023: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (34): Exame do 5.º ano, problema de matemática

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11023: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (34): Exame do 5.º ano, problema de matemática

1. Em mensagem do dia 22 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (34)

Exame do 5º ano 
Problema de Matemática

Na prova escrita de Matemática do meu 5º ano, na Álgebra, havia um problema – a questão mais valorizada do exame – com o seguinte enunciado resumido: largado num plano inclinado, que velocidade atinge um carro ao fim do tempo tal e com a aceleração tal?

Determinado examinando, entendeu que aquela questão, devido, provavelmente, a descontrolo do “fazedor” da prova, estaria no local errado… àquela hora. Entendeu que se tratava muito simplesmente de um problema de Física, que, por lapso, aterrara na prova de Matemática.

O aluno, em absoluto, não se lembrou das “sucessões numéricas”. Assim sendo aplicou a fórmula que havia aprendido nas aulas de física: ; creio que a fórmula era mesmo esta; o resultado foi, fisicamente, correto – 1800m/m.

Acabada a prova, os alunos iam saindo para o corredor; como habitualmente o Sr. Almeida, mestre daquela disciplina, encontrava-se no local e a cada um dos seus alunos que aparecia, ia perguntando qual era o resultado do problema.

Chegada a sua vez, o tal aluno respondeu convicto: - 1800 metros por minuto.

- Está certo! Comentou o Sr. Almeida.

O mestre não imaginava qual havida sido a fórmula utilizada – erradamente – para atingir aquela conclusão cujos números eram corretos; de acordo com o velho rifão: atingiu o resultado certo… por linhas tortas.

O sr. Almeida, ao proferir o seu comentário, não imaginou – nem podia – qual havia sido a fórmula usada (erradamente naquele caso) para chegar a uma conclusão que até estava certa. Temos de concluir que a Física também é uma ciência de precisão.

O mestre nunca recebeu, mesmo a posteriori, tal informação; ele poderia reagir – reagiria mesmo – imprevisivelmente.

Mais vale prevenir… nunca se sabe o que podia acontecer em tal situação.

Janeiro 2013
BT

P.S a quem não se apercebeu, informo que o tal examinando... é o autor do texto
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10994: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (33): A pior turma em cada ano lectivo

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10994: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (33): A pior turma em cada ano lectivo

1. Em mensagem do dia 18 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (33)

A pior turma em cada ano letivo

O Sr. Almeida afirmava, frequentemente, que, em cada ano letivo, a turma do 4º ano – turma única àquela época – era sempre a pior de todas do ponto de vista disciplinar, e até, também quanto ao aproveitamento. Estes alunos já não eram os “putos” do 2º ano mas também não eram ainda adultos. Por outro lado, era o 2º ano consecutivo sem exame, o que provocaria uma certa inconsciência e também algum uso e/ou abuso das facilidades com que deparavam.

O meu 4º ano de acordo com as palavras do Sr. Almeida, não fugiu à regra. Não recordo se ainda no 1º período ou se logo no início do segundo, ocorreram umas tantas anomalias; cada uma por si não teria grande importância, até poderia passar quase despercebida; todas juntas, porém, estragaram totalmente o ambiente, já de si muito perturbado.

Primeiro caso:
Talvez no início do ano letivo “alguém” colocou uma “punaise” por baixo do assento da cadeira do professor com o bico ligeiramente saliente na face superior; passados uns meses, sem que ninguém se apercebesse da anomalia, “alguém” terá pressionado mais a dita “punaise” e o bico ficou mais saliente.

No dia seguinte o Dr. Pinto, professor de Inglês (o tal que usava o diapasão para nos ensinar a cantar) sentou-se na cadeira para escrever o sumário; sentiu a picada de uma agulha, naquela parte onde as costas mudam de nome; levantou-se velozmente – parecia ter sido impulsionado por uma forte mola – e averiguou o que lhe tinha provocado aquela dor tão aguda; apercebendo-se que havia ali um “prego fininho”, autenticamente, gritou pelo chefe de turma:
- Cândido! Arranja-me já um martelo!

Assim foi descoberta a primeira anomalia.

Alguns professores queixaram-se que as suas calças apareceram estragadas e só poderia ter sido ali; a Dª Maria Adília foi naquele ano, nossa professora de francês, durante umas semanas, apenas, e teria ali esfiapado algumas saias; o próprio senhor Almeida lamentava ter danificado a sua característica samarra espanhola, também naquela maldosa ou maldita cadeira. Os alfaiates agradeciam! Não consta que algum aluno tenha sido subornado pelos artistas do fabrico de vestuário.

Segundo caso:
Um dia, creio que numa aula de Geografia, o professor Santos fez determinada pergunta à Maria Antónia. Esta aluna era natural de Cesar, filha e neta de “endireitas” (curiosos digo eu) de ortopedia, (espero sinceramente que a Antónia não me leve a mal), prima do nosso colega António Cândido (Fajões por ser natural desta terra) e casou mais tarde, com o médico António O.P. Vasconcelos, também de Cesar; à época ele era também aluno do COA, um pouco mais adiantado que nós.

À pergunta do professor Santos a Antónia respondeu: Sr. Dr. Santos, eu não sei essa matéria porque não assisti à última aula!

O Alcides Costa, um cómico do caraças, ouvindo aquele argumento, logo comentou, parafraseando uma tirada “característica” do Sr. Correia, o prefeito:
- Assistira no intervalo!

A Antónia não terá gostado da piada como se de jocosidade se tratasse, que a tomasse como alvo; fez queixa, creio que à Dª Urraca (que por mero acaso era Idalina) que por sua vez a passou à Direção, mas já deturpada; no percurso, como geralmente acontece, a notícia foi aviltada – a cada conto acrescenta-se sempre um ponto. Muitas vezes, como neste caso, a situação tornava-se muito mais gravosa do que seria a intenção do seu “autor”.

Terceiro caso:
Os alunos daquela turma (todos ou quase) com as “pratas” dos maços de tabaco e/ou dos chocolates elaboraram uma série de “taças” de base larga e aberta onde colocavam papel de sebenta “mastigado”, lançando-as contra o teto da sala que pouco depois estava pejado daqueles objetos. Era uma autêntica porcaria (mascar papel de sebenta), mas na verdade, o teto ficou… enfeitado, para o bem ou para o mal.

A estas juntaram-se mais umas ocorrências de pequena monta; seria fastidioso, e sem interesse, enumerá-las e a memória... já não é o que era. Estes casos “fermentaram” durante uns dias sem que os visados (autores) se apercebessem; o segredo foi sempre a alma do negócio.

Certo dia, depois do jantar o Sr. Almeida ordenou que eu comparecesse na sala onde, habitualmente, ele tomava as refeições, no internato masculino. Fiquei apavorado, pois eu não vislumbrava ter praticado qualquer asneira tão grave que merecesse tal atitude; alem disso era a 1ª vez que tal me acontecia, o que me obrigava a fazer... contas de cabeça.

O Sr. Almeida mandou-me sentar; estávamos sós: ele e eu. O silêncio era... ensurdecedor! O ambiente era pesado... de cortar à faca! Breves considerandos introdutórios e…

1ª Pergunta: 
- Quem colocou a “punaise” na cadeira do professor da sala do 4º ano?
- Eu não sei quem fez isso! Só tomei conhecimento do caso (o mesmo aconteceu com os outros alunos) quando o Dr. Pinto, em altos berros, pediu um martelo. Aquilo já estaria ali há muito tempo sem que ninguém se apercebesse. Já falámos bastante sobre o assunto e ninguém mostrou ter conhecimento do caso. Terá sido ali colocada por alguém estranho à nossa turma ou até mesmo no ano anterior.

Houve mais considerandos, mas sem evolução e sem interesse.

2ª Pergunta:
- Quem disse que a Antónia “já era assistida há muito”?

Aí eu fiquei profundamente surpreendido, pois o Alcides não pronunciara tais palavras nem seria capaz de se afoitar a tanto.

- Ninguém disse isso! O que todos nós ouvimos – e isto é absolutamente verdade – foi o seguinte: “Assistira no intervalo”!
O Alcides pretendeu apenas parodiar, imitando o Sr. Correia que, quase a toda a hora, usa o mais-que-perfeito, em expressões como: “fora no intervalo”, “pedira no intervalo”, fizera no intervalo etc.
O Sr. Santos fez uma pergunta à Antónia e ela respondeu que não sabia, porque “não tinha assistido” à última aula; o Alcides apenas disse: “Assistira no intervalo!” O que contaram ao Sr. Almeida é uma profunda deturpação… talvez até intencional, e malévola o que é inadmissível. Haverá quem tenha prazer em deturpar? Pretende-se apenas denegrir uma imagem que não merece tal tratamento.

3ª Pergunta:
Quem colou no teto da sala aquela quantidade de “pratas”? E como conseguiram ir lá “colá-las”?
- Eu sei como se faz! Já fiz e vi fazer! Naquela sala, não fiz, não ajudei nem vi fazer! Aquilo prepara-se enrolando uma “prata” estrangulando-a no meio, enchendo dum lado com uma pasta que se obtém mascando um bocado de papel de sebenta; comprime-se bem aquela pasta, joga-se com força ao teto e ela fica ali colada, dando aquele efeito. De qualquer modo, não vi ninguém fazer. Tenho a certeza que não foi ninguém da nossa turma.

Tratava-se, neste caso, de uma “mentira dita piedosa”; na verdade todos os rapazes daquela turma colaboraram naquele ato absurdo e nada higiénico. É verdade que cada um tentou colocar no teto mais taças (de boca para baixo) do que o outro. No dia seguinte juntámo-nos todos e eu contei pormenorizadamente a minha conversa com o Sr. Almeida. Se ele chamasse outros alunos, todos ficaram a saber até onde podiam ir.

O Sr. Almeida aceitou (creio eu, pelo menos não falou mais no assunto) o meu depoimento como verdadeiro e “enterrou” os casos… no negro vaso da água do esquecimento.

Na verdade, agindo daquela maneira, nós pretendíamos apenas dar razão ao Sr. Almeida – “a pior turma é sempre a do 4º ano” Dixit

Janeiro de 2013
Saudações colegiais
BT
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10797: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (32): Uma cobra na sala de aula

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10797: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (32): Uma cobra na sala de aula

1. Em mensagem do dia 10 de Dezembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante, desta vez lembrando o seu professor Santos:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (32)

Uma cobra na sala de aula 

Frequentávamos o 4º ano!

A nossa sala de aula ficava à entrada do corredor que se iniciava no recreio dos rapazes, na porta da sineta, e terminava no recreio das moças; era a primeira porta à direita. Aquela sala tinha outra porta, larga e envidraçada, que raramente podíamos utilizar e que dava para o exterior em frente ao velho “bebedouro”, no recreio dos rapazes, próximo do portão principal.

Num fim-de-semana em que fui a casa, apanhei, no campo, à mão, uma enorme cobra descomunal (mediria entre 20 e 30cm de comprimento). Consegui uma caixa de cartão, fiz uns pequenos furos nas faces laterais e na parte superior e guardei lá o referido réptil peçonhento; pelos furos ela podia respirar o suficiente para não morrer asfixiada.

Antes de introduzir a bicha na improvisada prisão, com a minha naifa, cortei-lhe a língua, para que não ferisse alguém que tentasse capturá-la depois de eu a devolver à liberdade em local apropriado.

Na 2.ª feira de manhã tínhamos uma aula com o professor Santos – História ou Geografia. Eu gostava imenso deste professor; respeitava-o muito e admirei-o pela vida fora, pelo seu saber, pela maneira fácil e eficiente como comunicava com os alunos (fazia-se entender perfeitamente o que nem todos conseguiam); era quase o exemplo acabado do “self made man”!

Eu estava na última carteira com o Cândido (vulgo Fajões) na fila ao lado da janela; portanto na esquina diagonalmente oposta ao professor. Quando entendi ser oportuno, abri a “porta” daquela cómoda prisão e a “bicha”, cheirando de novo a liberdade, correu desnorteada pela sala com a cabeça levantada, ameaçando tudo e todos.

Alguém gritou:
- Ai! Uma cobra!

Os alunos levantaram-se, afastando-se daquele monstro que não parava de correr; algumas moças subiram corajosamente para os assentos das carteiras; outras, mais “ousadas” colocaram-se em segurança na parte superior da carteira.

O animalejo continuava a correr procurando insistentemente um qualquer orifício por onde pudesse entrar, recuperando assim a sua “ampla liberdade” – como ainda estava longe o tempo dito das “amplas liberdades.

Antes que o animal desaparecesse, eu perguntei:
- Onde está a cobra?!

Caminhei para ela e, sem dificuldade, recapturei-a e voltei, calmamente, para o meu lugar com a cobra a saracotear na minha mão.

O Dr. Vide havia-nos ensinado como apanhar uma cobra ou um lagarto sem correr perigo de ser picado ou mordido.

Acabada a balbúrdia, todos olhavam insistentemente para mim procurando saber onde eu guardaria aquela cobra; coloquei-a cuidadosamente na “habitação” que eu preparara para ela. Acabou a festa.

Fui talvez o ultimo aluno a sair da sala de aula; o professor Santos, apercebeu-se que eu não trazia a cobra na mão; perguntou que caixa era aquela; não ocultei que se tratava da nova “casa” da cobrinha. Ainda hoje não compreendo por que não fui mimoseado com um par de tabefes… bem merecidos.

 **********

O professor Santos era realmente extraordinário, profundo conhecedor de História e Geografia e extremamente eficiente.

As aulas dele eram divertidíssimas, sem dúvida…, mas aprendíamos. Era muito bom comunicador.

Ele considerava que História ou Geografia sem mapa seria coisa aberrante; quando não havia mapa ele… desenhava-o no quadro:
- “Aqui fica Portugal… a boca do Tejo… os arquinhos de Espanha, a perna da Itália, com a bota, a dar um pontapé na Sicília; junto ao tacão fica o Golfo de Tarento, etc. Depois carregando no giz com força “abria” uma autêntica estrada por onde os Hunos se deslocavam para invadir a velha Europa; - “aí vêm os Hunos… mas em tal parte estava F, à espera deles e deu-lhes na tromba, obrigando-os a retroceder em direção às suas estepes centro-asiáticas”

**********

Corria o nosso 3.º ano! Estudávamos a Grécia. Numa 2.ª feira, poucos alunos teriam estudado convenientemente a lição; como era habitual, na primeira meia hora, o professor Santos fazia perguntas sobre o tema da aula anterior; seguidamente, explicava a matéria para a aula seguinte. Cada aluno que ia sendo chamado pouco ou nada sabia sobre a 2.ª invasão dos persas (guerras médicas) que esbarraram no desfiladeiro das Termópilas onde 300 ousados Espartanos impediram com sucesso (inicial) a passagem de milhares de Persas. O pastor Efialtes (traidor) ensinou-lhes outro caminho e os Espartanos foram trucidados (feitos em postas).

O Ribeirito (Manuel Coutinho Ribeiro ainda hoje só o bigode está a mais, em relação àquela época) não tendo tempo de memorizar o nome do desfiladeiro, respondia apenas: “Termo”…”Termo”… o Professor Santos dando-lhe uma ligeira sapatada na cabeça, acrescentou: “pilas”, pá “pilas”!

************

Já que falamos no Ribeirito… aí vai uma bem” fresquinha” (leia-se recente).
No almoço dos ex-alunos do COA, em 9 de Junho de 2012, em Ul, na antiga estação, o Ribeiro demorou, anormalmente, a escorrer as “castanhas” (vulgo urinar); estava meio mundo à espera de vez para fazer o mesmo; o nosso amigo, prazenteiro, com brilho nos olhos, comentou:
- Ainda não tenho grandes complicações para urinar… mas tenho dificuldade em encontrá-“la”!

É caso para dizer, ri-te, ri-te… o diabo vem pelo caminho

************

Quem saberá explicar o motivo pelo qual as nossas colegas aprendiam razoavelmente bem, a lição de Geografia, mas sentiam grandes dificuldades em localizar, no mapa, a cidade e até o país que acabavam de citar.

Mas era verdade!

O professor Santos perguntava a uma moça: qual é a capital de tal país. A aluna respondia corretamente o nome da cidade… mas sentia-se confusa para a localizar.

Aí, ele gritava:
- Sua galinheira!

Colocava a mão naquela parte onde as costas mudam de nome; levantava-a, juntando as pontas dos dedos, acrescentando jocosamente:
- Cócóró có có… um ovo!

O dedo deve ter uma luz na ponta para guiá-lo até à cidade ou país que citamos.

Sempre que um rapaz falhava uma resposta ele com a mão fazia o gesto de “cortar o pescoço”; simulava pegar no cabelo baixando-se até tocar o solo; passava frente ao nariz fazendo sinal de mau cheiro e colocava-a sobre o tronco, simulando colar o pescoço.
Isto significava:  - cortar o pescoço, pegar pelo cabelo e meter na fossa (ou retrete); como ficava a cheirar mal, colava-a no sitio onde estava.

**********

Um dia a minha mãe enviou-me um cesto com belas cerejas suculentas; enchi os bolsos do casaco e fui para a aula de História (5.º ano), na sala quase em frente à secretaria a qual tinha uma janela e uma porta voltadas para o quintal.

O meu companheiro de carteira era o Arlindo (Escariz); enrolei uma folha de papel em forma de cone (era em embalagens deste género que os merceeiros, da época, nos vendiam uns míseros quinze tostões de café); coloquei-o no buraco do tinteiro, depositando ali os caroços e os pés das cerejas. Nós éramos uns rapazinhos pouco atilados mas tudo fazíamos para ser limpinhos (só não reciclávamos).

Estávamos muito entretidos a saborear displicentemente as deliciosas cerejas, mas muito atentos ao que o professor transmitia…, eis que o Sr. Santos me surpreendeu com a boca … na botija – não, não havia bebida!... apenas cerejas! Por pouco não me escalpou!... mas tenho a certeza que fiquei com menos umas dúzias de aloirados cabelos – castigo mais que merecido! E quando assim é… está tudo dito!
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10765: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (31): Dr. Abel Gandra

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10765: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (31): Dr. Abel Gandra

1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas memórias do seu tempo de estudante, desta vez lembrando o seu professor Abel Gandra:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (31)

Dr. Abel Gandra

O insigne mestre, Dr. Abel Gandra, era natural de Moçambique, região de Lourenço Marques, hoje Maputo; o pai era europeu e a mãe africana, de etnia Landim.
Era um professor extremamente culto; dava aulas e/ou explicações sobre todas ou quase todas as cadeiras do 7º ano e de todas as alíneas daquela época. Explicava cada matéria com precisão e saber, fazendo-se entender perfeitamente pelos alunos, o que nem sempre acontece. Era um grande psicólogo; a sua maior pecha era não ser tão bom disciplinador como era ensinador: não conseguia dar um “murro em cima da mesa”, sempre que um aluno descarrilava no seu comportamento durante a aula, pondo em causa o bom aproveitamento dos colegas bem comportados e predispostos a cultivar-se.

Perante uma turma de alunos disciplinados com vontade firme de assimilar sempre mais e mais, ele era uma máquina bem lubrificada a ensinar, a elogiar, a encaminhar, a incentivar os alunos para que conseguissem ir sempre mais além e mais acima.

Este nosso ilustre mestre concluiu o ensino liceal em Moçambique; veio de seguida para a chamada Metrópole, a mãe do Império, para frequentar os estudos superiores. Como cadeira opcional, creio que no Instituto dos Estudos Ultramarinos, escolheu o dialeto Landim, sem nunca manifestar que era oriundo dessa etnia. Na prova oral, o examinador cumprimentou-o em andim; ele ”gaguejou“ propositadamente, um pouco como se tentasse escolher cuidadosamente as palavras uma a uma. Aí o professor entrou a pés juntos (ou de “chancas”)! Perante uma nova resposta desenvolta e precisa do examinando, o mestre perguntou-lhe:
- De que raça provém?
- Landim! - Respondeu o jovem Gandra, secamente.
- Acabou o seu exame! Pode seguir. - Concluiu o avaliador.

Provavelmente terá sido neste exame que adquiriu aquele gosto especial de ver um aluno “enrolar” (ou tentar) um professor! Na universidade tornou-se um “profissional do estudo”: concluia um curso e iniciava logo outro.

O pai não gostou! Saturou-se de gastar tanto dinheiro nos estudos sem fim de seu filho e decidiu fechar definitivamente a torneira.

Vendo-se sem dinheiro para “alimentar” seu vício… de estudar, avançou como voluntário para a Guerra Civil de Espanha. Fechadas as portas da guerra, voltou à Pátria e começou a ganhar a vida no ensino, tendo sido colocado no Liceu Camões, em Lisboa.

Um dia, num exame oral história, do 7º ano, ele fazia parte do júri mas não era o examinador. Apareceu um aluno que fez uma prova “bombástica”, “anormal”, (anormal para cima, pela positiva, como afirmava jocosamente o saudoso Leonel Castro Nunes).
O examinador perguntou aos colegas de júri:
- Que nota hei-de atribuir a este aluno?

O Dr. Abel Gandra respondeu curto e grosso:
- Vinte! Não há mais!
-Vinte é para o professor! Comentou o examinador.
- E se o aluno souber mais que o mestre?! - Replicou o Dr. Gandra

Não sei qual foi a nota final atribuída àquela dita “bisarma” mas o mote estava lançado.

Um dia teve conhecimento que a Penitenciária de Lisboa pedia professores para ensinar naquele Estabelecimento Prisional; ele concorreu e foi selecionado. Combinaram a matéria a lecionar, o salário e o horário a praticar. No dia e hora aprazados ele compareceu no local para ministrar a sua primeira aula a presidiários. Pretenderam, logo à chegada, colocar-lhe à volta do cós das calças um cinturão com uma pistola pendurada e verdadeiramente municiada; ele recusou, terminantemente, dar aulas armado.
Alegaram que era altamente perigoso andar desarmado entre prisioneiros tão perigosos. Não se deixou convencer e iniciou o seu novo trabalho… sem arma à cintura..

O pessoal da segurança deve (?) ter-se colocado, estrategicamente, espingarda em riste, de modo a poder proteger eficientemente o mestre em caso de emergência.
Vale mais prevenir… que remediar – segurança acima de tudo!
Nada de mal aconteceu!

Passados uns meses ele comunicou a um dos encarcerados que gostaria de conversar com ele no fim da aula. No momento oportuno o mestre perguntou:
- O que é que o senhor mais gostaria que lhe acontecesse nesta época de Natal que se aproxima?
- O que eu mais adorava, na vida, Sr. Doutor, era passar a noite de Natal com a minha mulher e os meus filhos!

No fim de mais uma aula, na ante-véspera de Natal, chamou junto de si o mesmo prisioneiro. Conversaram durante largos minutos até que os mestre lhe transmitiu, com pompa e circunstância:
- O senhor cai trocar de roupa comigo; seguidamente sai com os meus livros debaixo do braço e vai passar a noite de Natal com a sua família.

No dia X, antes da hora de início da aula, o senhor entra calmamemnte na Penitenciária, com a minha roupa vestida e os mesmos livros debaixo do braço como se viesse dar a “sua aula”. Tudo vai correr bem, espero!
- Esteja descansado, doutor, que eu cumprirei com a minha parte da melhor maneira possível! Acredite! Só tenho uma palavra! Nunca “roí a corda”!

O prisioneiro saiu da sala, passou pelos guardas sem qualquer complicação… e reentrou no dia e hora aprazados. Aconteceu tudo como fora concebido!
Encarcerado pode ser (terá sido) criminoso e até perigoso… mas este não deixou de ser honesto, cumpridor e reconhecido!

O Dr. Gamba foi contratado para dar aulas no C.O.A. à volta do ano de 1959. Foi meu professor de História no 7º ano; a turma era pequena e todos o admirávamos muito. Éramos todos bons rapazes! Assim tinha de ser!

Uma ou duas vezes por semana ele perguntava-nos:
- Amanhã, a que horas?

Ele pretendia saber a que horas da “madrugada” estávamos disponíveis para ele dar mais uma longa aula extra a toda a turma; normalmente sugeríamos que estaríamos prontos às 6 horas. Àquela hora ele lá estava, ledo e fagueiro. Juntávamo-nos no terraço do ginásio e andávamos ali ás voltas durante cerca de 3 horas. Ele explicava a matéria, e fazia perguntas; e assim se aprendia história.
Ele afirmava que nós (mestre e alunos) éramos os peripatéticos do século XX! Reeditávamos os “passeios” de Pitágoras e seus aprendizes no jardim de Academo, proximo de Atenas
Cumpre informar que estas aulas não eram remuneradas: nem nós nem pelo Colégio; pagavam o que quer que fosse por este trabalho; pelo menos para nós ele trabalhava gratuitamente.

Numa das primeiras aulas, informámos o mestre que nos exames do ano anterior, o Dr. José Bento, professor do Liceu de Aveiro, havia “enrolado” todos os examinandos do C.O.A. com determinado tipo de perguntassempre idênticas: - Quais os costumes dos Lusitanos? Cortavam o cabelo? O que comiam? De que se ocupavam no dia-a-dia?
Fazia o mesmo tipo de inquirição sobre os Gregos, os Romanos e outros povos. Ninguém soube responder a tais perguntas, cujo conteúdo não constava dos calhamaços por onde os alunos tinham estudado. O Dr. Abel Gandra colocou logo à nossa disposição uns volumes da História Universal da autoria do francês Mâle, onde o Dr. José Bento “teria bebido” aquele tipo de informação .

Lembro-me que acerca dos costumes dos gregos o autor advogava que eles “costumavam repousar e conversar, deitados sobre uma espécie de cama/cadeira, chamado de triclínio, apoiados sobre o cotovelo esquerdo, comendo bolos de cevada/aveia temperados com cebola e alho e saboreando uma bebida “fermentada” que estaria, provavelmente, na origem da cerveja”.

O Dr. José Bento veio de novo ao C.O.A. examinar os alunos da nossa turma de História. O primeiro a ser interrogado foi o Ângelo Carvalho – creio que era um ex-seminarista e que entrou no C.O.A. apenas no 7º ano. O examinador iniciou o interrogatório, tal como no ano anterior:
- Fale-me sobre os costumes dos Romanos!

O Ângelo “desbobinou” quase uma página do Mâle; o professor mudou de assunto e não fez tais perguntas a nenhum dos outros alunos, mas algo havia de acontecer para pôr em pé os já poucos cabelos do Dr. José Bento.

O Dr. Gandra incitava-nos imenso; apregoava que eu “estava obrigado” a “esticar” aquele examinador.
Quando respondíamos a uma pergunta do Dr. José Bento “com palavras da nossa lavra” mesmo que devidamente enquadradas, normalmente ele replicava: “no livro (único) não está bem assim!

Ele também gostava que nós aprendêssemos a lição “de carreirinha”. Mas no 7º ano não havia livro único! Que falta - digo eu - ele (livro) faz nestes tempos conturbados imensa falta para tonar os calhamaços mais baratos e o ensino mais uniforme em todas as escolas!

Era permitido estudar pelas obras de um ou vários autores e podíamos justificar qualquer resposta nossa apresentando a versão de determinado mestre. Quando fui chamado para a prova oral, logo o nosso Abel Gandra colocou “descaradamente” sobre a carteira que se encontrava atrás de mim, vários “alfarrábios” de História para que, com eles, eu pudesse (abalizadamente), fundamentar qualquer divergência que, casualmente, surgisse.

1ª Pergunta: - Como foram colonizadas as ilhas do Atlântico?
Ele não permitiu que eu dissertasse sobre o tema, exigindo que eu respondesse diretamente à pergunta.
Assim teve de ser! - As Ilhas dos Açores e da Madeira foram colonizadas por meio de capitânias.
- Esse sistema foi utilizado noutra parte.
- Mais tarde foi abundantemente, utilizado no Brasil, mas foi primeiramente experimentado nas Ilhas do Atlântico que foram divididas em capitanias e confiadas aos descobridores.

Passou à frente com nova pergunta: - Quais eram as classes sociais em Atenas?
- Segundo uns autores: Eupátridas, Zeugitas e Tetas; outros incluem também os Hipeis; segundo outros ainda, temos: Pentacosiomedimnienses , Triacosiomedimnienses, Zeugitas e Tetas.

De seguida pretendi explicar o que significava cada um destes “palavrões” mas ele não permitiu; passou a outra pergunta: - Quem foram os representantes na Conferência de Berlim?
- Citei uns três ou quatro nomes e acrescentei: - “e, voltando a página, o cardeal Bembo.”
- Acabou o seu exame! Replicou o Dr. José Bento

Ao fundo da sala (aquela onde o Arqº José Alberto (Betinho) filho segundo dos donos do C. O.A nos mostrou o vídeo, interesantissímo sobre o Colégio, no dia 9 de Junhos de 2012), o Dr. Gandra delirava… por todos os poros; desfez-se em elogios. “É o corolário dum longo mas eficaz ano de trabalho árduo”, apregoava ele eufórico.
Nunca o vi tão exuberante! Tão entusiasmado.

O sr. Almeida transportava, os professores de Aveiro para o Colégio e vice-versa, no seu ”boca de sapo”; durante a viagem, o Dr. José Bento contou ao nosso Diretor:
- O nº 7, Belmiro, sabia pouco de Filosofia e pouco também de Organização Política… mas sabe muito de História!

O dr. Gandra foi também nosso professor de História da Literatura; explicava-nos eficientemente qualquer parte daquela disciplina um tanto diversificada e complicada.
Antes do início duma aula conversávamos displicentemente sobre religiões; o Dr. Gandra pretendeu ser apenas mediador ou mesmo apaziguador (quando o ambiente aquecia “lançava” água na fervura); hoje chamar-lhe-íamos moderador.
Ouviu opiniões mais ou menos diversas e até, certamente disparatadas; a dado momento pôs termo à conversa do seguinte modo:
- Todas as religiões são boas! Nenhuma manda praticar o mal! Mas também são muito complexas! Umas mais que outras prestam-se a interpretações mais díspares! Uns prosélitos são mais acérrimos, mais intransigentes (hoje fundamentalistas) mas, seja como for, somos levados a concluir, sabiamente, que “não há religião melhor que a nossa!”

Mais tarde soubemos que ele, afinal, não era católico, como todos os alunos ali presentes; nunca nos manifestou que religião professava!

Um dia ordenou que escrevêssemos um texto (não uma curta redação como acontecia em anos anteriores) sobre o seguinte tema: “ Cada dia que passa é um passo para a morte!”

Quase todos os alunos emitiram opiniões mais ou menos diversas, mas todos concluíam que era difícil, complicadíssimo, trágico até, escrever sobre tema tão verdadeiro mas incomum e incómodo.

Perante uma objeção mais arrojada do Tó Zé Almeida (o filho mais velho dos diretores), o Dr. Gandra insistiu na veracidade do tema.
O Tó Zé redarguiu:
- Isso nem sempre é verdade, Sr. Doutor!
- Oh António José! Não me diga que hoje o senhor não está mais perto da morte do que ontem?!
- Eu estarei, certamente! Mas continuo a defender que isso nem sempre é verdade!
- Não entendo o seu raciocínio, mas… explique-se!
- Ontem Caryl Chessman estava mais perto da morte que hoje!

Obs: Caryl Chessman era um presumido criminoso (assassino), o “lanterna vermelha”, que havia sido condenado à morte pela Justiça Americana; nunca aceitou ter sido tal personagem (lanterna vermelha) e conseguiu adiar a execução algumas vezes. Entretanto, enquanto aguardava a execução ou a comutação da pena, escreveu (ou alguém o terá feito por si) a obra: “2455 – Cela da Morte”.

Ouvindo tal justificação, o Dr. Gandra ficou pasmado, mudou de cor (passou a ser branco por breves instantes) mas logo recuperou e encontrou a seguinte saída salvadora:
- Na verdade, somos levados a aceitar que, não há regra sem exceção!

O Dr. Abel Gandra terá sido, em meu modesto entendimento, um dos melhores – talvez mesmo o melhor e mais completo – professor que passou pelo COA, no meu tempo.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3) (Belmiro Tavares)

domingo, 18 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3): Parte II (2)

1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a segunda parte das suas aventuras no Colégio de Oliveira de Azeméis de que se publica hoje o segundo poste:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (30) 

Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte II (2)

Visita “permitida” ao internato feminino 

Era um domingo, ao fim da manhã! Eu frequentava o 7º ano; estávamos num período, sempre complicado, entre as escritas e as orais. Depois da missa e de seguida a uma breve passagem pelo jardim, os alunos internos estavam agarrados aos livros, no salão de estudo. Solicitei ao Sr. Correia que me autorizasse estudar no recreio – pretensão logo autorizada! Ele sancionava tudo o que eu, respeitosamente, lhe pedia!

Eu sabia que os diretores não estavam no colégio. A srª Dª Maria Adília tinha ido a Aveiro acompanhar uma aluna, filha de um juiz que vivera do outro lado da avenida; ela ia juntar-se ao pai que, entretanto fora colocado em Lisboa. Soube há dias que aquela aluna veio a casar com um tal Basílio Horta, que todos, certamente, conhecem.

A hora era propícia! Atravessei o quintal e fiz uma visita ao recreio das alunas. Encontrei a perfeita, menina Rosa; dois dedos de conversa… e as portas do internato foram-me franqueadas. Autêntica anedota! De seguida, fui autorizado a subir às camaratas. As “pequenas” nem acreditavam no que viam. Conversámos a esmo, descontraidamente, durante algum tempo! Só generalidades e… culatras! Apercebi-me que no quintal do vizinho (creio que pertencia à família Guedes, donos da ourivesaria) havia uma pereira cujas peras atraentes chamavam por mim; saltei o muro e trouxe boa quantidade de suculentos frutos e saboreámo-los irmãmente.

Ninguém viu! Quem acreditaria que as educadas meninas do COA ousassem saltar o muro para roubar fruta? Que disparate! Eis que, na porta de entrada do internato feminino, ouvimos alguém chamar, altos brados, pela menina Rosa! Era a voz da Srª Dª Adília que entretanto regressara de Aveiro. A perfeita loira aconselhou que me escondesse e desceu logo ao encontro da Diretora. Esconder-me? Nem pensar! Passei para a varanda (a mesma onde tempos antes as meninas se refugiaram aquando do “assalto” ao internato) pendurei-me nas grades e saltei para o quintal; corri em direção do muro que o separava do nosso recreio, passei por cima e disse para comigo: desta já e safaste! Mas cuidado! O teu anjo da guarda, um dia, pode cochilar!


A “fuga” do 5º ano 

Em época de exames, entre as escritas e a saída das notas, os alunos andavam, regra geral, muito nervosos… em pulgas. Eu estava no 7º ano! Saturado de estar no salão de estudo, sem saber bem o que fazer, pedi ao Sr. Correia autorização para dar, mais uma vez, uma volta pela vila; era essencial mudar de ares e ver pessoas diferentes, acima de tudo, sem livros na mão. Ele passou-me logo a chave do portão do jardim que separava o internato masculino da avenida. Única recomendação já minha velha conhecida:
- Cautela para que o Senhor Almeida não te apanhe!
- Eu sei onde ele está! Na pior das hipóteses eu saltei o muro!

Quando cheguei ao jardim da vila apercebi-me que muitos alunos do 5º ano corriam, em puro desnorte, sem saber bem para onde nem porquê. Nenhum sabia aproveitar convenientemente, aqueles momentos de liberdade! Tinham saltado os muros do colégio mais pelo prazer efémero de infringir as regras, do que por qualquer outro motivo; chegados à rua, não sabiam como aproveitar o tempo. Ao ver aquele triste “espetáculo”, pensei logo nas funestas consequências que poderiam advir daquela atitude coletiva e desconexa.

Voltei ao Colégio e fiquei a estudar no terraço do ginásio. Apareceu o Sr. Almeida! Procurava os alunos do 5º ano para ministrar mais uma aula de Matemática. Perguntou-me se eu sabia por onde andava aquela rapaziada. - Há cerca de meia hora - respondi – uns tantos alunos estavam no salão de estudo! Outros andavam por aí! Mas nenhum aluno do 5º ano se encontrava intramuros! O diretor chamou o perfeito e, sem delongas, sentenciou, decidido e furioso:
- Se algum aluno do 5º ano entrar no Colégio sem ser acompanhado pelo pai ou pelo encarregado de educação, o senhor pegue logo nas suas malas e saia!

Costumava dizer-se: “o Sr. Almeida não brinca em serviço”. Decisão curta e grossa! Alguém levou aquela nova severa e preocupante aos “fugitivos”. Logo, os alunos em pequenos grupos, começaram a abeirar-se dos muros; o Sr. Correia, qual cão de fila, vigiava atentamente tudo e a todos ia transmitindo a ordem irrevogável da direção:
- Só podem entrar acompanhados pelos pais ou encarregados de educação!

Esperaram pela hora do jantar… mas a ordem fatídica não foi alterada. Pensaram que às 22 horas, hora de recolher às camaratas, seriam autorizados a entrar, mesmo que levando alguns açoites. Mas as contas saíram furadas, mais uma vez; o Sr. Almeida continuou implacável. O Karl Eberl, natural de Angola, como atrás foi referido, foi o único autorizado a reentrar no colégio… porque o Sr. Almeida era seu encarregado de educação. Constou que alguns dos desertores dormiram nos bancos do jardim; outros pediram agasalho aos colegas que viviam na vila.

No dia seguinte, pela manhã, os alunos começaram a entrar no Colégio… acompanhados pelos pais que ali se deslocaram para esse fim. Constou na época que apenas o pai do Álvaro Oliveira, natural de Cesar, barafustou (discutiu) seriamente com o Diretor, lamentando e repudiando aquela decisão tão drástica. Tudo acabou bem… sem complicações maiores, principalmente em relação aos exames.


A equipa de “Económicas” – futebol 

No ano letivo de 1959/60 (ou terá sido no ano seguinte?) organizou-se um célebre campeonato interno de futebol entre os alunos do 5º, 6º e 7º ano. Havia três equipas do 5º ano, duas do 6º ano e três do 7º ano. Uma das equipas do 7º ano incluía apenas alunos de Direito, Germânicas e Economia; era sobejamente conhecida como a equipe de “Económicas”. Na verdade éramos económicos (parcos) em qualidade e habilidade mas nós não “economizávamos” os pontapés e pisadelas nos adversários; o lema dos nossos defesas (principalmente) era: “só pode passar um: o jogador ou a bola”; os dois nunca!

No nosso grupo apenas dois “sabiam jogar” à bola: o Ameixieira, bom guarda-redes (o melhor do campeonato), ex-seminarista, mais velho que os outros (já tinha cumprido o serviço militar) e o J.M. Frias Mendes, ex-júnior da Académica e também já tinha cumprido o serviço militar; os restantes elementos da equipa (Armando Figueiredo, Castanheira, Belmiro e havia outro que não recordo o nome) eram apenas os “sarrafeiros, autênticos toscos, rebenta canelas”!

A equipe do 5ºA, a mais temida, era constituída por jovens muito habilidosos, especialmente o Poças que era um malabarista da bola, um “brinca na areia” e dono de um pontapé fortíssimo e normalmente bem colocado. Jogava-se ali uma espécie de futebol de onze (as mesmas regras) mas apenas com cinco ou seis jogadores; o “campo” era a cobertura do ginásio que não comportava mais jogadores. O último jogo daquele campeonato disputadíssimo, ia ser discutido entre o 5º A e “Económicas” e decidia-se ali o vencedor do certame – os campeões colegiais. À equipa de Económicas bastava o empate – tínhamos mais um ponto que eles – mas o 5ºA era um “osso duro de roer”, tremendamente duro; mas nós os rijos, valentes, ousados, corajosos, aguerridos – podem inventar outros atributos dentro desta linha de pensamento – jogávamos com um amor imenso pela nossa camisola e isso fazia diferença.

Mas camisola não havia! Jogávamos de camisa, calças e… botas! No dia aprazado, o nosso goleiro não compareceu – e que falta que ele nos fazia! – e só havia um suplente se jogássemos cinco contra cinco. Decidiu-se que o lateral direito (eu) ocuparia o lugar do Ameixieira. Embora nos bastasse o empate para erguermos a “taça”, a nossa tarefa era enorme, não só pela falta do guardião titular (era o único) mas também porque o adversário merecia todo o nosso respeito – mas não subserviência. Mesmo desfalcados fomos aguentando o jogo sem golos.

A tática escolhida visava economia de esforços: atacavam todos… sem descurar a defesa! Esta tática veio a ser explanada e aplicada no Boavista, pelo Jaime Pacheco: todos ao ataque… cá atrás. Quando já aguardávamos ansiosamente o toque salvador da sineta que marcava o início das aulas (neste caso também o fim do jogo) eis que árbitro (um ladrão desavergonhado, um filho da… mãe dele, subornado, bandido e outros atributos que não cito aqui para não abandalhar, ainda mais, o ambiente) assinalou uma grande penalidade contra a equipa de Económicas… sem respeito algum pela economia (tal como aconteceu por cá em tempos recentes).

Tratava-se, apenas, de um ligeiro toque de “mão na bola” inofensivo, involuntário, sem consequências (a não ser a famigerada grande penalidade)… mas a decisão do árbitro não se alterou. Cumpre informar os hipotéticos leitores, aqui e agora, que nos nossos jogos não havia árbitro – os próprios jogadores, a bem ou a mal, decidiam se era falta ou não; por vezes pedia-se a opinião da assistência. Portanto não houve qualquer insulto ao árbitro… porque não havia! Informo, também que não havia nem grande nem pequena área – decidia-se a olho; o centro do terreno ficava na junta de dilatação do terraço. As balizas não tinham travessão; a altura da baliza variava segundo a altura do goleiro.

Chegou a hora fatídica da marcação do penalti contra a “Economia”; um simples golo naquele momento dava o título ao 5º A. O Poças, o melhor dos adversários, já tinha jogado nos juvenis do Porto, mas foi “emprestado” ao 5º A, ia ser o carrasco. Apavorado, eu estava desamparado naquela baliza que ficava na vedação do lado do quintal do Arq. Gaspar. O Poças chutou a meia altura, com força mas quase à figura. Eu meti o pé direito à bola (o esquerdo servia apenas para caminhar e “pisar” o adversário); para jogar era totalmente cego e inábil) com tal gana e coragem que a bola sobrevoou o “estádio” anichando-se na baliza contrária. Feito inédito!

Na defesa de uma grande penalidade, marcar na baliza do adversário é coisa do outro mundo! Muito se discutiu se o golo era válido; este caso não estava previsto nos alfarrábios da bola… mas à equipa de “Económicas” pouco interessava, se era golo a sério ou não. O empate já era suficiente e, acabado o jogo, já ninguém nos tirava o título de campeões – só o título! Depois de alargada discussão inútil entre os nossos “sábios da bola” concluiu-se que aquele golo, quase fantasmagórico, nunca antes visto, era mesmo válido… porque o “guardião não tocou na bola com a mão”. Foi um acontecimento inédito, invulgar! Mas fomos campeões! Algum de vós já marcou um golo assim? Duvido! (olha a modéstia!) só um predestinado da bola – como eu, claro – podia ser o autor de tal façanha! Lamenta-se que não haja sequer uma fotografia! E a televisão chegou tarde de mais!


A Dr.ª Celina

A professora de inglês e alemão, a Dr.ª Celina era natural da Covilhã, filha de um industrial de lanifícios, era jovem, simpática, boa mestra, acessível e divertida. Naquele ano os finalistas organizaram um sarau; o programa era variado, longo e interessante; preparámos sátiras a alguns professores e não só como convinha. A Dr.ª Celina não escapou, mas ela até colaborou emprestando o seu casaco comprido, muito característico em tons de vermelho e branco (mais aquele do que este) que ela usava durante grande parte do ano. O Castro Lopes (José Manuel) que agora vive no Canadá, muito bem casado com a colega Maria do Céu (Micéu), era o irmão mais velho e de uma série de oito irmãos que frequentaram o Colégio, foi encarregado deste escárnio. Vestiu o casaco emprestado pela professora visada, sentou-se muito à vontade na cadeira atrás da secretária (uma mesa vulgar sem proteção na frente baixa) e voltado para o público iniciou o seu monólogo em inglês “macarrónico”:
- Oh Covilha city! Covilha city! (O Zé espreguiçava-se e bocejava assiduamente) -There is no other city like Covilha!

Aconteceu que o Zé com toda a exuberância dramática e naturalidade esqueceu-se que naquele momento não usava calças e que a secretária permitia que lhe vissem longamente as pernas; estava tão entusiasmado que até mostrou as cuecas. Creio bem que esta amostragem não foi intencional… mas aconteceu! Não fazia parte do programa. A drª Celina, um tanto incrédula, assistia àquela cena com o noivo a seu lado. Constou que ele não teria gostado daquela brincadeira – falta de sensibilidade ou sensibilidade em demasia; os extremos tocam-se! Mas o namoro continuou e cerca de cinco anos mais tarde o então já marido da drª Celina trabalhava em Sever do Vouga numa chamada Experiência Agrícola patrocinada pela Shell. Ela além de continuar a lecionar no COA, creio que dava aulas também no colégio de Sever do Vouga.

Um dia, já em 1966, após a minha chegada da Guiné, encontrei aquela mestra na vila; estava sentada no carro, de porta aberta e os pés assentes no asfalto. Fui logo ao seu encontro e cumprimentei-a com muito respeito, como ela merecia; conversávamos havia uns minutos quando ela admirada, comentou:
- Mas você caminha normalmente!
- E então… não deveria caminhar com normalidade?
- Então… não lhe amputaram uma perna?! Isso foi voz corrente em Oliveira! E não só!

Eu puxei as calças um pouco para cima, exibindo as tíbias e esclareci:
-Como vê, são iguais, são ambas de origem e são minhas há 26 anos.

Ela acrescentou que no COA correra a notícia – agora boato - que me havia sido amputada uma perna devido a ferimentos, em combate, na Guiné. Soube que na mesma época constou – só boato, Graças a Deus – que eu tinha sido morto em combate. Esta inventiva foi da autoria involuntária de uma aluna do COA, natural de Sever do Vouga (irmã da Dirce e da Manuela Bastos). Em Dezembro de 1965 foi amplamente noticiado na rádio e na TV – então canal único – que eu havia sido galardoado com o Prémio Governador da Guiné, por feitos em combate, e em consequência viria passar o Natal a casa com a família. Ela ouviu a notícia, só a parte final, apercebeu-se do meu nome e Guiné; depreendeu logo que, tratando-se daquele “palco” só poderia ser por morte ou – que bom! – No mínimo uma amputação.

No Verão desse ano, encontrei o Arlindo (Escariz) em Espinho. Ao vê-lo gritei pelo seu nome, e caminhei na sua direção. Ele, assustado, começou a recuar e gaguejando, exclamou:
- És tu, pá? Mas… tu não morreste na guerra?!

Assim se desfez mais um boato.


Curto-circuito no internato 

Tirar o corpo da cama às 6h30 da “madrugada” em noites de breu, frio e chuva era um sacrifício enorme. O Sr. Correia entrava esbaforido em cada uma das três camaratas (naquela altura ainda não havia sido construído o ultimo piso de camaratas), acendia as luzes, batia as palmas, acordando todos os alunos.

Um dia, alguém desapertou as lâmpadas de uma camarata; além disso prendeu um cordel entre duas camas. Vendo que não havia luz, apenas naquela camarata, o perfeito entrou decidido no corredor entre as duas fiadas de camas para apertar as lâmpadas; tropeçou no barbante (a armadilha funcionou devidamente), reapertou as lâmpadas e… fez-se luz! Pouco depois, enquanto se barbeava, o sr. Correia comentava furioso:
- Eu magoei-me! Mas se me aleijava…, alguém já teria engolido os dentes da frente!

Se à hora da “alvorada” não havia luz podíamos dormir descansadamente sem que o perfeito nos incomodasse até que fosse possível ler com luz natural. Tornava-se, pois, imperioso provocar a falta de eletricidade, de vez em quando, para que não fossemos obrigados a levantar tão cedo. Um aluno (adivinhem quem!) retirou uma lâmpada incandescente do respetivo suporte, colocou uma moeda de 20 centavos (semelhante à atual 2 cêntimos) sobre a dita lâmpada, enroscou-a cuidadosamente provocando de imediato um curto-circuito (contacto entre os dois polos); o internato ficou às escuras e dormimos até mais tarde.

No internato só havia um quadro elétrico no rés-do-chão, portanto incessível ao perfeito. Isto foi acontecendo com certa frequência e o aventureiro (amigo dos alunos internos) nunca foi “apanhado”.


O tremoço… é uma arma! 

Como atrás se afirmou, no COA, naquele tempo, havia apenas uma turma por cada ano; no meu 5º ano, creio que pela primeira vez, fomos divididos em duas turmas mas, se bem me recordo, tal não aconteceu em todas as disciplinas. A Drª Maria José Mourão (irmã de um aluno) era professora de inglês de uma das turmas, a minha. Ao sábado, segundo o horário, tínhamos inglês às 9:00 horas. Ela combinou com a sua turma que ao sábado (quase todos) teríamos prova escrita das 8:00 horas às 9:50 horas.

Para os alunos internos não havia complicação; os externos teriam de fazer de tudo para chegar mais cedo ao Colégio, nesse dia. Ninguém arranjou desculpas incoerentes (esfarrapadas) até porque a professora, excelente docente, ótima educadora, não cobrava essa hora nem aos alunos nem ao Colégio. Imagina isto nos tempos que correm! Impossível! Às 8 horas, os internos comunicavam ao perfeito – o velho Correia – que tínhamos ponto de inglês e seguiam para a aula.

De vez em quando, havia um sábado em que não havia prova escrita, mas os internos por força do hábito, procediam do mesmo modo. Como o portão estava aberto até às 9 horas, nesses dias, os alunos aproveitavam para mudar de ares – lavar os lhos – foram dar uma volta pela vila. Alguns houveram por bem dar uma volta pelo mercado (praça) que, tal como hoje, ficava no topo norte do jardim central da povoação, ou praça José da Costa (creio que esse nome é recente). Um desses alunos comprou 50 centavos de tremoços – uma quantidade maluca!... um saco de tremoços e entretanto regressou ao Colégio.

No último tempo da manhã desse sábado, o 5º ano – turma única – tínhamos aula de Português, disciplina ministrada pelo Dr. Maurício; era o 1º ano que lecionava no COA. No dia da apresentação a esta turma, o Dr. Maurício entre outras coisas correntes (generalidades e culatras), informou, mais ou menos nestes termos:
- “Tenham cautela comigo, porque eu sou mau! O meu próprio nome diz que eu sou mau!”

Refastelado na sua carteira, ao lado do Escariz, na última fila, junto à janela com vista para o quintal, um aluno comentou divertidamente: - o “gajo” (desculpem o calão) chama-se Maurício? Não pode ser outro o seu nome? E não é que acertei? Retomemos o fio da meada!

Nesta altura do ano, o Dr. Maurício ensinava-nos a interpretar “Os Lusíadas”; nós entendíamos que ele inventava uns tantos complementos circunstanciais. Nós até “ajudávamos” nesta ideia, publicitando que ele teria dito que, na expressão: “a terra é lavrada pela charrua”, este utensílio era o “complemento circunstancial de ferramenta” – brincadeira nossa – que foi utilizada no sarau como sendo da sua autoria – em verdade não aconteceu! Reconheço, apesar de tudo, que se ainda sei interpretar cabalmente aquela obra-prima da nossa Literatura, e se adoro lê-la, porque amo o que é genuinamente português, ao Dr. Maurício o devo!

Quando parti para a Guiné, para uma comissão de dois anos, levei comigo apenas dois dicionários de alemão – porque me correspondia com uma garota alemã – e Os Lusíadas . durante anos, esta obra insigne foi o meu livro de cabeceira.

De pé, ao lado da secretária, o Dr. Maurício, ensinava-nos a interpretar Os Lusíadas. Foi quando um dos alunos, o tal que comprou os tremoços, começou a bombardear as alunas, disparando (comprimindo) aqueles projéteis. Depois de vários disparos… houve azar! Um dos tremoços atingiu o professor na cabeça (má… ou boa pontaria?). O tremoço de seguida caiu para o livro que o professor segurava na mão, rolou, depois sobre a secretária até cair desamparado no estrado – tremoço endiabrado!

O Dr. Maurício apenas terá comentado: “no fim da lição conversamos!”

O prevaricador esperou que todos os alunos saíssem para, a sós, se desculpar perante o mestre. Aproximou-se cabisbaixo, pesaroso (pelo menos na aparência) e apresentou as suas desculpas “sinceras” pelo sucedido. Alegou que não era sua intenção agredi-lo; apenas pretendia alvejar, com respeito, as alunas e sem qualquer indício de maldade. O professor respondeu secamente: “ é algo que não posso desculpar! Tenho de participar a ocorrência ao Sr. Almeida”. - “Se não pode desculpar” – respondeu o aluno – “nada mais tenho a alegar em minha defesa; já cumpri a minha obrigação”.

Na verdade, ele cumpriu com a promessa, informado o diretor. O Sr. Almeida, encontrando o faltoso no corredor de acesso à secretaria, perguntou-lhe pelo sucedido. - Eu já expliquei ao Dr. Maurício como tudo aconteceu e apresentei as minhas desculpas sinceras – respondeu o aluno. Decisão imediata do sr. António Almeida:
-Isso não é suficiente; amanhã, domingo, não sais do Colégio!

Acontece que o aluno já estava autorizado a ir passar o fim-de-semana à “santa terrinha”, não sofrendo assim, qualquer punição. Claro que o Sr. Almeida não se deve ter apercebido daquela situação; caso contrário teria agido de outro modo. Quem saberá como?!

O Dr. Maurício… chegou, viu e venceu! Mal chegou a Oliveira, encontrou uma “jovem” mais ou menos da sua idade (talvez fossem ambos quarentões ou perto disso) e à primeira vista… apaixonaram-se mutuamente, e juntaram o útil ao agradável. Ela era filha do Dr. Tomás. Chamava-se (chama-se ainda Graças a Deus e ao bom tratamento que o marido lhe dá) Mariazinha. Era giro vê-los no “picadeiro”; ela, creio que mais alta, colocava o braço esquerdo sobre os ombros do Dr. Maurício, ele poisava, acintosamente, a sua mão sobre o traseiro bastante saliente da namorada; assim andavam às voltas no jardim para gáudio da juventude académica. As idades não aconselhavam muitas demoras e, a breve trecho, casaram; da união nasceram duas “Mariazinhas”. Ainda vivem, felizes e contentes, na cidade de Oliveira de Azeméis.

O Dr. Maurício era também professor de filosofia no 6º e 7º anos. Em meu modesto entender as aulas do 6º ano (daquela disciplina) eram uma autêntica seca. Eu nunca consegui entender absolutamente nada daquela matéria; a culpa seria por certo muito mais minha do que do mestre – até porque os outros alunos aprenderam aquela matéria que para mim era impenetrável… aquela psicologia para mim… era o fim da picada.

Naquele ano eu entrei no colégio quase no fim de Outubro; os colegas já estavam enfronhados na matéria. Eu bem quero alijar o meu fardo mas não consigo. O Dr. Gandra, porém, entre a escrita e a oral, durante uns noventa minutos explicou-me um capítulo da matéria do 6º ano e eu compreendi e assimilei perfeitamente aquela parte da matéria. Com isso safei-me na oral como narrarei mais à frente. Entrei bem na matéria do 7º ano e aprendi aquilo quase na perfeição.

Fazia parte do programa – do 7º ano – um capítulo que tratava do objeto, conceito e método de algumas ciências, entre as quais História. O Dr. Gandra, enquanto mestre de História, ensinou-nos esse tema com tal minúcia e precisão que nós aprendemos muito para além do que era exigido no programa; e nós, alunos de História sabíamos aquele tema na ponta da língua. Um dia, o Dr. Maurício fez-me umas perguntas para o meu lugar (sem abandonar a minha carteira); à 2ª pergunta ele ordenou-me que falasse sobre: objeto, conceito e método da História. Àquela data, eu ainda não dominava aquele tema, na perfeição, como o Dr. Gandra nos ensinou; mas tinha os apontamentos em cima da carteira. Pouco falei do que constava no compêndio; segui o que tinha no rascunho. O Dr. Maurício deve ter-se apercebido (com certeza, mas não se manifestou), que eu olhava para o livro, mas o que eu ia transmitindo não vinha no compêndio. De soslaio eu ia lendo os tópicos no meu manuscrito e tudo saiu pelo melhor. Tocou a sineta, impondo o fim da aula; o Dr. Maurício comentou:
 - Se todos os alunos estudassem como o Belmiro, teríamos aqui uma turma excelente! Gostei!

Mal ele sabia que eu ia lendo os meus apontamentos! Chegou a hora do exame! Na escrita, não acertei uma única resposta sobre a matéria do 6º ano; só respondi a uma, lançando ao ar duas bolinhas de papel. Errei! Daquela vez, a sorte não protegeu o ignorante. Passei na escrita com nove – uma boa nota, tendo em conta que só respondi à matéria do 7º ano. Na oral safei-me com o 10 da ordem, porque já sabia um capítulo do 6º ano (apenas um), o tal que o Dr. Gandra me ensinou; foi precisamente esse tema que o Dr. José Bento escolheu para me metralhar. Na matéria do 7º ano eu estava à vontade!

Desta vez a sorte protegeu-me! Mais um problema resolvido!


A Guerra das Laranjas 
(Não confundir com a guerra luso-espanhola – invasão do Alentejo que culminou com a perda de Olivença). 

No quintal da Direção havia uma laranjeira que produzia umas laranjas excelentes (querias que fossem peras!?) que, quando surripiadas, eram ainda mais deliciosas. No ano em que o internato masculino foi aumentado – construção de mais um piso – os alunos internos passaram a dormir, temporariamente no ginásio; assim encontrávamo-nos mais perto do quintal. Alguns alunos, isoladamente ou em grupo, babavam-se ao ver tantas laranjas, ali tão perto a enfeitar a laranjeira que fora plantada no interior do galinheiro (ou este foi construído em redor da árvore).

De vez em quando, pela calada da noite, alguém aliviava aquela árvore que, na parte voltada para o quintal da Dª Dores, tinha imensa fruta a pedir carinhosamente para ser saboreada. O Sr. Almeida apercebendo-se que a quantidade de laranjas diminuía a olhos vistos, decidiu agir em defesa da fruta. Entrou no refeitório, à hora do almoço, e informou-nos que alguém andava a abarbatar-se com as suas apetitosas laranjas, e acrescentou:
- “Parto do princípio que não são os alunos a cometer tal asneira. Por isso, se eu me aperceber que alguém anda nas minhas laranjas, eu disparo sobre os larápios, sem dó nem piedade; se ouvirem alguém gemer ou gritar já sabem do que se trata!”

Numa das noites seguintes, o Leonel Castro Nunes e eu tomámos a decisão corajosa de enfrentar a ameaça irada do diretor. Partimos do princípio (credível) que ele sabia perfeitamente que os assaltantes eram mesmo os alunos e não ousaria disparar sobre nós; por outro lado, ele sabia que os chumbos danificariam não só as laranjas mas também a própria árvore.

Já tarde, saímos do ginásio, subimos o muro que separava os dois quintais… a lua iluminava tudo! E as laranjas estavam ao alcance das nossas mãos gulosas. Estávamos cuidadosamente a encher a sacola, quando ouvimos abrir uma janela, de guilhotina, nas instalações habitadas pela Direção. Nós pendurámo-nos nos ferros da latada da Dª Dores e encostámo-nos ao muro – uma boa proteção contra os chumbos. Nisto o Sr. Almeida perguntou, de forma bem audível:
-“Quem anda aí?”

O Sr. Almeida fez fogo – apenas um disparo – para o ar (não ouvimos o ruído do chumbo a bater no muro ou na árvore), fechou a janela e foi dormir. Não acreditávamos que ele se tivesse apercebido que alguém lhe surripiava laranjas, pois nós agimos no mais profundo silêncio; naquele momento, ele teria chegado do café (ele frequentava a chamada “Leitaria”, mais ou menos em frente ao café Guarani, hoje Hotel Dighton em memória da lápide com o mesmo nome), e lembrou-se de cumprir o aviso anunciado aos alunos.

Lestos, acabámos de encher o alforge e seguimos velozmente para a camarata. Tivemos fruta (não confundir com a fruta do PC) para vários dias. Laranjas deliciosas, divinais!
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10688: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (29): Colégio de Oliveira de Azeméis (Belmiro Tavares)

sábado, 17 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10688: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (29): Colégio de Oliveira de Azeméis (2) Parte II (1)

1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a segunda parte das suas aventuras no Colégio de Oliveira de Azeméis que vai ser dividida em dois postes:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (29) 

Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte II (1)

Nas páginas anteriores narrei, de forma aligeirada e certamente muito incompleta, as regras gerais do colégio e o quotidiano fastidioso e severo dum aluno interno. Nesta segunda parte, vou contar alguns acontecimentos mais ou menos cómicos, um tanto jocosos e outros um tanto ou quanto funestos, fruto da imaginação individual ou, por vezes, coletiva. Além da ideia era absolutamente necessário também, uma boa dose de astúcia e cautela – além da sorte que faz sempre parte do jogo – para não sermos surpreendidos com o pé em falso e, em consequência, rigorosamente repreendidos ou mesmo (na maioria dos casos) severamente zurzidos.

Era proibido falar com as moças; para namorar, como algumas vezes acontecia, era imperioso ser redobradamente cauteloso, arrojado, ousado mesmo. Em primeiro lugar era fundamental ter um “bom correio”, ou como dizem lá no reino de sua Majestade, um “gobetween” seguro, astucioso, sem receio, mas muito calculista; qualquer deslize seria tremendamente desastroso para os três intervenientes. Eu fui “correio” das manas Manuela e Helena Cruz e elas casaram respetivamente com o Reis Ferreira e com o Alberto Miller, graças, claro, (como convém!) – ao bom desempenho do “correio”. Creio que foram muitos felizes; não sei se tiveram… muitos meninos.

A diretora soube – certamente só desconfiou ou talvez nem isso – que o Miller e a Helena namoravam. Num dia em que estava de boa catadura, ela comentou:
- o Miller tenta levar a Cruz ao calvário.

Algum santo teria caído do altar para ela fazer tal comentário, nada comum naquela senhora. Para passar por bom aluno perante a Srª Dª Maria Adília era absolutamente necessário saber usar devidamente a escova, a graxa e o pano, bajular, ser sabujo e… saber também umas tretas. Os seus castigos corporais eram quase cómicos; ela pegava na régua de desenho, segurava na mão do visado e começava a bater em “alta rotação” – mal afastava a régua da mão; uns fingiam que lhes doía imenso, e ela ficava contente… porque teria castigado severamente o prevaricador; outros deixavam que ela batesse à sua vontade sem manifestar qualquer sofrimento porque na verdade, o castigo era inofensivo. Ela não gostava e comentava:
- “Cara de pau! E não chora!”

Com a Dª Maria Adília eu passei por várias fases… muitos altos e baixos. No 1º ano o nosso relacionamento foi excelente; nos muitos fins-de-semana que passei no colégio, ela até me convidava a acompanhá-la no carro até ao parque de La Salette e levava a merenda para os filhos, e também, para mim… para eu tomar conta dos seus descendentes, Tozé e Betinho; Colaborei nas festas de S. João e noutras celebrações. No 2º ano caí em desgraça, logo no início do ano, porque troquei o tempo de um verbo: “os homens olharam”; eu respondi que era o pretérito mais que perfeito… mas era o pretérito perfeito; porém a forma até era igual. Ela logo informou o Dr. Mota (professor de português) que eu não sabia os verbos na nossa língua – “como poderá sabê-los em francês?” perguntava ela, escandalizada. Até parecia que para aprender francês, era imperioso saber português – coitados dos jovens franceses! Teriam de aprender português para de seguida entrar na sua língua!

O velho Mota organizou logo uma sabatina ou recapitulação de verbos; a turma foi dividida em três equipas: Benfica, Sporting e Porto. As moças formavam a equipa do Porto, pois não podia haver misturas de sexos; os rapazes encaixaram-se nas equipes do Benfica e do Sporting mais ou menos de acordo com a predileção de cada um. O professor chamava dois alunos (um de cada grupo) para junto da secretária; escolhia um verbo e perguntava alternadamente os vários tempos a cada aluno; quem errasse uma resposta era impiedosamente eliminado. A finalíssima, depois de várias horas a eliminar, foi disputada por uma tal Glória Mendes (fez o 2º ano e saiu do Colégio) e este vosso cronista. Foi duro, demorado! O Dr. Mota, depois de inúmeras perguntas, sobre os mais variados verbos que ele ia escolhendo, sugeriu que a Glória selecionasse um verbo e perguntássemos os diversos tempos um ao outro. Como nenhum falhou, eu fui incumbido de escolher um verbo e que mandássemos “cantar” os vários tempos. Eu escolhi o verbo remir (o tal de que se falou na primeira parte desta crónica); ela não soube conjugar o presente do indicativo. Eu fui o campeão! A minha grande vitória académica! Um osso cravado na garganta da Dª Adília!

O Dr. Mota, eufórico, encheu o peito de ar e foi informar a diretora que afinal “O Belmiro sabe bem os verbos em português; se os não sabe em francês… isso são contas de outro rosário!” A Dª Adília, porém, continuou a “molestar-me” severamente durante o 2º ano. Ela era também professora de desenho; sempre que eu lhe mostrava uma folha (1/4 de papel cavalinho) com uns rabiscos “bem-feitos” por mim ela não comentava se estava bem ou mal: rasgava e metia no lixo! Assim se perderam algumas verdadeiras “obras de arte”! Eu deixei de lhe mostrar os meus caros desenhos artísticos; arquivava-os para memória futura!

Aos Domingos, ela dava, principalmente à tarde, umas aulas de desenho e/ou francês aos alunos internos e a alguns externos que moravam na vila e eram “ convidados” a comparecer no colégio. Um belo domingo à tarde, ela pretendia deslocar-se a São Martinho da Gândara para ali assistir a um qualquer evento para o qual ela havia sido convidada, antes de partir decidiu que ficaríamos a fazer desenhos, até à hora de jantar; sugeriu que eu tomasse conta do grupo. Entendi que era o momento ideal para lhe mostrar um dos meus desenhos deliberadamente arquivado antes. Foi a primeira e única vez que ela declarou que o meu desenho estava bom e que pintasse. Não tive a mesma sorte com a pintura… e mais uma “obra-prima” foi parar ao caixote do lixo. A Srª Diretora impunha regras rígidas, imutáveis, para a decoração de cada figura geométrica. O hexágono, figura que nos saiu na rifa, no exame, devia ser “rigorosamente” decorado com uma “irradiação” de malmequeres a partir do centro em direção a cada vértice.

Eu fiz exame no Liceu de Aveiro; a maior parte dos alunos foram para o Porto. À saída da sala, lá estava a diretora, perguntando como cada aluno tinha decorado o hexágono; quando chegou a minha vez, eu respondi que havia decorado aquela figura geométrica com uma simetria; ela quase desmaiou! Mas eu consegui a nota de 13 naquela disciplina, nota melhor que a de alguns alunos que ela considerava de “bons artistas” – os bajuladores.

No meu 4º ano, foi nossa professora de francês durante umas semanas. Logo na 1ª aula, ela ordenou que decorássemos um texto – La Laictière et le pot au lait - . Eu apenas decorei cerca de uma dúzia de linhas… e fui um herói… na sua opinião, claro; os outros nem tentaram decorar uma linha sequer. Assim se iniciou uma grande reviravolta no nosso relacionamento.

No ano seguinte, ela era nossa professora de Geografia de Portugal; impunha para começar, que os alunos papagueassem as fronteiras terrestres de Portugal – a Norte e a Este - sem olhar para o mapa; era “apenas” página e meia do compêndio que tínhamos de memorizar. Geografia sem mapa… nem ao diabo lembra!

Num domingo em que pretendíamos ir ao futebol, ela decidiu dar uma aula de Geografia, pouco depois do almoço. Ela argumentava que, como deixara de ir não sei onde, não podia prescindir de dar a aula. Nesta época (ela e eu) já éramos bons amigos. Sugeri aos colegas que não levantassem ondas e eu trataria do resto. Antes de ela entrar na sala, eu “preparei o terreno”: Pendurei um mapa de Portugal, na parede, do lado direito da professora; - Fiquei junto da secretária, mesmo depois de ela entrar.

Quando ela apareceu, eu permaneci no estrado; ela perguntou se eu queria ser interrogado sobre as fronteiras de Portugal; respondi afirmativamente. Ela mandou-me “cantar” a fronteira terrestre do nosso belo e querido País. Colocado ao seu lado esquerdo e ligeiramente atrás dela, eu via perfeitamente o mapa e assim pude simular que havia encaixado na minha cabeça aquele imenso texto. Estava em causa uma ida ao futebol. Conseguimos convencê-la que todos tínhamos aproveitado ao máximo aquela aula e lá fomos apoiar o U.D.O. Assim melhorei o nosso relacionamento.

Fui encarregado de preparar uns textos, em francês, para descrever o conteúdo (pintura) de uns quadros que eram mostrados aos alunos durante o exame num dos liceus do Porto. Ela não sabia a tradução de “serpette”! Eu informei que era uma espécie de faca curva, usada na vindima. O meu astral estava em alta. Assim continuei até sair para Coimbra.

Durante o meu primeiro ano na Universidade, eu acompanhei a Académica a muitos estádios de norte a sul do País; sempre que ia ao norte eu almoçava e/ou jantava no Colégio e até dormi lá algumas vezes – tinha livre-trânsito. De seguida o diretor dava-me boleia até ao Porto quando ele ia ver o seu clube jogar; dali eu seguia o meu caminho.


Nota negativa na disciplina de Religião e Moral

“In illo tempore” – no tempo em que isto aconteceu, o padre Joaquim era professor daquela disciplina que então era uma cadeira obrigatória – só não fazia parte do exame. O padre nunca nos falou de moral (talvez porque não tinha a suficiente); falava apenas de religião.

Estávamos no 5º ano; o padre entrou na sala (ficava quase em frente à secretaria e dava para o terraço junto ao quintal) e depois de ligeiras considerações perguntou a um aluno:
- Qual é a parte mais importante da Missa?

O aluno terá respondido “comunhão”! O padre, sem manifestar a sua opinião quanto à veracidade daquela resposta, pediu a opinião a outros alunos; cada um ia dando uma resposta diferente, supondo que as anteriores estavam erradas. Depois de ouvir várias respostas, todas desiguais, chegou a minha vez. Eu estava sentado na última carteira, ao lado do Arlindo, um rapaz natural de Escariz, lá para os lados de Arouca. Chamávamos-lhe “tetra quintanista” porque só à quarta tentativa concluiu o 5º ano. A minha resposta foi clara e “pouco” eficiente:
- “Ite! Missa est! (ide! A Missa acabou!)

Seria aquilo que gostosamente apelidávamos de “o santo sacrifício da saída”. O Arlindo acrescentou, sem delongas:
- Deo Gratias! (Graças a Deus!)

Poderia até parecer que tínhamos combinado as respostas, mas a ação não foi concertada – juro! O Escariz e eu tivemos nota 9 a Religião e Moral; se tivéssemos negativa a outra disciplina… correspondia a “chumbo”. Terá sido talvez a única vez que um aluno (dois neste caso) teve negativa a Religião e Moral.

Naquele tempo as notas variavam de zero a vinte; longe do que veio a acontecer nos tempos revolucionários em que as notas passaram a ser de um a dez e de um a cinco, (o aluno não podia ter zero); o caso mais cómico, mais aberrante aconteceu na Faculdade de Letras de Lisboa em que, na última cadeira do curso, as notas eram apenas: “apto” e “não apto”. Estas classificações eram atribuídas pelos outros alunos; a professora – qual rainha de Inglaterra “que reina mas não manda” - tinha o supremo poder decisório de desempatar, se tal acontecesse. Uma rebaldaria!


Confraternização de Ex-alunos

O COA era até uma boa escola… apesar de tudo; cada turma incluía todos os alunos do curso – 40 e até 50 alunos; em geral ouvia-se a mosca que abusivamente invadisse aquele espaço. A 1ª vez que um curso foi dividido em duas turmas (e creio que não aconteceu em todas as disciplinas) foi no meu 5º ano – 1957/58. Mais de 40% dos alunos dum 2º ano dispensaram de oral; noutro 2º ano dispensaram mais 40%.

Nos fins dos anos 50 – os liceus e os colégios estavam superlotados; na época dos exames as salas dos liceus eram já insuficientes para albergar tantos alunos – os do próprio liceu e os dos colégios do distrito. O Ministério da Educação decidiu “promover” doze colégios a nível nacional; os seus alunos passavam a ser examinados “em casa” mas com professores nomeados pelo Liceu. O Colégio de Oliveira fez parte desse número mágico de 12 colégios que seriam os melhores do País.

Em 1972, quarenta e nove ou cinquenta anos após a sua fundação, o COA deixou de funcionar como tal; passou a ser uma extensão do liceu de Aveiro, que tomou de renda as avelhentadas instalações (algumas) da vetusta escola. Os alunos daquele colégio, porém, não o esqueceram. Com certa frequência, (pouca a meu ver), tem havido almoços de confraternização de ex-alunos. Participei nos 5 primeiros; estive presente, também, no que teve lugar a 9 de Junho de 2012, com visita às instalações do ex-colégio e o almoço em Ul, com a presença do filho mais novo dos diretores – José Alberto.

Dois desses almoços realizaram-se em Sever do Vouga; num deles o Sr. Almeida esteve presente. Propus-lhe que numa vinda sua a Lisboa (quando o Colégio passou a liceu, os proprietários mudaram-se para o Algarve) me contactasse e jantaríamos juntos. Assim aconteceu. Durante o repasto falámos quase só do meu tempo passado no colégio. Entre outras confidências, contei-lhe como o padre Joaquim teve a lata de me atribuir uma negativa a religião e moral. E logo a mim! Aleguei em minha defesa que ele “teria pouca moral” pois uns anos mais tarde, casou-se, abandonando a sotaina. O Sr. Almeida informou que com duas negativas – mesmo sendo uma a Religião e Moral – eu reprovaria. Retorqui que só tive nega a essa disciplina. Quando eu lhe transmiti que à pergunta: – qual é a parte mais importante da missa? – Eu respondi que era – ite! Missa est – ele, em voz bem audível (leia-se bastante alta) em toda a sala (todos os clientes puseram os olhos na nossa mesa); ele comentou:
- Estavas a pedir vara! Estavas mesmo!

Adorei! Gostei imenso de ouvir aquelas palavras! Pareceu-me que voltámos uns anos atrás… aos saudosos tempos do colégio… mas afinal já não éramos mestre e aluno… éramos apenas dois bons amigos com uma lauta mesa entre nós.


- O Vinho –

Como atrás foi dito, os alunos internos e os semi-internos podiam beber uns goles (poucos) de vinho às refeições principais. Além dos negócios que a “pinga” proporcionava, havia um castigo – uma semana sem beber – para quem sujasse a toalha, entornando um copo de tinto; já era o melhor para a saúde! A srª diretora alegava que o valor do vinho não servido se destinaria a custear a lavagem da toalha. Eu estava no quinto ano! Cada mesa alojava seis alunos; os meus companheiros de mesa eram divertidos e um tanto barulhentos; discutíamos acaloradamente cada tema. A meio de um almoço o Sr. Diretor entrou na sala e exclamou:
- Que diabo de barulheira é esta?

O perfeito – Manuel Correia, natural de Santo Tirso – levantou-se e, sacudindo a água do capote, lançou o seguinte repto:
- Se o Sr. Almeida calar aquela mesa, eu calarei as outras! (referia-se escandalosamente à minha mesa… mas ele sabia que eu era bem comportado!). Sempre fui! Parece que estávamos a ser os “bons” da fita, mas nós até nem éramos maus… tanto assim; até porque… não há rapazes maus!

Fazia parte daquele grupo o Karl Mickael Eberl, filho de pais alemães e nascido em Angola, na fazenda produtora de café Kenuma Numa, no Pango Aluguem, algures no norte de Angola. Democraticamente (imaginem o que nós já éramos naqueles belos tempos) decidimos que, em cada dia, um de nós declamaria um poema durante o almoço. Eu optei por uma estância d’Os Lusíadas, discurso de Marte no concílio dos deuses (pagãos) da qual, quase no fim, constava como segue: “e dando uma pancada penetrante/ com couto do bastão no sólio puro”; aí eu dei um valente murro na mesa – e continuei: “o céu tremeu” etc.

Com aquela punhada enorme, idêntica à de um deus todo-poderoso (como tinha de ser) entornei apenas seis copos de vinho – não havia mais! Houve galhofa da grossa! De tal modo que a srª Diretora, assustada (digo eu) veio ver o que tinha acontecido. Aleguei que apenas queria dar a ênfase devida ao discurso do deus da guerra (como Marte merecia), mas com todos os meus argumentos não consegui adoçar a sua ira. Ela sentenciou fatalmente:
- Entornaste seis copos de vinho ficas seis semanas sem beber!

Eu argumentei, puxando a brasa à minha sardinha, que tendo sujado, apenas, uma toalha, não poderia ser punido com mais de uma semana. – “Essa punição está a ser aplicada com demasiada severidade! É simplesmente desproporcionada!” Ela defendia que era uma semana por cada copo entornado; e eu alegava que era uma semana “a seco” por cada toalha suja. Apareceu o Sr. Diretor que ajuizou de acordo com a posição que eu defendia,… nem poderia ser de outro modo. Eles andavam frequentemente de candeias às avessas. Como cônjuges não seriam o melhor exemplo para a rapaziada do colégio.


Visita noturna ao internato feminino 

Quando entrei para o colégio, as alunas internas ocupavam um piso de um prédio fronteiro ao recreio dos rapazes, do outro lado da avenida. As “pequenas” tomavam lá as refeições e lá pernoitavam sob o olhar sempre atento, mesmo durante o sono, da Dª Urraca – perdão – Dª Idalina (que a terra lhe seja leve! Nunca me fez mal!). Mas era temida por todos! Ao lado do recreio das “miúdas”, ficava uma casa espaçosa; por trás desta vivenda havia um quintal de área razoável e que fazia face com o “pomar” dos proprietários do Colégio e ao recreio dos rapazes. Um muro com mais de dois metros de altura separava as duas propriedades.

As nossas bolas de futebol, com frequência, “refugiavam-se” nos terrenos da Dª Dores, certamente para evitar levar mais pontapés desajeitados e furiosos dos alunos menos hábeis…, como eu. Imediatamente alguém saltava o muro, apanhava a bola e o jogo continuava. Estas intrusões em terreno alheio enfureciam a proprietária do quintal, mas também o Sr. Almeida que não desejava complicações com a velha vizinha. A dª Dores alegava que nos devolvia as bolas logo que as avistasse no quintal ou no galinheiro… mas a bola fazia-nos falta na hora do jogo e não apenas quando ela fosse alimentar as galinhas. Era uma guerra quase permanente. Podiamos chamar-lhe: batalha sem fim.

Os donos do colégio decidiram comprar aquela propriedade (casa e quintal) à sua estafada proprietária. Ali instalaram o internato feminino, deixando de pagar renda pelo outro edifício. Até à mudança das garotas para as novas instalações, havia uma perfeita a quem chamavam “Dª Urraca”; era uma pessoa difícil, muito complicada, cara de poucos amigos e que não tolerava baldas. Só este ano soube, que o seu verdadeiro nome era Idalina; mas Urraca assentava-lhe… como uma luva! Além do cargo de perfeita (responsável pela disciplina entre as alunas), dava aulas aos miúdos da primária.

Como o número de alunas ia aumentando, a direção contratou outra perfeita, a menina Rosa: talvez mais idosa que a outra (mas era menina, cabelo oxigenado, mais simpática e mais permissiva; gostava que os rapazes conversassem com ela, expondo os seus problemas; facilitava, cautelosamente, alguns contactos com as alunas e até aceitava levar recados – tudo com muito cuidado, respeito total, cautela demasiada… mas tinha de ser assim, convenhamos!

No meio das dificuldades provocadas pela separação exaustiva, total (segundo a vontade da Dª Adília) por sexos, havia no entanto quem conseguisse furar as malhas e até houve vários casamentos. Uns jovens alunos, apesar da vigilância apertada levada a cabo pelos perfeitos dos dois lados, e dos muros que separavam os dois internatos bem como a distância entre eles, combinaram fazer uma visita noturna às instalações habitadas pelas garotas. O planeamento manifestou-se eficiente, tudo estava cabalmente alinhavado e tudo correu como o planeado… até determinada hora.

Parecia tratar-se de uma operação militar (golpe de mão) de grande envergadura e em terreno altamente perigoso… e armadilhado. As moças, como acordado, abriram a porta que dava para o quintal, “correndo” os ferrolhos; a rapaziada entrou no edifício; houve conversa “sussurrada”, para não acordar nem as vigilantes nem as outras alunas que dormiam despreocupadamente no piso acima; houve um pouco de tabaco – q.b. depois pois de quase uma hora de palavreado e como tudo corria sobre rodas, os rapazes, acompanhados pelas amigas, subiram às camaratas para observar ao vivo… como as garotas dormiam; uma acordou e gritou esbaforida:
- Há homens cá dentro!

Todas acordaram e a gritaria tornou-se logo infernal! Muitas das moças refugiaram-se na varanda até não caber mais e cada uma pretendia gritar mais alto que todas as outras. Chovia torrencialmente! A chuva não as perturbava! Pânico! Terror mais que muito! O medo imperava! As moças que facilitaram a entrada misturam-se com as outras, de imediato, alegando certamente, que também se aperceberam que havia homens no interior (havia mesmo, mas desapareceram logo!); todas juravam que não era um sonho!

Os rapazes “assaltantes”, salvo seja, fugiram em direção ao internato dos rapazes, mesmo em frente, e misturaram-se logo com os outros alunos que desciam as escadas velozmente – autêntico atropelo – em socorro das moças frágeis e desprotegidas. Parecia uma passagem de um romance… de cavalaria em que se defendia intransigentemente a honra das damas. O sr. António Almeida e a esposa abriram as janelas de guilhotina, dos seus aposentos, que eram à frente da varanda onde as raparigas, apavoradas gritavam, perguntando ansiosamente às alunas qual o motivo de tal gritaria; era tanta a confusão de gritos que ninguém percebia o que proferiam. Até gaguejavam… em voz altíssima!

O Sr. Almeida pediu a comparência urgente da GNR; os bombeiros foram solicitados mas sem alarme… para não acordar a vizinhança. O Sr. António Almeida compareceu célere, no local do “crime” de caçadeira na mão disposto a mandar para os anjinhos qualquer “assaltante” que por lá se encontrasse (certamente que os viu… mas não sabia que o eram). Naquele tempo dizia-se que os soldados da GNR eram os “desertores da enxada” e acrescentava-se, jocosamente “voltai à ingrícola”! Toda a agente se ria porque eles seriam indelicados, abrutalhados, broncos… e outros epítetos pouco abonatórios.

Os GNR’s, porem, não eram (não foram) tão aparvalhados como se imaginava ou pretendia. Avaliada a situação, aperceberam-se que havia “beatas” no chão e que os fechos haviam sido “corridos”… por dentro; logo concluíram que do interior alguém abriu a porta. Não se tratava portanto de um roubo ou tentativa – teria sido uma investida autorizada. Perante isto, o Sr. Almeida “fechou as portas do circo”; agradeceu a prestimosa (mas incómoda) colaboração da GNR e sugeriu (impôs) que não se falasse mais no assunto. Devemos ter em conta que o Sr. Almeida era (quase) uma autoridade naquela vila. Ordenou que tudo fosse esquecido e… mais ninguém falou daquele famoso assalto, pelo menos às claras, ao internato feminino. Na verdade, as bocas do mundo não mais se abriram. Os intervenientes que se manifestem… ou calem-se para sempre!

Volvidos tantos anos, apesar de tudo, o melhor será continuarem calados(as) para não desenterrar “pecados antigos”. Para que o silêncio fosse total, o Sr. Almeida ameaçou que iria mandar fazer análises às “beatas” e recolher impressões digitais, para identificar os prevaricadores, mas nem sequer mandou recolher as pontas dos cigarros! O que ele pretendia – e conseguiu – era abafar totalmente o caso. Se assim não fosse e se os pais das raparigas se apercebessem do sucedido, o internato feminino seria encerrado… pela falta de alunas! Os pais não perdoariam que as suas filhas estivessem tão expostas… e eles a pagarem.


O Toino

António Rodrigues Figueiredo era natural de São Vicente de Pereira, concelho de Ovar; o pai era proprietário de uma fábrica de curtumes; ele era o irmão mais novo de um outro aluno, Armando Rodrigues Figueiredo. Creio que mais tarde apareceu mais uma irmã. Hoje o Toino é a autêntica cara do pai! O Toino terá feito a 4ª classe no Colégio. Dava a ideia de ser um tanto ríspido, até agressivo, para com os colegas, embora não me recorde de qualquer briga mais dura em que se tivesse envolvido. Se um aluno do 7º ano (para citar, apenas, os mais corpulentos) ao passar pelo Toino lhe tocava inofensivamente com a ponta de um dedo, a reação do puto era sempre a mesma, para qualquer um:
- Parto-te já a cara!

Um dia, na fábrica do pai, o Toino pretendeu ser paraquedista; qual Ícaro dos tempos modernos! Gostava de voar! Arranjou um guarda-chuva, abriu-o e saltou do 1º andar para o solo; tudo funcionou como previsto (não como ele gostaria): o “paraquedas virou-se”; a aceleração foi grande! A velocidade no momento do impacto com o solo seria igual a j t2/2 (se bem me lembro… era assim que aprendíamos na Física). O Toino fraturou apenas uma perna - coisa de pouca monta em comparação com a asneira.

À surrelfa, o Toino quis caçar pardais… à mão, no espaço entre o teto e o telhado do internato. Não se sabe como, o Toino passou por uma espécie de alçapão existente no teto da casa de banho – o pé direito era bastante alto – e movimentou-se sobre as vigas de madeira. Quando se encontrava por cima do vão da escada, a cerca de 6 metros do solo, desequilibrou-se, pisou o teto de gesso fazendo dois avantajados buracos e – grande sorte – ficou encavalitado numa viga e as pernas penduradas, sem ter onde as apoiar. Encontrava-se me situação crítica; se caísse, seria a morte do aventureiro. Apesar do enorme susto, reequilibrou-se, desceu pelo buraco por onde havia subido, assentou os pés no chão, dizendo para com os seus botões: - deste aperto já me safei! Não recordo se foi castigado… ou se ficou só pelo susto – que terá sido enorme.

Muito frequentemente, durante qualquer jogo de pontapé na bola, esta passava sobre o muro, aterrando dentro do galinheiro ou do quintal da Dª Dores. No calor do jogo, o Toino saltou sobre o muro para recuperar a desejada bola; “poisou dentro do galinheiro, sobre uma chapa metálica que dava acesso – imagine-se! – a uma fossa onde convergiam os esgotos não só do galinheiro mas também os provenientes da casa da proprietária! Aquela tampa, ferrugenta e carcomida não aguentou o impacto, e o Toino mergulhou na fossa. Saindo de lá – mal cheiroso! Um cheiro horroroso… pestilento! O Toino vinha de lá todo… “borrado”!

No momento em que saltou do muro para o recreio, o Sr. Almeida passava no local, a caminho do internato masculino, onde também tomava as refeições. Logo que entrou no refeitório, comunicou a má nova ao Armando:
- O teu irmão caiu na fossa da Dª Dores; borrou-se todo; foi tomar banho; logo se vai sujar-se outra vez com a sova que lhe vou dar!

Não recordo se o Sr. Diretor lhe apertou os calos por esta asneira mas… coitado do Toino! Banhar-se nos fétidos excrementos da “velhinha” misturados com os das galinhas… era já castigo demasiado para um jovem aventureiro.

No último almoço de confraternização – 9 de Julho de 2012 – o Toino compareceu. Vítima de acidente, desloca-se em cadeira de rodas. Felizmente soube na véspera que ele ficara paraplégico; mesmo assim fiquei profundamente chocado ao vê-lo naquele estado. Ossos do ofício!


Excursão a Conímbriga – com final feliz 

Quase todos os anos, por altura da Páscoa, havia uma excursão de alunos a um local mais ou menos interessante, previamente escolhido. “Piquenicávamos” ao almoço e ao jantar em locais antecipadamente escolhidos pela direção. Naquele ano, provavelmente no ano letivo de 1958/59, visitámos demoradamente Conímbriga; o professor Santos ia satisfazendo a curiosidade dos alunos do 2º ciclo esclarecendo as dúvidas sobre o que ali víamos.

No regresso, ao cair da noite, jantámos no parque da Curia: pão, croquetes, rissóis, panados, fruta, bebidas… e não sei o que mais; comia-se o suficiente para aguentar o resto da viagem. Na hora da partida informei alguns companheiros de viagem que não se preocupassem com a minha ausência na nossa viatura porque eu “viajaria” num dos autocarros das moças. Todos abriram a boca de espanto por mais esta aventura! É doido! Comentaram alguns.

Escolhi estrategicamente a viatura chefiada por excelente professora de inglês, Dr.ª Maria José Mourão; ela tinha grande consideração por mim porque, no ano anterior, sendo ela minha professora eu fiz uma boa prova oral (prova excelente, digo eu) que me fez subir a média para 14 valores (distinção e não dispensado como consta dos alfarrábio colegiais). No fim da minha oral de inglês, a Dr.ª Maria José Mourão, emocionada, deu-me um abraço em público – coisa rara e nunca vista naqueles tempos – alegando:
- Parabéns! Pois você (para cúmulo, tratou-me por você) acaba de demonstrar o quanto trabalhámos durante o ano! - Naqueles tempos não era comum uma professora tomar uma tal atitude.

Informei a professora que o meu autocarro já havia partido e eu precisava de boleia. Muito amavelmente, como era seu timbre, mandou-me entrar e franqueou-me o lugar vago a seu lado. Conversámos durante uns minutos e apercebendo-se, talvez, da minha intenção, sugeriu que fosse conversar com as meninas, lá atrás. Ela sabia que podia tomar comigo aquela atitude; eu gostava de me divertir, de ultrapassar os limites impostos pela Direção, mas sem desrespeitar quem quer que fosse.

Recordo que alguém alertou que o carro do diretor seguia atrás daquela viatura e que ele poderia aperceber-se que eu seguia misturado com as meninas. Eu ia de pé junto ao último banco! Uma sugeriu, por graça, que eu pusesse um lenço na cabeça, tipo flausina, vestisse um casaco duma aluna, uma jovem altamente patriótica; creio que a aluna se chamava Teresa… talvez Brandão! O casaco apertava-me a cintura mas ficava-me largo no peito… porquê? Perguntei eu; - questões de patriotismo! Esclareci as simpáticas colegas.

Foi uma viagem agradabilíssima, como se pode calcular. O mais complicado foi abandonar aquele autocarro sem que a direção vislumbrasse que eu viajara numa viatura das moças.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. poste anterior da série de 4 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10617: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (28): Colégio de Oliveira de Azeméis (Belmiro Tavares)