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sexta-feira, 25 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18674: Recortes de imprensa (95): A notícia do trágico acidente, ocorrido no Rio Corubal, no Cheche, na sequência da Op Mabecos Bravios (retirada de Madina do Boé) só é dada no "Diário de Lisboa", dois dias e meio depois, em 8 de fevereiro de 1969







Citação:
(1969), "Diário de Lisboa", nº 16573, Ano 48, Sábado, 8 de Fevereiro de 1969, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_7148 (2018-5-24)


Fonte: Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06597.135.23237 | Título: Diário de Lisboa | Número: 16573 | Ano: 48 | Data: Sábado, 8 de Fevereiro de 1969 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Edição: 2ª edição | Observações: Inclui supl. "Diário de Lisboa Magazine". | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: IMPRENSA.


1. A notícia chegou tarde às redações dos jornais. O vespertino "Diário de Lisboa" deu-a em caixa alta só na 2ª edição. E nesse sábado, dia 8 de fevereiro de 1969, fez uma 3ª edição.  O jornal era "visado pela censura" e a grande maioria dos portugueses (e nomeadamente os da nossa geração, nascida no Estado Novo) não sabia o que era isso de liberdade de imprensa... 

A notícia do "desastre na Guiné" (sic)  causou alarme e consternação: 47 mortos (militares, em rigor 46 militares e 1 civil guineense) era o balanço do "trágico acidente". A notícia era dada pela agência oficiosa L [usitânia], com proveniência de Bissau e data de 8... Chegava com dois e meio de atraso... Sabemos hoje que o "acidente" ocorreu na manhã de 5ª feira, dia 6 de fevereiro de 1969, no final da Op Mabecos Bravios, ou na seja, na sequência da retirada do aquartelamento de Madina do Boé. (*)

O balanço era, de facto, trágico: na lista das 47 vítimas, por afogamento, constavam: (i) 2 furriéis milicianos; (ii) 7 1ºs cabos; e (iii) 38 soldados (na realidade, um dos nomes era de um civil). Mas os termos da notícia eram lacónicos, como era habitual nos comunicados oficiais ou oficiosos em assuntos "melindrosos" como este:

 "Na passagem do rio Corubal, na estrada para Nova Lamego, afundou-se a jangada que transportava uma força militar, havendo a lamentar, em consequência deste acidente, a morte, por afogamento, de 47 militares".

Para não dar azo a especulações, o ministro do Exércitofoi nomeou (e mandou de imediato paar o CTIG) o cor cav Fernando Cavaleiro, o "herói da ilha do Como" (1964), a fim de instruir localmente o processo de averiguações. Não sabemos quanto tempo levou a instrução do processo, mas temos um resumo das conclusões preliminares do cor cav Fernando Cavaleiro, publicado no jornal "Província de Angola", em data desconhecida, conforme recorte que nos foi enviado pelo nosso camarada José Teixeira (**).

Ainda não tivemos acesso ao relatório original, mas tudo indica que há nele erros factuais graves, permitindo ytirar conclusões enviesadas que acabam por escmotear, ignorar ou branquear a responsabilidade do 2º comandante da operação, que ultrapassou o oficial de segurança, o alf mil Diniz. Na última e trágica viagem, em vez de 2 pelotões, a jangada levou o dobro, contrariamente as regras estabelecidas pelo alf mil Diniz... Mas este era o "ejo mais fraco" da cdeia hierárquica e acabou por ser o "bode expiatório" de toda esta história que ainda continua mal contada...

Daqui a menos de 9 meses,  comemora-se os 50 anos deste trágico evento... E muita água ainda há-se passar sob as pontes do rio Corubal até que se saiba a verdade ou toda a verdade sobre esta tragédia que ensombrou o primeiro ano do consulado do Spínola. (***)

Para já temos prometido um encontro com o ex-alf mil José Luís Dumas  Diniz (, da CART 2338), responsável pela segurança da jangada que fazia a travessia do rio Corubal, em Cheche, aquando  da retirada de Madina do Boé.  Tenho os seus contactos, a data do nosso encontro ainda foi maracad mas é apenas uma questão de mútua conveniência. O ex-alf mil Diniz mostrou-se interessado em contar, ao nosso blogue, a sua versão dos acontecimentos. Bem haja!... Porque, afinal, o que nos move é a procura da verdade e só da verdade...
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Notas do editor:




Vd. também 29 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P6063: Recortes de imprensa (23): O desastre do Cheche, no Rio Corubal: excertos de artigo de Teresa Firmino, Público, 6/12/2009

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15588: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXVII Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 3 e Anexos (Fim)

1. Parte XXVII de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXVII

Uns continuaram nessas guerras, outros noutras (III) e Anexos

O Passos, alferes da 4.ª Rep/QG e um dos últimos companheiros de Bissau, antes de ter sido mobilizado trabalhara no Parque Mayer, fora electricista e contra-regra, convivera com actores e coristas. Quando regressou foi visitá-los, andou por lá uns tempos, enquanto acabava o curso. Depois, foi para a CP, mais um engenheiro, pois claro. A última vez que se viram, já lá vão quase duas décadas, onde havia de ser, foi num alfa pendular do Porto para Lisboa. 

O Amândio César, um poço de energia, continuou a escrever e a publicar, até à maré baixar para ele e para quem pensasse como ele. 

No dia 28 de Setembro de 1974, com o interior vestido de luto pela morte da sua Pátria, escapou por um triz de ser linchado em Coimbra. Conseguiu safar-se, refugiou-se no seu Minho natal, passou a fronteira para Espanha e foi para o Brasil até os tempos de fúria acalmarem. Morreu desgostoso com o rumo que o país tinha tomado num dia de Agosto de 1987. 

Mário Dias enveredou pela carreira militar. Ainda fez mais três comissões, uma em Moçambique e duas em Angola. O 25/4 apanhou-o em Cabinda. 

Regressado a Lisboa foi colocado no Regimento de Comandos na Amadora. Foi testemunha e interveniente do processo que envolveu os Comandos no verão de 1975. Macau foi o destino seguinte como instrutor das forças de segurança. 

Na reserva já há alguns anos, ainda recorda os tempos dos Comandos da Guiné como os que mais o marcaram. 

Ainda muito jovem fora com os pais viver para a Guiné. Estudou no liceu de Bissau onde foi colega de vários guineenses que mais tarde se tornaram conhecidos na luta de libertação.

Como se previa, o Piçarra1, o alferes companheiro de quarto do Hospital Militar de Bissau, esteve largos meses na Estrela, no Hospital Militar Principal. Depois de várias cirurgias, foi para Alcoitão fazer fisioterapia e aprender a utilizar as próteses. Por influência do Movimento Nacional Feminino, segundo disseram, arranjaram-lhe um emprego numa grande empresa, na outra margem do Tejo. 

O Capitão Viegas, um dos companheiros da viagem de regresso, entre as comissões foi estudando Direito até se licenciar. Estagiou num gabinete de advogados, muito conhecido em Lisboa, enquanto foi andando por ali acima até General. Foi nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército, com a aprovação do Presidente da República, seu ex-colega do escritório de advocacia. O outro militar, apontado por outras esferas como tendo uma folha de serviços mais brilhante para o cargo de chefe máximo do Exército, foi o General Leandro, veja-se a coincidência. 
O Ministro da Defesa Paulo Portas, mão na porta à saída de um Conselho de Ministros, considerou publicamente que o General Viegas tinha um perfil mais adequado que o General Garcia Leandro. Tão adequado que tempos depois recebeu uma carta a dizer que o nomeado se demitia das funções por ter perdido a confiança no Ministro. É isso, foi mesmo assim. 

O Brigadeiro Reymão Nogueira, acabada a comissão foi colocado como Governador Militar de Lisboa e permaneceu no cargo ainda uns anos, até passar à reserva. 

Poucos anos depois de regresso, nos princípios da década de 70, numa tarde de inverno em Guimarães, o Albino, o soldado da MG-42, passinho miúdo, lesto como um carteirista, esgueirava-se por aquelas ruas estreitas, cheias de gente. Teve que apressar o passo para o apanhar. Albino, que é que tens feito? Sentaram-se num café, falaram da vida, o Albino ainda à procura de um rumo. Saí ontem de Paços de Ferreira, do estabelecimento prisional. Vidas, meu alferes! Morreu cedo, poucos anos depois deste reencontro. 

O Furriel Ázera ainda ficou na Guiné até Agosto de 67, administrativamente ligado à nova Companhia de Comandos. Foi colocado num gabinete pacato, a tratar de papelada. O local é que não era o melhor, ficava junto ao cemitério. 

Quase todos os dias ouvia as descargas da praxe, que se usam nos enterros militares. Não aguentou mais. Um dia foi ter com o Capitão Alves Cardoso, o Comandante da 3.ª Companhia de Comandoss, pediu-lhe que o incorporasse num dos grupos. 

Voltou assim à guerra até acabar o tempo. Depois regressou aos Açores e à sua bela cidade, Praia da Vitória. Mas nunca mais recuperou a alegria de viver. Sem paz há tantos anos, conhece os antidepressivos e os tranquilizantes melhor que muitos médicos. 

O Vítor Caldeira, o alferes que substituiu o Vilaça nos "Vampiros", também passou ao Quadro Permanente. Fez uma comissão nos Comandos em Moçambique e, já depois do 25 de Abril, encontrou no Casão Militar o então Coronel Garcia Leandro, que tinha sido nomeado Governador de Macau. Por onde anda Caldeira? Quer vir para meu Ajudante de Campo, para Macau? E foi. 

Na tarde de um domingo de Agosto, a TV da Sala de Sargentos da Escola Prática de Infantaria de Mafra estava a passar um filme para um único espectador, o Sargento Tudela, o antigo Cabo Tudela dos “Vampiros”. 

Entrou um tipo, sentou-se quase em frente ao sargento. Boa tarde, respondeu o Tudela sem despegar os olhos do filme. Passaram a ser dois espectadores. Num momento olharam-se nos olhos e, num lampejo o velho Tudela deve ter dito lá para ele, donde é que eu conheço este gajo? Os dois pares de olhos concentraram-se de novo no filme. 

Então, que tal o filme, perguntou o recém-chegado? Que dava para entreter, não havia mais nada para fazer naquela tarde de domingo. Passaram-se mais uns minutos e a coisa não atava nem desatava. Até que o intruso se voltou para o Tudela, eu conheço-o, não sei é donde. 
A sua cara não me é estranha também, respondeu meio desinteressado. 

De onde será, de onde não será, o visitante a insistir, mas sem grande entusiasmo da parte do velho sargento. 

Não me está a conhecer, Tudela? Não pode ser, o meu comandante da Guiné! 

Depois esqueceram-se do tempo a ouvirem-se um ao outro. Que tinha 77 feitos. Que depois da Guiné, tinha ido para Angola, depois para Moçambique, depois para Mafra e por lá tem estado estes anos todos. Que é diabético, já não tem um dedo do pé. E que nunca viveu uma vida tão apaixonante como aquela que passou nos Comandos da Guiné. Que ia passar uns dias a casa dele a Cantanhede, uma casa pintada de amarelo, junto ao restaurante Marquês de Marialva e que depois regressava a Mafra, a sua verdadeira casa. 

Não se queriam deixar nem por nada. Depois ainda se encontraram mais duas vezes, até um dia receber uma chamada de um camarada. O Tudela morreu, escorregou nas escadas do convento. 
Generais, sargentos, cabos, capitães, coronéis, civis, Comandos velhos da campanha da Guiné, assistiram à saída do velho Tudela do convento, rumo à última viagem até Cantanhede. 

A Lurdes, a paixão do Luís, continuou em Bissau e segundo alguns conhecidos, já nos finais da década de 60 continuava a namorar Comandos, desta vez um furriel. Chegado o 25 de Abril e com todo o movimento que se seguiu foi viver para uma das ilhas de Cabo Verde. Casou com um conhecido comandante do PAIGC. 

O Marques de Matos, Chefe de Equipa dos “Diabólicos”, tantos anos sem saberem uns dos outros, um dia deu sinal de vida. O que é feito de mim? 

Ora, andei para a frente, comecei por vender máquinas Rank Xerox, daquelas grandes. Um dia, o meu padrinho de casamento encontrou-me acidentalmente na rua. Fernando, queres vir para os seguros? 

Fui, comecei quase como paquete, subi e desci na carreira profissional, quando desci, tome-se nota, foi porque sempre me recusei a vergar a espinha. Igual a mim próprio, sempre recto nos procedimentos e nas relações, lembro-me assim desde pequeno. E quando caí, preferi que fosse eu a dar o sinal de queda. Sem ninguém se aperceber, deixar-me cair em sentido, sabe do que estou a falar? 

Um dia fiz a queda facial tão a preceito que ia quebrando o nariz. 

Devem ter visto que tinha algo que se devia preservar, promoveram-me a director da companhia. Esgalhei, dei tudo o que tinha, até o meu coração me avisar que lhe estava a pedir demasiado. Tive que meter travões, antecipei a retirada. 

Mas mantenho-me activo, visito famílias onde há carências, estou a falar da fome. Levo-lhes comida e também companhia. Ah! E confesso, sempre tive um norte na minha vida, Deus! Deu-me sinal que existe, mais que uma vez. Tenho dois filhos adultos, netos, uma casa à beira do mar onde faço uns grelhados de peixe de fazer inveja ao “Índio” de Vila Nova da Cacela e até aprendi a ler a vida nas mãos das pessoas. 

E um imenso orgulho de ter feito parte dos Comandos. Não, não cobro nada por dizer isto. Muitas coisas que aconteceram já não existem na minha memória. Outras persistem, não me deixam, como algumas que ocorreram numa estadia do nosso grupo em Barro. A imagem da bajuda mortalmente atingida, ainda quente, um qualquer a aproximar-se dela, a baixar as calças e eu a ver e a mostrar-me igual a mim próprio. Parece que foi ontem! 

O Azevedo, outro furriel do grupo, deu sinais de vida. Continua a viver em Ovar. Do outro lado da linha ouvia-se algazarra de miúdos. Netos, Azevedo? Seis, comandante! Uma ou duas semanas depois, passava na A1 perto do desvio para Aveiro. Lembrou-se do Azevedo, aquele magnífico furriel dos “Diabólicos”. Azevedo, está a trabalhar? Eu estou sempre a trabalhar, comandante! Estou próximo do desvio para Aveiro, de regresso a Lisboa, mas para o ver vou para a frente ou para trás, o que for preciso, Azevedo, quero é dar-lhe um abraço! Sai no desvio para a Vila da Feira, passa a portagem, uma rotunda a seguir, corta na segunda à direita, nova rotunda, outra vez na 2.ª à direita, estou lá à sua espera para lhe dar um abraço, comandante. Assim fez, parou o carro, e agora onde pára o Azevedo? Sai-lhe de um Mercedes azul, ainda novo, um tipo gordo, careca, de bigode à Pancho Villa. Era o Azevedo, mas a melena farta desapareceu e o peso quase tinha duplicado. Pois o Azevedo, depois de regressar, empregou-se numa conhecida empresa de Ovar. 

Em 1979 foi convidado para ir para Luanda, pôr a filial a funcionar, ainda no tempo do Agostinho Neto, as coisas não estavam nada fáceis. Cumpriu a missão e regressou à sede. Viu os filhos a crescerem, os netos a seguir. Sempre optimista, entusiasta, o futuro começa agora, que porreiro! Ainda deu tempo para engatar uma conversa, pegar nela para outra. Do tipo da história do relógio suíço, quando deram por ela já estavam a falar da aldeia onde se fabrica o relógio. Marcaram a continuação da conversa para outro dia que já estava a fazer-se tarde. 

Mais de quarenta anos decorridos, na procura dos camaradas do grupo, calhou cair-lhe nas mãos a direcção do "Angola". O "Angola" chamava-se Fernando de Bessa Afonso. Nunca soube porquê, chamavam-lhe Angola e ele chamou-o sempre por "Angola". E ele respondia presente. Mais preocupado com outras coisas, nunca procurou saber o porquê do cognome. Imaginou sempre que o Angola era assim chamado porque devia ter alguma relação com Angola. Logo que soube que o "Angola" morava em Viana do Castelo, telefonou-lhe. 

Quem fala? “Angola”, é você? A resposta do outro lado demorou. Era ele, o magnífico soldado "Angola", no nome e no registo militar Soldado Fernando de Bessa Afonso. 

E 42 anos depois retomavam o contacto. Um ou dois meses depois teve que deslocar-se ao Porto. É hoje que vou rever o "Angola". Combinaram encontrar-se naquela linda cidade, junto ao "Gil Eanes", pousado no Lima, cansado das largas viagens que fez como navio-hospital da frota bacalhoeira. 

O "Angola" apareceu-lhe, bem apresentado, como se fosse para uma formatura. Cabelo farto, barba cuidada, da cor que os anos fazem, tudo branco. Da emoção do reencontro, ficou um abraço que nunca mais acabava. 

Na esplanada de um café da Av. dos Combatentes, aquela linda avenida de Viana, deixou-o discorrer. 

O meu alferes nunca soube, se calhar, mas eu tenho uma história comprida.  Nasci em Angola. Quando chegou o tempo da tropa ofereci-me para os Páras. Fiz o curso e, no fim, tive direito a umas férias. Não me apresentei na data que estava indicada. Fui expulso e mobilizado para a Guiné. Fui para o BCav 490, em rendição individual, para Cuntima. Sim, para Cuntima, junto à fronteira com o Senegal. E o meu alferes chegou lá um ou dois meses depois. Depois fui para os Comandos, para o seu Grupo. 

E depois da comissão na Guiné, fui convidado pelo Capitão Saraiva e, olhe, fui com ele para Moçambique, integrado na 9.ª CCmds. Infelizmente, o Cap. Saraiva pisou uma anti-pessoal e ficou gravemente ferido. Se eu estava lá com ele? Claro, foi na serra do Mapé, eu próprio fui um dos que o assistiu. Quem o substituiu foi o Cap. Júlio Oliveira, hoje general, se não estou em erro. 
Coisas do arco-da-velha, meu alferes! Um dia, emboscados, apanhámos uma pequena coluna da FRELIMO. Limpámos aquilo e, não quer saber, que o único sobrevivente foi um miúdo de meses. Pegámos nele e levámo-lo para Montepuez. O que é feito dele? Está cá, tirou um curso superior, olhe, vive em Lisboa. Depois... 

Duas horas, que o tempo não dava para mais. “Angola”, quantos anos tem? 66, faço pára-pente, sou instrutor, ainda ontem em Cerveira... 

O João Parreira ingressou, muito jovem ainda, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Dezembro 1961. Depois veio a tropa e a Guiné. Partiu com a CArt 730 do BArt 733 em Outubro de 1964. Em 9 Janeiro de 1965 foi ferido, numa operação à base de Bafantandem, na zona de Cancongo. Depois entrou para os Comandos, para o Grupo dos “Fantasmas” do então Tenente Saraiva. Foi outra vez ferido em Abril 1965 na operação “Açor”, nas tabancas de Portugal, na zona do Incassol. E como não há duas sem três, voltou a ser novamente atingido por estilhaços do rebentamento de uma granada de um RPG em 6 Maio 1965 na operação “Ciao” em Catungo, Cacine, mesmo ao lado do Morais, que morreu logo ali, com o Parreira a olhar para ele, sem nada poder fazer. 

Em Setembro de 1966 regressou a Lisboa e ao MNE. Com saudades de África, daqueles calores, deve ter sido por isso, foi para o Consulado Geral de Portugal em Salisbúria, para a Rodésia, em Dezembro, onde geriu o Consulado, de 1 Janeiro 1978 a Fevereiro 1980. Ainda passou pelo Malawi entre Abril e Maio de 79 e regressou de novo a Salisbúria. Ia todos os meses a Blantyre, Malawi, fazer a gestão dos consulados. Por lá andou até Março de 80. 

Depois colocaram-no na Embaixada em Lusaka, Zâmbia, onde ajudou a preparar a visita presidencial e a dar apoio consular à nossa comunidade. 

Voltou a Lisboa e ao MNE em Dezembro 1981. Em Setembro de 1982 partiu para Londres, depois Harare, Zimbabwe em Janeiro de 1989. Em Agosto de 1994, regressou outra vez à base, Lisboa, MNE. 

‘Medalhas? Sim, ganhei três na Guiné, tenho-as aqui, no corpo.’ 

O Presidente da República gostou do trabalho do João Parreira, condecorou-o com a Ordem do Infante D. Henrique. 

A vida profissional começou-a, por uma coincidência, com o Tenente-Coronel Cavaleiro, o Comandante do Batalhão de Cavalaria 490, estacionado em Farim. Foi através das suas referências que começou logo a trabalhar e soube mais tarde que o Coronel, de vez em quando, perguntava ao cunhado, administrador da empresa, então como é que anda o tipo? 

Os primeiros tempos não foram nada fáceis, problemas de saúde arrastaram-se durante anos. Só dez anos depois do regresso é que se veio a descobrir que tinha trazido da Guiné um parasita intestinal que lhe provocava, para além de outros problemas, úlceras nas córneas. 

Naqueles anos, finais de 60 até meados de 70, quando se lembrava daqueles tempos ficava com insónias e, quando dormia, voltava a sonhar com aquelas Guinés. Demorou anos a encontrar-se, a ajuda da mulher, sempre presente, e os nascimentos dos filhos ajudaram-no a estabilizar. 

Década e meia mais tarde, em Lisboa, já na direcção comercial de uma multinacional suiça, voltou a ter notícias do seu antigo comandante de batalhão. A secretária do administrador tinha o apelido Cavaleiro. A senhora é alguma coisa ao Coronel Cavaleiro? Sou sobrinha, conhece o meu tio? ´

Ao longo de mais de 40 anos a Guiné foi-se enterrando cada vez mais na memória até se esquecer que por lá alguma vez tivesse passado. Em conversas a que por vezes assistia sobre o que se passava ou se tinha passado naquela guerra, a Guiné era um assunto que se tornou alheio. Os cheiros da terra, os linguarejares das pessoas, o sibilar das balas e dos rebentamentos, o Cacheu, o Geba e o Corubal, os pássaros, os macacos cães, o HM 241, a base aérea, os cantares ritmados, os batuques, as cores das roupas, eram imagens que há muito o tinham deixado. Nem tinha a consciência que tudo isso estava à mão, logo ali, tão perto que bastava destapar a caixa e que uma imagem traria outra e outra e a Guiné viria outra vez à tona. 

Foi o que aconteceu quando começou a escrever esta história. À medida que ia lendo os apontamentos amarelecidos dos fins dos anos 60, as imagens e os sons iam surgindo, voltou a sentir os cheiros do capim, o calor das lalas de Faquina Mandinga, os tarrafos de Buba, as humidades frescas das madrugadas das matas do Oio. Sem nunca se ter apercebido, aquela terra tinha vivido sempre com ele. “Nunca mais foste o mesmo, raras são as fotos em que apareces com um sorriso”, disse-lhe alguém meia dúzia de anos depois do regresso. A inquietação absurda, sem razão aparente para a sentir, acompanhou-o a vida toda, as horas do sono nunca mais foram as que eram antes, nem com a ajuda dos lorenins. 

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A luta armada teve início, oficialmente, em 23 de Janeiro de 1963 com o flagelamento ao aquartelamento de Tite. Tanto quanto sabemos foi Arafan Mané quem tomou a iniciativa do ataque, sem o conhecimento prévio de Amílcar Cabral, que terá sabido do facto através de uma estação de rádio. 

Tite, o Como, a zona do Oio, a mata do Cantanhez, Madina e Guileje, foram pasto de um fogo que se expandiu durante esses anos por quase todo o território. Os ventos ajudavam, eram fortes e de feição. Emboscadas, ataques aos aquartelamentos e povoações, minas e armadilhas foram deixando marcas na população e nos combatentes dos dois lados. 

Bissau era o descanso dos guerreiros. Nos intervalos da guerra, combatentes do Exército, da Marinha e da Força Aérea paravam em Bissau, a maioria para virem a Lisboa de férias. Outros estacionavam nas enfermarias do HM 241, tentando prolongar as vidas. 

Alguns guerrilheiros aproveitavam as idas a Bissau para visitar as famílias e conhecidos e espiar os movimentos das tropas portuguesas, informações que depressa transmitiam por um tam-tam qualquer aos Comissários do Partido. 

A luta foi decorrendo assim, de início de fraca intensidade e endurecendo à medida dos anos. No princípio eram Seskas, Simonovs e Mausers, meses depois, poucos, a PPSH e a Kalash cuspiam metralha. E a guerrilha foi avisando que, em breve, novas armas mais mortíferas estavam a chegar. 

Do lado das Forças Portuguesas a G-3, a bazooka e os morteiros de 60, os Dorniers 27, os T-6 preparados para bombardeamentos (em breve período os F-86 da Nato, estacionados na Ilha do Sal), os Alouettes-2, no início, e depois os ALL-3, os jactos Fiats G-91 a partir dos finais da década de 60, as LDMs, LDGs e os Navios Patrulhas aguentaram-se até ao fim. 

Em poucos anos, a guerrilha estreou os morteiros pesados, os RPGs, o canhão sem recuo, os foguetões e os mísseis Strella, estes em 1973. 

Estava-se perto do fim. A manobra do PAIGC, de sair de Bissau e das povoações maiores para se infiltrar e disseminar pelas tabancas, tinha-se revelado de enorme importância.  Os Fiats G-91 entraram, as operações com recurso aos Alouettes-3 tornaram-se correntes, mas o ânimo das nossas tropas já não era o mesmo. 

Na metrópole, quem queria e podia punha-se na alheta. Em qualquer canto, em França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Suécia ouvia-se falar a língua de Camões. 

Uma Guerra que nunca devia ter sido feita. Uma Guerra que não devia ter terminado. Uma Guerra perdida nas bolanhas e nas matas. Uma Guerra perdida em Lisboa. 

A Guerra começou oficialmente em Janeiro de 1963 e terminou em 9 de Setembro de 1974. Os últimos soldados portugueses regressaram a Lisboa em 15 de Outubro. 

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Anexos : Breve apontamento sobre a História dos Comandos do CTIG2

I. Cronologia 

˗ Partida, em 29 de Outubro de 1963, para Angola dos Oficiais, Sargento e Praças, do CTIG, a fim de frequentarem um curso de Comandos, no CI 16 na Quibala - Norte: 

Maj. Inf.ª Correia Diniz 
Alf. Mil. Maurício Saraiva 
Alf. Mil. Justino Godinho 
2.º Sarg. Inf.ª Gil Roseira Dias 
Fur. Inf.ª Mário Roseira Dias 
Fur. Mil. Cav. Artur Pereira Pires 
Fur. Mil. Cav. António Vassalo Miranda 
1.º Cabo At. Inf.ª Abdulai Queta Jamanca 
Sold. At. Inf.ª Adulai Jaló 

˗ Regressaram a Bissau em 6 de Dezembro de 1963, e, formaram um Grupo que participou na Operação "Tridente" (Ilha do Como), de 15 de Janeiro a 22 de Março de 1964. 

˗ Em 3 de Agosto de 1964, início das actividades do CIC/Brá, com a Escola de Quadros para dar instrução ao 1.° Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964. Deste curso saíram os três primeiros Grupos de Comandos, que desenvolveram a sua actividade na Guiné até Julho de 1965: 

"Camaleões": Alf. Mil. Cmd Justino Godinho (Cmdt) 
"Fantasmas": Alf. Mil. Cmd Maurício Saraiva (Cmdt) 
"Panteras": Alf. Mil. Cmd Pombo dos Santos (Cmdt) 

˗ O CIC/Brá, sob o comando do Maj. Inf.ª Cmd Correia Diniz, recebeu do CIC de Angola, para a formação de quadros, os seguintes militares: 

Ten. Mil. Cmd Abreu Cardoso 
Alf. Mil. Cmd Luís Câmara Pina 
2.º Sarg. Infª. Cmd Ferreira Gaspar 
Fur. Mil. Cmd Pompílio Gato 
1.º Cabo Cmd Pires Júnior (Pegacho) 
1.º Gr. Cmds "GATOS" / BART 400, comandado pelo Alf. Mil. Cmd Martins Valente. 

Estes elementos participaram nas primeiras acções conjuntas com os Grupos acima referidos. 

˗ O CIC/Brá foi extinto em 01 Julho de 1965 

˗ Para dar continuidade à formação de Grupos de Comandos, foi criada a Companhia de Comandos do CTIG (CCmds/CTIG), tendo sido nomeado seu comandante o Cap. Artª. Nuno Rubim, substituído em 20 de Fevereiro de 1966 pelo Cap. Art. Garcia Leandro. 

˗ O 2.º Curso de Comandos teve início em 07 de Julho de 1965, terminando em 04 de Setembro do mesmo ano, com a formação de 4 Grupos de Comandos, que tomaram os nomes: 

"Apaches": Alf. Mil. Cmd Neves da Silva (Cmdt) 
"Centuriões": Alf. Mil. Cmd Almeida Rainha (Cmdt) 
"Diabólicos": Alf. Mil. Cmd Silva Briote (Cmdt) 
"Vampiros": Alf. Mil. Cmd Pereira Vilaça (Cmdt) 

˗ O 3.º Curso de Comandos, realizado pela CCmds/CTIG, aquartelada em Brá, decorreu de 9 de Março de 1966 a 28 de Abril de 1966, e foi constituído por militares voluntários pertencentes a Unidades sediadas na Guiné e que se destinaram a recompletamento dos Grupos de Comandos, tendo sido, cerca de um mês depois, englobados no Gr Cmds "Diabólicos". 

˗ Com a chegada à Guiné da 3.ª Companhia de Comandos, vinda do CIOE - Lamego, a CCmds/CTIG foi extinta em 30 de Junho de 1966, mantendo-se em actividade o Grupo de Comandos "Diabólicos", até finais de Setembro de 1966, data em que a maioria dos militares que o integravam terminaram a sua comissão de serviço. 


II. Resultados da Companhia de Comandos da Guiné (23/08/64 a 31/08/66) 

˗ Efectivos envolvidos: 211 
˗ Mortos em combate: 12 
˗ Feridos em combate: 19 
˗ Acções realizadas: 1133 
- Gr. “Fantasmas”: 21 operações 
- Gr. “Camaleões”: 9
- Gr. “Panteras”: 11 
- Gr. “Apaches”: 14 
- Gr. "Centuriões":12 
- Gr. “Diabólicos”: 24 
- Gr. “Vampiros”: 14 
˗ Armas apreendidas: 71 
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Notas:

1 - Nome fictício
2 - In Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961/1974); 14.º Volume - "Comandos"
3 - Total de operações, incluindo acções executadas apenas por oficiais e sargentos

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(FIM)
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Nota do editor

Todos os postes da série de:

28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho

30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIb Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem

7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14951: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VIII Parte): "Hotel Portugal"; "Um guia" e "Artigo 4.º do RDM"

6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro

13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14998: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (X Parte): Barro, Bigene; Bigene, Barro

20 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

27 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

24 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

1 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15186: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XV Parte): ME-14-04; Partir mantenhas; Buba, outra vez e Vamos ser independentes

8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

29 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo

5 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo

12 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG

19 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15385: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXII Parte): Outros horários; Contas com os fornecedores; Um mês e meio para o fim; Um Folgado no QG e VAT 69

27 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15417: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIII Parte): Lifna Cumba, o "Joaquim"; Um longo Dezembro e Os Últimos Dias

3 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15439: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIV Parte): "Regresso, dois anos depois" e "Tantos anos depois: por quê recordar?"

10 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15473: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXV Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 1
e
17 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15498: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXVI Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 2

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

1. Parte XIII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 1 de Setembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIII

Conversas em Brá

A nossa função é militar, os nossos objectivos são militares, repor a ordem na província. A política não é connosco, reafirmava, convicto, o capitão responsável pelo serviço de informações do batalhão.

Querem a independência, dizem que querem ser livres, que querem ser eles a traçar os destinos da pátria deles, é por isso que dizem que lutam, insistia um dos alferes. Se estivéssemos no lugar deles, se calhar fazíamos o mesmo!

O que faria o nosso alferes é consigo, o que eu faria no lugar deles não vem para aqui chamado. Foi o PAIGC que começou com o terrorismo, todos os dias desencadeiam acções terroristas, nem as populações indefesas poupam e ainda dizem que é por elas que lutam! E nós vamos deixar? Temos armas suficientes para combater, vamos deixar que eles continuem a matar pessoas?
Armas para combater? 

Ó meu capitão, temos G3, Fox e Daimlers compradas em Inglaterra, dizem que foram todas as que estavam num canto, arrumadas desde a 2.ª Guerra. Parece que o Estado Português até nem queria tantas, os ingleses é que insistiram, levem-nas todas! Parece que nenhuma estava operacional, tiram peças de uma para se meterem noutras. E, certamente, acontece o mesmo com os T-6 e com as Dorniers, tudo material da década de 40! A arma mais recente que temos ainda é a G3!

É o que o alferes tem e tem muita sorte porque dispõe dos melhores soldados do mundo. Olhe para os soldados do seu pelotão, do que eles são capazes, a troco de quê, dinheiro não é! Sempre prontos para arrancar, sempre dispostos para tudo. Alferes, se perdermos a guerra, que só acontecerá se houver uma catástrofe, não vai ser devido ao armamento, nem às praças. Seja o nosso alferes digno deles e os saiba comandar. Para o bem do País e para o seu. Boa noite a todos!
Sabiam, continuava o mesmo alferes, que os F-861 tiveram que ser retirados? E sabem por quê? Um avião qualquer pediu licença para aterrar, em Bissalanca, a torre deu-lhe o ok, fez-se à pista, não aterrou, uns dias depois apareceram fotos nas Nações Unidas, uma esquadrilha de F-86 da NATO, alinhada em Bissalanca. A NATO a colaborar na guerra colonial dos portugueses? Um escândalo, os F-86 tiveram que retirar para o Sal. É por isso que estão lá, não é por questões logísticas. E há quem diga que vêm aqui de vez em quando, fazem o que têm a fazer e depois regressam ao Sal.


Na messe dos oficiais em Brá.

Todas as noites, no fim do jantar, a messe de oficiais do aquartelamento de Brá transformava-se num centro de conversa sobre os assuntos mais variados. O ar que se respirava, no que à guerra dizia respeito, não era realmente muito animador. Dispersos em pequenos grupos falavam de futebol, do que se passava em Lisboa e um grupo ou outro de política.

Alguns oficiais, subalternos quase sempre, sobretudo quando havia notícias de baixas das NT numa acção qualquer, por regra começavam a falar da qualidade ou da falta de material, da impreparação para esta guerra e inevitavelmente acabavam por vir à tona as razões da luta de um lado e do outro e a justiça ou a falta dela da guerra em que estávamos a participar.

Os alferes milicianos, os que diziam alguma coisa em voz alta e os que por ali ficavam sentados a seguir as conversas, eram quase todos contra a guerra, os poucos oficiais do quadro que se manifestavam eram invariavelmente a favor, mas os outros, a maioria, os que se mantinham calados ninguém sabia ao certo o que pensavam. Uma coisa parecia uni-los, o regresso à metrópole, às terras e às ocupações deles, e que os 24 meses de comissão voassem.

Este batalhão tinha chegado há cerca de três meses. Primeiro, fez algum treino operacional, depois as companhias rodaram pelo norte e pelo leste, em acções de reforço a unidades em quadrícula. Coabitavam com os Adidos e com a companhia de comandos, em Brá.

Com tão pouco tempo de comissão já se notava, entre eles, a falta de convicção na luta contra a guerrilha. Alguns admitiam publicamente estarem numa guerra injusta, uma guerra dirigida contra um povo que se queria libertar.

Em frente, num dos quartos dos comandos, um, deitado na cama, folhava uma revista que tinha apanhado no QG, a "U. S. News & World Report" quando parou para ler uma entrevista com um coronel americano no Vietname. Ouçam esta!

"A arma individual é a AR-15, da Colt, em Hartford, no Connecticut. Uma espingarda ponto 22 com um impacto tremendo, destrói e mata onde quer que acerte. Se acertar na mão parte os ossos do braço todo. Apesar disso é muito leve. Transportamos 400 balas no cinto quase sem sentirmos o peso. Temos um novo lança-granadas, o M-79, a arma de elefante. Lança uma granada a cerca de 200 jardas, parece uma caçadeira, a granada introduz-se pela culatra, como qualquer cartucho, liquidando 8 a 10 onde cair!”

Nem com material deste conseguem travar os norte-vietnamitas! Quando cá cheguei, há um ano, o armamento ligeiro da guerrilha era bom, é o que eles têm agora, só que agora têm muitas mais Simonovs, Kalashs, Degtyarevs, PPSHs, canhões sem recuo, antiaéreas quádruplas, morteiros 82… Uma manhã em Cuntima, estava o meu pelotão com as milícias a capinar a estrada para Jumbembem, um soldado veio com um papel. “Obrigado tropa, estrada capinada fica melhor para bazucada”.

Guerrilheiro do PAIGC com RPG2. Foto na net.

Só ameaçavam naquela altura. Agora, RPGs e morteiros aparecem em todo o lado, qualquer dia, pelos vistos, temos aí foguetes, artilharia, blindados, aviões, helis. Ainda vamos assistir a muitas inaugurações.

Para já, malta, o que está em causa é a nossa capacidade e motivação, se a temos ou não. Queremos ganhar a merda desta guerra ou queremos que a comissão acabe depressa, desafia outro.

Há unidades junto às fronteiras que se fecham nos abrigos, fazem umas fosquinhas à volta do arame farpado, a guerrilha não os incomoda muito porque precisa de passagem para o Cantanhez ou para o Oio. Outras não trabalham a zona como devem, o PAIGC a minar, de um momento para o outro, ataques, emboscadas, minas, mortos, feridos. E depois reclamam reforços, somos poucos, não temos condições, gritam contra os gajos do ar condicionado.

E quando por qualquer motivo, cunha ou outro não interessa, os capitães dessas companhias vão para o QG, no dia seguinte já não se lembram de nada, esquecem tudo.

Quem está a aguentar isto somos nós, pá, os milicianos, essa é que é essa! Alferes, furriéis e soldados! E alguns capitães, que se contam pelos dedos, o tipo da varinha de Tite3, o Tomé Pinto que foi da 675 de Binta, um grande capitão, o Osório, o Calvão dos fuzos, que também já acabou a comissão, não são precisas as duas mãos para os contar, acrescenta outro.

Claro, muitos deles já vão na 2.ª comissão, alguns até a caminho da terceira, a família na metrópole, a filharada a crescer, quando vão de férias, os filhos encontram um estranho em casa, a mãe casou com este tipo? Cansa, claro que cansa. Mas não acham que se nota demais, que muitos deles fogem do mato, encostam-se ao ar condicionado do QG a dar palpites, a ver o tempo a passar e a guerra dos alferes, dos furriéis e dos soldados. Ofereceram-se voluntários, não foram obrigados, frequentaram cursos, o Estado investiu neles! As condições de vida é que os obrigaram? Que tivessem ido para padres! Se não têm competência operacional, ao menos que não atrapalhem, que porra!

O problema não está nos capitães, pá, é daí para cima. É nos comandantes de batalhão que está o problema, aprenderam em livros ninguém sabe de que guerras. Até agora só vi um comandante4 de batalhão que falava de bolanhas com o conhecimento de quem as tinha atravessado, que falava de barracas de mato porque entrou nelas de G3 nas mãos, em Farim até diziam que era o melhor alferes do batalhão!

A malta vem da metrópole com a preparação básica, cortam-nos o cabelo, mandam-nos tomar banho, farda em cima, passam-nos a G-3 para as mãos quando cá chegamos, ainda não nos habituamos ao clima e já estamos a levar no toutiço! E quando já estamos aclimatados, ao clima e à guerra, a comissão está no fim. E recomeça a história com mais maçaricada5 a desembarcar em Bissau para outros dois anos. Os turras não fazem comissões, não perdem experiência, ganham-na todos os dias a toda a hora!

Uma guerra destas não se ganha só com armas. Se é que alguma guerra deste tipo pode ser ganha! Os franceses perderam na Indochina e na Argélia, os americanos estão atolados no Vietname!

E são bons exemplos os franceses e os americanos? Há quantos anos a França não ganha uma guerra? Já ninguém se lembra, não? E os americanos? Atenção, aqui em Brá, enquanto estamos a discutir as razões da guerra, se se deve ou não participar, o PAIGC está neste momento a montar minas, a preparar emboscadas, a atacar aquartelamentos, essa é que é essa!


Coluna de guerrilheiros do PAIGC. Foto na net.

Não falavam muito nos dias que faltavam para o fim, nem perdiam tempo com as dificuldades da guerra, ocupavam-se com a vida deles, os treinos diários, as preparações para as saídas. Todas as semanas havia grupos no mato, à caça da guerrilha, embora muitas vezes não os encontrassem. Sentiam que o IN estava cada vez menos ingénuo, melhor preparado e mais atrevido. Mas eles também estavam e não devia ser por eles que a guerra se iria perder.

Nas apreciações que, entre eles, faziam sobre algumas unidades dispersas pelo mato, custava-lhes ver o ar crítico com que frequentemente eram recebidos por alguns profissionais do quadro, do género, lá vêm estes tipos complicar-me a vida. E, quase sempre, eram eles que os chamavam. Diziam que tinham informações novas de um acampamento, guia para os levar, que tinham tudo, era só irem lá e apanhavam-nos logo.

Estavam habituados a testemunhar cenas caricatas. Quando os comandos chegavam ao local, a primeira tarefa era falar com o tal guia e, quase sempre, a história não fora bem contada, nem era assim tão raro concluir-se que não havia qualquer dado concreto. Que havia lá guerrilha nem se discutia. E guia havia, da zona, o que já não era nada mau! Caçador quase sempre, acampamento, sim, ouvira contar que estava na mata de Buba Tombó, em Morés, no corredor de Sitató, com manga de turra e manga de armas.

São muitos? Sim, manga de pessoal bandido! Quantos pessoal? 10? Sim, são! 50? Sim, são! Tem armas? Tem! Muitas? Muitas, sim! Blindados também? Sim, tem também! E mais uma saída para o galheiro, curvas e mais curvas na mata e nas bolanhas, é já ali e nunca mais era. Mais uma noite às voltas, com muita atenção para não acabarem embrulhados. Percorreram quilómetros e quilómetros em saídas abortadas.

A partir de certa altura, com a experiência ganha, os comandantes de grupo desconfiavam quando viam tanta informação. E, por vezes, surgiam problemas, quando reparavam que os estavam a querer levar. Diziam que assim não, não era missão para comandos. Só que já estavam no local e, embora defraudados, custava-lhes virar a cara.

Os comandantes dessas companhias, o que queriam era dar ronco6 à tropa deles, a parte melhor destinavam-na para a tropa que comandavam. Lógico, se estivessem tão seguros da informação é claro que não chamavam os comandos, o ronco era para a unidade deles. Pediam-lhes para executarem um golpe de mão a um acampamento inimigo e, depois de os terem na zona, utilizavam-nos como elemento de dispersão, pondo-os a trilharem carreiros que desconfiavam estar armadilhados, a servirem de rebenta-minas, ou, na melhor das hipóteses, há muito abandonados. E quando acontecia, e aconteceu mais que uma vez, que, apesar da pouca informação, por uma execução feliz, apanhavam guerrilheiros desprevenidos, quando regressavam à base com o material capturado já não davam importância ao facto de serem recebidos com frieza pelos comandos da companhia ou do batalhão. Interessava-lhes muito mais terem tido sucesso e ficavam satisfeitos pela forma calorosa com que geralmente eram recebidos pelos soldados, sargentos e alferes.

O Comandante Militar, especialmente depois do caso de Teixeira Pinto, viu-se na necessidade de elaborar uma directiva esclarecendo as condições da utilização dos grupos de comandos tal era a resistência das chefias das unidades espalhadas pelo mato. E este foi um factor com que os grupos tiveram sempre de lidar até ao final da comissão e que só terminou com a chegada das companhias formadas em Lamego, que vinham já com um estatuto melhor definido. De resto, esta foi esta uma das razões que levou o Capitão Rubim a bater com a porta e a dizer ao Comandante Militar, venha outro que eu prefiro comandar uma companhia no mato, nem que seja em Guilege!

A vida no mato era difícil para as NT, as instalações eram precárias, muitas vezes não eram reabastecidos a tempo, estavam fartos de viverem dentro do arame farpado. Era o que acontecia a praticamente todas as unidades que estavam sediadas fora de Bissau, de Bolama, de Bafatá, de Farim, de Teixeira Pinto, dos centros de decisão onde normalmente estavam sediados os comandos de batalhão. E naturalmente estavam ansiosos de saírem dali.

Claro, o pessoal dos comandos também ansiava por uns dias na metrópole, uns abraços à família, passear com a namorada, ir até à praia, apanhar um ar mais fresco. Um ou dois dias depois do regresso a Brá, ainda com o cheiro de Lisboa no nariz, já estavam no Oio, no Cantanhez, em Guilege, em qualquer lado, G-3 na mão, T-6 no ar, manga de chocolate7, água dos charcos das últimas chuvas para matar a sede.

Ainda a semana passada... A semana passada? Anteontem, porra! Anteontem então, o bife no Toni dos bifes, no Saldanha, a ida até ao Ritz, ao Comodoro, ao Fontória da Praça da Alegria, o twist, o rock!
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Notas:
1 - Oito F-86F foram para a Guiné em 9 de Julho de 1961, no início mais como efeito dissuasor. Com o agravamento da situação acabaram por desenvolver várias acções de combate a partir de Julho de 1963. Entre Agosto de 63 e Outubro de 1964, os F-86 voaram 577 missões, a maioria das quais de ataque ao solo ou apoio aéreo próximo. Dos oito aviões destacados, sete foram atingidos por fogo inimigo, conseguindo todos regressar a Bissalanca, à BA 12. Dois foram destruídos, um a 17 de Agosto de 1962 numa aterragem de emergência, ainda com as bombas nos suportes externos e o outro a 31 de Maio de 1963 abatido por fogo antiaéreo inimigo. Em ambos os casos os pilotos foram recuperados. Pressões políticas da Administração Norte-Americana obrigaram ao regresso dos aviões a Portugal, já que os mesmos tinham sido fornecidos no âmbito da NATO, com a missão de proteger o flanco Sul.
 
2 - Lança-granadas foguete, “Rocket-propelled grenade”.
 
3 - Capitão Carlos Fabião
 
4 - Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro 

5 - Militares recém-chegados
 
6 - Festa
 
7 - Confusão, em dialecto local

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Nunca digas adeus a Cuntima

28 Março, 06H00, céu limpo na Base Aérea de Bissalanca.


Esquadrilha dos Alouettes III, alinhados na BA 12, em Bissalanca. Imagem da net.

30 comandos recebem ordem de embarque nos 6 Allouettes III, motores a trabalhar, formados em 2 colunas.

Ganham altura, rumam a Norte, fumos aqui e além sobem das matas. Às 06h30 desviam-se para leste, baixam a altitude e, alguns minutos depois muda o tempo. O nevoeiro cobre a zona a norte de Farim. Que estavam na zona da fronteira os pilotos não tinham dúvidas, tinham era sobre que território estavam a sobrevoar e o local previsto para a largada não o conseguiam ver. O comandante da esquadrilha, Major Mendonça, decide recuar para a área de Jumbemebem e, depois, voltam para nordeste, a rapar as copas das árvores, directos até ao local previsto.
Frente à larga bolanha que procuravam, abrandam e aproximam-se em linha da orla da mata. Recebida a indicação para abrir portas preparam-se para saltar. Aos pares, um por cada porta, saltam para a bolanha com mais água do que aparentava, enterram-se no lodo com água pela cintura e era uma vez o pão com chouriço que levavam nas calças. Internam-se na mata, enquanto vêem os helis, graciosos, virarem à esquerda, a recuperarem altitude, de regresso a Bissau. De joelhos, aguardam instruções enquanto os dois chefes de grupo consultam o mapa e verificam os rádios.


Estavam na fronteira com o Senegal a cerca de uma quinzena de quilómetros de Cuntima, aquartelamento das NT flagelado diversas vezes nos últimos meses. Nos trilhos de acesso à povoação minas anti-carro e anti-pessoal tinham causado estragos.

O grupo helitransportado tinha recebido a missão para nomadizar na zona durante dois dias, procurando o IN e dando-lhe caça, posto o que se deveria dirigir pelos seus meios para Cuntima, onde aguardaria o regresso a Farim em coluna auto.

Regressaria a Bissau, logo se via se por via aérea ou marítima. Previsto um único contacto visual e rádio pelo sobrevoo de uma Dornier-27 para as 11h00 do dia seguinte. Montada a segurança, dispostos em círculo, ouvem as indicações específicas da missão. Alguns aproveitam para ficarem mais leves, comem os pães encharcados em molho de água da bolanha. Em coluna por um, bem separados uns dos outros, como estavam habituados durante o dia, iniciam a marcha sem pressas.
Arbustos intercalados por árvores de algum porte, montes de baga-baga aqui e além. Procuram trilhos. Na maior parte conseguem andar fora deles e progridem sem dificuldade. Pesquisam-nos, vêem pegadas, sinais de movimento recente. Decidem-se por um, metem-se por ele, pelas margens, rumo a noroeste, em direcção a Cuntima.

Estavam claramente na fronteira e em dúvida se já não estariam mesmo em território senegalês. Por volta das 10h00 atingem o final da mata com nova bolanha, com pouca água, pareceu-lhes, em frente. Dispõem-se em linha na orla da mata e, sem pressas, instalam-se ali a observar o movimento.

Decidem atravessá-la e entrar na mata. É uma bolanha larga. Começam a travessia, cada homem separado uns 3 a 4 metros da sua parelha, em linha, vista e ouvidos alerta para a floresta em frente.

Mais de metade da travessia feita, um tiro. Instintivamente param e ajoelham. A bala não lhes pareceu ser de pistola, não lhes tinha sido dirigida, mas naquele momento não têm dúvidas, tinham sido detectados. Ali é que não podiam ficar. Cautelas reforçadas, retomam a travessia. Minutos depois, começam a chegar à orla da mata de onde foi feito o disparo. Abrigam-se, à escuta, quietos.

Uma rajada curta, três ou quatro tiros. Surpresos, ouvem conversas e gargalhadas muito perto. Estão à porta de um acampamento IN. Não perdem tempo. Por sinais, são dadas indicações a três equipas para progredirem pelo trilho, enquanto as outras três se mantiveram em linha, abrigadas.

Vagarosamente, passo a passo, dão com uma das entradas da base inimiga. As outras três equipas chegam-se à frente e vêem a cerca de cinco metros, no máximo, o interior do acampamento com alguns guerrilheiros lá dentro.

Guerrilheiros em limpezas dentro de um acampamento. Imagem da net. Com a devida vénia ao autor.

Cinco, segundo uns, seis, viram outros, estão sentados, armas desmontadas, na limpeza. Voz de fogo, rajadas curtas à queima-roupa. Não há qualquer hipótese de reacção, há gritaria, tentativas de fuga, um salve-se quem puder, uns pelo meio de outros. Um guerrilheiro com um lança-roquetes numa mão escapa-se entre eles, dois no encalço dele. Dentro do acampamento começa a caça às armas, às granadas de mão e de roquete, munições, documentação, material diverso. Casas de mata vasculhadas, lançam granadas incendiárias. Seriam mesmo? Só fumo!

O golpe de mão8 dura pouco mais de meia hora. Os homens da equipa do Black, os últimos do grupo, saem do acampamento a tossir, no meio da fumarada. A corta mato, fora dos trilhos, pisgam-se em corrida da zona. Minutos depois, ouvem rajadas e alguns rebentamentos de granadas de morteiro no acampamento assaltado. Riram-se para dentro quando viram que o fogo IN não tinha nada a ver com eles.

Bem lhes parecia. No regresso, no trilho que julgavam ser para Cuntima, os primeiros homens do grupo avistam, a cerca de uma centena de metros, junto a uma mangueira, dois guardas fronteiriços senegaleses, as armas encostadas à árvore. Abrigam-se e ficam uns momentos a observá-los. Depois, conforme o ajustado na altura, um dos chefes do grupo, cano da arma para o ar, começa a caminhar em direcção aos guardas. A meia dúzia de metros, bonjour, os senegaleses surpreendidos, levantam-se. Olham para todos os lados, desconfiados.

Guardas fronteiriços senegaleses na zona de Cuntima

Nous nous sommes perdus! Nous cherchons le chemin pour Cuntima!
Mais, Cuntima, c’est lá!
É em frente, então. Pouvons-nous passer par ici, non?
Mais oui, certainement!
Excusez-nous, bonjour!
Çá va, bonjour!

Com os últimos homens do grupo a olhar para trás, o sol a cair, o pessoal acantonado em Cuntima viu-os chegar do lado do Senegal.

O capitão Leandro estivera no final da manhã no aeroporto a informar-se das condições em que o grupo tinha sido largado lá em cima na fronteira e pelas indicações do comandante da esquadrilha correra tudo sem problemas. Agora, restava-lhe aguardar o dia seguinte. Logo pela manhã apanharia uma Dornier e lá para as 11, 11 e 30 estaria em cima da zona, a inteirar-se do decorrer da acção. Em Brá, dentro do gabinete a pôr a papelada em dia, vê o soldado Napier bater à porta. Uma mensagem para o meu capitão.

“De Cmdt CArt 732 para Cmdt BArt 733, com inf. a CEM, Cmdt Agr 16 e Cmdt Comandos Vamp terminada(.) Armamento capturado Faquina Fula(.) 2 met ligeiras Degtyarev 1 PPSH 1 Thompson 1 Beretta 1 Mauser 2 carabinas e mais material(.) Grupos recolhidos em Cuntima.”
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Nota:
8 - Assalto a acampamento inimigo

(Continua)
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Nota do editor

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terça-feira, 7 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

1. Parte IV de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 2 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - IV

Comandos do CTIG1

As chefias militares da Guiné cedo se aperceberam que havia necessidade de se dispor de uma tropa diferente, uma tropa que fosse capaz de fazer a contraguerrilha, móvel, aligeirada, com pequenos efectivos, autónoma e agressiva. Uma tropa que, aliás, já tinha dado boas indicações em Angola. Em Quibala, no norte de Angola, já tinham sido preparados os primeiros grupos de comandos.

Em Julho de 1963, o Comando-Chefe da Guiné solicitou à Região Militar de Angola que recebesse e formasse um pequeno grupo de militares. Na mesma altura, foi enviada uma circular para todos os batalhões estacionados na Guiné, convidando oficiais e sargentos a oferecerem-se como voluntários para os comandos.

Muita gente se ofereceu. Depois das selecções foram escolhidos o major Correia Dinis, os alferes Maurício Saraiva e Justino Godinho, os sargentos e irmãos, Roseira Dias e os furriéis Vassalo Miranda e o Artur Pires. E ainda, o Adulai Queta Jamanca e o Adulai Jaló, naturais da Guiné.


Fur. Artur Pires, Sold. Adulai Jaló e Alf. Godinho, atrás do Sargento Mário Dias, no aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG. 


© Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-Fur. Mil. Gr. Cmds ‘Panteras’.

“A cerimónia de apresentação teve lugar no gabinete do Chefe do Estado-Maior. Fomos recebidos pelo Major chefe da 2.ª Rep, que fez votos para que, da nossa estadia em Angola, tirássemos o máximo proveito. Pôs em evidência os inconvenientes da nossa vinda naquela altura, pois tinha terminado um curso e não se sabia ainda quando teria início o próximo. Deste desencontro de datas, resultariam, naturalmente, limitações à nossa instrução.

Na manhã seguinte foi-nos exposta, com algum pormenor, a situação actual na Região Militar de Angola. Foram-nos indicadas as zonas consideradas activas, semi-activas e as pacificadas.
Cabinda, devido à localização e ao reduzido efectivo das NT e um triângulo com um vértice em Bessa Monteiro e base na região dos Dembos (Nambuangongo, Zala, Beira Baixa, etc.), eram as zonas com maiores preocupações. Considerava esta última mais difícil, porque os grupos IN tinham mais experiência e mostravam-se aguerridos.

As alterações ao programa da nossa visita começaram aqui e mantiveram-se sempre, até ao fim da nossa estadia.

Tivemos uma palestra de um capitão, instrutor dos comandos. Começou por abordar a questão da disciplina. Nada de tolerâncias. Que os comandos falam sempre em sentido. Que o mínimo desleixo, dos superiores ou dos inferiores, não pode passar em claro. Que a mentalização era a menina dos olhos dos cursos de comandos. Um comando luta para matar e não para não morrer. Indicou-nos os processos e as técnicas que utilizam para a mentalização.

Slogans, dísticos humorísticos nas paredes, nos lavabos, em todo o lado, até dentro do pão.
Uma aparelhagem sonora nas casernas e nos quartos de sargentos e oficiais.

Alocuções de mensagens gravadas, para ouvirem sempre que estejam a descansar. Devem ser feitos testes para avaliar o grau de assimilação.

Emulação entre os instruendos, entre as equipas e entre os grupos. Cerimónias com aparato para realçar as qualidades e os méritos dos indivíduos que mais se destaquem.

Abordou o conceito da parelha, da equipa e do grupo. Numa primeira fase, deve dar-se aos instruendos a liberdade para se agregarem como entenderem, depois as relações tendem para alguma estabilidade. Reforçar essas amizades, estimulá-los a comerem na mesma mesa, participarem nos mesmos jogos, fazerem os mesmos serviços.

Falou depois na constituição do grupo:

1. O indivíduo que concorre aos comandos tem que estar situado entre os 20 a 30% melhores do contingente donde é originário.

2. Os comandantes dos grupos e os chefes das equipas devem situar-se entre os 10% melhores do contingente de quadros.

3. A selecção é a operação mais importante na formação dos comandos.

4. A instrução deve assumir um carácter selectivo.

5. Sendo o tiro um aspecto muito sensível, não deve haver restrições nesta instrução.

6. Todos os elementos devem ser especialistas no tiro de precisão e no tiro instintivo e todos devem estar aptos na utilização de lança-rockets.

No dia 26 de Outubro partimos para o quartel de Quibala, onde estivemos 6 dias em contacto com os 3 grupos de comandos recentemente chegados de uma operação. O tenente Abreu Cardoso deu-nos explicações pormenorizadas sobre a mesma.

Regressámos a Luanda e ficámos a aguardar o início da operação que deveria ter lugar nas margens do M’Bridge. Patrulhar as margens do rio entre as picadas de Evange e Quiaia. Uma operação de rotina.

Na 2.ª operação fomos integrados no grupo de comandos do batalhão de artilharia. Montámos a emboscada nas margens do rio Loge. 3 dias.(...)

Se deste estágio na Região Militar de Angola não tirámos o máximo proveito, ele foi, pelo menos, muito útil. Útil porque das lições dos instrutores ficámos com a cabeça mais arrumada, com muitos ensinamentos que nos serão úteis se um dia viermos a ser instrutores de comandos. Útil ainda, porque do contacto que mantivemos com os grupos em operações, adquirimos experiência, vimos como aquela tropa se comporta no mato e as situações que vivemos serão para nós motivos de ensinamento.

Resta acrescentar que os oficiais da R. M. de Angola estiveram sempre ao nosso dispor e se mais não fizeram, foi, de facto, devido à nossa visita ter sido efectuada numa altura pouco conveniente."


Furriel Vassalo Miranda e Alferes Maurício Saraiva em Angola. 

© Foto cedida por Vassalo Miranda.

Considerandos, directivas e orientações. Mais de cinquenta páginas do bloco de apontamentos do estágio na R. M. de Angola do alferes Justino Godinho, um dos voluntários da Guiné.

Depois de regressarem do estágio operacional em Angola, o Comandante-Chefe da Guiné pensou em aproveitar esses militares e integrá-los nas forças que iriam executar a operação "Tridente", marcada para o início do ano de 1964. A ideia, quando foi apresentada pelo Brigadeiro Louro de Sousa, então o Comandante-Chefe do CTIG, pareceu algo controversa, pelo menos no espírito de alguns oficiais do QG.

Não seria um risco desnecessário? Tão pouca gente e todos os quadros, o futuro embrião dos comandos na Guiné? Sem organização própria para os apoiar, não obstante a vontade que manifestavam em integrar os efectivos da operação? Seria mesmo de arriscar? Não seria a morte à nascença do projecto dos Comandos do CTIG?

O Comandante-Chefe decidiu. Vão participar e tratem de organizar o grupo de forma a torná-lo operacional. Aliás, vai ser um bom teste.

Assim foi. Aproveitaram os elementos que, anteriormente, tinham respondido ao apelo de 'voluntários precisam-se para os comandos', a maioria pertencente ao BCav 490, a unidade base que iria executar a operação ao Como, sob o comando do TCor. F. Cavaleiro, comandante do Batalhão.

Havia a necessidade de reforçar os efectivos do GrCmds. Para isso, sob a orientação dos comandos regressados de Angola, os que se ofereceram iniciaram um curto período de instrução operacional com vista à participação na referida operação.

Constituiu-se assim o grupo que interveio na operação “Tridente”, de 14 de Janeiro a 24 de Março, nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, integrados nas forças à disposição do Batalhão de Cavalaria 490.

O comando do grupo foi entregue ao alferes Saraiva e, ao alferes Godinho, aos furriéis Mário Dias, Artur e Miranda, a chefia das equipas.

Mário Dias, um dos participantes na operação, esclarece as razões da operação: 

"Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963. As tabancas existentes eram relativamente pequenas e muito dispersas. Possuía numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou em outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperiosa a recuperação do Como. Foi então planeada pelo Comando-Chefe a Operação ‘Tridente’ na qual foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 agrupamentos, num total de cerca de 1200 homens".

No dia 14 de Janeiro de 1964, cerca de 1200 homens repartiram-se pela fragata “Nuno Tristão”, por lanchas de desembarque, vedetas e diversos barcos de apoio.

No dia seguinte, a CCav 488 pôs o pé em Catabão, onde abarracou e o 7.º Destacamento de Fuzileiros e a CCav 487 desembarcaram em Caiar. Estes avançaram em direcção a Catabão, enquanto os “comandos” e um pelotão de caçadores ocuparam Caiar. O 8.º Destacamento de Fuzileiros e a CCav 489 ocuparam Cametonco. Fecharam o cerco e o inimigo não teve outro remédio senão ir para as matas.

Caiar, base logística da op. “Tridente”. 

© Com a devida vénia ao pessoal do BCav 490.

O quartel-general das operações abarracou na praia de Caiar. Daqui, dois canhões 8.8 batiam as zonas inimigas e a Força Aérea, sempre que solicitada, avançava com os F-86 e os T6.

O Furriel Miranda, chefe de uma das equipas do grupo de “comandos”, relata: “Uma secção do 8.º Destacamento2, tinha ficado isolada, já tinham um morto, a situação não estava nada boa. Tiveram que pedir o apoio dos “comandos”.

Em pouco tempo, um furriel nosso correu para o corpo do camarada, caído em cima da MG-423. Quando regressavam à posição anterior com o ferido numa padiola, viram mais um fuzileiro a contorcer-se no chão. Outra vez, um dos nossos correu para o ferido, tal como o primeiro atingido com uma bala na cabeça. Quando regressava, o furriel dos “comandos” sentiu o zunir de uma bala. Espera aí, deve ter dito para ele, tudo balas para a cabeça. Escondido, começou a passar os olhos árvore por árvore até ver de onde vinham os tiros.”

E continua A. Vassalo, autor da BD "Operação Gata Brava":

"7 de Fevereiro na mata do Cachil, junto à tabanca de Cachida. Comandos e páras tinham acabado de ocupar a aldeia quando foram chamados para apoiar o 7.º Destacamento dos Fuzileiros, que se digladiava com o IN, ali perto.

Numa pequena clareira foram atacados violentamente. Os efectivos dos guerrilheiros eram superiores e estavam bem organizados no terreno. Um pára é atingido mortalmente. E logo ali, começou outra guerra, a disputa pelo corpo.

Na clareira, os “comandos” conseguiram escapar sem uma beliscadura e encontraram o 7.º Destacamento exausto pelo longo combate travado antes.

A disputa pelo pára-quedista morto não parava. A luta pelo troféu e a momentânea quebra do poder de fogo das NT acicatava o IN e de que maneira!

E outro pára é atingido com um projéctil que lhe partiu a coluna.

Outra vez os “comandos” ao palco. Correram por ali fora e conseguiram sacar o bravo pára."

***

"Numa daquelas tardes, preparávamo-nos para arrancar. As nossas tropas ainda não tinham conseguido entrar nas defesas do IN, junto a Cauane. A única vez que o tinham tentado fazer, o 8.º Destacamento dos fuzos4 teve 3 mortos.

A passagem do tarrafo, junto à estrada que atravessava a ilha, era uma extensão à volta de 400 metros, cerca de 100 dos quais entrava numa meia-lua de mata, onde o IN estava entrincheirado. A meio do tarrafo havia uma vala de irrigação e o ourique que a atravessava perpendicularmente tinha uma prancha a servir de ponte.

Até àquele sítio o IN deixava, depois não, não havia outro remédio senão voltar para trás. Pela nossa parte, durante cerca de 15 dias, à razão de 2 vezes por dia, tentámos entrar na mata por aquela passagem. Éramos corridos à bala, e a coisa não tinha tido outras consequências porque para além de Deus Nosso Senhor ir também connosco, tomávamos as providências indispensáveis, colados ao chão, bem distanciados uns dos outros. Mas era mesmo um sarilho dos diabos, estávamos sempre a pensar que tantas vezes vamos lá que um dia esta merda acaba para qualquer um, pelo menos.

A primeira equipa a progredir era a minha e naquela tarde tínhamos três T65 a apoiar-nos. Em fila de pirilau6 chegámos à tal prancha. A equipa passou-a sem problemas, e isso deixou-nos um tanto admirados. Mudaram de táctica, os gajos?

Desconfiados com tanta fartura, continuámos a avançar. Ouvia-se o roncar dos T6 e o silêncio da mata. O resto do grupo permaneceu lá atrás, protegidos pelo ourique, a ver como paravam as modas. Senti-me só, confesso. Se rebenta a bernarda em cima de nós cinco, como vai ser? Saímos do ourique e formámos uma linha no tarrafo. Avançámos mais uns metros, até a meia-lua de floresta nos envolver. Pronto, cá estamos, bem dentro do alcance das armas dos gajos, que era o que nós queríamos, ou não?

E, claro, não demorou muito, ficámos em maus lençóis. Batidos de frente e dos dois lados num autêntico tiro ao alvo. O que nos estava a valer é que a pontaria dos gajos estava um pouco levantada, só às vezes, uma ou outra rajada, levantava a terra do ourique.

E, a propósito, os nossos, de que é que estão à espera, que merda? Bem lhes fazia sinais para abrirem outra linha, mas qual quê, nada. Assim, não podíamos continuar ali, estávamos totalmente à mercê e o 5.º elemento estava muito perto da orla da mata. Voltei-me para ele, pá, salta para o outro lado do ourique. Qual salta, qual carapuça, o gajo estava com as calças em baixo, isso mesmo, estava a arriar o calhau.

Coitado, deu-lhe a volta ao intestino, pensei. Insisto com o gajo, ó pá, és parvo ou quê, e não é que vejo na mão do gajo um papel, àquela distância até me parecia um aerograma. Não me digam que aquele sacana está a ler a correspondência. Ó pá, que merda é essa? E o gajo grita-me, no intervalo dos pau pau, se tiver que morrer, meu furriel, quero ir aliviado e com notícias frescas da famelga.
Meu grande filho da mãe, ou puxas as calças para cima, ou sou eu que vou aí puxar-tas, ouviste? Pronto, meu furriel, estou pronto, respondeu-me, momentos depois.

Quando ele e a parelha passaram de cócoras à minha beira, caiu-nos uma descarga de balázios, parecia que tinham posto o dedo em tudo que fosse gatilho. Metidos pelo chão, escondidos atrás de frágeis espaldões, nenhum de nós pensava sequer em levantar a cabeça, quanto mais outra coisa.
Lá atrás o alferes Saraiva chama os T6 para o barulho, e aí vieram os gajos a fazer um chavascal danado, um a fazer fogo de metralhadora, outro a lançar rockets e o terceiro a largar umas bombinhas. Até seguimos a coisa com interesse, os T6 picavam, os gajos calavam-se, os T6 levantavam, fogo outra vez para cima de nós.

Entretanto, os fuzos já vinham a caminho com o objectivo de nos retirarem daquele poço. Outra vez os aviões a picarem e os gajos calados, a última bomba rebentava e lá estavam outra vez os gajos a tentarem acertar-nos.

Um T6 deslocou-se numa linda manobra para a orla da mata e subitamente picou sobre eles, o outro sobre a meia-lua, o terceiro vinha um pouco atrás para varrer a metralha a orla da mata.
Mata calada e é nesta altura que arrancámos com toda a força que tínhamos, comandos ao ataque, um grito que até eles devem ter ouvido!

Electrizados é o termo, o Marcelino, o Godinho, o Joel, o outro das calças e eu, que nem umas balas em direcção à mata, para aí a 70 ou 80 metros. É agora, comandos!

Bombas a rebentarem outra vez, os nossos camuflados enfunados com os sopros dos rebentamentos, os quicos saltaram-nos das cabeças e puseram-se a voar, estávamos tão perto que os T6 tiveram que parar o fogo e ficaram-se por ali em cima durante uns minutos. Mas já estávamos dentro da floresta, em igualdade de circunstâncias. Vimos três gajos a fugirem de uma casa de mato, e parece que não foram muito longe.

Animados tentámos avançar. Qual quê, fogo cerrado em cima de nós, as palmeiras a abanarem, folhas a caírem-nos em cima, bom sinal, os gajos continuam com a pontaria alta. Furriel, estou quase sem munições, eu também e pronto, tínhamos mesmo que ficar por ali.

Esta cena foi filmada pelo Raimundo, o cabo do Destacamento de Foto-cine do QG, que nos estava a acompanhar. Estávamos com poucas munições e encurralados junto à estrada e ainda distantes da bolanha. Como é que vamos sair daqui? Mas quem disse que vamos sair? Os T6 também estavam sem combustível e tiveram que retirar não sem um resolver fazer uma última passagem sobre a posição de uma Degtyarev7 montada numa plataforma.

Como o Furriel Miranda viu lá de baixo as manobras dos T6.
© Desenho de A. Vassalo.

Correu mal o picanço do T6, a Degtyarev ficou com ele na mira, depois foi só carregar no gatilho, e o aviãozinho ficou furado do nariz ao rabo. Quando passou por nós, aí a uns escassos 20 a 30 metros, já ia ferido de morte. Motor lancinante, fumo por todos os lados, voo incerto e em perda, espatifou-se atrás das nossas linhas com um estouro ensurdecedor e uma labareda enorme por ali acima.


De costas, junto à primeira palmeira, quico à legionário na cabeça, o Furriel Miranda contempla os destroços e o cadáver do piloto. 


© In “Operação Gata Brava”, Autor A. Vassalo.

Contentes com o abate, até palmas parece que ouvimos, o IN esqueceu-se de nós, e nós, oportunistas, cavámos dali. Rapidamente vencemos a distância que nos separava do ourique e foi então que eles deram por ela, mas já era tarde demais.

No fim daqueles setenta e tal dias, a resistência abrandou8 e, numa prova de que se podia voltar a andar livremente, o TCoronel Cavaleiro com um pequeno grupo de homens passeou-se pelo interior da ilha. Foi o sinal de que a operação “Tridente” estava no fim.

Deixámos uma guarnição em Cachil pequeno (da CCaç 557), o Batalhão de Cavalaria 490 foi para Farim, os comandos para o interior treinar milícias indígenas e os fuzos e os páras para as suas missões tradicionais.


Furriel Miranda, de lança-rockets e alferes Saraiva de chapéu, o cabo Raimundo do destacamento Foto-Cine com a máquina na mão esquerda, entre outros elementos do grupo de “comandos “da operação no Como. 


© Foto cedida por Vassalo Miranda.

Baixas? 9 mortos e 47 feridos e um avião abatido, do nosso lado. 76 mortos, entre os quais alguns chefes da guerrilha, mais de 100 feridos confirmados e 9 prisioneiros, do lado da guerrilha.
Apesar de todas os problemas por que passámos, foi um prazer e uma honra também, lutar com aqueles Inimigos, que tal como nós estavam a combater por uma causa em que acreditavam.”
A. Vassalo, Autor da BD "Op. Gata Brava".

Publicamente reconhecida a contribuição que deram para o sucesso da operação, os comandos receberam os crachás em cerimónia pública realizada em Bissau em 29 de Abril de 1964.
Em finais de Julho e com a duração de 4 semanas deram início à escola de quadros.

Entre 30 de Setembro e 17 de Novembro de 1964, realizou-se em Brá o 1.º Curso de Comandos da Guiné9. Começaram cerca de 200, terminaram 78. Fantasmas, Panteras e Camaleões foram os nomes que escolheram para os grupos que saíram dessa formação.


"Fantasmas", "Panteras" e "Camaleões", no dia em que receberam os crachás. À frente dos grupos, o então tenente Jaime Cardoso dos Comandos de Angola, director do 1.º curso de Comandos na Guiné. Brá, Novembro de 1964.


© Foto de Mário Dias.


Os grupos em Bissau apresentam-se ao Governador-Geral, Brigadeiro Arnaldo Schulz.

© Foto de Mário Dias.

E em Dezembro de 196410, o Boletim de Informação do Estado Maior do Exército, relatava oficialmente as primeiras acções desses grupos: "A actividade desenvolvida pelos grupos de comandos conduziu a resultados muito remuneradores. Prova-se deste modo a necessidade de se poder dispor de uma tropa com instrução especializada, apta a desempenhar missões que, pelas suas características, estão fora das capacidades das unidades normais.

Um grupo em actuação em Canjambari efectuou uma acção de muito interesse sobre um bando de terroristas instalado a coberto do rio. Apoiados por um pelotão de auto-metralhadoras, os comandos transpuseram o rio e lançaram-se ao assalto do IN, bem instalado no terreno e com bom e numeroso armamento. O IN foi desalojado, tendo deixado várias baixas no local.

Outro grupo efectuou uma emboscada na mesma região causando ao IN 2 mortos e vários feridos, tendo sido capturadas várias espingardas, pistolas-metralhadoras e granadas de mão.
Na zona de Tite, outro grupo realizou um golpe de mão a NE daquela povoação.
Capturadas 8 espingardas, 1 pistola-metralhadora e várias granadas de mão”.

Nesse mês de Dezembro, numa reunião em Brá com os comandantes dos grupos, o Major Correia Dinis preocupado com a aproximação das datas dos fins das comissões dos militares dos comandos, relia-lhes uma nota que endereçara ao Comandante Militar da Guiné:

"Exmo. Senhor,

Por determinação de S. Ex.ª o General Venâncio Deslandes, apresentei-me na véspera do meu embarque de fim de licença na Defesa Nacional a fim de ser ouvido por aquele Exmo. Senhor.
A conversa baseou-se única e exclusivamente na organização de grupos de comandos, seu interesse e modalidades de acção.

Para terminar, Sua Ex.ª o General mostrou-se interessado na organização de mais grupos de comandos no CTIG.

Informei que essa organização dependia não só do Centro Nacional de Instrução de Comandos em Angola, presentemente em organização, como também do necessário pessoal que deveria vir da metrópole para substituição, nos Batalhões, dos voluntários para os comandos.
Quanto a este segundo condicionamento, Sua Ex.ª esclareceu que o CTIG poderia pedir o envio desse pessoal.

No meu entender, a organização de novos grupos de comandos é da maior utilidade, tanto mais que a partir de Abril de 1965 os três grupos existentes começarão a ficar desfalcados com as desmobilizações.

Há que atender porém ao trabalho que o Centro Nacional de Comandos vai produzir na formação de novos grupos.

Estarão esses grupos prontos num futuro próximo e poderá o CTIG aproveitá-los em breve ou a formação desses grupos demorará ainda o bastante, que justifique como emergência, a formação de novos Grupos neste CTIG?

Assim, proponho:

1.º - Que com a necessária urgência se procure obter da Região Militar de Angola as seguintes informações:

a) Qual o número de grupos de comandos que em 1.ª prioridade serão atribuídos ao CTIG? Ainda se mantém a Companhia como foi pedido?
b) Qual a data provável da sua apresentação neste CTIG?

2.º - Em face da resposta obtida poderá então este CTIG pensar na formação ou não de novos grupos.

Em Brá, 26 de Novembro de 1964 

O Comandante do Centro de Comandos, 
Correia Dinis, 
Major."

Qual a resposta? Temos ainda algum tempo à nossa frente. Abril não vem longe, mas mesmo assim, também não é demasiado tarde ainda. Leu-lhes outra, que acabara de receber, a felicitá-los pela forma como elaboraram os programas do curso:

"Comando Territorial Independente da Guiné, Quartel-General, 3ª Repartição, ao Sr. Director do CI de Comandos, Brá.

Encarrega-me Sua Ex.ª o Brigadeiro Comandante Militar de informar V. Ex.ª que aprovou os programas da Instrução de Comandos que acompanharam a nota em referência e manifestar o seu agrado pelo cuidado feito pelo Director de Instrução na elaboração dos respectivos programas.
O Chefe do Estado-Maior, 
sarrabiscos miúdos, o nome de guerra por extenso, 

Tenente-Coronel do CEM".

E uma cópia de uma outra que o Comandante Militar dirigira aos Comandos dos Batalhões:

"Por determinação do Comandante Militar, os comandantes dos batalhões em quadrícula devem não só prestar todo o apoio que lhes for pedido como também, eles próprios, devem proceder à escolha de voluntários, os quais devem dar garantias de permanência na Província pelo menos de 1 ano. Os comandos não fazem qualquer outro serviço, actuam, em regra, durante 3 a 5 dias, e descansam dois ou três.

Trabalham, normalmente, em benefício dos Batalhões mas quando o CTIG o entender podem ser accionados directamente por este. (...) 

sarrabiscos iguais aos anteriores, o mesmo nome por extenso. 
Execute-se."

Entretanto os grupos foram-se mantendo em actividade, infundindo respeito sobretudo ao inimigo, conforme atestam as numerosas citações de que foram alvo, apesar de actuarem com efectivos progressivamente mais reduzidos.

Claro que tiveram os seus fracassos que isto de ir à guerra é já uma coisa muito antiga. Levantaram-se sempre quando foram ao tapete.

Para recordar os 9 camaradas mortos que tiveram numa tarde na zona de Madina do Boé, logo na semana seguinte os 12 comandos sobreviventes foram nomadizar para a zona do Oio.
E terminaram em 6 de Maio de 1965, no sul, em Catunco, no acampamento chefiado pelo Pansau Na Isna, guerrilheiro do PAIGC que se tornou lendário.

Foi um golpe de mão como deve ser, entraram pelas barracas com eles a dormirem e, como era de esperar, acordaram-nos. Retiraram eufóricos, um sucesso para finalizar a guerra. No regresso alguém perguntou quem trazia a metralhadora-pesada do inimigo. Ninguém a trazia, ninguém a vira! Duas equipas, metade do grupo, receberam ordem para a ir buscar. Voltaram para trás, ao acampamento que momentos antes tinham incendiado. Iluminados pelas labaredas, apareceram bem recortados aos olhos de alguns guerrilheiros, refugiados nas proximidades, que não tiveram dificuldade em mandar para o meio deles uma roquetada. Todos atingidos, um morto e nove feridos foi o saldo do regresso ao acampamento. A operação tinha recebido o nome de código “Ciao”.

Em Junho de 1965 começou o 2.º curso de comandos na Guiné.11

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Notas:

1 - Comando Territorial Independente da Guiné
2 - Fuzileiros Navais. Naqueles anos, actuavam quase sempre ao nível de destacamento, uma formidável força armada.
3 - MG 42: Espingarda-metralhadora, de origem alemã usada pelas NT.
4 - Fuzileiros.
5 - Avião bombardeiro, monomotor podendo ser armado com lança-roquetes, metralhadora e bombas.
6 - Coluna por um.
7 - Degtyarev-Shpagim: Metralhadora pesada 12,7 mm, de origem soviética utilizada pelo IN
8 - Teor de mensagem de Nino Vieira para a direcção do PAIGC, em poder de um guerrilheiro capturado: "Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio. As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças (...) camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas (...) do vosso camarada, Marga-Nino."
9 - 23/7/64: início das actividades do Centro de Instrução Comandos em Brá.
03/8/64: início da Escola Preparatória de Quadros.
24/8 a 17/10/64: 1.º Curso de formação dos GrsCmds (Camaleões, Fantasmas e Panteras), com o apoio de instrutores e monitores do CI 25/RMA e do GCmds "Gatos"/BArt 400/R. M. Angola, que sob o comando do alferes Horácio Valente (morto mais tarde em Moçambique) permaneceu na Guiné entre 22 de Setembro e 28 de Dezembro de 1964, participando em três operações no sector do Batalhão de Artilharia 645.
10 - De 20/10/64 a Junho de 1965: actividade operacional dos Grs. Comandos
11 - Em meados de 1965 o Major Correia Diniz terminou a sua comissão tendo sido substituído pelo seu Adjunto, Capitão Varela Rubim. Nesta altura o QG decidiu extinguir o Centro de Instrução de Comandos e criar a Companhia de Comandos do CTIG com data de 1 de Julho.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem