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quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)















Notícia do "Diário Popular", de 6 de maio de 1955, relativa à viagem do Chefe de Estado,  general Craveiro Lopes, à Guiné, com passagem por Bissau e Bolama e depois visita ao interior. Em Bolama, era presidente da Câmara o Júlio Lopes Pereira, colono e comerciante em Bolama, condecorado em 1947, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues,  com o grau de Cavaleiro da Ordem do Mérito - Classe de Mérito Industrial. (Decreto de concessão publicado em D.G. de 29 de abril de 1947). Já nos anos 30 estava radicado em Bolama.


1. Presumimos que seja o mesmo Júlio [Lopes] Pereira, morto em novembro de 1965, em Farim... Foi acusado pela PIDE e pelas autoridades militares de Farim (comando do BART 733) de ser o "autor moral" do atentado terrorista de 1 de novembro de 1965, em Farim.

A tratar-se da mesma pessoa, o Júlio [Lopes] Pereira,  radicado em Bolama,  desde os anos  30 e depois em Farim (nos anos 60), seria o pai da jornalista Ana Emília Pereira (,"Milocas" Pereira, para os amigos), jornalista e docente universitária da Guiné-Bissau, a viver em Luanda desde 2004 e entretanto desaparecida, "misteriosamente", em 2012.

A tratar-se da mesma pessoa, verifica-se terá passado de cidadão respeitável a "proscrito social", tendo sido morto às mãos da PIDE em Farim, na sequência do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965. cuja autoria nunca foi reivindicada.(*)

As circunstâncias da morte do Júlio [Lopes] Pereira, de Farim, já aqui foi relatada por Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (n. 1929), seu amigo (**):

(...) "Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.

Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.

(...) Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granada atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim. Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.

Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.


(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou,  atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do  Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido. 

Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá >  Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos.  Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.

Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:

(...)  Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.

Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.

(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...),  até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal.  o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)

Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...

(**) Vd. poste de  10 de agosto de  2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19794: (In)citações (131): A dureza da nossa infância e a guerra (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 15 de Maio de 2019:


A dureza da nossa infância e a guerra

No passado dia 17 fui à Associação 25 de Abril assistir ao lançamento de "A Minha Guerra a Petróleo" da autoria do José António Pereira da Costa. O apresentador da obra foi o Coronel Carlos Matos Gomes, ex-Comando e escritor de créditos mais que provados.

Excelente orador, deu ali uma lição histórica de literatura portuguesa, com especial incidência no que se refere ao colonial e pós colonial. Mas ao vê-lo lembrei-me de antigos camaradas de escola, que foram comandos também e com principal relevo para dois que estiveram na Guiné mais ao menos no período que eu também lá estive.

O Aníbal Gavião (Laredo de alcunha) foi meu colega na escola em Alcobaça na 1.ª classe e mais tarde na 4.ª quando regressei à vila. O Augusto foi meu colega na escola da Vestiaria entre o final da minha 1.ª classe e a 3.ª e o que aqui escrevo, acaba por se focar na história das crianças daquele tempo, com especial ênfase para as fracas condições económicas, que a grande maioria tinha que ultrapassar com escolas a quilómetros, descalços e com almoço que não passava de um pedaço de pão duro, para render, e um cubo de toucinho assado frio, que lhes servia de pequeno almoço, almoço e lanche, especialmente dos que moravam nas aldeias.

Em 1957 entrei para a escola primária de Alcobaça.
Era uma sala cheia de crianças de bata branca em frente da professora. A secretária ligeiramente para o lado direito, deixava livre a visão para o quadro preto, a cruz e as fotografias emolduradas de António Salazar e Craveiro Lopes que era presidente da República por essa altura. Reza a História, que este não era dos predilectos do regime e assim, ao contrário dos que se eternizavam no lugar, foi despachado tão depressa quanto possível.


A professora era e foi, senhora temida até ao fim da sua carreira. Conhecida por mais que uma geração e que estava castigada a dar só a primeira classe por via de algumas “carícias” feitas com mais afinco na malta pequena.

Naquele tempo a sala de aula era um sítio austero pouco convidativo, onde imperava a máxima da reguada e a cana da índia, para quem não sabia ou se esquecia de trazer os trabalhos de casa feitos, quem sujasse a bata, quem não tivesse algum material, etc.

Éramos obrigados a sair e regressar a casa com a bata vestida impecavelmente limpa, facto que me custou alguns safanões dados pela a minha mãe, pois por vezes tinha que ma lavar quando eu chegava a casa e enxugá-la sabe Deus como, para que eu me apresentasse sem mácula às nove horas do dia seguinte na escola.
A falta dela era imperdoável.

Na verdade, frequentaram comigo a escola crianças de todos os estratos sociais e a bata tornava-nos à primeira vista iguais. As diferenças eram assim mais subtis para quem não soubesse, que haveria crianças com várias batas e umas, a maioria como eu, que só tínhamos uma.
Mas juntando o feitio da professora, com o terror que a minha mãe tinha de vivermos numas águas furtadas na travessa da Cadeia, bem por cima do hoje afamado António Padeiro, que já existia naquele tempo sem tanto “pedigree” mas com a qualidade que o tempo não esmoreceu, por essas razões acabamos por ir viver para a aldeia da Vestiaria, situada a pouco mais de 3 quilómetros, mais precisamente na rua que ia para lavadouro e mais tarde, para a Rua do Loureiro. Dali até ao cruzamento entre os Casais e quem ia para o Pinhal Fanheiro ficava a escola. Palmilhávamos mais ao menos uns 1500 a 2000 metros para cada lado quer chovesse quer fizesse Sol.

A lei era taxativa e vigorava uma sobre a proibição de se andar descalço, mas quando cheguei à nova escola eu parecia um extraterrestre, pois batas e sapatos era coisa que não se via por aquelas bandas. Os garotos descalços traziam umas sacolas com uma ardósia e livro de leitura, mais uma sebenta para os trabalhos casa e assim, é fácil adivinhar o espanto que a minha mala reluzente, com caixa de lápis cadernos e livros encadernados, tudo arrumadinho, causou.
A disciplina na escola também coisa de assombrar, pois conviviam todas as classes da primeira à quarta e não eram poucos os alunos que eram maiores que a professora. A D. Emília, jovem professora de Aveiro para ali desterrada, a viver num quarto alugado, quando ia para lhes bater, eles simplesmente seguravam-lhe os braços “o quê que você quer mulher ?”, quando não saltavam simplesmente pela janela e estava o assunto arrumado.

Não raramente eram as mães que os levavam de volta à escola por medo de represálias, uma vez que a escola era obrigatória e se não fosse isso, teriam muito que lhes dar a fazer no campo ou à volta do gado, na vez de andarem a alimentar a boa vida do rapaz a passear os livros.
As mães de alguns alunos quando chamadas à escola por algo que o filho tivesse feito, usavam da sua autoridade aplicando-a à pancada. Condenação e castigo, que eles levavam logo ali com um sarrafo seco de videira, agarrados por um braço e saltando ao ritmo das bordoadas.
- “Sra professora, você arreie-lhe com força, arreie-lhe” - e iam-se embora a maldizer a sorte, o rapaz, mais a escola, que assim ele nunca mais ia trabalhar.
No fundo era a grande chatice pois sem a 4.ª classe ninguém lhe podia dar emprego, se não ficava assim mesmo, pois para a enxada não era preciso saber o abecedário nem geometria.

Comigo andaram o Zé Loureço e o Coelho, que assentaram praça no CICA4 no mesmo dia que eu. O Mário Farelo, o “Escalracho”, os irmãos Manel e Augusto, o Mendes que me ia furando um olho com uma cana acabada de arrancar da vinha ao lado da escola, quando fez dela uma lança. O Manel e o Augusto, estes dois irmãos mais o “Escalracho”, eram por assim dizer responsáveis por todas as malandrices que se faziam e mesmo quando não eram eles, que roubavam a fruta ou roubavam os ovos da capoeira, era certo e sabido que eram os suspeitos e culpados costume.

A vida da escola era assim colorida e assim fui passado de classe à medida que me iam confundindo no aspecto geral, perdi o brilho e o brio, deixando a bata em casa, com a mala toda esfolada ao estilo de quem te viu e quem te vê.

Voltei para Alcobaça a tempo de fazer a quarta classe. Os meus colegas mais velhos foram trabalhar para os fornos da Crisal ou em oficinas na vila, outros por lá ficaram no amanho das terras. Perdi o contacto com a esmagadora maioria deles e se não fora a tropa nunca mais veria outros tantos. O Manuel trabalhou numa marcenaria lá para os lados da Fonte Nova e o irmão mais novo Augusto, encontrei-me com ele no avião que nos trouxe de férias à Metrópole. Era dos Comandos o que não me admirou dado o espírito voluntarioso e belicoso que lhe conheci. Ostentava orgulhosamente os símbolos da 35.ª ou 38.ª, possivelmente esteve envolvido nas operações em Copá e Canquelifá ou mesmo Guidage.

Voltei a viajar com ele no regresso das férias e bebemos uns whiskies para nos prepararmos para o impacto do arame farpado do aeroporto de Bissau e aí chegados, abrasados pelo o impacto do calor ele foi para os Comandos e eu para os Adidos de má memória.
Não tenho ideia de o ter voltado a ver mas duma coisa não tenho dúvida, é que foi naquela vida dura que se forjaram os nossos jovens, o que lhes permitiu aguentar a dureza daquela guerra durante tantos anos.

Mesa de Honra com: Coronel Carlos Matos Gomes, Coronel Vasco Lourenço e o autor de "A Minha Guerra a Petróleo", Coronel António José Pereira da Costa

Na mesa de honra, no lançamento do livro do Coronel António José Pereira da Costa, estavam três soldados que participaram no 25 de Abril, data que como sabemos, embora sujeita aos detratores de todas as latitudes, continua a ser o primeiro dia de liberdade do resto das nossas vidas.
Um muito obrigado por isso.

Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19767: (In)citações (130): As Comemorações de Abril, A Memória e a História (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679)

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18649: Notas de leitura (1067): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (35) (Mário Beja Santos)

BNU em Bissau


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Admito que esta exposição assume por vezes um caráter fastidioso pela quantidade de pormenores que o gerente carreia nos seus relatórios para Lisboa. Somos forçados a intuir que a economia agrícola guineense suscitava um gradual interesse, como se veio a demonstrar pelas aplicações financeiras que irão ser feitas em diferentes áreas do desenvolvimento agrícola.
Não deixa de surpreender, quando se leem os relatórios concomitantes ao período da guerra, como os relatórios põem acento tónico nas experiências agrícolas, nas presunções de novos mercados, nas potencialidades da terra, a despeito da tremenda desarticulação em que se encontrava território, fruto da guerrilha. Para entender a tendência, é também necessário atender às necessidades prementes da metrópole, carente de oleaginosas.
Tinha chegado a era do Óleo Fula.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (35)

Beja Santos

Estamos em meados da década de 1950, há expansão mas surgem contratempos imprevistos. É o que se lê no relatório a seguir ao descabelado elogio à vinda do General Craveiro Lopes em visita oficial à Guiné:
“No que respeita à Dependência, mantiveram-se os seus resultados em curva ascendente, embora no último trimestre do exercício tivessem sido suspensas as transferências, no que a Filial deixou de receber cerca de 300 contos, por se terem esgotado as disponibilidades do Fundo Cambial, em consequência de terem ficado, durante alguns meses, sem poderem ser exportados, produtos num valor total de 40 mil contos, que excederam os contingentes fixados para a metrópole e para que não foram conseguidos outros mercados externos”. O ministro do Ultramar terá entretanto tomado providências pelo que o gerente mostra regozijo: “Essa circunstância, aliada às boas colheitas do ano agrícola em curso, permitem-nos encarar com maior optimismo o novo exercício e esperar que, no seu termo e pela sexta vez consecutiva, a Dependência volte a apurar os mais elevados resultados desde a sua abertura”. E despede-se impante: “Ao deixarmos esta encantadora e prometedora Guiné, para iniciarmos uma licença que utilizamos pela primeira vez em 30 anos consecutivos de serviço prestado à nossa Instituição, vamos com a certeza de que, pelo menos no corrente ano ainda, a Dependência não interrompe o caminho do progresso que tão marcadamente vem trilhando”.

É simultaneamente risonha e inquietante a situação que faz da evolução da praça:
“O comércio continua a expandir-se, pois, dia a dia, aumenta o número de comerciantes por toda a Província, a que agora está a juntar-se uma nova classe de indivíduos que mediante apenas o pagamento das licenças de importação e camarárias, pois não têm estabelecimento nem empregados, convertem-se em comerciantes ambulantes, vendendo em todos os locais ao comércio retalhista, a preços mais reduzidos e em concorrência com o comércio atacadista grande e pequeno, e estes continuam a não vender o suficiente para que sempre se preparem e esperam, de que resultam permanentes e excessivas existências, com todos os seus inconvenientes e a que, em boa verdade, parece que só restringindo a importação se poderia pôr cobro.
Embora a produção da mancarra, que continua a ser o pilar em que assenta a vida comercial desta Província, tenha sido inferior no ano findo, nem por isso o comércio esteve menos activo, pois dois importantes factores vieram compensar fortemente essa quebra e que foram os preparativos para a recepção de Sua Excelência o Presidente da República, cuja visita, acompanhado do então Ministro do Ultramar, Senhor Comandante Sarmento Rodrigues, que foi dilecto Governador desta Província, encheu de júbilo a sua população, e as muitas e vultosas obras que tiveram início ou continuaram nesse ano, ao abrigo do Plano de Fomento e para as quais o Estado integrou no seu orçamento, do mesmo ano, como despesa extraordinária, verbas que excederam 33 mil contos”.

Na segunda parte deste relatório de exercício de 1955 debruça-se exaustivamente sobre a situação das colheitas:
“A produção vegetal continua a ser a base da economia guineense, constituindo, mesmo praticamente, toda a sua produção, pois em 1954, último ano de que está feito ao apuramento oficial, traduziu-se por 91% do valor das exportações e acrescentando-lhe a produção florestal, sobra 94%.
Esta produção é obtida quer por meio da lavoura – a mancarra e o arroz – quer por simples colheita – o coconote – tendo essas duas oleaginosas, naquela ano, constituído cerca de 85% do valor da exportação.
Ainda sem qualquer expressão na exportação, vários outros produtos são também cultivados e desempenham importante papel na economia interna, como seja o milho, a cana-sacarina e a mandioca, sobretudo o primeiro, cuja produção anual tem sido avaliada em mais de 7 mil toneladas.
A cultura da mancarra, como toda a agricultura e colheita na província, continua a ser feita inteiramente pelos indígenas, em regime de rotação, sendo as suas maiores áreas de produção a circunscrição civil de Farim e a parte Norte de Bafatá e Gabu, onde os solos são mais ligeiros e a pluviosidade menor, como convém, sendo de notar que a grande área de produção de mancarra tem, nesta parte de África, o seu limite meridional dento da Guiné Portuguesa.
A sua cultura, feita em excesso, constitui, como se sabe, um perigo para os solos e vegetação, motivo porque se considera uma sorte para a Guiné que as áreas cultivadas não tenham atingido a desmedida proporção que se verifica no Senegal, onde já se põem graves problemas de revalorização do meio natural, que estão muito longe de ter a mesma acuidade entre nós.

Todavia, julga-se possível aumentar consideravelmente a produção da mancarra na Guiné, em condições que não ameassem o actual equilíbrio ecológico e para isso aconselha-se um grande esforço de colaboração entre indígenas, comerciantes e Estado; a progressiva melhoria de sementes, na forma da sua distribuição e armazenagem do produto e na procura de técnicas de cultura mais perfeitas. Se tal obra não for levada a efeito, receia-se que a Guiné corra o risco da ‘senegalização’, por motivo do crescimento da população e do aumento da procura e porque sem a progressiva racionalização cultural, assistir-se-á ao incremento da destruição da vegetação e ao encerramento dos pousios.
Felizmente é este o ponto de vista do governador desta Província, como já o demonstrou quando reuniu todos os régulos e ‘grandes’ da Guiné para lhes expor as suas ideias quanto aos problemas da produção, conforme referimos na nossa informação anterior, e posteriormente quando convocou a reunião no seu gabinete os gerentes das principais casas exportadoras para com eles estudar as medidas a tomar sobre a melhoria da semente da mancarra, como também da necessidade de serem construídos celeiros em melhores condições de adaptabilidade e conservação, por se ter atribuído então, ao mau estado das sementes a enorme quebra verificada na última colheita.

Como se sabe, a mancarra produzida é quase totalmente exportada, saindo ou entrando uma parte pelas fronteiras terrestres, por contrabando tanto dos indígenas como de alguns comerciantes, consoante as flutuações da cotação, mas sendo a saída o caos mais frequente.
Só há poucos anos uma fábrica começou a produzir óleo de mancarra mas irregularmente, por razões de ordem financeira e técnica, pois, tendo uma capacidade muito maior, apenas produziu 105 mil litros em 1951, mais de 42 mil em 1953, mais de 331 mil em 1954 e nada produziu em 1955, estando outras em construção que permitirão o total abastecimento interno e exportação do excedente, tendo a Sociedade Comercial Ultramarina iniciado já a elaboração da sua, em regime experimental”.
É minucioso nos detalhes, alarga-se em perspetivas animadoras.

Também se revela bastante documentado quanto ao arroz, como se pode ler:
“Ao completar-se a pacificação, a Guiné importava arroz, e autores como Ernesto de Vasconcelos e Carlos Pereira, nos seus livros, sugeriam a necessidade de ser intensificada a sua cultura para se chegar ao autoabastecimento.
No último quarto de século, porém a produção aumentou consideravelmente e não só se chegou a esse autoabastecimento como foram exportadas razoáveis quantidades para a metrópole, quando ela se não abastecia por si, e sobretudo, digamos mesmo, frequentemente, até há pouco mais de ano, para o Senegal, Guiné Francesa e Gâmbia, mas quase todo clandestinamente, não figurando portanto, nas estatísticas alfandegárias.
Continua esse cereal a ser não só a base da alimentação da população indígena como a principal produção da Guiné. Segundo estudos recentes baseados na fotografia aérea, as principais zonas produtoras de arroz de regadio da Guiné têm uma extensão de 78 mil hectares, os quais não incluem as pequenas bolanhas. O rendimento por hectare tem sido avaliado na Guiné entre 1800 e 3000 quilos (2500 a 5500 nos arrozais novos do Sul) e aplicando à área total indicada acima o rendimento, baixo, de 2000 quilos, obtém-se uma produção da ordem de 150 mil toneladas, número que se considera excessivo. Julga-se que a estimativa oficial que vem sendo apresentada de uma produção arrozeira de 45 a 60 mil toneladas peca por defeituosa e que não se errará avaliando-a à volta de 100 mil toneladas anuais.
Na zona litoral, as áreas de mangal e lalas salgadas com possibilidade de aproveitamento orizícola excedem 100 mil hectares. Com a sua ocupação e melhoria dos métodos agrícolas, creio que a produção poderia triplicar, isto é, atingir um valor da ordem das 300 mil toneladas, como também se considera que uma orientação feita nesse sentido constituiria, sem dúvida, uma das bases de uma sã economia guineense.

Como se informou em devido tempo, a colheita do arroz do ano anterior – 1954/1955 – foi boa e dela ficaram largos excedentes – umas 10 mil toneladas – para que não se conseguiram mercados externos e ainda em princípios do corrente ano o problema da sua colocação não se achava solucionado e a que virá dar-lhe maior acuidade a certeza de uma nova colheita mais abundante, havendo porém, a esperança de que chegarão a bom termo as negociações em curso para o escoamento da razoável parte desse excedente e para o que o governo acaba de dar forte, se não decisiva contribuição, suspendendo até 31 de Dezembro do corrente ano as sobretaxas que recaem sobre a exportação do arroz descascado e em meio preparo, podendo, assim, ser reduzido o seu preço e provocar maior interesse dos mercados consumidores externos”.

O relatório fala ainda do coconote e óleo de palma e não deixa de tecer algumas considerações sobre as obras dos portos, o respetivo movimento e até a vida económica e financeira dos municípios. Da leitura destes relatórios fica-nos a convicção de que o BNU está a fazer uma aposta muito forte na vida agrícola da Guiné, fosse qual fosse a preparação do relator não é entendível que chega a tais minudências do funcionamento do mercado se acaso em Lisboa não houvesse um grande interesse em conhecer em profundidade o que se estava a passar na agricultura guineense.

Clipper em Bolama 

Nota que revela com o BNU também fazia, inicialmente, empréstimos sob penhores

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 11 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18622: Notas de leitura (1065): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (34) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 14 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18631: Notas de leitura (1066): “Tatuagens da Guerra da Guiné”, pelo Capitão Luís Riquito; Guerra e Paz Editores, 2018 (Mário Beja Santos)