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domingo, 5 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8374: Monte Real, 4 de Junho de 2011: O nosso VI Encontro, manga de ronco (1): As primeiras fotos


Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca  Grande > As primeiras fotos do nosso convívio que teve, ao almoço, 126 participantes (é o número que o Carlos Vinhal me acaba de confirmar; a meio da tarde, tivemos algumas agradáveis surpresas, de malta que veio de outros encontros que se estavam a realizar na região: caso do J. Casimiro Carvalho e esposa, do António Pimentel, do Hernani Figueiredo...).

Um quadro em acrílico sobre tela, da autoria de Nataliel (2011) - nome artístico do nosso... Juvenal Amado! - foi vendido em leilão, arrematado por 120 aéreos, destinado aos projectos de solidariedade sob a liderança da Tabanca de Matosinhos. O leiloeiro foi o António Pimentel, sob a alta supervisão do Álvaro Basto, régulo da Tabanca Pequena (que hoje é já um caso sério...). O quadro foi arrematado pelo nosso camarada, antigo artilheiro de Gadamael (1973/74), hoje médico,  C. Martins.


Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca  Grande > A "nossa madrinha de guerra" e poetisa, Felismina Costa (que compareceu com a Cláudia e o João Carlos) foi uma das muitas caras novas que vieram ao nosso encontro... Ei-la aqui, a meia da tarde, com o Fernando Gouveia, que está a autografar um dos exemplares do seu livro Na Kontra Ka Kontra... O Fernando conseguiu vender cerca de 40 exemplares da obra. E espera ainda poder vender pelo correio. O produto (líquido) da venda destina-se a fins de solidariedade (projecto de apoio às crianças de Bafatá).


Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca  Grande > O "nosso minino" (Adilan), o Zé Manel, hoje com 50 anos, com o Manuel Joaquim... Foram duas das muitas estrelas que fizeram do nosso grande encontro mais um grande ronco, o da camaradagem, da amizade e da solidariedade... Adorei conhecê-lo: desenvolto, portuga dos sete costados, casado com uma angolana, crítica em relação ao rumo que tomou o seu país de origem (infelizmente, os seus biológicos já morreram; a sua verdadeira família hoje está aqui em Portugal)...O Manuel Joaquim, que também conheci pela primeira vez, em carne e osso, era um homem feliz, orgulhoso do seu "minino"...


Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca  Grande > O Victor Tavares, o grande apontador da MG 42 da CCP 121/BCP 12, veio de Águeda com a filha do Paulo Santiago (estudante da licenciatura em solicitadoria em Castelo Branco) que representou o pai ausente em França (aonde se deslocou acompanhando a sua equipa de rugby)... Esteve ao cuidado da Alice Carneiro que ficou triste por não se ter despedido dela, ao fim do dia (Tivemos que seguir para a Lourinhã, ao fim da tarde).



Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca  Grande  > Outra cara nova > A Rosa, esposa do Alcídio Marinho, do Porto, Miragaia... Eles representaram os velhinhos da Guiné, neste caso, a CCAÇ 412, que esteve em Bafatá (na altura com a uma vasta zona de acção que ia de Cantacunda ao Enxalé, e de Bambadinca ao Xitole)... O Alcídio já me entregou a "papelad" para ingressar formalmente no blogue...


Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca Grande  > O Joaquim Peixoto (Penafiel) trouxe outra cara nova, o António Brito da Silva (Baião)... Ambos foram Fuir Mil da  ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3414 (Bafatá e Sare Bacar, 1971/73).



Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca  Grande  >  A Alice descobriu que o António Brito da Silva, filho do "João Semana" de Baião, o  Dr. Silva, era um seu "velho conhecido"... Acontece que no próximo dia 11 de Junho de 2011 temos, eu e a Alice, um convívio na famosa Quinta de Tormes, pertencente à família Eça de Queirós e hoje sede da Fundação Eçaq de Queirós... O António Brito ainda tem laços de parentesco com o genial escritor de A Cidade e as Serras.  O António também ficou "cravado" para engrossar as hostes da Tabanca Grande.




Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca Grande > O António Graça de Abreu e a sua simpatiquíssima esposa de Xangai, a dra. Wang Hai, médica... A Wang integrou-se muito no espírito da Tabanca Grande. o casal veio directamente de Córdóva, Espanha, para o nosso encontro.



Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca Grande > Outra das grandes surpresas do dia foi o Mário Bravo, o nosso médico da Região de Tombali (esteve em Bedanda, passou por Guileje e Gadamael, Bissau e Teixeira Pinto, onde conheceu o António Graça de Abreu). Ortopedista, reformado, vive no Porto., veio acompnhado da esposa, também médica, pediatra, de nome poética Marília Lília. Casaram-se em Junho de 1974. Acabavam de fazer uma viagem pelo Alentejo para comemorar a efeméride. Gostei de a conhecer e da falar com ela.


Monte Real, Hotel Palace > 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca > As primeiras fotos >  Dois camaradas que jogavam em casa, sendo naturais de Leiria: o nosso tabanqueiro Agostinho Gaspar e o Manuel Domingos  Santos, que veio acompnhado da esposa, Maria Isabel... Prova de que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, o Manuel Domigos conhecia alguns dos meus amigos da Gândara dos Olivais... Outro camarada de Leiria que gostei de rever foi o Vitor Caseiro, bem como o Jaime Brandão, antigo Fur Mil Pil, que esteve na Guiné, e que é de Monte Real, tal o Joaquim Mexia Alves. 

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2011). Todos os direitos reservados

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8305: Parabéns a você (262): José Manuel (...), ou Adilan, o meu menino da Guiné, fez 50 anos em Janeiro deste ano (Manuel Joaquim)

1. Mensagem de Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, com data de 18 de Maio de 2011:

Meus excelsos e esforçados "camarigos" editores:
Tinha prometido noticiar uma possível festa de aniversário do Zé Manel* mas a promessa "varreu-se-me" e só agora, ao revisitar certos Posts deste blogue, me dei conta do facto.
Bom, aqui vai agora a crónica ilustrada. Vai atrasada mas julgo que ainda a tempo, tempo que se menoriza em relação à essência do ato, permito-me assim pensar.
Se a vossa opinião for pela não publicação, tudo bem, aceito-a pacificamente.

Um grande abraço do
Manuel Joaquim


ANIVERSÁRIO DE ADILAN

Meus caros “camarigos”:
José Manuel (...), ou Adilan, o meu menino da Guiné, fez 50 anos em Janeiro deste ano. Sua esposa e filha(o)s resolveram preparar-lhe (sem o seu conhecimento) uma festa de homenagem para comemorar a data. Para tal alugaram, por um dia, o salão do Grupo de Instrução Popular de Amoreira (Cascais).
Foi nesta simpática coletividade que se desenrolou uma bela manifestação de amor, carinho, amizade, companheirismo e consideração pelo aniversariante. A surpresa que lhe fizeram foi grande. Compareceram umas boas dezenas de amigo(a)s e familiares. Foi um dia lindo: apetitosa comida (a africana sobressaiu), música, dança, um sketch divertido e alusivo ao homenageado no palco do salão, canções com letra adaptada ao ato, etc.

Também eu, que não conhecia uma boa parte dos convivas, me senti muito envolvido naquela festa, tanto pelo alvo da mesma como pela estima e consideração de que fui alvo. Eu, o “culpado” primordial de todas estas vivências por ter trazido da Guiné este “menino”, já lá vão 44 anos! Olhem, senti-me bem, MUITO BEM!

Foto 1 - O nosso “Zé Manel” entre os padrinhos Deonilde e Manuel (minha esposa e eu).

Foto 2 - Com as suas duas manas de coração, minhas filhas.

Foto 3 - “Primos”, é assim que se tratam mutuamente: o filho e as filhas do aniversariante com a minha neta e os meus netos.

Foto 4 - O meu neto mais novo com o seu tio Zé Manel

Foto 5 – Reunidos em semi-círculo à volta do aniversariante, os convivas (vê-se uma terça parte) preparam-se para lhe entoar homenagens e cantar os “parabéns”.

A festa foi linda!

Olho, com ternura desmedida, para este menino de quatro anos, raptado no mato para ficar a conviver com gente estranha nos quartéis da Guiné (ele que nunca, antes, tinha visto um branco!).

Olho para este menino de seis anos subindo o Atlântico a caminho de uma aldeia de Portugal, onde se tornou no menino de uma camponesa, na casa dos 50 anos, que nunca antes teria visto um preto à sua volta. Camponesa madrinha que assumiu profundamente a sua proteção e educação, como se seu filho fosse.

Olho para este menino com dez anos, nos arredores de Lisboa, afrontando um ambiente urbano totalmente desconhecido, sem medos.

Olho para este rapaz de 17 anos a voar para a Guiné, sozinho, sem referências locais, sem família a recebê-lo, mas com o entusiasmo juvenil de quem sente que tem um mundo a construir e acredita que é capaz de fazer algo de útil, por si e pelo seu país natal.

Olho para este jovem de 25 anos, ainda acreditando nos “amanhãs que cantam”, a melhorar a sua formação académica em Berlim-Leste na mira de se tornar num quadro político e técnico capaz de ajudar a desenvolver a sua Guiné.

Olho para este homem aos trinta anos, um pouco desconsolado com o caminho que o seu país lhe parece percorrer, a vir visitar-me e a passar umas férias por cá para matar saudades dos seus tempos portugueses. Vem decidido a voltar mas as dúvidas sobre o caminho seguido na vida política guineense aumentam. Assim, decide só voltar quando for portador de identidade portuguesa. O BI de cidadão português demorou dois anos a ser-lhe entregue, a vida política e económica na Guiné degradava-se a um ritmo veloz, a caminho do desastre (que pouco tempo demorou a verificar-se). Nestas condições, e na sua situação, concordo que só um “maluco” regressaria. E o meu menino da Guiné por cá ficou.

Olho para este meu “menino” e penso como teria sido diferente a sua vida se eu tivesse impedido o seu regresso à Guiné, aos 17 anos. Seria melhor? Teoricamente, sim. Mas o meu Zé Manel também seria outro, forçosamente. E eu gosto deste. Um cidadão de corpo inteiro, íntegro, trabalhador, solidário, pobre mas “limpo” e de “espinha” direita, um grande pai de família, um grande amigo. E é ainda mais uma coisa, também é uma figura sempre querida da CCaç 1419, a cujos convívios não falta. Como costumo dizer, ele não é meu filho, nem sequer adotivo, mas é irmão das minhas filhas e tio dos meus netos.

Esperamos, eu o Zé Manel, estar em Monte Real no próximo dia 4 de Junho. Foi com prazer, e de imediato, que aceitou o meu convite.

Um abraço
Manuel Joaquim
____________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

12 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7597: Parabéns a você (201): Adilan, o menino que Manuel Joaquim trouxe da Guiné (Miguel Pessoa)

10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)

12 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)

Vd. último poste da série de 20 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8301: Parabéns a você (261): Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil da CART 2519 (Tertúlia / Editores)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7597: Parabéns a você (201): Adilan, o menino que Manuel Joaquim trouxe da Guiné (Miguel Pessoa)

1. Mensagem de Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado:

Caros editores
Já não sei como ou porquê, encontrei em qualquer lado referência ao aniversário do Adilan, o "miúdo" guineense que o nosso camarada Manuel Joaquim adoptou e trouxe no seu regresso. Foi uma história que me interessou e, embora o Adilan não seja um tertuliano nem conste da lista de aniversariantes, pareceu-me justo fazer esta singela homenagem ao Manuel Joaquim, publicando este postal do Adilan na data do seu aniversário (12JAN) - até porque do Manuel Joaquim não tenho nenhuma indicação de quando faz anos...
Ficaria assim lembrada a efeméride por interposta pessoa...

À vossa consideração.

Abraço.
Miguel




2. A Tabanca, associando-se à original ideia do nosso design Miguel Pessoa, vem junto do nosso camarada Manuel Joaquim, apresentar felicitações por mais este aniversário de Adilan, o seu menino guineense.

Estão ambos de parabéns e merecem o melhor da vida.
__________

Notas de CV:

Vd. postes de:

10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)
e
12 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)

Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7582: Parabéns a você (200): Bernardino Rodrigues Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846 e CCAÇ 16 (Guiné, 1971/73) (Tertúlia / Editores)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)


1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, enviou-nos, com data de 5 de Novembro de 2010, uma mensagem cuja primeira parte foi publicada ontem no poste P7261 e vinha acompanhada da seguinte introdução:


Camaradas,

Envio-vos um texto e fotos, sobre um menino balanta-mané, o JM meu "familiar" desde 1967, quando o trouxe da Guiné e que hoje ronda os 50 anos de idade (estou mesmo velhote!).

Tentei que o relato não fosse tão extenso mas não consegui. Aliás, o tema tem bem por onde se pegar e se desenvolver.

Mas este relato limita-se a dar uma ideia do porquê da vinda do menino para Portugal e suas peripécias, do ambiente familiar que encontrou, do seu regresso à Guiné em 1978, do encontro com seus pais e do seu regresso a Portugal, onde reside atualmente.

As fotos são minhas. Não sei se acham interessante a formatização do texto do Apêndice com selos da Guiné-Bissau. Fi-lo porque este texto é quase todo composto por excertos de correspondência por mim recebida, vinda do meu JM. [O texto segue as normas do acordo ortográfico em vigor].

2. ADILAN, nha minino.  Ou como se fica com um menino nos braços (2ª Parte)

APÊNDICE

Texto e imagens: © Manuel Joaquim (2010). Todos os direitos reservados.

Oito meses após a sua chegada à Guiné,  JM escreve aos padrinhos para os informar que tinha encontrado os seus pais. Seguem-se excertos de correspondência:
Bissau, 1/9/1978
(...) Agora tenho-lhes a dar uma excelente notícia que não irão acreditar! A descoberta da minha família, não acreditam? Então aí vão os nomes: pai, Adjula (...); mãe, Fati (...); irmã, Fulô (...) e eu, ADILAN (…).
Através do (...) de Bissorã, um dia eu e uns tipos do Partido resolvemos fazer umas buscas pela zona de (...), antes de lá chegarmos já lá tinham ido (...) interrogar as pessoas (...), acerca de um jovem que tinha sido levado pequenino para Portugal, não conhecia as suas famílias, (...) morava naquela região, enfim manga de coisas (...).
(...) uma pessoa da tabanca sobressaiu-se dizendo que tinha um filho muito pequenino (4 anos) que estava a guardar o milho com um outro miúdo qualquer e que os tugas (desculpem-me a expressão) tinham-no prendido e levado para Bissorã e mais tarde para Portugal. (...) lhe perguntou se o filho tinha qualquer sinal (...) ela respondeu:
- Sim, tem uma cicatriz no lado direito (na cara). Tem uma orelha furada no lado esquerdo. Um pouco atrapalhado a falar.
( ... ) estas respostas levaram-nos no dia 26/8/78 a ir certificar-nos. ( ... ) eu + 3 pessoas, incluindo um intérprete especial do balanta ( ... ). Chegámos a um lugar totalmente diferente daquele ( ... ) que eu tinha em mente, terreno plano ( ... ) arroz por todos os lados ( a minha cabeça começou em funcionamento como se estivesse a jogar xadrez com o padrinho e tivesse perdido a raínha, as torres e os bispos todos sem que o adversário sofresse nada e chegou o momento da pergunta, «Como será possível que estas pessoas passem tanta fome com tanto arroz semeado?» Veio logo o xeque-mate. «Não vês que esse arroz depois de cortado vai para Bissau e aí é consumido ( ... ) o que chega aqui é um tudo de nada que mal chega para a cova de um dente?» ( ... ) e calei-me, pois com o xeque- mate não há nada a fazer).
A tabanca estava quase vazia, só duas criancinhas mal sabiam o que era a vida é que estavam cá fora a brincar (o resto estava tudo na bolanha) mal tentamos aproximar-nos destas, sumiram-se logo ( ... ) Não havia nada a fazer senão esperar ( ... ).
( ... ) começam a chegar pessoas da bolanha (o meu coração aumentava cada vez mais enquanto o seu batimento era triplicado), esqueci-me de referir que as pessoas de ( ... ) se tinham refugiado no Senegal, a maioria delas, lá ao fundo uma velhinha ( ... ) vem calmamente andando com o seu cesto de encomendas à cabeça, chega junto de nós, pára e calmamente põe o cesto no chão e a primeira coisa em que ela põe o sentido é em mim, olha-me dos pés à cabeça, de trás e de frente enquanto eu me limitava a seguir os seus gestos até que chega um momento e o intérprete lhe pergunta em balanta:
- A senhora (mulher-grande) foi quem perdeu um filho?
- Fui.
- E como o perdeu, em que lugar, como era ele, em que altura foi?
Respondeu ( ... ) igual ao que está escrito atrás.
- Acredita que ele está vivo? ( ... )
A mulher grande baixou a cabeça chorando que nem uma perdida e respondeu não, um não de raiva, ele está morto e mesmo se ele estiver vivo nunca voltará aqui ( ... ) o pessoal da tabanca juntou-se todo à nossa roda, escutando com atenção o que se estava a passar, chorando também. No meio ( ... ) estava uma jovem, olhos castanhos, orelha furada do lado esquerdo, a mesma cicatriz e do mesmo lado, cor igual à minha ( ... ) de nome FULÔ ( ... ), e que a mulher-grande dizia ( ... ) era a minha única irmã, era autenticamente o meu retrato ( ... ).
Para acalmar os choros todos o intérprete disse que o tal rapaz era eu, euforia por parte da Fulô que se lança aos meus braços, beijando-me e abraçando-me com toda a sua força ( ... ) a mulher grande dançava, pulava, gritava, enfim foi uma tarde triste-alegre.
As pessoas juntaram-se todas à minha volta e levaram-me ( ... ). ( ... ) diziam que é o meu pai, que estava de cama (doente), este saltou da cama abraçou-me beijou-me até nunca mais parar. Queriam matar galinhas, porcos, ( ... ), enfim manga de coisas, falavam sempre comigo em balanta mas eu limitava-me a abanar a cabeça, eu disse-lhes que não podia ser, ( ... ). ( ... ) era muito tarde e a visita era curta e que ficaria para outro dia, comprenderam e guardaram tudo para Dezembro ( ... ) para eu não faltar em Dezembro.
Regressamos ( ... ), queriam que levasse um porco para Bissau mas era grande de mais ( ... ).

Quase um mês após este encontro, JM volta a falar dele e a relatar algumas cenas com mais pormenores, aflorando algo que o está a incomodar e que é o grau de emoção sentida, que sente muito abaixo do nível que tinha imaginado:
Bissau, 28/9/78
( ... ) Não tenho a certeza se a carta que lhes escrevi ( 1/9/78) irá aí parar ( ... ) mas vou-lhes relembrar ( ... ) passagens de interesse que nela iam.
Desde o primeiro dia que cheguei à Guiné-Bissau, perguntavam-me sempre pela minha família! a resposta era sempre estão mortos. Eles estão vivos e tu é que não os conheces (diziam-me).
( ... ) há uns dias atrás um ( ... ) de Bissorã ( ... ) descobriu uma família reduzida a três pessoas ( pai, mãe e filha ), faltando um filho que essa família dizia que tinha ido para Portugal levado por um soldado ( ... ) se ele estivesse vivo nunca mais voltaria ( ... ) por várias razões, condições melhores, com 4 anos já não se lembra nada da família ( ... ).
Então num fim de semana do mês passado fomos certificar-nos ( ... ) eu poderia pertencer a essa tal família ( ... ).( ... ) A mulher-grande da família foi interrogada em balanta por um intérprete ( ... )
- Qual o nome do seu filho que perdeu? R: - ADILAN ( ... )
- Em que ano o perdeu? R: – Em 1966.
- Idade que tinha quando o perdeu? R: – 4 anos.
- Que sinais tinha? R: – Um corte nas costas, quando lhe estava a cortar o cabelo caiu-me a faca, ( ... ) lado esquerdo orelha furada, olhos castanhos, um pouco gago ( ... ) sinal do lado direito marca dos meus filhos.
E baixou a cabeça chorando e dizendo: Ele nunca mais voltará... nunca mais voltará... um filho é uma fortuna que uma mãe nunca poderá perder mas eu perdi o meu... (...).
( ...) apresentado a essa família que sem perder um mínimo de tempo se lançou aos meus braços dizendo que eu era o seu filho . Será verdade pelas interrogações feitas e pelas respostas dadas, mas o meu coração não se inclina a aceitar por enquanto esta nova família, porque será? Esta é para vocês me darem a resposta o mais urgente possível. S.F.F. não se esqueçam.
Mas dentro desta família houve uma pessoa que me confundiu muito a cabeça, a tal filhinha de cor mulata, olhos castanhos, lábios finos, sinal do lado direito da cara, uma só orelha furada do lado esquerdo ( ... ) diziam que ela era realmente o meu retrato e devia sem dúvida ser a minha própria irmã, eu acredito que seja , não só pelas suas características serem idênticas às minhas mas também pela reacção quando me abraçou: ADILAN, ÉS TU PRÓPRIO O MEU IRMÃO! ADILAN, FALA! ( ... ). Eu não podia fazer nada senão limitar-me a fechar a boca porque não só o meu coração não se inclinava para o sim mas também residia e ainda reside a incerteza em mim.
Depois de um grande choro e lágrimas por todos os cantos veio ( ... ), canções de alegria, palavras de carinho, ( ... ) uma farra que não foi grande farra pelo meu coração não o querer e não sentir ainda aquele amor que devia sentir pela família ( ... ).

Fiquei preocupado com os problemas de índole afetiva que surgiram ao JM, ao encontrar seus pais e irmã, e não demorei a responder-lhe. Se bem me lembro, a minha resposta é um derramar de afetividade mas também leva como que um pedido de desculpas da minha parte, por me ver o causador de tais problemas. A contra-resposta aparece já um pouco fora de tempo (mais de três meses depois) e, surpresa, é muito agradável para mim, um alívio, um “docinho”.
Bissau, 6/2/79

( ... ) Na frase seguinte, o padrinho diz: “ se achas que eu teria feito melhor deixando-te pelo Oio, não me recrimines. Perdoa lá. Não foi com más intenções ( ... )”. Esta frase, apesar de ser optativa, deixou-me um pouco aborrecido, o que seria agora de mim se eu tivesse ficado no Oio? Estava agora vivo? Seria um Adilan vestido com calças e camisa? Seria um rapaz sentado numa secretária? ( ... ) a melhor coisa que fez, e agradeço-lhe por isso, foi levar-me como menino e trazer-me como homem, muito obrigado padrinho (as boas intenções nunca se recriminam). ( ... )

Mas o problema continua por resolver, mais de um ano depois:
Bissau, 1/5/80

( ... ) pois o problema trata-se da família. Família essa que dentro de mim não a sinto ainda (não sei porquê ) como verdadeira minha família e que neste momento me está trazendo várias complicações ( ... ) quer que eu siga todos os seus costumes, religião, que faça juntamente com eles os seus festejos (comprando vacas e porcos) e tradições ( fanado, chôro e demais coisas existentes nestas tradições ) e que finalmente case com a mulher que eles entenderem que devo casar, ( ... ) até a este momento não chegamos a um entendimento, o que pensarão vocês acerca deste assunto? (queria que me dessem uma opinião, se possível na próxima carta). ( ... )

O padrinho, eu, bem tenta entrar nestes problemas, dá os conselhos comuns e começa a vislumbrar o caso como difícil. Confia no tempo e aposta na desdramatização. Mas, perante o tipo de incompatibilidades surgidas, o que se prenuncia é o afastamento emocional da família pois a distância cultural é muito grande para haver hipóteses de aproximação funcional e afetiva entre estes dois mundos.
E o tempo foi passando, assim.
Bissau, 13/1/81
( ... ) Quanto à minha família tudo continua como dantes, as dúvidas persistem, até quando? Eu propriamente não sei explicar-vos porquê mas não consigo, mesmo que queira, considerá-los como um verdadeiro filho considera os seus pais e os estima verdadeiramente, eu não consigo adaptar-me e como farei, padrinho?

Bissau,17/3/81

( ... ) O amor de um filho pelos pais não existe ainda em mim ( na Guiné ). ( ... ) para mim esse amor existe e existirá sempre em Lisboa. Não quer isto dizer que eu nego os meus parentes, nada disso ( ... ). ( ... )

De vez em quando aparecem as saudades de Portugal (um contra-peso ?).
Bissau, 19/10/81
( ... ) Quando falam no nome de Casal Novo sinto uma coisa dentro do meu coração, recordar esta bela aldeia, as suas gentes, a amabilidade desta pequena povoação, enfim um paraíso para não esquecer nunca mais - ali nasceu e cresceu a infância de um pretinho de nome ( ... ) - obrigado CASAL NOVO, obrigado madrinha PIEDADE, padrinho ZÉ BISPO, ti JQUINA e ti MANEL, ti SANTIEIRA e ti RAINHO, mas não perdi a esperança de um dia poder voltar a essa belíssima aldeia... não perdi a esperança ( ... ).
Uma das últimas vezes em que se refere ao tema, que o tempo parece estar a resolver, aborda mais uma vez a aldeia da sua infância:

Bissau, 25/1/82
( ... ) A família continua a ser um caso cheio de casos ( ... ), continuo com aquele pensar que sempre tive desde a infância, que não tenho família e que ela morreu na guerra ( ... ) e, como não poderia deixar de ser, continuo a pensar cada vez mais em vocês, e no Casal Novo, ninguém me tira ou tirará esta ideia ( ... ).( ... )
E o tempo, em vez de consolidar os vínculos com a família natural e com a tabanca natal, vai os desvanecendo e, em contrapartida, vai fortalecendo a ligação afetiva com a família portuguesa e com a aldeia da sua meninice. Nota-se alguma emoção no relembrar o Casal Novo e seus habitantes.

Bissau, 29 de Setembro de 1983
( ... ) Essas belíssimas férias como foram passadas? Foram até ao Casal Novo? Falando daquela terra, as saudades são imensas, lembro-me ( ... ) a ajudar a madrinha no corte do milho, na apanha da azeitona por aqueles cerrados abaixo, encostas e ladeiras, aquele amor que os vizinhos tinham por mim, enfim lembro-me sempre do Casal Novo e da sua gente, daqui um abraço para eles todos, dêem-lho por minha conta e digam-lhes que ainda estou vivo e não perdi a esperança de ir visitá-los, era este ano mas gorou-se, penso que será para o ano. ( ... )
Não foi “para o ano”, como ele pensava. O ansiado encontro só se concretizou sete anos depois.
FIM
Sintra, Outubro de 2010
Um abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419 do BCAÇ 1857
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados.
Fotos: © Manuel Joaquim (2010). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

10 de Novembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)


quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)


Sintra > Azenhas do Mar > Setembro de 1977 >  O Adilan, com as suas queridas “maninhas”, dez anos depois de vir da Guiné para Portugal... Fará 50 anos no dia 12 de Janeiro de 2011. E a nossa Tabanca Grande, nesse dia,  quer-lhe cantar os "Parabéns a Você!"...


1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, enviou-nos, com data de 5 de Novembro de 2010, a seguinte mensagem:Camaradas,

Envio-vos um texto e fotos, sobre um menino balanta-mané, o JM, meu "familiar" desde 1967, quando o trouxe da Guiné e que hoje ronda os 50 anos de idade (estou mesmo velhote!).
Tentei que o relato não fosse tão extenso mas não consegui. Aliás, o tema tem bem por onde se pegar e se desenvolver.
Mas este relato limita-se a dar uma ideia do porquê da vinda do menino para Portugal e suas peripécias, do ambiente familiar que encontrou, do seu regresso à Guiné em 1978, do encontro com seus pais e do seu regresso a Portugal, onde reside atualmente.
As fotos são minhas. Não sei se acham interessante a formatização do texto do Apêndice com selos da Guiné-Bissau. Fi-lo porque este texto é quase todo composto por excertos de correspondência por mim recebida, vinda do meu JM. [ O texto que se publica segue o novo acordo ortográfico. EMR]
ADILAN, nha minino... Ou como se fica com um menino nos braços (1ª Parte)

Texto e fotos: © Manuel Joaquim (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Introdução
Durante a chamada Guerra do Ultramar (1961/74) diversas crianças vieram para Portugal, trazidas por militares em fim de comissão. Eu fui um dos que o fez e sou dos que acham que algumas destas ações são parte da história da guerra. De certeza que a minha o é. Vejamos:
Guiné, Janeiro de 1966: Este meu menino foi capturado com cerca de quatro anos, passando a conviver, no ambiente militar de Bissorã, com a CCaç 1419/ Bcaç 1857. E acabou por entrar na minha casa em 1967. Ainda cá mora.
Para contar o que se passou com nha minino (o meu menino) fui, por ele, posto à vontade. Não desvendo a sua naturalidade e, do seu nome, ficam as iniciais JMSC. É óbvio que poderá ser reconhecido por quem de mais perto lidou com ele, em Portugal e na Guiné, mas não quero facilitar o acesso à sua identidade.
Irei centrar-me em períodos ou momentos da sua vida, para mim importantes. Não irei inventar e empolar mas recordar acontecimentos e emoções. Confio na minha memória que, neste caso, tem sido muitas vezes ativada, de há 43 anos para cá.


Nha minino > Maio/1967 > No dia seguinte à sua chegada a Portugal

Uma explicação: Adilan é o nome original (balanta-mané) de JMSC. Quando tratei do registo da criança nos serviços competentes de Bissau já todos tinham esquecido o seu nome, ela incluída. Só mais tarde, uns onze anos depois, se voltou a saber como se chamava em pequenino. Por fim, e vale o que vale: vou falar de alguém muito querido que me trata por padrinho e que é irmão das minhas filhas e tio dos meus netos (tratamento familiar mútuo).
1. A causa
Bissorã, 11/ 01/ 1966. Ordem operacional para a CCaç 1419: "limpeza” da tabanca de C., trazendo a sua população para Bissorã. Ao meu grupo de combate cabe-lhe ficar em casa, aguardando o dia seguinte com a missão de organizar a recolha de toda a gente na ponte (destruída) sobre o rio Blassar, limite transitável da estrada Bissorã/Barro.
Ao início da manhã estamos no local. Segurança montada, espera-se. Até que se percebe no horizonte um movimento ondulante, tipo cobra gigante de cor indefinida, que vai ganhando forma à medida que se aproxima: sobressaem mulheres e crianças, animais diversos, alguns deles trazidos à corda, esteiras, utensílios domésticos, tudo misturado com soldados e milícias. Eles aí vêm mas não se ouve qualquer ruído.
Passam-se uns minutos e já se ouve a cobra a rastejar pelo caminho de aproximação. O barulho aumenta progressivamente e, ao dar-se o encontro, o obstáculo gerado pela falta da ponte faz a cobra dissolver-se numa mancha ruidosa, alargada e desordenada, a dirigir-se para as viaturas estacionadas no outro lado do rio (seco). Na confusão da subida para as viaturas, a algazarra de soldados e milícias contrasta com a indiferença e a resignação (ou medo disfarçado?) dos deslocados. Lá se vai arrumando tudo, com alguma dificuldade, e a coluna põe-se em marcha.
Chegados a Bissorã, ala que se faz tarde! Esvaziam-se as viaturas, a tropa vai para o aquartelamento e o povo... fica no chão, embrulhado na tralha trazida e agarrado aos animais, sem controlo aparente. Nem a milícia, que por ali ronda, parece interessada naquela gente. Talvez esteja a controlar, deve estar a cumprir missão específica. Passeio mais uma vez o olhar pelo aglomerado humano e, de repente, dou comigo a pensar: “Não há homens aqui? Só vejo um!"... No meio das mulheres e crianças está um homem, já meio velhote, com ar de perdido ou de inseguro, todo encolhido, calado. “... não conseguiram trazer mais nenhum homem da tabanca? Que estranho!... que se lixe, quero lá saber! Vamos lá mas é arrumar isto!” (as viaturas).
2. A surpresa
Assunto arrumado, dirijo-me a casa. Sim, casa. Os furriéis e 2ºs sargentos da CCaç 1419 estão aboletados numa vivenda, situada fora do aquartelamento e em ótimo estado de conservação, onde também funciona a enfermaria e posto de socorros da Companhia, no que terá sido a área comercial do edifício. Ao entrar pelo pátio das traseiras vejo um grupo todo excitado, como que formado em meia-lua, virado para uma parede. – O que é isto? – Eh pá, o Sarrico trouxe este puto do mato!
Aproximo-me e vejo um pretinho franzino, três/quatro anitos, junto à parede. Reparo no 2º sarg Sarrico, veterano da guerra em Angola, à volta do menino a tentar fazê-lo falar, sem resultado. Chama um miúdo balanta que por ali anda, para servir de intérprete. Nada. Do menino nem um pio mas vê-se que está a tremer, com os olhos arregalados e inquietos. A sua cor é indefinida, talvez acinzentada, a pele está cheia de manchas esbranquiçadas.
Nisto aparece o furriel enfermeiro, repara no aspeto da criança e faz logo um diagnóstico rápido, sentenciando:
– Olhem, ponham-no debaixo da torneira! Ele precisa de uma boa barrela!
– Ponham-no “preto!” – grita alguém da meia-lua.
Há gargalhadas dispersas. Junta-se ao grupo o 1º sarg Lageira, olha, informa-se, sussurra um sincopado “coi... ta… di… nho!” e interpela o enfermeiro:
– Oh Santos, não tens nada para estas coisas da pele? Olha como o puto está!
O Santos deve ter dito que sim e o Sarrico põe a mão na torneira que está na parede da casa, a um metro do solo e por cima da cabeça do miúdo, preparando-se para o lavar. Ao abri-la, o pretinho começa a chorar, aos berros, quando vê a água a jorrar sobre si. E, sempre a chorar, é lavado da cabeça aos pés.
O miúdo está a acalmar, parece. O Sarrico tenta de novo usar o intérprete, com expressões do tipo «não tenhas medo», «ninguém te faz mal», e pergunta-lhe o nome. E não é que o garoto responde? Com uma voz encolhida, deve ter dito Adilan. Sarrico : “Dila?” Intérprete: “A.. .dí… lan!” Sarrico: “pois, Dila”. E quanto ao nome, não se passa daqui. Ficou a dúvida.
(Obs.: Hoje consigo lembrar esta cena, com o nome Adilan incluído, por razões que aparecerão adiante no texto. Mas, na altura, toda a gente esqueceu o seu nome original, inclusive ele próprio. Não admira, é o resultado de ter passado a ser reconhecido por 'Sarrico' e assim ficar a ser chamado.)

Voltemos ao banho de torneira. Está o garoto, lavado e mais calmo, a começar a responder ao intérprete quando aparece o Santos, todo pressuroso, com um grande frasco na mão, cheio do tal produto que faz bem à pele:
– Vamos lá a isto!





Bissorã > Janeiro/1966 > Eu, na varanda da habitação dos sargentos da CCaç 1419
O enfermeiro dirige-se ao miúdo e passa-lhe a tintura pelo corpo todo. A cena torna-se patética. Com o corpo a arder, o garoto grita que nem um desalmado tentando soltar-se; alguns dão gargalhadas, outros têm um sorriso amarelo, parecendo incomodados. Eis senão quando o menino solta-se mesmo e, aos saltos que nem um cabrito, investe contra a meia-lua humana, aos berros, assustado com o que está a sentir. Parece pedir socorro. Tem razão o 1º Lageira, com o "coitadinho" de há pouco. Mas o menino não consegue fugir e, qual passarinho entre as mãos do seu captor, vai acalmando a um ritmo lento parecendo estar a tomar conta, pela primeira vez, do ambiente que o rodeia.
As conversas cruzam-se. Discute-se o acontecimento. Até que se ouve o sarg Sarrico dizer que vai cuidar da criança. Não digo nada mas o caso incomoda-me: o menino foi retirado à força da sua comunidade e, ainda por cima, numa ação de reordenamento populacional. Por onde andarão seus pais ou outros familiares?
Com a decisão do Sarrico a criança fica a viver na nossa casa. Por incrível que pareça, passados poucos dias já parece outro, a sua pele brilha num castanho claro, ele e o Sarrico parecem já ser amigos, fazem lembrar o filme “O Garoto de Charlot“. Mas esta situação só durou pouco mais de um mês.
(Obs.: Hoje sei que seus pais fugiram, deixando o filho para trás porque estava afastado deles, em companhia de outro garoto mais velho, a “trabalhar”, assustando a passarada que está sempre cheia de fome ao alvorecer. Foi apanhado de surpresa por alguém que não mais o largou. O seu companheiro conseguiu fugir.)
3. O acidente
Bissorã, 20/ 02/ 1966. Meio da tarde. Uma mulher da tabanca, com problemas no parto, precisa de ser evacuada para Bissau. Vem um helicóptero. O piloto diz ter visto um grupo suspeito, na estrada Bissorã/Bula, que lhe pareceu estar em reunião. Tal informação gera uma ordem de saída para se verificar e atuar conforme. Foi dada ao grupo de combate do sarg Sarrico.
Está um calor sufocante. O Sarrico tem a mania de andar no mato com uma granada de fumos. Não sabemos porquê. Talvez tenha medo de se perder; ele adora fotografar e é frequente vê-lo de máquina fotográfica nas mãos durante as operações. Hoje, para cúmulo, tem a granada num bolso das calças, sem arejamento. Distração ou inconsciência?
Pois é. Ao aguardar a saída, ao sol direto, a granada rebenta-lhe no bolso : PÔFF!... Queimaduras muito graves nos dedos das mãos, no baixo ventre e noutros locais alcançados pelos espirros do material químico. Aparece-nos em casa, pelo seu próprio pé a caminho da enfermaria, e uma espécie de fiozinhos de vapor branco evolam-se saindo dos farrapos do camuflado, das zonas do corpo atingidas... até da G3! Socorro possível e imediato, evacuação para Bissau. Segue-se Lisboa (HMP) e... salvou-se! Mas a morte andava por perto, não esperou muito tempo para o levar.

Final da tarde. Naquela falsa calma dorida e angustiante, alguém pergunta:
– Eh pá, e o puto? Que é que se faz com ele?.

Bem, fala-se por falar, trocam-se olhares, encolhem-se ombros e ninguém assume nada. O puto está sem o seu protetor e é precisa uma solução, de e para o imediato. Que não demora muito. Alguns soldados levam-no para a caserna, batizam-no de Sarrico, e lá ficam com ele.
Os meses vão passando, a convivência corre bem mas o miúdo é livre de frequentar a rua e a tabanca. Parece que “é de todos e não é de ninguém”. Não é mascote. Vejo-o, uma vez por outra, nos pequenos bandos de crianças que, de lata na mão, esperam pelas sobras do rancho. Não precisa de comida, quer é brincar e participar nas movimentações da miudagem. Mais dia menos dia, penso, será recuperado totalmente por alguém da família. Chego a estranhar isto não ter ainda acontecido.
4. A “emboscada”
Bissorã, finais de Outubro/66. Oito meses são passados desde o acidente que vitimou o 2º sarg  Sarrico. É alterada a disposição no terreno das forças militares do BCaç 1857 e, assim, a CCaç 1419 sai de Bissorã e vai para Mansabá. Que bela prenda, para final de comissão!
Nas vésperas da mudança, a sociedade civil local organiza um convívio para agradecer o trabalho da Companhia durante os 12 meses que permaneceu em Bissorã. Foram convidados os oficiais, os sargentos e algumas praças. Bom ambiente, muitas bebidas, bons petiscos e, com coisas destas, pouco tempo é preciso para se esquecer a razão das despedidas. Às tantas, alguém me convoca:
– Meu furriel, há para ali pessoal que quer falar consigo. Pedem p´ra ir lá.
Estranhando o despropósito do momento e da hora, bem noturna , lá vou até à porta.
– Oh nosso furriel, um favor, veja se convence o nosso capitão a deixar levar o Sarrico c´a gente p´ra Mansabá! É que ele não autoriza, já fizemos tudo e... nada! Veja lá se o convence!
Tento dizer-lhes que o capitão lá terá as suas razões... assunto complicado... não deve ser possível levar o miúdo... Mas, perante tanta insistência, não resisti:
– Está bem, estejam descansados que eu vou tentar! Esperem aí!
Pego num uísque e por ali fico bebericando, conversando e aguardando a oportunidade de cumprir o prometido. Falo com alguns camaradas sobre o assunto mas ninguém está ali para pensar nisso! O ambiente está animado, barulhento e... ,para mim, há uma resposta a dar ao pessoal que espera lá fora. Vamos lá!
Qual mensageiro da plebe castrense, já envolto em vapores etílicos, um bocado leve no andar e de fala um pouco entaramelada, lá vou eu ao encontro do capitão. De chofre, sem rodeios, em voz bem alta:
– Meu capitão, por que não deixa ir o Sarrico c´os soldados p´ra Mansabá? Estão pr´ali quase a...
Nem me deixa acabar. Com a voz ainda mais alta que a minha, atira logo:
– Oh meu caro Manuel Joaquim, responsabiliza-se por ele?
Pimba!!!... que grande martelada na tola! Inesperadamente, em décimas de segundo, os meus neurónios excitados pelo álcool (anestesiados?) devem ter decidido eu dizer, de imediato:
– Responsabilizo, pois!
O capitão, talvez surpreendido com tal resposta, engasga, pigarreia e... :
– Então está bem! Se assim é, o rapaz fica ao seu encargo a partir de agora!
– Com certeza, meu capitão! Vou já avisar o pessoal!
E não houve mais conversa! Meia volta e lá vou eu para a porta da rua ter com a malta, um pouco zonzo com o que me está a acontecer:
– Podem levar o Sarrico! A partir de agora está por vossa conta... e minha!!!
– Eh!.. bestial !!! Obrigado!!!
Caem-me em cima festejando e voltam para a caserna, rua fora, festejando... eu volto à sala para festejar, digo a alguém “ já me f... ! ” e agarro mais um uísque para me ajudar a digerir o assunto.

Lembro-me bem da saída de Bissorã, bem cedo. Pouca gente na rua, uns acenos tímidos, quase indiferença. É exceção um pequeno núcleo a protestar quando passa por ele a viatura onde segue o Sarrico. Fico surpreendido pois não imaginava tal oposição. Afinal, o miúdo tem família ali em Bissorã! E, ainda por cima, a reinvindicá-lo!
Quem diria, estava sinalizado pela família e ninguém me disse nada?! ... “ merda p`ra isto!”...
Sinto um certo mal-estar. O ruído, ou melhor, a razão daquele protesto incomoda-me: “Olha no que eu me meti! ... F...-se! ”
Lá vou matutando, inseguro e aborrecido, até Mansoa. Aqui, e a caminho de Mansabá, começo a medir verdadeiramente o problema que arranjei e que tenho de resolver!...
Sem saber como, e de um momento para o outro, fico com um menino nos braços, literalmente!

Mansabá > 1967 > Contraluz
5. A decisão
Mansabá, Novembro / 1967. O Sarrico fica a viver com os soldados, a tempo inteiro. Não quero interferir, pois eles gostam dele e tratam-no muito bem. E há também um pequeno grupo responsável pelo seu bem-estar. Do meu lado sucedem-se algumas conversas com o capitão, à procura de uma possível saída para resolver o meu problema.
Passa-se o tempo e nada, nem sim nem sopas. Depois de tudo o que aconteceu, só vejo uma solução para resolver o caso, ética e moralmente aceitável para mim. É levar o garoto para Portugal.
Decisão tomada, vou informar o capitão e, para grande surpresa minha, ouvi-lhe um “não esperava outra coisa”! A seguir, dirijo-me à caserna e dou a notícia aos cuidadores:
– Está resolvido, vou levar o Sarrico comigo para a metrópole! Tratem-no bem, digam-lhe que irei tomar conta dele e que vai gostar muito de estar comigo. Quero que me veja como seu protetor, como a sua segurança quando vocês o deixarem.
Com esta minha decisão há, de novo, festa na caserna. E eu sinto-me confortado, pacificado.
Os dias passam. Não sei o que vai na cabeça do, agora, nha minino. É um menino muito bem tratado por todos. Para já quero que me veja como uma espécie de figura mágica que o pode proteger. Vê-me de longe, não me aproximo, de vez em quando calha trocarmos olhares, deve sentir o carinho do meu olhar, talvez.

Mansabá > 1967 > Vista, de dentro do quartel, de parte da tabanca (W). Em 1º plano nota- se a cobertura de um abrigo

Mansabá, Abril de 1967. Passaram-se cinco meses. É preciso regularizar a situação civil do Sarrico e preparar a sua viagem para Lisboa, prevista para o fim do mês. Vou a Bissau: (i) registá-lo com um nome cujas iniciais são JMSC (cada uma delas corresponde também à inicial de outros nomes: o meu, de meu pai, da sua tabanca natal, de quem o capturou); (ii) autenticar um Termo de Responsabilidade sobre a criança; (iii) obter autorização da PIDE para a viagem; (iiii) comprar a respetiva passagem marítima. Tudo resolvido, regresso a Mansabá. «O Sarrico vai c´a gente!», grita-se na caserna.

Mansabá > 1967 > Regresso das tarefas agrícolas, ao fim da tarde

Bissau, finais de Abril /1967. Adeus Mansabá, olá Bissau! Matam-se saudades das ostras e doutros petiscos (nos três primeiros meses de comissão a CCaç 1419 esteve colocada em Bissau). O dia do embarque aproxima-se. Vai-se à procura de roupa para o menino que fica todo boneco, uma beleza. O pessoal rejubila. E é nesta altura, nas compras, que tenho o que se pode chamar um verdadeiro primeiro contacto físico, afetivo, com o balantinha-mané mas durante pouco tempo, o tempo das compras. Só lhe volto a tocar em Abrantes.

6. Portugal
Lisboa, 9 de Maio de 1967. Cais da Rocha: o UIGE despeja a carga, a alegria anda estampada nos rostos dos militares, de seus familiares e amigos.
Menos efusivo do que antes imaginava, desço as escadas do navio e vou ao encontro da namorada. Um pouco depois nha minino passa junto de nós, todo apinocado e acompanhado por alguns soldados. A minha futura sogra exclama “Olha ali um pretinho tão giro!”.
Digo com alguma indiferença “irão vê-lo muitas vezes” e vejo que não me percebem. É que eu não disse nada a ninguém! A ninguém mesmo!
Segue-se a viagem de comboio para o RI 2, em Abrantes. Só aqui, na hora das despedidas, acontece a entrega do menino. Lágrimas e abraços a selar o momento. Assiste um amigo de Pombal que ali está de carro para nos recolher, a mim e a outro militar lá da terra. A surpresa é grande quando percebe que há mais um passageiro, e que passageiro!
A caminho de Pombal, a primeira paragem é na minha casa, numa aldeia chamada Casal Novo. Minha mãe está sozinha: meu pai está em França, meu irmão mais novo também e o outro irmão está em Moçambique, já recuperado de ferimentos em combate, a cumprir os meses finais de comissão na cidade da Beira. (Como a mãe deve ter sofrido com dois filhos na guerra, em simultâneo durante mais de um ano, e um outro fugido em França!)
Alegria a rodos, vamos todos casa adentro. Saltam um chouriço e uma garrafa de vinho, o menino é motivo de conversa mas não diz uma palavra. Está sentado numa cadeira, hirto, afastado da mesa, como que olhando para o vazio. Vêm as despedidas, sai-se para a rua mas ele ficou onde estava. Minha mãe, que ficou à porta, nota a falta da criança e exclama: “Então não levam o menino?!!!”.
Ficam como que assarapantados com a pergunta mas, de imediato, lhes digo: “Não lhe disse nada!” e para ela: “O menino fica comigo!”. Fica de boca aberta, não quer acreditar, e há mais uns minutos de conversa motivada pelas circunstâncias.
Ao reentrar, verifico que ele está sentado no mesmo sítio. Olha-me calmamente, agora sinto que me olha mesmo! Espantam-me a calma e a confiança que aparenta. Belo trabalho dos soldados, só pode ser. Tentamos conversar. O seu português é tosco mas lá nos entendemos.
Vamos comer mais alguma coisa enquanto minha mãe vai recuperando da surpresa e do espanto. Depois, o sono vem depressa ao seu encontro e já não acordou antes de ser levado para a cama. Minha mãe quer perceber o que aconteceu para ter, assim, um menino em casa. E que menino! A conversa prolonga-se.
Acordo, bem tarde, no dia seguinte. Estavam os dois, no quintal, a tratar das galinhas e doutra bicharada. “Maravilha!, sucedeu química entre eles!” – penso. E diz a minha mãe:
– Queres saber? Logo de manhãzinha fui chamar as vizinhas: “querem ver a prenda que o meu Manel me trouxe da Guiné?” Olha, vieram a correr e abri-lhes a porta do quarto, só se via uma bola preta, assim a cara, com duas coisas mais claras, assim os olhos, e elas não sabiam o que era! Abri um pouco as cortinas da janela para verem melhor e nem imaginas como ficaram! Ele estava acordado, muito quietinho de olhos arregalados, só com a cabeça fora dos lençóis!
Bela cena! Começo a sentir-me bem, verdadeiramente.

Pombal > Casal Novo > Maio/1967 > Os primeiros passos de corrida para o domínio do espaço da aldeia
7. A integração
Situada perto de Pombal, Casal Novo é aldeia pequena mas a notícia da chegada de um pretito da Guiné espalha-se facilmente para lá da aldeia. Será conveniente fazer algum tipo de apresentação social e, para o efeito, nada melhor que aproveitar a missa dominical.
Assim, a 14 de Maio e à saída da missa, lá estou no largo da igreja paroquial de Santiago de Litém com o meu pequenino JM. A apresentação é um sucesso, para mim e para ele. Muito seguro de si, pose empertigada, é alvo de grande curiosidade.
Aproveito a ocasião e vou apresentá-lo ao pároco, que fica encantado. Interessa-me motivá-lo para me ajudar na integração social da criança. Vem à baila a educação religiosa e, logo ali, fica decidido que o menino será batizado.
Resolvo comunicar ao padre a minha intenção de realizar, na igreja local, o meu casamento. Aponto para finais de Agosto. E surge a ideia, que até é do padre: por que não realizar o casamento e o batizado na mesma altura? Acho interessante, ótimo mesmo, mas preciso do acordo da noiva (que veio a concordar).
Para criar vínculos familiares combinou-se que meu pai seria o padrinho de batismo e a noiva seria a madrinha. E em 20 de Agosto de 1967, a seguir ao meu casamento, realiza-se o batizado do menino JMSC. E assim ficamos todos seus padrinhos, diretamente ou por afinidade.



Pombal > Santiago de Litém > Agosto/1967 > Um casamento e um batizado, três meses após a chegada da Guiné

Após o casamento vou morar para Rio de Mouro (Sintra) e deixo o menino com meus pais. Já está decidido, ficará com minha mãe (meu pai trabalha em França) e em Outubro irá frequentar a escola da aldeia.
É a melhor solução pois, sendo eu professor titular de um lugar de escola perto da Figueira da Foz (não consegui transferência atempada para a área de Lisboa, onde a esposa trabalha), será difícil tomar conta do miúdo.
Assim a maior parte dos nossos fins-de-semana, durante o ano letivo, irá passar-se na minha casa paterna. E, para ajudar, nota-se uma enorme empatia entre ele e a agora “madrinha”, a minha mãe.
Na escola a integração é rápida, torna-se um dos melhores alunos, desde a primeira classe. Assim, no ano seguinte, apesar de eu ficar colocado na Amadora, opta-se pela sua não mudança de escola.
Na aldeia é muito querido por toda a gente e, nos seus tempos livres, é vê-lo a participar em pequenas tarefas rurais, as mais diversas, tanto nas da sua casa como nas dos vizinhos. Esta situação dura quase quatro anos e termina pelo Natal/1970, quando meus pais resolvem viver juntos em Paris.

Agualva-Cacém, 1971. Em Janeiro, o JM vem viver comigo. O afastamento da aldeia não esfria as relações com seus habitantes pois grande parte das suas férias escolares futuras será lá que a passa, participando ativamente na vida social local.
A chegada dele coincide com o aumento da família. A uma menina com dois anos e meio está quase a juntar-se uma outra. Nasce um mês depois. Ele é o seu “irmão mais velho” , elas assim o vêem e ele assim o sente. Elas são as suas “manas”.
E temos agora um rapaz prestes a entrar na adolescência, num ambiente totalmente diferente, tanto familiar como social.
Segue o percurso escolar sem sobressaltos de qualquer espécie até ao 25 de Abril. Mais cedo do que eu pensava, e na sequência da Revolução de Abril que o apanha com 13 anos, ele começa a prestar muita atenção ao que se passa na Guiné.
É verdade que sempre tentei criar nele laços afetivos com o seu país natal, ajudando-o a criar e a manter um sentimento de pertença às suas gentes e a um espaço que é seu por nascimento, mas não lhe tinha notado nenhum interesse especial no assunto.


Agualva > Cacém > No carnaval de 1973 > Com a madrinha, passeando as “manas”

8. O regresso
A independência da Guiné-Bissau é para ele uma coisa normal, estava preparado para tal. Sente-se bem com o facto. Há muito tempo que lhe venho dizendo para não menosprezar os estudos pois poderiam ser importantes para vir a ajudar, um dia, o seu país, assim mesmo, o seu país.
Os anos vão passando e a Guiné-Bissau torna-se um chamariz irresistível. Devo ter contribuído para isso, não medindo as palavras para elogiar seu povo e suas belezas naturais, o aroma e o sabor dos frutos, o paladar de um bom chabéu; para recordar o faiscar furioso dos relâmpagos com o ribombar ensurdecedor dos trovões, os cheiros fortes, mesmo excessivos, da floresta húmida e os suaves aromas vindos da savana seca no cacimbo da madrugada; para referir a beleza de um batuque, os sorrisos das crianças e a dignidade dos velhos, a cultura da sua gente. Talvez eu tenha pecado por não o alertar para as coisas más e desagradáveis que também existiam, e que seriam muitas.
Também nunca lhe menti sobre seus pais. Podia ter dito que tinham morrido mas digo-lhe que tanto podem estar mortos como terem fugido no momento em que ele foi apanhado. A verdade é que ele acredita mais na morte deles do que eu. Tento deixar-lhe entreaberta a porta da esperança, sempre.
Ao acabar o nono ano, em 1977, o rapaz pensa em voltar à Guiné. Começo a procurar maneira de lhe fazer a vontade. E, em Setembro, consegue-se lugar num avião militar português.
Temos então o JM a despedir-se dos amigos, dos familiares e do pessoal da(s) aldeia(s) com quem conviveu nos primeiros anos portugueses e onde passava férias escolares nos últimos cinco anos. Prendas arrumadas, enxoval emalado, despedidas lacrimosas e , na data marcada, ida para o aeroporto. Na manhã seguinte, estava-me a bater à porta!
– Então? !!! - pergunto, muito admirado.
– Pifou tudo, padrinho! Ao preparar o embarque, e ao verem a minha idade, perguntaram-me quem é que estava em Bissau à minha espera. Como não sei o nome de ninguém, disse-lhes que era o PAIGC e eles responderam-me que PAIGC é muita gente, não serve.
Fico espantado. Estava tudo tratado, o cônsul da Guiné-Bissau até tinha ajudado a conseguir esta boleia e... afinal, cá temos o rapaz de novo em casa! Ele pode estar frustrado mas para a família cá de casa não há problema. As suas “maninhas” têm seis e nove anos, gostam muito dele e ficam todas contentes.


Sintra > Azenhas do Mar > Setembro/1977 > Na véspera da partida (falhada) para a Guiné, num passeio de despedida com as suas queridas “maninhas”

Retoma-se o processo, tentando não haver falhas. O Consulado guineense assume a orientação e eu apresento-lhes uma espécie de curriculum vitae do JM, com um relato das circunstâncias que me tinham levado a trazê-lo para Portugal. Não demorou a sua aprovação.
Agora só falta comprar a passagem e querem que seja eu a fazê-lo. Perante a minha recusa, o governo de Bissau paga-lhe a viagem na TAP e lá vai ele a caminho da Guiné, agora sim, recomendado a uma figura destacada do PAIGC. Estamos em Janeiro/1978, fez há pouco 17 anos e tem quase 11 de vida em Portugal.
Muito bem recebido em Bissau, a Organização do PAIGC toma conta dele, garante-lhe residência e alimentação até ter emprego. Retoma os estudos. E começa uma nova etapa da sua vida, sozinho, às vezes inseguro mas maravilhado com o novo mundo que lhe aparece, cheio de esperança e entusiasmo.
9. Os anos de Guiné
Razões várias me levam a não fazer grandes referências ao percurso do JM na Guiné-Bissau, quer por princípio quer por respeito pela sua privacidade, não só a pessoal mas também a cívica.
Continua a estudar, integra-se na vida política como militante da JAAC (Juventude Africana Amílcar Cabral), trabalha na administração pública. Sozinho, sem família nem “padrinhos”, vai marcando o seu lugar.
(Obs.: O regresso do JM à Guiné natal vai criar-lhe um natural desejo de saber da situação dos seus pais. Estariam vivos? Como irá ele reagir, que sentimentos vai ter de enfrentar? Que tipo de emoções vai sentir? É sobre tudo isto que, em Apêndice, ele vai ”falar” através da correspondência que me dirigiu.)

A certa altura é escolhido para frequentar o Instituto Superior Karl Marx, de Berlim, na então República Democrática Alemã, na área de formação administrativa e política ou coisa parecida. E assim, alguns anos depois, cá temos o rapaz outra vez na Europa mas, infelizmente, gora-se a espectativa de uma passagem por Portugal.

Alemanha ( RDA ) > 1986 > Convivendo

Acabado o curso, regressa a Bissau.
A Guiné que ele tinha deixado estava a começar a resvalar para o que, na altura, ninguém imaginaria. Mas os sinais já lá estavam. A propósito diz-nos, em Agosto de 1986:

Como é do vosso conhecimento as coisas por cá não vão lá muito “católicas”. (...) os vencimentos mal chegam para um indivíduo comer - a inflação é galopante e, quando assim é, o pessoal (...) e reclama, outros lembram-se dos bons velhos tempos do colonialismo em que havia de tudo (...), outros ainda só pensam em emigrar (...) situação não muito alarmante mas que precisa duma certa atenção por parte das entidades responsáveis (...).

A sua atividade laboral desenvolve-se na área política, tendo nos anos seguintes trabalhado em diversos gabinetes ministeriais.
Entretanto, surge-lhe a oportunidade, que não perdeu, de vir passar seis meses em Portugal. Ótimo para matar saudades, cada vez maiores, da sua família portuguesa. E ei-lo de volta a Lisboa, a Agualva-Cacém e ao seu Casal Novo. Estamos em 1990, treze anos depois do seu regresso à Guiné, e temos o nosso JM de novo em Portugal e nos ambientes da sua infância e adolescência.
10. A reviravolta
A sua visita é uma grande alegria, para ele e para todos os seus familiares portugueses. Chega radiante e anda cada vez mais radiante. Aproveita para renovar o seu Bilhete de Identidade português. Não quer regressar sem este documento pois a vida social e política na Guiné começa a dar sinais de instabilidade. Tem alguns pressentimentos desagradáveis, está bem colocado para se dar conta disso. Infelizmente virão a concretizar-se e a um nível difícil de imaginar, naquela altura. Apesar de tudo, JM faz planos para desenvolver atividade económica em Bissau. Mas o destino baralha-lhe os planos. Um problema surge na Conservatória, não lhe aceitam o processo de renovação do B.I.
É verdade, tudo tinha mudado para casos como o dele. O que tem de fazer, agora, é pedir a recuperação da nacionalidade portuguesa. Tem direito a esta se tiver residido em Portugal, em permanência, num determinado período imediatamente anterior a 25 de Abril de 1974 (cinco anos?).
Ora bem, não há problema nenhum, é fácil provar a sua residência pois tinha frequentado a escola pública durante todo aquele período, há registos oficiais disponíveis e credíveis. Pois é… é fácil, mas a entrega do B.I. só acontece passados dois anos. Dois anos!!! Por isso não voltou a Bissau na data prevista, tendo por cá ficado à espera do B.I.
Entretanto, a instabilidade política e a degradação económica da Guiné vão aumentando rapidamente e afastam, cada vez mais, a ideia de regresso. Surgem mais razões para diluir esta ideia: confirma que a sua ligação afetiva à família portuguesa é muito grande e envolve-se sentimentalmente com quem, mais tarde, contrairá casamento e será mãe dos seus filhos.
Apesar de adorar a sua Guiné, sempre interessado e preocupado com o que lá se passa, também se sente muito bem como cidadão português. Para além da família constituída há relações fortes com muita gente, com os locais portugueses onde cresceu e com a outra sua “família” que o acompanhou nesse crescimento. Sem esquecer os ex-militares da CCaç 1419 que tomaram conta dele, desde Bissorã até Abrantes, com quem se encontra anualmente, de há 18 anos para cá. Não mais regressou.
11. Epílogo
Está no fim esta narrativa, feita sem outro objetivo que não o de referenciar momentos e aspetos da vida de um homem que, desde os seus 4 anos de idade, se podem caraterizar como especiais e o de dar a conhecer um outro lado da guerra colonial que criou afetos que perduram, pelo menos enquanto forem vivos os seus intervenientes.
Há ainda um acontecimento importante a referir, o reencontro de JM com seus pais.
Este acontecimento poderia integrar um processo de análise das possibilidades de reintegração de alguém que tenha sido afastado da sua família natural, nomeadamente quando esse alguém é uma criança nos seus primeiros anos de vida. Poder-se-á pensar que o processo é simples. Tudo leva a crer que só excecionalmente o será.
Este caso de um menino de quatro anos retirado, à força, da sua família e do mato da Guiné e catapultado para uma sociedade europeia, mesmo que seja rural-portuguesa, pode dizer alguma coisa sobre o assunto. Não esquecer que este é um caso inserido numa guerra, o que também o torna especial.
A seguir, em apêndice, JMSC relata os momentos que (e como) viveu aquando (e a partir) do reencontro com seus pais, quase doze anos depois da sua separação. São relatos,  a quente,  de sentimentos e sensações que, na altura, muito mexeram com ele e connosco, seus familiares em Portugal. E, no meu caso, ainda hoje. A composição deste Apêndice mostrou-mo.
(continua)


Um abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419

Fotos: © Manuel Joaquim (2010). Todos os direitos reservados.
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Nota de M.R.: