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sexta-feira, 7 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...


Joana Graça (2014): Africa > Homenagem ao Pepito 1 > Acrílico com digital,  40 x 30 cm.



Joana Graça (2014): Tabanca Grande: caixa de histórias > Homenagem ao Pepito 2 > Técnica mista, colagens e digital,  30 x 20 x 15.

Fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.



1. Conheci, pessoalmente, o Carlos Schwarz da Silva, Pepito (1949-20014),  em 16/2/2006...

Ele costumava, por essa altura do ano, vir a Lisboa, para passar os anos da sua mãe, Clara Schwarz, hoje uma veneranda senhora, de 99 anos, de origem judia, de pai polaco e mãe russa, mas portuguesa de gema, nascida em Lisboa, a 14 de fevereiro de 1915, casada com o caboverdiano Artur Augusto Silva (1912-1983).

Já nos conhecíamos do blogue, por intermédio do saudoso Zé Neto (1929-2007). Foi ele que me falou do Pepito e do seu projeto museológico de Guileje.

Como prometido, o Pepito esteve  connosco, nesse dia já longínquo de 16/2/2006:  com o Zé Neto (de manhã, na Fundação Marquês de Valle For) e comigo (à tarde, no meu local de trabalho, na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de  Lisboa).

Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele amava com um coração muito grande), e falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que era então o Projecto Guiledje (com dj, como ele gostava de grafar Guileje).

Capa do livro de contos de Artur
Augusto Silva (1912-1983)
 (Bissau, edção de autor, 2006)
Na altura fez questão de presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade: O Cativeiro dos Bichos era o título de uma colectânea de 25 contos, selecionados pelos seus filhos, Henrique, João e Carlos Schwarz, alguns dos quais tinha sido escritos na prisão de Caxias, em 1966. O  livro tinha acabado de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhecia, em Lisboa ou em Bissau, por Carlos Schwarz da Silva, nem quando fora ministro dos transportes num governo de transição antes do golpe de Estado de 1998) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense...

Bem razão tinha o capitão Zé Neto quando um mês antes tinha escrito sobre o Pepito o seguinte:

" (...) Eu conheço pessoalmente o engº Carlos Schwarz da Silva, o nosso Pepito. Passei uma tarde a conversar com ele em casa do nosso amigo comum, engº António Estácio. Eles foram colegas de infância e condiscípulos, pois o Estácio também é guineense.

"Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.

"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências.

"Quando ele vier, para o mês que vem, vais confirmar o quer te digo" (...).

De imediato comfirmei a opinião do Zé Neto, que era de facto um grande conhecedor da natureza humana. Para mim,foi um privilégio conhecer, ao vivo, uma pessoa com a qualidade humana do Pepito.




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > 

Antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel.  O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento  (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


2. No seguimento da nossa conversa, no meu gabinete, na Escola Nacional de Saúde Pública, o Pepito, jà quase à despedida, veio-me fazer um pedido algo insólito: ele precisava de um obus 14...

Para quê ? Para pôr no seu Núcleo Museológico Memória de Guileje, a criar a partir da reconstrução do nosso antigo aquartelamento, abandonado em 22/5/1973... E eu repliquei, no blogue, esse pedido:
- Camaradas, algum de vocês sabe de um velho obus 14, para aí abandonado num qualquer ferro-velho da tropa ? Se souberem, digam-nos... Levá-lo até Guileje será outra carga de trabalhos, mas até lá folgam as costas...



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > Agosto de 1972 > O temível obus 14 [140 mm] em ação... à noite.

(...) "O Obus 14 cm (...), de origem inglesa, foi  recebido em Portugal, em 1943, para equipar as Unidades de Artilharia pesada, substituindo os  Obuses 15 cm T.R. m/918 e 15 cm / 30 m/41. O Obus foi concebido para tracção auto exercida  pelo camião tractor de 8 ton A.E.C. (Matador)  4x4 MA/46 e pelo camião tractor de 8 ton Magirus  – Deutz 4x4 MA78. Serviu operacionalmente nos teatros de guerra da Guiné, Angola e Moçambique,  entre 1961 e 1974, tendo sido substituído, em 1987, pelo Obus M114 155mm/23"... O obus 14 pesava mais de 6 toneladas... Cada granada pesava c. 45 kg...  Tunha um alcance de c. 15 km... e uma cadência de tiro de 2 granadas por minuto... Tinha uma guarnição de 10 militares... (Fonte: sítio do  Exercito Português).

Foto: © Vasco Santos (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



Ele falou-me com entusiasmo do progresso das escavações efetuadas pelo pessoal da AD e população local no antigo aquarteklamento de Guileje. Nas limpezas e escavações até então feitas feitas,tinham já sido encontros e recuoperados objectos do quotidiano dos militares portugueses,  alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto ou garrafas de sumo de laranja - de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra...

Divertidas, para o Pepito, eram as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos camaradas de guerra, metropolitanos: ele  referiu-se às gravações audio que estavam a fazer e em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitavam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...lhos...! Seus ca...ões! Seus s... nas! Seus filhos... da p...!

O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações áudio, reveladoras do superior sentido de humor fula... E comentei-lhe:
- Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas.

O Pepito também corroborou este ponto de vista: os fulas eram um povo  orientado para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas...

Lisboa, ENSP/UNL, 13 de julho de 2007 >
 Pepito no meu gabinete. Foto  de L.G.
Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e de hienas... Mesmo assim, eles tinham a consciência de que, presas e predadoras, têm de coexistir (mais ou menos pacificamente) naquela terra, que é a sua terra...

O Pepito mostrou-se, por outro lado, deveras impressionado com o que estava a acontecer com o nosso blogue e o ritmo de produção das nossas memórias... E eu, na altura, avancei com uma explicação de vulgata sociológica:

 (i) a nossa geração, os machos, tinham  mais ou menos à sua frente quinze anos a vinte de 
esperança média de vida;

(ii) para muitos de nós, a experiência da guerra colonial terá sido porventura o acontecimento maior, talvez o mais  emociante, das nossas vidas cinzentas;

(iii) tivemos a sorte de sobreviver e, ao fim de cinco anos, retomar a marcha do comboio, não contando com os que ficaram precocemente pelo caminho: os mortos, os traumatizados, os inadaptados, os desadaptados, os cacimbados;

(iv) muitos de nós já tinham deicado (ou estavam em vias de deixar) a vida activa e sentiam o vazio do presente: os filhos que partiram, os netos que só se veem nos dias festivos, as companheiras que sempre se recusaram a partilhar essa experiência, a guerra, que é uma actividade de machos;

(v) enfim, a memória seletiva do passado, a disponibilidade de tempo, a redescoberta da camaradagem, o apelo dos verdes anos..



Lisboa > Universidade Nova de Lisboa > Escola Nacional de Saúde Pública > 13 de Julho de 2006 > Três homens de Guileje!... Visita de cortesia e reunião de trabalho do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento) - na foto, ao centro - e dois dos amigos que o apoiam no seu Projecto Guiledje: O capitão Zé Neto (à esquerda) e o coronel Nuno Rubim, especialista em história da artilharia (à direita). Os membros eram então membros, da primeira hora, da  nossa Tabanca Grande. O anfitrião fui eu.

Almoçámos juntos (tivémos a agradável surpresa da visita, embora rápida, do José Martins, que trabalhava, na épcoa, no MARN e que passou pela Av Padre Cruz a caminho do médico para uma consulta de rotina). Fizemos o ponto da situação do Projecto Guiledje, contámos histórias, conhecemo-nos pessoalmente (do grupo, eu só conhecia o Pepito, embora já tivesse falado ao telefone com o Zé Neto e o Nuno Rubim).

Tal como Pepito, o Zé Neto, infelizmente, já não está entre nós. O nosso querido Zé Neto (ex-2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68, e na altura capitão reformado, com 10 anos de Macau), era o veterano da nossa tertúlia, na altura. Era um pessoa dotada  de uma invejável energia e de uma memória fabulosa.  Foi o primeiro "tertuliano" a falecer, em 2007.

 Quanto ao Nuno Rubim, ex-capitão da CCAÇ 726, Guileje, 1964/74, é bom que se recorde que foi um dos oficiais mais condecorados da Guiné (onde fez duas comissões). É hoje coronel na reforma e historiador militar. Teve a gentileza de me oferecer um das suas publicações, além de um CD-ROm com os seus trabalhos.... Por razões de saúde, também está retirado doas nossas lides bloguísticas. Falei-lhe, ainda há relativamente pouco tempo, pelo telefone.

Foto: © Luís Graça (2006). Todo os direitos reservados.


3. Sabendo das suas suas obrigações como diretor executuivo da AD e das dificuldades de comunicações da Guiné-Bissau com o mundo exterior, o Pepito surpreendeu-me, na altura,  ao dizer-me que não dispensava a visualização diária do nosso blogue. Achava que este fenómeno (a vontade de abrir o livro, o baú da memória...) também estava a acontecer na Guiné: os antigos combatentes, de um lado e do outro,  sentiam necessidade de falar do passado e passar a escrito (ou ao videogravador) as suas memórias... A necessidade de falar da luta, na cidade ou nas matas, com alguém...

Grande parte da memória (escrita) de guerra de libertação, na posse do PAIGC, dos seus militantes e ex-militantes, desapareceu, foi destruída, extraviou-se ou ficou reduzida ao Arquivo Amílcar Cabral, em boa hora tratado e preservado pela Fundação Mário Soares.

Há um sério risco da geração pós-independência ver amputada uma grande parte da memória do seu povo, a luta pela independência, a difícil construção da Guiné-Bissau, a revolução que devorou os seus filhos, a fabricação dos novos mitos, os ajustes de contas, o cinismo pós-revolucionário, a subversão de valores...

Daí que o Pepito e os seus colaboradores da AD - Acção para o Desenvolvimento estivessem  afanosamente a gravar depoimentos dos antigos combatentes e habitantes de Guileje... Começaram pelas bases, mais acessíveis e espontâneas... Numa segunda fase, esperavam poder entrevistar os dirigentes, os comandantes operacionais, os comissários políticos, quando as defesas psicológicas e as pressões dos pares se começassem a quebrar ou a esbater...

Respondi-lhe que nós também cá tínhamos esse problema: como dissera uma vez  o Jorge Cabral, ainda havia, na época, muito boa gente (militar) com culpa e vergonha de ter feito a guerra da Guiné, a começar pelos nossos oficiais superiores... A hierarquia militar não nos  parecia ainda disposta a dar a senha e a contra-senha de acesso aos arquivos militares da guerra colonial...

O que o Pepito e a sua ONG estavam então  a fazer era, na  minha opinião,  um trabalho meritório e sobretudo patriótico, com dividendos para o futuro... Foi o que transmiti ao Pepito; não há futuro para um povo que tenha perdido a memória, a historicidade e a identidade.  E o tempo urgia, porquanto a geração que fez a guerra colonial (ou a guerra de libertação, conforme os lados da barricada), estava a desaparecer... Mais rapidamente na Guiné, devido à menor esperança média de vida à nascença dos homens guineenses da geração da guerra...

Também falámos da  situação económica, social e política da Guiné-Bissau, nessa épcoca (2006).  Dos medos e das esperanças que os guineenses sentiam em relação ao futuro. Do retorno à pertença e à identidade étnicas, na ausência de um Estado de direito que garantisse a proteção e o respeito do indivíduo e da sua família... Dos terríveis acontecimentos de 1998, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa, no bairro do Quelelé,  completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida...

O que foi espantoso, para mim,  foi  ouvir este homem, que era um profissional do optimismo, contar isto sem ódio, sem ressentimento, sem rancor, qause sem mágoa... Tinha vindo a recuperar algumas coisas, com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso era suficiente para lhe dar alento e força para retormar a picada de uma vida, fértil de acontecimentos, sonhos, emoções, projetos, realizações...



Seta de sinalização de um dos antigos espaldões da artilharia.
Foto: © Carlos Afeitos (2013).  Todo os direitos reservados.

Para além das suas obrigações como deputado (por Contuboel, e independente, se bem recordo), o que mais lhe dava gozo era viajar de jipe - apesar dos problemas de coluna de que já sofria, em consequência dos milhares de quilómetros feitos através das picadas da Guiné... E estar no sul, em Iemberém ou em Guileje, com os seus amigos e vizinhos... A Mata do Cantanhez, o futuro Parque Transfronteiriço do Cantanhez, era um espanto, com riquíssima fora e fauna - onde se incluíam elefantes e chimpanzés ! - e, felizmente, ainda então ao abrigo, devido ao seu isolamento, dos apetites vorazes da clique político-militar no poder em Bissau e em Conacri...

Last but not the least, o Pepito também gostaria de ter contactos com todas as companhias que passaram por Guileje e, se possível, ter acesso a uma resumo da sua actividade operacional na região. Disse-lhe que esse pedido não seria  difícil de conseguir... Mais difícil seria desencantar, adquirir, encaixotar e transportar o raio do obus 14!... E a verdade é que o tempo passou e a gente esqueceu-se mesmo do obus!... Mas seguramente não vamos esquecer-nos do nosso querido amigo Pepito!...Dele e do Zé Neto, o primeiro a falar-me do Pepito.

Até sempre, amigos Pepito e Zé Neto! Um alfabravo para o Nuno Rubim a quem desejo saúde e longa vida.
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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12234: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (20): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2007) - Parte VII: Homenagem sentida ao Francesinho, o sold at António de Sousa Oliveira, natural de Lamelas, Ribas, Celorico de Basto, e emigrante em França, que morreu heroicamente em combate em 28/12/1967


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Ao centro, o Francesinho, alcunha do sold at António de Sousa Oliveira,  transbordando de energia e de alegria.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Foto da placa de homenagem ao Soldado António Lopes (de alcunha, o Sargento, "devido aos seus modos bruscos" ) e ao Soldado António de Sousa Oliveira (de alcunha, o Francesinho, por ser franzino e emigrante em França). Os dois morreram em combate em 28/12/1967, juntamente com o alf mil Nuno da Costa Tavares Machado. Eram ambos, aqueles dois soldados, naturais de Celorico de Basto, embora de freguesias diferentes: o Lopes era de Bouça, Fervença; o Oliveira, era de Lamelas, Ribas.
Fotos: © José Neto (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Continuação da republicação das memórias do 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (, falecido em 2007, com o posto de capitão reformado), relativas à sua comissão na Guiné, quando exerceu funções de 1º sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), sob comando do cap Eurico Corvacho (também já falecido, em 2011).

[José Neto: Foto, à esquerda, de 2006]


VII parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) > O Francesinho 


O Zé Neto, que foi,  enquanto vivo, o patriarca da nossa tertúlia, quis partillhar connosco uma parte "muito significativa" das memórias da sua vida militar. Enviou-nos "trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265" que foi escrevendo,  "ao correr da pena" para responder a milhentas perguntas do seu neto Afonso, um jovem de 17 anos, "que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo)"... "Coisas de família", comentava o Zé com o seu proverbial sentido de humor... Infeliezmente, ele já não está cá, entre nós, há 6 anos... Ficam as suas memórias, passadas a computador, e já publicadas, na I Série do nosso blogue. 


Com pouco mais de metro e meio de altura, franzino, quase imberbe, era um poço de força, energia e boa disposição que a todos espantava.

Geralmente, quando o pessoal regressava das duras caminhadas pelas matas e bolanhas vinha estafado e atirava-se para cima do catre para descansar. Essa não era a prática do Francesinho. Tomava um duche, ficava como novo e, com a sua concertina algo desafinada, espalhava alegria por toda a tabanca e arredores.

Era emigrante em França, para onde foi com os pais ainda criança e pela nossa Lei não estava sujeito ao serviço militar, mas quando atingiu a idade própria veio apresentar-se e foi incorporado.

Constava nos seus documentos que era analfabeto e agricultor e, no entanto, falava correctamente francês e era operário especializado da indústria metalomecânica.

O mais surpreendente, se é que o Francesinho não fosse ele uma permanente surpresa, era a correcção com que falava português com a pronúncia e os ditos da sua região, as terras do Basto.

A sua única preocupação era a de que, quando acabasse a tropa, as nossas autoridades lhe passassem um papel para apresentar no birú da fábrica onde trabalhava, justificando que esteve ao serviço da sua Pátria.

Desgraçadamente não foi preciso o papel, mas julgo que o tal birú bureau, escritório] da fábrica decerto deu por falta do portuguesinho, alegre e diligente, nascido na freguesia de Ribas, concelho de Celorico de Basto e falecido heroicamente em combate na Guiné Portuguesa.(**)

As últimas mãos que afagaram aquele rosto de menino, antes de se soldar a urna de chumbo que o trouxe de volta, foram as do Capitão Corvacho e a minha. Não é vergonha dizer que não contivemos as lágrimas que nos correram pela cara abaixo.

Se houvesse que configurar num homem só, a raça, o patriotismo e o espírito de sacrifício do valoroso soldado português, eu escolhia o Francesinho, sem hesitação.
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Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 8 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12126: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (19): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2007) - Parte VI: A morte do comandante dos Lordes, o gr comb especial do alf mil Tavares Machado, em 28/12/1967

(*ª) António de Sousa Oliveira, sold at, nº mec. 06399965, natural de Lamelas, Ribas, Celorico de Basto, morreu em 28/12/1967, em combate. Está sepultado em Vale de Bouro.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12189: Os meus (des)encontros com a PM - Polícia Militar (1): João Paulo Diniz (ex-locutor de rádio (PFA, Com-Chefe, Bissau, 1970/72); Henrique Cerqueira (ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74)



Guiné > Bissau > Polícia Militar > 1971 > O José Basílio Costa, alf mil, mais o sold cond auto Diamantino Romão, que é o autor da foto. O nosso camarada José Basílio Costa tem página no Facebook, é natural de Vila Nova de Famalicão, e vive em Santo Tirso. (Foto reproduzidas com a devida vénia, e um abraço aos dois e convite para se juntarem a este "batalhão" da Tabanca Grande; edição de L.G.).


1. Mensagem do João Paulo Diniz [, ex-locutor do PIFAS, Com-Chefe, Bissau, 1972/74] , em resposta ao poste P12184 (*)

Caro Luis Graça,

Com a sinceridade de sempre, devo confessar que não me recordo da estória do nosso Zé Basílio (um abraço!) comigo (mas acho que me recordo da sua cara na foto...). 

Da malta da PM [ Polícia Militar,] recordo-me do Raul Castanho, com quem tive o grande prazer de falar há meia dúzia de semanas após longa ausência. 

E recordo ainda que, tal como ele, muitos camaradas passavam pelo Pifas para fazer companhia e tomar um copo, no pequeno bar de entrada, superiormente 'comandado' pelo Morais (que é feito de ti, amigo?).

Já agora: o Pifas não era só eu, mas sim uma equipa: dedicada, voluntariosa, com grande 'amor à camisola', com a perfeita consciência da importância das nossas emissões para animar todos os nossos camaradas das FA, independentemente dos locais onde se encotrassem na Guiné.

Posso contar uma coisa?

Um dia um tenente-coronel, comandante de um batalhão estacionado numa zona sensível, fez questão de visitar o Pifas, antes de regressar a Lisboa. E, após uma breve 'visita guiada', esse nosso camarada do Exército disse mais ou menos isto: 
Querem saber? Para os meus homens, muitas vezes é mais importante uma hora de emissão do Pifas do que receberem uma carta da família!

Com todo o respeito, creio que a maior parte de nós pensou que o nosso tenente coronel já estaria 'apanhado pelo clima'... Mas as suas palavras foram bem sentidas!

Por estas e outras, permitam-me uma confissão: como profissional, o Pifas foi uma das mais belas experiências da minha carreira!

Grande abraço! JPD

2. Henrique Cerqueira [, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74],

Na verdade, verdadinha,  a malta na Guiné e que vinha do mato à cidade,  não morria de amores pelos PM [, Polícia Militar].  E na realidade a malta dessa força punha-se a jeito para não ser muito "querida". Mas isso são águas passadas e,  mais tarde,  até fiquei cheio de orgulho quando o meu filho Miguel foi para a PE [, Polícia do Exército,] em Oeiras e por lá andou a fazer serviço na NATO.
Bom,  eu até tenho um episódio engraçado, hoje claro, com os PM em Bissau.

Numa ida minha a Bissau,  e ao me encontrar com amigos, era inevitável o apanhar uma "carraspana", tanto de comida como de bebida. Vai daí,  e depois de muitas andanças pelos caminhos de Bissau,  acabámos (eu e mais dois amigos) a simular que conduzíamos um automóvel pela avenida principal de Bissau. Isto de noite. 

O inevitável aconteceu e lá apareceu o jipe da PM. Recordo-me que,  mesmo com a carraspana (se calhar,  já em curva descendente), a PM,  após os habituais ameaços e outros afins,  lá nos mandou embora. Só que eu,  armado em engracadinho,  disse:
Desculpem lá,  senhores polícias,  mas tenho que deixar aqui o carro porque não estou em condições de conduzir.

Comecei então a simular o fecho do carro e todos aqueles gestos que temos ao deixar um carro estacionado. Então nessa altura o Alferes mandou que nos metessemos no jipe e levou-nos para o QG que era onde estávamos "hospedados". Quando saímos do jipe,  o aferes,  alinhando na brincadeira,  disse-nos  que para a próxima não seríamos apanhados se tivessemos ligado as luzes do carro. 

Boa, alferes! Os PM nem sempre eram tão arrogantes como às vezes queriam dar a  entender.

Henrique Cerqueira

3. Nuno Esteves [, nosso estimado leitor, ex-Polícia do Exército, ex-Lanceiro, ex-Soldado PE do 1º Turno 94, do Regimento de Lanceiros nº 2, hoje a trabalhar em segurança privada]
Saudações Lanceiras!... Caros camaradas da Tabanca Grande, os PM cumpriam ordens como certamente cada um de vós as cumpriu. A PM não era adorada pois,  como autoridade militar,tinha de fazer cumprir a lei militar que,  como todos nós sabemos, quando assim é, geralmente qualquer Policia nunca é bem vista ou acarinhada.

Mas,  na história destes camaradas Lanceiros, também constam várias custódias (protecção) dadas a militares em sarilhos, entre variadissimas coisas.

Muito me orgulha ter sido sucessor destes homens mas,  no meu tempo, envergando o distintivo da Policia do Exército [PE].

Um forte abraço Lanceiro para toda a Tabanca.

Nuno Esteves


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Alguns dos quadros da companhia, vestidos com trajes fulas... Presume-se que fosse uma brincadeira de Carnaval... Dois militares parodiam a PM- Polícia Militar... O Cap Corvalho pode ser o terceiro a contar da esquerda, pelo menos é alguém que ostenta as divisas de capitão. "Aqui de certeza é o Corvacho, um bom amigo", garante-me o Nuno Rubim ... (LG).

Foto  © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Do álbum do José Neto † ,  fotos reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.

4. Comentário de L.G.:

Histórias com a/os PM ? Encontros, desencontros... quem os não teve ? Cá e lá, em Bissau... (Nunca vi os PM fora de Bissau, a não ser "mascarados", em Guileje, no álbum fotográfico do nosso  saudoso Zé Neto...).

Toca, por isso, a puxar da memória!... Hoje publicamos mais duas pequenas histórias, do nosso tempo de Guiné... O objetivo não é, de modo algum,  desenterrar velhos machados de guerra, mas apenas relembrar tempos passados que... não voltam mais!

Como diz o povo, "quem vai à guerra, dá e leva!"... Em Bissau, à falta de guerra a valer, parece que fazíamos,  às vezes, guerra uns aos outros... Numa ou noutra ocasião, perdemOS mesmo as estribeiras... E não houve PM que nos salvasse!...

Recorde-se, entre outras, as "guerras" entre páras, comandos e fuzos, as três tropas especiais..., a que se vieram juntar, mais tarde, os "comandos africanos" e os "fuzileiros especiais africanos"... Uma das dessas "guerras" (que provocaram mortos e feridos graves!), ficou conhecida como a "batalha de Bissau" (**)...

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Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 21 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12184: Facebook...ando (29): Uma cena, bem humorada, passada entre a ronda da PM e o locutor do PIFAS, João Paulo Diniz, Bissau, c. 1971 (José Basílio Costa, ex-alf mil, PM, hoje a residir em Santo Tirso)

(**) Sobre a "batalha de Bissau" (3 de junho de 1967) entre fuzileiros e paraquedistas, vd.:


11 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)



(...) Considero bastante conforme à verdade (com excepção da data, que foi o dia 3 de Junho de 1967 e não Janeiro de 1968, conforme a História oficial do BCP 12, da autoria do Tenente-Coronel Luís Martinho Grão) a versão apresentada pelo 1.º Sargento Carmo Vicente, inclusive no que respeita às responsabilidades dos graduados pára-quedistas, que pouco fizeram para evitar o infeliz desenlace duma jornada que devia ser lembrada apenas como desportiva. (...) 

(...) Na noite de 3 de Junho de 1967, no final dum jogo que parecia ter decorrido de forma idêntica a tantos outros, entre o ASA – acrónimo de Atlético Sport Aviação, o clube dos militares da Força Aérea – e a equipa onde alinhavam os marinheiros, sucedeu o inesperado: estes, depois de trocarem insultos e provocações com os pára-quedistas, como era hábito, abandonaram o recinto desportivo, numa atitude pouco consentânea com os seus comportamentos recentes.

Os páras correram atrás deles pelas ruas da cidade, não imaginando que, algumas centenas de metros à frente, emboscado num prédio em construção, um grupo de fuzileiros armados com G-3 se preparava para os atacar a tiro. Custa a entender onde aqueles homens foram buscar ânimo para levar a cabo semelhante acto, mas a verdade é que foram capazes de abrir fogo à queima-roupa sobre camaradas de armas desarmados, matando de imediato o 1.º cabo Ismael Santos e o sold. Fernando Marques, para além de terem provocado ferimentos noutros soldados. (...) 


(...) Segue-se a “batalha de Bissau” que ocorreu durante um campeonato de andebol de sete, entre a UDIB e a ASA Clube. Havia duas claques, a primeira, composta pelos civis e alguns marinheiros, era apoiada pelos fuzileiros e por todo o pessoal da Armada; e a segunda, inteiramente formada por militares da Força Aérea, com destaque para os pára-quedistas. 

Segundo Carmo Vicente páras e fuzileiros eram amigos, mas na ocasião quiseram provocar-se mutuamente. Porquê, fica-se sem se saber. No BCP 12 todo o pessoal foi dispensado para poder assistir ao encontro e apoiar a equipa. Durante o encontro, boinas verdes e boinas negras apoiaram ruidosamente as suas equipas. Súbito, começaram os incidentes e cerca de 400 militares envolveram-se num corpo a corpo incontrolável, derrubaram-se as portas do recinto, a luta generalizou-se pelas ruas da cidade, tudo à cinturada, murro e pontapé. 

Parecia que os fuzileiros batiam em retirada quando de um prédio em construção saíram seis fuzileiros armados de G3 e de granadas de mão, começando a disparar indiscriminadamente. Dois pára-quedistas ficaram ali mortos. Para Lisboa transmitiu-se às famílias que tinham morrido num acidente com armas de fogo (...).

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12126: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (19): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2007) - Parte VI: A morte do comandante dos Lordes, o gr comb especial do alf mil Tavares Machado, em 28/12/1967










Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Fotos do álbum do Zé Neto (1929-2007) Grupo 4 > Fotos diversas de instalações e atividade operacional... Não sei (porque as legendas são insuficientes) se nalgumas destas imagens aparece o malogrado alf mil Tavares Machado ou alguém do seu grupo de combate especial, Os Lordes. O Zé Neto, que exercia entºão as funções de 1º sargento da companhia, não era um operacional, pelo que as fotos que tirou (e que nos disponibilizoui em vida) foram todas tiradas dentro do quartel. Trata-se de um coleção de "slides", que foram posteriormente digitalizados.


Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]



Guiné > Região de Tombali > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Salancaur, a noroeste de Guileje e de Mejo, por onde passava o corredor de Guileje.

 Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


1. Continuação da republicação das memórias do 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (, falecido em 2007, com o posto de capitão reformado), relativas à sua comissão na Guiné, quando exerceu funções de 1º sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), sob comando do cap Eurico Corvacho (também já falecido, em 2011):


Quanto às operações no terreno, as nossas principalmente patrulhas de reconhecimento e nomadizações destinadas a manter o controle possível no itinerário de Gadamael Porto  decorriam sem sobressalto de maior, porque, era mais que evidente, o IN evitava o contacto para não denunciar os trilhos que utilizava nas suas infiltrações para o interior do território.

Mas, como já referi, era a partir de Guileje que se lançavam as operações conjuntas e de maior envergadura sobre o corredor de penetração dos turras. Para executar as ordens do Comando do Batalhão ou até do Sector (sediado em Bolama),  as unidades empenhadas deslocavam-se até Guileje, onde permaneciam o tempo necessário para a planificação, um, dois dias, e na hora H iniciavam a marcha para o alvo previamente referenciado.

Geralmente os resultados destas operações eram nulos ou pouco compensadores. Nós tínhamos um serviço de informações razoável, com a ajuda dos reconhecimentos aéreos, mas não éramos tão ingénuos que não soubéssemos que nesse aspecto o IN nos levava a vantagem da sua maior mobilidade, conhecimento do terreno e algumas cumplicidades de elementos das populações.

Além disso, o planeamento das operações era feito com as regras copiadas à pressa dos manuais clássicos e algumas leituras dos teóricos da guerrilha e, como tal, se não causavam autênticos descalabros nas nossas tropas isso se devia à bravura dos nossos soldados e ao discernimento dos seus comandantes que sabiam avaliar o momento em que deviam mandar às malvas o rigor dos papéis e actuarem em conformidade com o que deparavam no terreno.

Um pequeno exemplo: as cartas topográficas assinalam correctamente todas as características do terreno, ponto final. Ponto final,  no Alentejo ou nas Beiras. Na Guiné nem sequer chega a ser vírgula, porque quando a maré sobe o mar engole uma parte considerável da área total do território.

Por outro lado, as bolanhas são assinaladas como terreno alagado e vistas de avião até têm o aspecto de solo enlameado com farta vegetação, facilmente transponível. A realidade é bem diferente. Extensas zonas que, com os seus socalcos, tinham sido férteis campos de arroz, eram agora, quase abandonadas, autênticas armadilhas onde à mínima distracção um homem se afogava ou ficava atolado até ao pescoço.

Ganhou alguma notoriedade o diálogo entre o Celestino (1) e o Capitão Cadete. Numa operação em que as nossas tropas pretendiam desmantelar a fortificação que os turras tinham implantado em Salancaúr, o Celestino comandava comodamente instalado num avião Dornier. A companhia do Capitão Cadete estava, a pouco mais de duzentos metros do objectivo, a ser fustigada por fogo de canhão sem recuo do IN e o Celestino berrava pela rádio:
─ Avance! Organize o assalto pelo flanco esquerdo!!!

O Capitão, homem experiente, sabia que era de todo impossível dar mais um passo em direcção ao objectivo, estrategicamente defendido pelos lodaçais e, perante a insistência, gritou pelo microfone:
─ Venha cá abaixo e enterre o seu focinho na bolanha, seu…

Isto foi ouvido em todo a rede de transmissões das unidades da zona que, em sintonia, seguiam o desenrolar da operação e… nunca constou que o Capitão Cadete tivesse sido punido.

A zona de Salancaur, que era uma pequena península quando a maré subia, foi durante muito tempo um espinho cravado na nossa garganta. As informações diziam que os turras tinham ali instalado vinte e quatro canhões sem recuo (talvez um exagero), ao mesmo tempo que o reconhecimento aéreo dava conta de actividade rural por parte da população da tabanca nas redondezas,  o que punha fora de hipótese a destruição por bombardeamento da aviação.

Os comandos não desistiam de eliminar aquele importante ponto de apoio do corredor de Guileje e as surtidas das nossas tropas sucediam-se sem resultados palpáveis. Numa dessas operações, poucos dias depois do Natal desse ano de 1967 (sei a data precisa, mas não a quero referir) [28/12/1967, L.G.] , tivemos mais três baixas estúpidas, a juntar à de São João.

As nossas tropas saíram ao alvorecer e, excepcionalmente, os Lordes (2), do Alferes Tavares Machado, ficaram no quartel, constituindo a segurança das instalações. Menos de uma hora depois,  ouvimos um tiroteio aceso. Os turras tinham emboscado a frente da nossa coluna. Pelo rádio o Capitão Corvacho disse que não havia novidade, que estavam a reagir à emboscada e que o IN estava a retirar.

Em resposta o Alferes Tavares Machado disse que sabia por onde os turras iam fugir e que lhes ia dar uma coça. O Capitão mandou-o ficar onde estava pois a situação estava controlada. Qual quê? Reuniu os seus homens rapidamente e, ele de calças de ganga e camisola branca, embrenharam-se na mata em direcção ao sítio onde deflagrara o tiroteio.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > Mais um "achado  arqueológico", descoberto recentemente... A placa com o nome do alf Tavares Machado que estava na parada do aquartelamento...

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento  (2013) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


 Pouco tempo depois, talvez meia hora, ouvimos novo arraial e não tivemos dúvidas de que agora eram os Lordes que estavam sob o fogo bem conhecido das Kalash. Posto ao corrente do sucedido, o Capitão retrocedeu ainda a tempo de enfrentar os turras e evitar uma chacina completa. Só não conseguiu evitar as mortes dos  (i) Alferes Nuno da Costa Tavares Machado,  (ii) Soldado António Lopes (cuja alcunha era o Sargento, devido aos seus modos bruscos) e (iii) Soldado António de Sousa Oliveira (o Francesinho).

Se houvesse que configurar num homem só, a raça, o patriotismo e o espírito de sacrifício do valoroso soldado português,  eu escolhia o Francesinho, sem hesitação.

José Neto (2006)

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Notas do autor:

(1) Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade.

(2) Os Lordes era a designação dum Grupo de Combate formado por voluntários da companhia que recebeu instrução especial em Bissau com o fim de constituir o primeiro escalão de progressão e assalto, dado que a CART 1613 foi, inicialmente, companhia de intervenção à ordem do Comando Chefe e actuou em vários pontos do território.

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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12055: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (18): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2o07) - Parte V: Terra de ecumenismo e tolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos (III): O Ramadão. Fotos.















Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) 1967 > Fotos do álbum de José Neto > Guileje 2 >  Cerimónia do Ramadão, a que assistiram, em respeitoso silêncio, os militares locais. Em 1967, o Ramadão começou a 2 de dezembro (este ano, 2013, começou a 9 de jukho e terminiou a 7 de agosto). Recorde-se que o  Ramadão é o nono mês do calendário islâmico, durante o qual os muçulmanos praticam o seu jejum ritual, o quarto dos cinco pilares do Islão.

(...) "A palavra Ramadão encontra-se relacionada com a palavra árabe ramida, 'ser ardente', possivelmente pelo facto do Islão ter celebrado este jejum pela primeira vez no período mais quente do ano. É um tempo de renovação da fé, da prática mais intensa da caridade, e vivência profunda da fraternidade e dos valores da vida familiar. Neste período pede-se ao crente maior proximidade dos valores sagrados, leitura mais assídua do Alcorão, frequência à mesquita, correção pessoal e autodomínio. É o único mês mencionado pelo nome, por Deus, no Alcorão" (...) (Fonte: Wikipédia).

Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]


1. Continuação da republicação das memórias do 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (, falecido em 2007, com o posto de capitão reformado), relativas à sua comissão na Guiné, quando exerceu funções de 1º sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68).


2. Memórias de Guileje, ao tempo da CART 1613, por José Neto (1929-2007) > Parte V: Terra de ecumenismo e tolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos (III). A cerimónia do Ramadão. Fotos


(...) Na pequena festa de inauguração da Capela e a convite do Capitão Corvacho, o Régulo Suleimane compareceu com toda a sua família e vestido a rigor, embora fosse muçulmano.

As portas da Capela nunca se fecharam. Os europeus iam lá fazer as suas orações e nunca constou que alguém tivesse mexido fosse no que fosse. Do mesmo modo, quando da celebração do fim do Ramadão, com rituais próprios, mas completamente desconhecidos para a quase totalidade dos rapazes, estes comportaram-se com respeito, a que não faltou uma ponta de curiosidade, é certo. (...)


Observação do editor: Não sei se a quarta foto, a contar de cima, a das mulheres, tem a ver com a cerimónia do Ramadão ou com a do fanado. Segui a ordem de numeração das imagens do ficheiro (, oriundas de "slides" digitalizados), ordem essa que pode ter sido trocada. (LG)
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Nota do editor:

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12051: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (18): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2o07) - Parte V: Terra de ecumenismo e tolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos (II). A festa do fanado (feminino). Fotos.








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Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) 1967 > Fotos do álbum de José Neto > Guileje 2 >  Festa do fanado (feminino), a que se associaram os militares.

Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]


1. Continuação da republicação das memórias do 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (, falecido em 2007, com o posto de capitão reformado), relativas à sua comissão na Guiné, quando exerceu funções de 1º sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68).


2. Memórias de Guileje, ao tempo da CART 1613, por José Neto (1929-2007) > Parte V: Terra de ecumenismo e tolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos (II). A festa do fanado. Fotos

(...) Saliento o facto ocorrido durante a festa do fanado em que as meninas foram preparadas para a, para nós bárbara, ablação de parte dos seus órgãos genitais.

Atraídos pela música, os militares metropolitanos acercaram-se do local onde decorria o ritual – as meninas postadas à volta do enorme almofariz enquanto as mulheres, com o pilão, moíam cereais cuja farinha se derramava sobre as cabeças das ainda crianças – e sem quaisquer constrangimentos dançaram e cantaram como se fossem parte da cerimónia.

Houve nesta festa uma excepção que me apraz referir: eu fui o único fotógrafo autorizado a registar as cenas preliminares. Na palhota onde se procedeu à cirurgia nem pensar.

Tal deferência nada tinha a ver com o meu cargo ou posição na companhia, mas sim porque quando o correio me trazia os slides revelados, eu montava o cenário e mostrava à população as suas caras e os seus lugares que provocavam grandes ovações e expressões de alegria dos visados. Era o que chamavam de cenima do nosso sargenti. (*)


3. Comentário, de 17 do corrente,  de Cherno Baldé, nosso amigo e irmão guineense [, foto à direita]:

(...) A guerra colonial travada num meio essencialmente rural/tradicional tinha, também, o condão de provocar efeitos secundários ou colaterais de âmbito sócio-cultural. Só algumas raras pessoas podiam perceber o alcance e a profundidade das transformações sociais que se operavam no seio dessas mesmas sociedades.

Neste caso concreto das imagens [do Zé Neto], o que salta a vista é o facto de as mulheres, no uso da liberdade pontual que a cerimónia [do fanado] autorizava nos idos anos 60, desafiarem a tradição e quebrarem o velho tabu do uso de roupas do sexo oposto e, sobretudo, de homens de guerra. 

No caso da Guiné, o facto não é meramente fortuito, pois tratava-se de uma fase de viragem histórica e que viria a ser bem aproveitado e vulgarizado pelo PAIGC no período pós-independência (...)

Guiné 63/74 - P12050: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (17): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2007) - Parte V: Terra de ecumenismo e tolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos (I): A capela






Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) 1967 > Fotos do álbum de José Neto > Guileje 1 > Vistas diversas da capela. Na pequena festa de inauguração da capela,  e a convite do Capitão Corvacho, o Régulo Suleimane compareceu com toda a sua família e vestido a rigor, embora fosse muçulmano.




Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) 1967 > Fotos do álbum de José Neto > Guileje 2 > Início das cerimónias do Ramadão. O régulo em traje de gala.


Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]


1. Continuação da republicação das memórias do 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (, falecido em 2007, com o posto de capitão reformado), relativas à sua comissão na Guiné, quando exerceu funções de 1º sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68).

O Zé Neto, como era conhecido entre nós, é um dos primeiros 50 camaradas a ingressar no nosso blogue. Hoje somos 12 vezes mais, a maior parte dos tabanqueiros não o conheceram nem têm acesso à sua colaboração, dispersa, incluindo as valiosas fotos do seu álbum . Daí também esta nova edição dos seus postes sobre Guileje, no ano em que celebramos o 9º aniversário. Por outro lado, fez 40 anos, a 22 de maio de 2013, que as NT retiraram de Guileje.

2. Memórias de Guileje, ao tempo da CART 1613, por José Neto (1929-2007) > Parte V:  Terra de ecumenismo e tolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos (I)


Uma das boas características do meu pessoal era a de que não gostavam de estar parados nos intervalos das operações. Cada um, nas suas profissões ou aptidões, ia bulindo e foi assim que  (i) se reconstruíram e melhoraram abrigos, (ii) se implantou uma horta que aproveitava a água, depois de decantada, dos chuveiros das praças e (iii) se construiu a obra mais emblemática que deixámos em Guileje: a Capela.

Por sugestão do capelão, Padre João Batista Alves de Magalhães, que apenas pediu um coberto para oficiar a missa quando ia a Guileje, pois dava a volta a toda a área da responsabilidade do batalhão, os Furriéis Maurício (Transmissões) e Arclides Mateus (Atirador), ambos com conhecimentos de desenho de construção civil, planearam e dirigiram a construção do pequeno templo.

Vinte ou trinta anos depois muito se falou em ecumenismo e outras ideias do mesmo sentido, mas nas profundezas da Guiné isso já se praticava.

Na pequena festa de inauguração da Capela e a convite do Capitão Corvacho, o Régulo Suleimane compareceu com toda a sua família e vestido a rigor, embora fosse muçulmano.

As portas da Capela nunca se fecharam. Os europeus iam lá fazer as suas orações e nunca constou que alguém tivesse mexido fosse no que fosse. Do mesmo modo, quando da celebração do fim do Ramadão, com rituais próprios, mas completamente desconhecidos para a quase totalidade dos rapazes, estes comportaram-se com respeito, a que não faltou uma ponta de curiosidade, é certo.

Saliento o facto ocorrido durante a festa do fanado em que as meninas foram preparadas para a, para nós bárbara, ablação de parte dos seus órgãos genitais.

Atraídos pela música, os militares metropolitanos acercaram-se do local onde decorria o ritual – as meninas postadas à volta do enorme almofariz enquanto as mulheres, com o pilão, moíam cereais cuja farinha se derramava sobre as cabeças das ainda crianças – e sem quaisquer constrangimentos dançaram e cantaram como se fossem parte da cerimónia.

Houve nesta festa uma excepção que me apraz referir: eu fui o único fotógrafo autorizado a registar as cenas preliminares. Na palhota onde se procedeu à cirurgia nem pensar.

Tal deferência nada tinha a ver com o meu cargo ou posição na companhia, mas sim porque quando o correio me trazia os slides revelados, eu montava o cenário e mostrava à população as suas caras e os seus lugares que provocavam grandes ovações e expressões de alegria dos visados. Era o que chamavam de cenima do nosso sargenti.

(Continua)

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