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quinta-feira, 28 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11325: Notas de leitura (469): Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume III)”, editado pela Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963... Usos e costumes: a tecelagem, o arrancamento da pele dos cadáveres, as práticas de necrofagia, o fanado, o choro, o bombolom... (Francisco Henriques da Silva, antigo embaixador)

1. Mensagem de Francisco Henriques da Silva, nosso camarada e grã-tabanqueiro, ex-alf mil, CAÇ 2402 / BCAÇ 2851 (,Mansabá e Olossato, 1968/70),  e mais tarde ex-embaixador de Portugal, na Guiné-Bissau (1997/1999)] [, foto à esquerda, 26 de Abril de 2012, Lisboa, Bertrand Dolce Vita Monumental, tertúlia,; foto de L.G.]


Data: 23 de Março de 2013 à40 19:00

Assunto: Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume  III), editação da  Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963


Meu caros amigos,


Aqui há umas semanas veio-me parar às mãos uma obra do maior interesse  que descobri, por mero acaso, na biblioteca particular de um amigo meu  e para a qual solicito a vossa atenção.Trata-se do livro "Estudos  sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume III)", editado pela  Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963. Um livro de vários  autores,  essencialmente focado em temas de antropologia (entre os quais  sobressai o nome de António Carreira), editado e totalmente dedicado à Guiné então Portuguesa.

Esta obra vem precisamente na linha da correspondência travada com o  Luís Graça, em que ambos reconhecemos que partíamos para as missões de  soberania no chamado Ultramar, qualquer que fosse o local, sem fazermos a menor ideia do que iríamos encontrar. Que povos? Que  línguas? Que religiões? Que usos e costumes? E a lista podia  continuar, sendo a Guiné, atenta a exiguidade do território, de uma  diversidade extraordinária, multifacetada e vibrante.

Explicavam-nos o funcionamento da "Dreyser", como montar uma emboscada  ou como comunicar no rádio, mas nada nos diziam sobre as realidades  geográficas, etnológicas, históricas, religiosas, etc. com que nos  íamos confrontar. Tratava-.se de um ponto essencial, mas os altos  mandos militares da época nunca pensaram nisso ou consideraram-no  desnecessário, como só muito tardiamente pensaram na chamada "acção  psicológica", como é do conhecimento público. Oficiais, sargentos e praças partiam na quase total ignorância do que era a Guiné e os seus  Povos e, no fundo, bastaria um pequeno esforço para dar a conhecer,  por exemplo, mesmo de uma forma resumida, a realidade sociológica da  Guiné. Isso, que eu saiba, jamais foi feito. Partíamos rumo ao
desconhecido, na escuridão total. Recordo que os norte-americanos na  Coreia e no Vietname - e suponho que noutros teatros de operações -  eram instruídos e dispunham de pequenos manuais de divulgação  relativos aos países e povos que iriam encontrar.

O livro em apreço é de um grande interesse e lança-nos muitas pistas  sobre a Guiné. Muitos reconhecerão práticas locais que aprenderam por  experiência própria.  Enfim, aqui vos deixo as minhas impressões.

Com um abraço cordial e amigo e as habituais "mantenhas"

Francisco Henriques da Silva

(ex-Alf Mil Inf  da CCaç 2402, e ex-embaixador de Portugal em Bissau)



Capa do livro  > Junta de Investigações do Ultramar -  Estudos sobre a etnologia do Ultramar português.  Lisboa : Junta de Investigações do Ultramar, 1963. Vol. III, 240 p. : il. ; 25 cm. (Estudos, Ensaios e Documentos. 102).


2. ALGUNS USOS E COSTUMES DA GUINÉ
por Francisco Henriques da Silva


O livro “Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume III)”, editado pela Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963, é uma obra coletiva de grande interesse, para todos aqueles que se sentem atraídos pela Guiné-Bissau e pelos seus diferentes povos, respetivos usos e costumes. Inserido na coleção “Estudos, Ensaios e Documentos”, cabe referir que é um livro que beneficia do contributo de vários autores da época, investigadores e estudiosos das questões etnológicas, entre os quais avultam nomes conhecidos, como é o caso, por exemplo, de António Carreira. 

Tanto quanto me apercebi teriam sido editados diversos volumes, sob aquele título genérico, cada um sobre uma das províncias ultramarinas sendo este sobre a Guiné, em que só são focados temas exclusivamente guineenses.

Os textos abordam assuntos tão diversos como o estudo da tecelagem, o arrancamento da pele dos cadáveres e as práticas de necrofagia, as mutilações genitais (ou seja, o fanado masculino e feminino – circuncisão, no primeiro caso, e excisão do clitóris, no segundo), as práticas funerárias dos Brames (ou mancanhas), os tambores “falantes” (o bombolom e outros instrumentos de comunicação por percussão à distância) e, finalmente, a etnonímia das populações autóctones da Guiné Portuguesa.

O primeiro texto – “Subsídios para o estudo da tecelagem na Guiné Portuguesa”, elaborado por Maria Emília de Castro Almeida e Miguel Vieira – começa por referenciar os povos tecelões do território: manjacos, papéis, brames, mandingas e fulas, portanto de várias origens étnicas e religiosas (animistas e islamizados). Contrariamente à tradição europeia, trata-se de uma profissão reservada ao sexo masculino. 

Em seguida, ao ser estudada a origem do tear em África e, baseando-se nas descrições dos primeiros cronistas e navegadores portugueses na região, concluem que o tear já existia quando da nossa chegada à Senegâmbia, uma vez que “a indústria do algodão na Guiné era já uma realidade quando os portugueses ali chegaram” (p. 46). Por conseguinte, não sendo de origem europeia seria presumivelmente de origem asiática. Teria tido inicialmente “uma possível mas fraca irradiação já nos princípios da nossa era, cremos, porém, que a verdadeira e intensa introdução do tear de pedais na Guiné seria mais tardia, no tempo da expansão muçulmana em África” (p. 51).

Independentemente da origem – presumivelmente asiática – e da sua transmissão através de povos islamizados, os autores assinalam que “os manjacos e também os papéis são os povos que mais se entregam actualmente à tecelagem e dos que sofreram menos a influência muçulmana” (p. 57). Muito provavelmente os tecelões manjacos terão exportado as suas técnicas para Cabo Verde, concluem também os autores.

Maria Emília C. Almeida e Miguel Vieira tecem alguns comentários sobre os diferentes panos guineenses e fazem a descrição tecnológica relativamente pormenorizada do seu modo de fabrico. O artigo contem mapas da distribuição dos diferentes povos da Guiné e ilustrações dos teares e das respetivas peças, bem como fotos dos tecelões em plena atividade e dos panos já confecionados.

[Cartoon, à esuqerda: António Barbosa Carreira, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 1905- Lisboa, Portugalo, 1988. Fonte: Página de Barros Brito, com a devida vénia]


O artigo que se segue, da autoria de António Carreira,  intitula-se “Do arrancamento da pele aos cadáveres e da necrofagia na Guiné, Portuguesa”. No primeiro caso estamos perante uma estranha prática ancestral dos manjacos, conhecido na expressão crioula por “descascar defuntos”. Era uma prática, segundo Carreira, já pouco seguida no início da década de 1930 e que, entretanto, terá desaparecido. Ninguém, nem mesmo os mais idosos, era capaz de elucidar as origens deste ritual insólito, nem o objetivo último do mesmo. Apenas se sabe que se tratava de um rito funerário daquele povo e circunscrito em exclusivo aos manjacos, não se tendo verificado tal prática em nenhum outro grupo étnico. 

 Segundo relata Carreira, “ficámos sem saber se o descasque de defuntos fora, desde sempre uma verdadeira modalidade dos ritos funerários dos manjacos ou se seria um derivante ou substituto da antropofagia.” (p. 106). O autor interroga-se: “Da antropofagia – que se admite tenha existido em toda esta área – não teria resultado, por evolução, a necrofagia e, numa fase posterior o descasque de cadáveres?” (ibidem).


Todavia, nem entre os manjacos, nem entre os brames (mancanhas) foram detectadas práticas de
canibalismo, muito embora os felupes a praticassem em tempos remotos. Carreira admite, como mera hipótese de trabalho, que os manjacos a tivessem levado a cabo, muito embora não o possa provar, tendo, ao longo do tempo, evoluído para o descasque de cadáveres.

[ Foto à direita: Um felupe, 1821... Gravura norte-americana, imagem do domínio público, cortesia de Wikipédia]


A cerimónia revestia-se de uma certa complexidade, na medida em que previamente era necessário proceder ao interrogatório do defunto, o anúncio da morte, o sacrifício de vários animais, a que se seguiam danças e outras cerimónias para afastar os maus espíritos. O corpo depois era colocado num estrado, regado com álcool e defumado.

Como relata Carreira, “logo que a decomposição estivesse avançada, o descascador (o profissional chamado Natiêmá) procedia à operação do arrancamento da pele. Para tanto servia-se de enormes unhas, que propositadamente deixava crescer; elas constituíam a ferramenta do ofício” (p. 111). Depois o corpo era envolto em panos e inumado.

Quanto à prática da necrofagia que se verificava ainda na década de 50 entre os Felupes, os cadáveres eram enterrados quase à superfície da terra, durante uma semana, finda a qual, os corpos já putrefactos eram desenterrados, cozinhados e comidos. 

Outro dos costumes ancestrais dos felupes consistia em colecionar crânios dos inimigos caídos em combate e que eram utilizados em libações. Hábito que não nos deverá parecer tão exótico, na medida em que os antigos vikings também o praticavam. Membros de tribos inimigas que penetrassem em território felupe eram “assassinados em condições misteriosas; e a maior parte (dos crânios, entenda-se) provém, precisamente, dos cadáveres desenterrados e comidos nos festins do fanado (circuncisão) ou nos ritos especiais, nos Irãs.” (p. 116). 

Comer carne humana de cadáveres consistia numa cerimónia ritual que se revestia da maior importância entre os membros desta etnia. Comer determinadas partes do corpo do inimigo morto conferiria, a quem as devorasse, as mesmas qualidades do defunto, designadamente de coragem e bravura em combate,. Em regra, eram apenas comidos os corpos das pessoas que faleciam de morte natural ou que morriam em conflito armado, mas, muitas vezes, secretamente, os feiticeiros envenenavam pessoas com o fito de as devorarem, muito embora a tribo não tivesse necessidade de carne, porquanto tinha gado e a caça abundava. A necrofagia era um ritual mágico e envolto no maior secretismo.

A. Carreira conclui que “a influência da cultura portuguesa, da francesa e mesmo da africana não conseguiu vencer práticas milenares que a civilização do Ocidente condena, por repugnantes, como a necrofagia” (p. 121).

“Contribuição para o estudo das mutilações genitais na Guiné Portuguesa” é outro interessante artigo subscrito por António Carreira e bastante abrangente, pois abarca todo o território guineense e confere-nos uma panorâmica da extensão destas práticas. 

O autor divide a população local em 3 grupos consoante a diversidade da prática das mutilações sexuais: 

(i)  o primeiro grupo, é aquele em que se pratica a circuncisão nos indivíduos do sexo masculino e a excisão do clítoris nos do sexo feminino (trata-se de etnias islamizadas: fulas, mandingas, biafadas, nalus, banhuns, cassangas e balantas-mané); 

(ii) o segundo grupo confina-se apenas à prática da circuncisão, não se procedendo à ablação do clitóris (estão neste grupo os animistas: manjacos, papéis, brames, felupes, baiotes, balantas e mansoancas);

(iii) o terceiro e último grupo apenas pratica uma circuncisão de caráter simbólico, “por incisões superficiais na pele do pénis, seguidas de escarificações tegumentares simples” (p. 135) e nas mulheres umas incisões no baixo ventre (apenas os bijagós mantém este hábito ancestral).

Quer no caso da circuncisão, quer no da ablação do clitóris, ambas as cerimónias são genericamente designadas, em crioulo, por fanado.

A circuncisão consiste no corte da pele do prepúcio, em geral, com uma faca afiada de lâmina recta. Trata-se de uma cerimónia ritual de purificação (segundo Bastide, citado por Carreira) que só se realiza com uma periodicidade determinada (depende das etnias) e que implica provas físicas, algumas de grande dureza, e nalguns casos até castigos corporais; provas intelectuais e de conhecimento de vida e sócio-religiosas, como refere o autor. Existem igualmente múltiplos tabus e regras específicas, variáveis de tribo para tribo. Em geral, as cerimónias terminam com uma série de festas públicas.

[Foto à direita: Vaqueira manjaca... Detalhe de postal ilustrado da série Guiné Portuguesa. Cortesia de Joaquim Ruivo]


Dependendo das etnias, a circuncisão pode ocorrer na infância, puberdade, adolescência ou já na idade adulta. O autor não refere, porém, que, em muitos casos, os circuncisos podiam morrer de hemorragia, por inexperiência do “operador” ou de infeção (tanto quanto sei, pessoalmente, no caso dos balantas, eram utilizados emplastros com plantas e lama).

A excisão clitoridiana tem menor expansão que a circuncisão, que como se vê está generalizada a quase toda a população masculina, e segundo A. Carreira alguns elementos femininos de certos grupos étnicos (mandingas e fulas) opõem-se-lhe. Todavia, como sublinha, “o certo é que o costume tem, ainda, grande simpatia e aceitação das massas” (p. 172). 

Aparentemente, os rituais destas cerimónias são bastante mais simples e menos violentos que os da circuncisão, aparte a operação de excisão propriamente dita. O autor descreve-a da seguinte forma: “Consiste na ablação do clítoris por um corte transversal, dado com uma lâmina recta. Para o efeito, puxam o clítoris para fora, depois de seguro por uma espécie de anzol sem rebarba. Em uns grupos a ablação é total e em outros está limitada a uma pequenina porção da ponta.” (p. 144). 

A extracção ou corte dos lábios da vulva não é de todo em todo levada a cabo por nenhuma etnia guineense. Registe-se que a excisão do clítoris não constitui um mero rito de passagem, mas uma condição “sine qua non” para o casamento. Sem embargo de Carreira descrever com minúcia a operação, as cerimónias e as regras a observar, não regista em qualquer parte do texto o menor sinal de repúdio ou de horror perante o barbarismo e a crua brutalidade deste costume ancestral.

Para além de apresentar um mapa das mutilações sexuais na Guiné Portuguesa, o autor traça um quadro de cada uma da tribos e dos diferentes processos e cerimónias que nesta matéria que levam tradicionalmente a efeito.

O investigador José Lampreia elaborou um estudo intitulado “Da morte entre os Brames”. Segundo nos conta, no passado remoto, entre os Brames (mancanhas) na cerimónia do “choro” (funeral) chegava a ser sacrificado um casal de crianças se o defunto fosse um régulo. Essa prática terá desaparecido, mas o sacrifício de animais manteve-se e o abate do gado do defunto para alimentar toda a comunidade também, o que, aliás, como se sabe, não é costume exclusivo dos brames. 

Uma cerimónia com algumas semelhanças à do descasque de cadáveres dos manjacos também se praticava, contrariando, de algum modo, o que refere António Carreira que a considera exclusiva daquela etnia. É interessante saber-se como era determinado o local propício ao enterro do corpo. O ritualista acompanhava uma cabra e no local onde esta urinasse cravava-se uma estaca e era esse o sítio designado para se abrir uma galeria funerária onde seria enterrado o defunto.


[Imagem à esquerda: O bombolom...Cortesia do sítio italiano Parrocchia San Leonardo Murialdo di Milano]

“Talking drums in Guiné” é um texto em inglês da autoria de W. A. A. Wilson da Universidade de Londres e que menciona, entre outros instrumentos de percussão (tambores) para transmissão de mensagens à distancia, o bombolom. Seis tribos da Guiné comunicam por este meio – manjacos, papéis, mancanhas, bijagós, balantas e mansoancas. Trata-se de um método muito utilizado em várias partes de África. Contrariamente ao que se possa pensar, não se trata de um qualquer código morse ou algo de aparentado, mas a reprodução de uma língua em que cada sílaba é pronunciada, nesta caso tocada, num tom alto ou baixo, “cada palavra ou frase tem uma melodia particular: os tons altos e baixos são tão importantes como a posição do acento tónico em português ou inglês” (p. 216), como refere o resumo. 

O bombolom é um tronco de madeira escavado com uma frincha que se estende a todo o comprimento. O tocador com dois paus extrai os sons cavos ou mais agudos do instrumento. O som pode ser ouvido a vários quilómetros de distância.

Finalmente, o artigo “Sobre a etnonímia das populações nativas da Guiné Portuguesa” da autoria do professor António de Almeida. O autor defende a tese de que as designações de quase todos os povos da Guiné é de origem mandinga, com várias alterações introduzidas pela língua portuguesa ou pelo crioulo. Também existiriam etnónimos de outras origens designadamente fulas.
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11309: Notas de leitura (468): Catarse, por Abel Gonçalves (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11075: (Ex)citações (209): O fanado, visto por colons e colonizados...(António Rosinha / Cherno Baldé)



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Darsalame (vd. carta de Cacine) > Festa do fanado ou cerimónia de iniciação dos jovens em Darsalame.  Foto da Galeria da AD - Acção para o Desenvolvimento, em Bissau, e parceira do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Esta foto foi tirada em 15 de abril de 2009 usando uma Canon Digital IXUS 90 IS. Foto reproduzida com a devida vénia...

"À semelhança de muitas outras etnias, os jovens balantas fazem das cerimónias de iniciação, os chamados Fanado, momentos importantes da sua vida.

É nesta ocasião que lhes são transmitidos os valores individuais e colectivos tradicionais, os segredos que devem guardar, as normas de conduta social, as leis comunitárias e onde os jovens fazem prova da sua coragem e valentia, relatando e demonstrando actos relevantes praticados antes de entrarem para o Fanado.

Durante cerca de 2 meses, os jovens recolhem-se no meio do mato, na barraca do fanado, onde ninguém os volta a ver, limitando-se as respectivas famílias a levar a alimentação de que necessitam. Antes de entrarem, os jovens brincam, fazem jogos e danças, mostrando os seus trajes de rebeldia, muito apreciados por toda a população."

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados.

1. Comentários do António Rosinha e do Cherno Baldé ao poste P11070:

(i) António Rosinha:

Estas práticas cerimoniais africanas que hoje se pretende eliminar, eram praticadas no tempo colonial, discretamente, um pouco às escondidas das autoridades coloniais, no caso das ex-colónias portuguesas.

No caso da Guiné, após a independência, passaram a ser praticadas publicamente e com datas próprias assinaladas pelas próprias autoridades.

Só que passou a ser testemunhado passivamente, como se fosse um inofensivo folclore, durante décadas pela UNICEF, OMS, AMI, MSF, médicos e paramédicos de Cuba, que apoiavam aquelas autoridades sanitárias incondicionalmente.

Só agora? antes tarde que nunca.

Antº Rosinha

(ii) Cherno Baldé:

Caros amigos,

Este tema já aqui foi objecto de discussão mas nunca é demais voltar a rebatê-lo pois é importante a sensibilização das pessoas a volta dos nossos problemas sociais e culturais.

Sobre esta problemática já Cabral nos dizia, mais ou menos nestes termos: "devemos manter os aspectos bons da nossa cultura, mas devemos combater e abandonar os que concorrem para manter o nosso povo no atraso e no obscurantismo".

Claro que na altura não tinham declarado guerra aberta a estas práticas, suponho que, pelas mesmas razões porque o Governo colonial não o fazia.

Do meu ponto de vista a excisão feminina resultou, históricamente, de uma simples transposição da circunscisão (fanado masculino) por iniciativa e vontade próprias da mulher, como uma instituição social de purificação, como diz o Luis Graça e também de educação ou socialização das meninas para o exercicio da função e do papel de mulher e como tal não podia ser anterior a islamização do mesmo modo que a circunscisão resulta de uma prática bem conhecida e intimamente ligada a religião que remonta até Abraao, este é o primeiro ponto.

Mas, ao mesmo tempo, a excisão feminina não resulta de nenhuma imposição ou fanatismo religioso como, erradamente, se pode pensar e o "fatwa" proferido pelos Imames no Parlamento, é demonstrativo deste facto. Da mesma forma que também ela não resulta de uma discriminação ou imposição dos homens em relação as mulheres nas nossas sociedades.

A luta contra a MGF, antes de mais, deve ser travada no seio da própria camada feminina, mas também no campo do desenvolvimento integral do Homem em geral (homens e mulheres) e, sobretudo, no dominio da educação.

Lembro que o meu pai não era letrado e vivia no campo, mas o simples contacto com comerciantes Lusos (portugueses e Caboverdianos) nos anos 60 foi o suficiente para abrir os olhos e mudar a sua filosofia de vida e o caminho escolhido para os seus filhos numa época em que as forças do obscurantismo ainda reinavam.

Assim, para as novas gerações da Guiné, a batalha contra a MGF e as práticas culturais consideradas nefastas só poderão ser ganhas se o combate contra a pobreza e o analfabetismo for encarado com firmeza e determinação, mas para isso precisamos de mais e melhor organização, de mais e melhor estado que possa conceber politicas e fixar metas que sejam económica e socialmente exequíveis.

Bem, depois de todo esse trabalho, esperamos que, a seguir, não nos venham a dizer para legalizarmos o casamento gay porque, convenhamos, isto dos direitos humanos pode ser uma verdadeira caixa de pandorra.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11049: (Ex)citações (208): Monóculo de Spínola oferecido ao Museu Etnográfico de Silgueiros - Viseu (Amaral Bernardo)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11070: Recortes de imprensa (64): Ontem, Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, cerca de 200 imãs guineenses decretaram, em Bissau, uma fatwa contra o fanado (Lusa / Público)


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 80:  Mulheres, de rosto tapado, na festa do fanado (?)... Ignora-se o que faziam junto ao edifício do comando do batalhão... Fotos do álbum do José Carlos Lopes, ex-fur mil reabastecimentos.

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Editadas e legendadas por L.G.)

1. Ontem foi o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina... A MGF é também conhecida por corte dos genitais femininos, circuncisão feminina, excisão, fanado, sunna, circuncisão faraónica...E ainda se pratica em cerca de três países de África, Próximo Oriente e Sudeste asiático... Portugal, França  e outros países europeus que acolhem imigrantes, nomeadamente da África Ocidental, são também países de risco. Este ano a Organização das Nações Unidas está otimista quanto à possibilidade de, num futuro próximo, ainda se poder pôr fim a esta prática não só atentatória dos direitos humanos como altamente nociva à saúde sexual e reprodutiva das raparigas e mulheres excisadas.

Dados fornecidos pelo International Day of Zero Tolerance of Female Genital Mutilation/Cutting, das Nações Unidas, parecem indicar um decréscimo da prevalência desta prática, em geral, estando a geração mais jovem menos vulnerável  hoje do que no passado.

Nos 29 países da África e do Médio Oriente onde a prática da MGF está concentrada, uma média de 36% de raparigas,  na casa dos 15-19 anos, foram excisadas, percentagem essa bastante inferior à estimada (53%) para as mulheres da faixa etária dos 45-49 anos.  Esse declínio é mais evidente em países como o  Quénia em que a percentagem de mulheres excisadas é três vezes superior à das raparigas entre os 15 e os 19 anos.

Para o director executivo da UNICEF,  Anthony Lake, "este progresso mostra que é possível acabar com a MGF". Estas estimativas recentes produzidas pela UNICEF mostram que pelo menos 120 milhões de meninas e mulheres sofreram MGF / Circuncisão, nestes 29 países. Dadas as tendências atuais, pelo menos 30 milhões de meninas com menos de 15 anos de idade ainda poderão  estar em risco.  

Em  dezembro passado, foi adotada por unanimidade uma resolução da Assembleia Geral da ONU , c condenando a MGF / Circuncisão e convidando os Estados membros a intensificar os esforços para a sua eliminação completa. (A MGF/Circuncisão engloba 4 tipos de práticas: vd. Quadro 1, a seguir).


Fonte: Yasmina Gonçalves - Mutilação Genital Feminina. Lisboa: Associação paar o Planeamento da Família. 2004.


2, Também na Guiné-Bissau surgem algumas boas notícias neste campo. Reproduzem-se aqui excertos de uma notícia da Lusa, publicada no Público, de ontem;


(...) "Líderes islâmicos guineenses pronunciaram esta quarta-feira, no parlamento do país, uma fatwa (um decreto religioso) proibindo a prática de excisão, que afecta cerca de 50% de raparigas e mulheres.

"Cerca de 200 imãs vindos de todas as partes do país assistiram, no parlamento, à leitura da fatwa e declararam solenemente que, a partir de hoje, vão reforçar o apelo para o abandono da prática da excisão, por não ser uma recomendação do Islão".

O influente imã Mamadu Aliu Djaló, da mesquita central de Bissau, que é também o segundo vice-presidente do Conselho Superior dos Assuntos Islâmicos,  declarou que "a excisão não está no Islão, e nos ensinamentos do profeta Maomé também não vimos nada disso, até porque as filhas do profeta, as filhas dos seus discípulos, não foram submetidas à excisão. Isto é um uso e costume de certas comunidades islâmicas”.

Segundo a fonte que estamos a citar (Lusa / Público),  "o presidente do parlamento guineense, Ibraima Sory Djaló, que presidiu ao acto, declarou que se alcançou “um grande marco” no país com a adopção da fatwa, o que, disse, vai ao encontro da lei aprovada pelos deputados em 2011 criminalizando a prática. “Esperamos agora que a lei seja respeitada, para que não seja necessário que se prendam pessoas por causa da excisão” na Guiné-Bissau, declarou Sori Djaló, apelando, contudo, para o reforço da divulgação da lei.

Ainda segundo a Lusa / Público:

(...) Para Fatumata Djau Baldé, presidente do Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança, um consórcio de 18 ONG guineenses e estrangeiras, “hoje é um grande dia” na luta contra “a tragédia silenciosa que afecta cerca da metade das raparigas e mulheres” da Guiné-Bissau. “Hoje é um dia histórico. Não ganhámos a guerra contra a excisão, mas alcançámos uma grande conquista contra essa prática degradante para a saúde da mulher guineense”, disse Djau Baldé, emocionada. [Ela própria foi vítima, em criança, da MGF].

O ministro da Saúde Pública guineense, Agostinho Cá, considerou o dia de hoje como sendo aquele em que se prestou um dos melhores serviços ao povo com a adopção da fatwa “pelos chefes religiosos” islâmicos, “proibindo uma prática secular” que se caracteriza pela submissão da mulher a situações “atentatórias da sua dignidade”.

Assistiram à leitura e adopção da fatwa, a primeira a ser pronunciada na Guiné-Bissau, elementos do corpo diplomático e o representante adjunto do secretário-geral das Nações Unidas, Gana Fofang, que é também o coordenador do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) no país.

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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10931: Recortes de imprensa (63): Homenagem, em maio de 2008, ao tenente capelão Joaquim Ferreira da Silva, jesuíta, natural de Santo Tirso, que pela sua coragem e lucidez terá evitado um banho de sangue no campo de prisioneiros de Pondá, Goa, em 19 de março de 1962 (JN- Jornal de Notícias, 12/5/2008)

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9426: (In)citações (38): Mutilação Genital Feminina: As Mães africanas não são malfeitoras! (Jorge Cabral)

 



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > Festa de batizado muçulmano (10h34)... Uma mãe (in)expressiva, uma mater dolorosa...


Foto: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


 
1. Mensagem do Jorge Cabral, que é jurista, especialista em direito criminal,[ na foto à esquerda, com a uma aluna, de origem guineense, na Universidade Lusófona, em Lisboa, ] e também foi Alf Mil Art, Cmdt Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71): Caro Luís,
  

Como não cabe como comentário ao texto "Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo",  do Chemo Baldé (*), ai vai a minha última conferência sobre o assunto.
Atenção, foi proferida antes das alteração do Código Penal da Guiné Bissau. 
Abraço Grande, JCabral.

2.  Conferência do Jorge Cabral, proferida no Barreiro, na Biblioteca Municipal, em 10 de Maio de 2011 > Mutilação Genital Feminina


Muito boa tarde a Todos!


Cumprimento, felicitando a Organização deste evento na pessoa do Dr. Vítor Munhão, bem como a simpática troika que me acompanha. Saúdo os presentes e convido-os a escutar esta tão humilde reflexão.

A chamada Mutilação Genital Feminina (MGF), prática, com milhares e milhares de anos, vem suscitando curiosidade, interesse e preocupação, um pouco por todos o lado, como se tratasse de algum costume novo, fruto de mães criminosas ou culturas inferiores.

Naturalmente vou deixar, para as companheiras Mafalda e Deolinda,  a tarefa de elencarem os tipos e as consequências desta Mutilação, optando por me debruçar sobre o Fenómeno, numa perspectiva global, a qual julgo mais idónea à sua compreensão.

Há quarenta e dois anos assisti a um Fanado na Guiné-Bissau, cerimónia de iniciação, com dor, sangue e lágrimas, mas também solenidade e magia. Ritual importante, confere a identificação sexual, quer nos rapazes pelo corte do prepúcio (a parte feminina) quer nas meninas, pela ablação do clítoris (a parte masculina).

Desde sempre nas minhas aulas de Direito Penal, nos vários cursos, falo da excisão, a propósito da falta de consciência da ilicitude, pois ninguém pode ou deve ser punido, se não tiver interiorizado o ilícito do acto praticado. O problema discutido é sem dúvida importante numa sociedade multicultural. Será possível sobrepor o direito à diferença étnico-cultural ao preceito incriminador?

Creio que nenhum caso foi julgado no nosso País, mas em França ocorreram vários julgamentos e consequentes condenações, de mães originárias da África Ocidental, tendo Lefeuvre-Déotte, recolhido alguns depoimentos impressionantes como estes:

  •  “Fiz excisar a minha filha… não para a fazer sofrer, ou para a mutilar, ou para fazer tudo aquilo de que me acusam neste processo, mas porque é o meu costume, a minha tradição”;
  • “Não quis fazer mal algum, é a minha tradição que me obriga… Eu amo muito os meus filhos. Uma mãe africana não é uma malfeitora…”

Certamente que em Portugal teríamos declarações semelhantes.

A Mutilação Genital Feminina é conhecida em Portugal há séculos. E sempre foi criminalizada. Ofensa Corporal no Código Penal de 1886 que expressamente previa – “se da ofensa resultar cortamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou órgão do corpo…” - a pena será de “prisão maior de 2 a 8 anos". Ou ofensa à integridade física grave nos Códigos seguintes… “Privá-lo de importante órgão ou membro… ou tirar-lhe os, afectar-lhe de maneira grave as capacidades intelectuais ou de procriação ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos”…. Cominando uma pena de prisão de 2 a 10 anos.

Parece óbvio que a conduta em causa sempre esteve enquadrada nas disposições citadas. Não é necessária, nenhuma referência específica ao clítoris, grandes ou pequenos lábios… Também não há referência aos olhos ou ao nariz… A não ser que os genitais não façam parte do corpo da Mulher. A questão não é essa. Nós e os outros. A Europa e a África. Cultura, culturas e relação inter-cultural.

Quando é que em Portugal se começou a falar do problema? Creio que só neste século, designadamente a partir dos importantíssimos artigos da Jornalista Sofia Branco, no Jornal – O Público, em 2002.

E no entanto toda a gente sabe que,  na Guiné-Bissau, se praticou e se pratica a utilação Genital Feminina e que,  até a independência, era o Código Penal Português que lá vigorava. Nós e os outros, isto é, uma espécie de apartheid cultural.

Durante a Guerra Colonial, milhares de Portugueses conviveram com essa realidade. Médicos, enfermeiros, padres, agentes da chamada Acção Psico-Social… Respeito pela cultura, pelos costumes, pelas tradições? Ou indiferença? É lá com eles…

Falo de Portugal, mas podia referir outros países europeus. O problema só assume real importância, quando face ao fluxo migratório, a excisão passa a ter lugar também na Europa, entre imigrantes. Quando falo deste tema logo me perguntam:
– E em Portugal, também se pratica?

Longe da vista, longe do coração, traduz esta postura, egocêntrica e europocêntrica, a qual encerra uma visão distorcida e amputada dos Direitos Humanos, que - frise-se - são universais e tão válidos para a menina do Barreiro, como para a menina da Somália. Ou não serão ambas portadoras de igual Direito à Dignidade ? 

Independentemente das diversas e falsas razões que procuram fundamentar o acto, uma certeza se retira – o seu objectivo fundamental é controlar, melhor,  anular a sexualidade feminina.

A mulher como objecto e não como sujeito do prazer sexual. No fundo, no fundo, trata-se de uma visão que acompanhou desde sempre a Humanidade, e que, quer queiramos ou não, ainda resiste, mesmo em sociedades ditas avançadas. Infelizmente, constato que, no plano sexual, não chegámos à igualdade entre Homem e Mulher. Ainda há quem pense que sexo é uma coisa que os homens fazem às mulheres e se calhar as lições que o meu avô me deu – “A mulher para o dever, a puta para o prazer” ou “Quando uma mulher diz não, quer dizer sim”, pelo menos entre alguns, permanecem actuais.

É pois nos Direitos da Mulher que o problema deve ser enquadrado, Direito ao Corpo, Direito à Sexualidade, Direito à Dignidade, Direito à Liberdade, enfim é o estatuto da Mulher na sua integralidade que está em causa. A mulher coisa, a mulher comprada e vendida, a mulher propriedade, a mulher sob o domínio do homem.

Por essa razão de nada valerá tecer armas contra a mutilação, sem lutar contra todas as situações que inferiorizam a Mulher, designadamente a sua compra ou o casamento forçado.

Direito das Mulheres, mas também Direito das Crianças, pois este tipo de prática é efectuado, em crianças menores de idade, na primeira infância (2 – 4 anos) ou na pré-puberdade (9 – 11 anos).

É a Comunidade, é a Família, são os Pais que determinam. Também aqui convém relembrar que os Pais não são donos dos filhos e que toda a sua acção deve ser orientada para a educação e desenvolvimento da Criança, obedecendo sempre ao Interesse Superior da mesma, como a Convenção sobre os Direitos da Criança determina no seu Art.º 18º.

E a mesma Convenção acentua expressamente, no seu Art.º 24º, N.º3 – Os Estados-partes tomam todas as medidas eficazes e adequadas com vista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde das Crianças.

Convenções, Leis, Códigos não nos faltam.

Não conheço nenhum Código Penal que de uma forma ou de outra não penalize este acto, embora o Código Penal da Guiné-Bissau possua um artigo intrigante e de difícil interpretação. É o Art.º 117, que sob a epígrafe “Ofensas Privilegiadas” reza que: “Quem habilitado para o efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar os efeitos do Art.º 115º ou a morte da vítima… (o Art.º 115º elenca de uma forma semelhante ao nosso, as circunstâncias que qualifiquem a ofensa corporal como grave).

Quererá a primeira parte do artigo dizer que a excisão pode ser autorizada, desde que efectuada por quem estiver habilitado?

Indiciará uma medicalização da prática, vendo o problema como uma mera questão de saúde pública? Claro que dadas as condições em que na maioria dos casos é efectuada é também um problema de saúde pública, mas encará-lo apenas dessa forma, é transformar uma complexa cerimónia de iniciação numa intervenção cirúrgica, sem outro objectivo ou razão, senão cumprir o costume. Semelhante actuação é aliás incentivadora, quando não legitimadora da mutilação,  e segundo penso contrária à própria deontologia médica.

Não nos esqueçamos que durante o século XIX e até aos anos 30 do século XX, tanto nos Estados Unidos como na Europa, a ablação do clítoris constituiu tratamento da histeria, da ninfomania e do lesbianismo…

Não existem culturas superiores nem culturas inferiores e o direito à sua própria cultura, à sua identidade cultural, constitui um direito fundamental, inscrito quer no Art.º 27º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, quer na própria Convenção dos Direitos das Crianças, no Art.º 30º.

E assim deve continuar a ser. Não queremos um Mundo de clones, todos iguais, lendo os mesmos livros, escutando as mesmas músicas e comendo os mesmos hambúrgueres, filhos da Globalização Económica e netos da Internet.

Devemos preservar os costumes e as tradições, para sabermos quem somos e donde vimos. Por isso devemos respeitar todas as outras culturas, respeitá-las e compreendê-las, num constante diálogo inter-cultural. Mas cada cultura encerra em si valores e desvalores. Não devemos deixar morrer os valores, mas procurar extinguir os desvalores.

A Mutilação Genital Feminina será um valor cultural a ser respeitado ? É um problema dos outros? Obviamente que não podemos cair em tal relativismo cultural. A ser assim, toleraríamos que as viúvas na Índia fossem enterradas vivas com os falecidos maridos, que os chineses partissem os pés às meninas e até que certas formas de canibalismo continuassem.

Claro que a Mutilação Sexual Feminina é um crime. Não basta porém afirmá-lo. É necessário que aqui e em todo o Mundo, as Pessoas compreendam porque é um crime. Porque causa dor, porque provoca sofrimento, porque inferioriza a Mulher, e a anula, enquanto Ser Humano, na sua Dignidade.

Combatê-la é um imperativo! Mas não através do Direito Penal, cuja eficácia é reduzida e muitas vezes contraproducente.

A repressão penal,  só por si, levará a um maior secretismo, aumentará os riscos da sua prática e determinará um sentimento de discriminação cultural.

Em qualquer lugar a MGF, é igualmente grave, enquanto violação dos Direitos Humanos, cuja universalidade nos impõe, que a sintamos como violação dos nossos Direitos. A lapidação de uma Mulher no Irão, a condenação à morte de um Homossexual na Arábia, ou a mutilação de uma menina no Sudão, constituem ofensas à minha condição de Homem Livre, até porque a minha Liberdade só pode ser assumida em plenitude, num Mundo de Homens e Mulheres Livres.

A universalização dos Direitos Humanos não pode ser olhada como uma espécie de imperialismo cultural. Os valores fundamentais inerentes à condição humana não têm cor, nem latitude, nem religião. Todas as culturas interagem e se completam, se e quando forem objecto de um igualitário e correcto diálogo intercultural, que deve visar a construção de uma cidadania multicultural.

A Mutilação combate-se não através de slogans, mas pelo trabalho em prole da igualdade de género, respeito pela criança, assumpção da liberdade e dignidade humana, numa atitude que não inferiorize o outro, no seu inalienável direito à cultura.

Pratica-se a Excisão em Portugal?

Não sei! Mas sei que aqui vivem centenas de mulheres que sofreram a Mutilação. Elas sim, deviam ser mais do que Testemunhas, Agentes, Intervenientes da Luta, contra a indignidade.

O Fanado é uma cerimónia importante. Deve ser preservado, mas transformado. É possível; substituir a Dor e o Sangue, pela Festa e a Alegria, num Ritual, que troque a realidade do corte, pelo simbólico do gesto ou da dança. Um fanado alternativo que já foi ensaiado, que não marginalize as «Fanatecas» na sua tradicional autoridade,  antes as aproveite como organizadoras. Todos os costumes e tradições podem ser lembrados a nível simbólico.

Não casam as noivas de branco?

Parece que já falei de mais. O meu amor ao povo da Guiné-Bissau, o meu respeito pela sua cultura, a minha admiração pela sua bondade, impõe-me a obrigação de afirmar sentidamente, fazendo coro com a tal Mulher julgada em França:_
-  As Mães africanas não são malfeitoras!

Tratá-las desse modo será frustrar qualquer combate.

Lutar,  sim, mas com inteligência e respeito, porque habitamos o mesmo Mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana, lutar sim porque é nossa obrigação contribuir para um Futuro mais Livre, Fraterno e Solidário.

 Muito obrigado

Jorge Cabral

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 30 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9423: (In)citações (37): Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo (Cherno Baldé)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9423: (In)citações (37): Mutilação Genital Feminina e Eurocentrismo (Cherno Baldé)

1. Comentário, ao poste P9410, aposto pelo Cherno Baldé [, foto à direita, com os seus quatros filhos, rapazes]:

 Amigo José Saúde,

O tema que hoje trazes à estampa, [a Mutilação Genital Feminina,]  é muito importante e oxalá tivesse eco junto dos demais, em especial da nossa população e assim contribuir para ajudar a neutralizar esta prática em África.

A necessidade de acabar com a pratica da Mutilacao Genital Feminina, devido às consequências negativas na saúde da mulher, é hoje tão consensual que deveria ser automaticamente aceite e aplicada por todos, de forma generalizada.

Mas, se isto nao se verifica é porque existem razões internas, profundas, enraizadas na cultura ancestral (social e religiosamente falando), é verdade, mas também, existem outros motivos e um deles é o facto de esta campanha mundial ser de iniciativa europeia, mais uma e logo suspeita!!! E porquê?

Há um proverbio africano que diz: "Quem já teve um encontro com um 'kancuran' de certeza que terá medo do bagabaga", que o é mesmo que dizer: "Gato escaldado, de água fria tem medo".

Depois de tudo o que (de bom e de mau) aconteceu no encontro entre europeus e africanos,  o que garante que as ideias vindas da Europa são completamente isentas, humanistas e desprovidas de "arrière pensée"?

Sem necessidade de voltar muito atrás na histária, lembro simplesmente que na Nigéria, e provavelmente em toda a África, já se viram campanhas de vacina (para a saúde das crianças!?) transformar-se em campanha para servir-se de cobaias humanas.

A África deve acreditar?!...

A África deve acreditar na Europa e na ciência!?.. Então não é essa mesma Europa e a sua Ciência que, em tempos, considerava o africano ligeiramente superior ao macaco das florestas tropicais e digno de ser obrigado a trabalhar!?..

A África deve mudar?!...

Para que sentido!? Norte, sul, leste...ao capricho e gosto dos europeus?!

Apesar de tudo, ainda há pessoas que ficam admiradas pelo facto de os africanos resistirem e não aceitarem factos cientificamente comprovados. Mais que uma simples teimosia de caráter cultural das nossas populações, na minha opinião, é a confusão e o desnorteamento que criam a resistência à mudanca e não ajudam os voluntários das boas intenções (atencao, de boas intenções...)

Um grande abraço,

Cherno Baldé

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9117: (In)citações (36): Para melhor compreendermos a África... (Artur Augusto Silva, 1963)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8959: (In)citações (35): Ainda a Mutilação Genital Feminina (MGF), Excisão ou Fanado Feminino (J. Pardete Ferreira)



S/l > s/d > "Esta é uma imagem do 'peditório' para ajudar o 'ronco' do fanado. Neste caso masculino". [Imagem possivelmente retirada do livro Le noir d'Afrique, 1943].






Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto ou Canchungo > 1969 > "Nha manjaco arfero Mil Médico José Pardete Ferreira com mininos pró fanado fora do arame farpado"


Fotos (e legendas): © J. Pardete Ferreira (2011). Todos os direitos reservados.

1. Sobre o tema  candente, atualíssimo, da Mutilação Genital Feminina - problema de grande conflitualidade teórico-etnológica, de saúde pública, de direito penal e de direitos humanos - , já aqui abordado diversas vezes no nosso blogue, recebemos ontem, 27, o seguinte texto do nosso camarada, médico, reformado, José Pardete Ferreira (ex- Alf Mil Med, CAOP, Teixeira Pinto; HM241, Bissau, 1969/71):


Assunto - Ainda sobre a  MGF

A MGF [, Mutilação Genital Feminina], por vezes chamada de Excisão e mais raramente Fanado Feminino, pese embora o facto de, nos tempos que correm, ser uma verdadeira barbaridade, na sua origem foi uma necessidade fisiológica.


Assim, [apontam] os estudos antropológicos dos médicos do Serviço de Saúde das Colónias, quase todos, se não mesmo todos médicos, médicos do exército francês. 

Este texto é apenas uma súmula extraída do livro Le noir d’Afrique, anthropo-biologie et raciologie, escrito pelo Dr. G. Lefrou, Médico Chefe de 1ª classe do Corpo de Saúde Colonial, distinguido pelo Instituto e pela Academia das Ciências Coloniais. O livro foi publicado em 1943 pelo editor Payot, Paris [429 pp.], vd. páginas 235/236. [, foto da capa à esquerda].

Quanto ao citado, encontramos o facto de, na Abissínia, Somália e certas regiões do Sudão, as mulheres terem um clítoris de tal maneira desenvolvido que fazia lembrar a dos indivíduos hermafroditas. No coito, tal anomalia tornava extremamente difícil a penetração do pénis na vagina, com todas as consequências que tal situação implica, nomeadamente a propagação da espécie, pelo que a MGF se tornou uma necessidade.

Vem descrito por Loth, publicado por Hyrtl em 1881,  que quando o cristianismo foi introduzido na Abissínia [, hoje Etiópia,] , a Igreja proibiu esta mutilação, o que provocou a revolta dos homens e teve como consequência o envio pelo Papa de uma missão especial que inquiriu e acabou por aprovar a necessidade de tal operação.

Assim, o que foi uma necessidade fisiológica, rapidamente se espalhou por toda a África, passando a aplicar-se a torto e a direito, de forma indiscriminada, nalguns casos por espírito de imitação, eventualmente tornado religioso, entre as etnias animistas e algumas muçulmanas (esta última citação é minha e não vem no texto).

José Pardete Ferreira

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8060: Agenda cultural (115): Reportagem de Conceição Queiroz, na TVI, no passado dia 28 de Março, sobre a Mutilação Genital Feminina (Hugo Moura Ferreira)

1. Mensagem do nosso camarada Hugo Moura Ferreira:

Data: 3 de Abril de 2011 19:23
Assunto: MGF

Caros editores:

No passado dia 28 de Março, a TVI apresentou o REPÓRTER TVI, ["Cicatriz", ]  que versou sobre a Mutilação Genital Feminina, com declarações bem interessantes, apresentado por uma jornalista [, Conceição Queiroz, ] que profissionalmente considero bastante.

Como sei que há alguns dos camaradas que se interessam por este tema, aqui deixo o link da TVI para a referida Reportagem, a fim de que possa ser circulado por vós, se assim entenderem:

http://www.tvi24.iol.pt/videos/video/13406717/1 [Vídeo: 37' 32'']

Abraço amigo.

Hugo Moura Ferreira

terça-feira, 29 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6654: José Corceiro na CCAÇ 5 (13): Ritual do Fanado no Aquartelamento de Canjadude

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 18 de Junho de 2010:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães.
Como me tinha comprometido, no P6320**, trago mais uma vez ao Blogue o tema do Fanado em Canjude, Guiné.
Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, assim como a inclusão das fotos onde acharem apropriado.

Um Abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (13)

RITUAL DO FANADO NO AQUARTELAMENTO DE CANJADUDE

Desde criança, com seis ou sete anos, tanto quanto me lembro, que nutro particular interesse por matérias relacionadas com os seres Vivos (a Vida) e a sua interacção com o meio circundante. A curiosidade, o gosto, a vontade de mais saber, foi evoluindo para temas mais específicos, na área da Biologia (Citologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Genética, Bioquímica, etc. etc.).

Sempre admirei e fico estupefacto, ao confrontar-me com o alto nível de organização social das formigas, e outros insectos, ou seja, a Eusocialidade. Lembro-me dos tempos de criança, as traquinices que eu fazia ao descontinuar os corredouros da passagem das formigas, limpando nos trilhos os seus vestígios de marcação, suspendendo assim a sua azáfama laboriosa, ver as suas resistências até se organizarem novamente e partirem à luta do quotidiano, não sabendo eu, na altura, nada sobre ácido fórmico (metanoico) ou sobre o poder das feromonas. Verificava, inicialmente, a reacção de indecisão e pânico gerado no grupo dos insectos, por lhe faltarem os rastos guias, marcados com feromonas, no seu carreirinho que os orientava rumo ao alvo alimentício, até que se ordenavam e disciplinavam, para logo de seguida prosseguirem, com a sua estafa, em piso adjacente ao descaracterizado, com destino ao objectivo, nos dois sentidos, sem desfalecimento, cansaço, ou desmotivação, mas, antes sim, com expediente, determinação e afoiteza, pugnando pela sobrevivência do formigueiro.

Recordo também a minha perplexidade e admiração, devido à majestosa estrutura social e energia dinâmica das abelhas, na sua labuta infatigável para governar e perpetuar a vida. Intrigava-me a rapidez com que chegavam à descoberta do mel, por mais camuflado que estivesse, elas apareciam num ápice e iam direitinhas ao mel, que eu colocava em caixinhas da pomada dos sapatos, já vazias, em sítios escondidos e de difícil acesso, a dois ou três quilómetros de distância do local onde estavam as colmeias, o apiário, que era do meu avô, um pequeno industrial de mel e seus afins (aguardente, a cera…), que tinha umas centenas de cortiços com enxames de abelhas.

Mais deslumbrado ficava eu quando o meu avô crestava as colmeias, geralmente duas vezes por ano, cujo mel era em cada época de diferente densidade, viscosidade e cor, consoante a captação do néctar, pelas abelhas, era mais ou menos plurifloral. Também era em função do peso que a colmeia tinha e conforme a variação das Estações do Ano, assim como a mudança do local dos cortiços para regiões de mais ou menos floração, que se aferia se devia haver segunda cresta, estes factores tinham muita influência no armazenamento do mel na colmeia.

Logo que o meu avô despregava e levantava o tampo superior do cortiço, ao tirar as “sovinas” (“viros”, pregos de madeira feitos dos caules das “xaras” estevas) e me deixava ver o interior da colmeia, com capelo enfiado na cabeça e depois de utilizar a mecha para afugentar as obreiras, podia observar os seus labirintos de acessos e movimentações, habilmente arquitectados pelos laboriosos animaizinhos, que os dimensionavam com um alinhamento e aprumo constantes, cujos edifícios nada mais eram do que os favos de mel, devidamente organizados e distribuídos pelas trancas cruzadas do cortiço que os suportavam. Ficava intrigado e maravilhado, como é que um insecto tão pequenino a laborar no escuro, conseguia ordenar com tamanha perícia, precisão e beleza, tão preciosas obras de arte, concluídas com todo o rigor matemático, quer na uniformidade de enfileiramento dos acessos, quer na perfeição da arrumação dos favos. Nos favos, os seus alvéolos todos geométricos e homólogos, obedecendo ao rigor das leis trigonométricas, cheios de mel e tamponados com tamanha mestria, tornavam-se tentação para os saborear, despertado no homem o desejo de saquear as colmeias constantemente.

Nos dias de cresta, eu não faltava a esse acontecimento, aguardado com ansiedade e euforia e, logo pela manhã, todo prazenteiro, deslocava-me para o local da faina, onde com curiosidade ficava atento ao desenrolar de todas as tarefas dos crestadores com a crestadeira em punho, para fazer a cresta. Eu, logo que presumisse ser oportuno, seleccionava um favo que me parecia ser o mais perfeitinho, ainda que todos iguais, para me deliciar e besuntar.


Foto 1 - Livro que o meu avô me deu quando eu tinha 9 ou 10 anos.

Ainda hoje guardo um livro que o meu avô me deu, sobre Apicultura, escrito em Espanhol, porque na época não havia nada escrito em Português sobre o tema, andava eu na escola primária.

Tem sido esta curiosidade intrínseca na minha génese, que me tem acompanhado pela vida fora e, foi talvez, por condão a ela, que me ia metendo em palpos de aranha, quando da minha falta de prudência ultrapassei o limite do razoável e quis tirar fotos na mata ao Altar de Rituais do Fanado, onde as meninas de Canjadude iam a ser mutiladas, (Fanado) como relatei no Poste 6320.

Foto 2 - No terreiro sagrado da Tabanca, com o Povo reunido, creio que vedado ao sexo feminino, dá-se inicio aos rituais festivos. Vê-se à frente o Sr. Capitão Costeira, no centro da foto.

Foto 3 - Animal sacrificado, cabrita, que faz parte do ritual e cujas vísceras, e outras partes do corpo, são colocadas numa taloca de árvore sagrada, como oferenda ao Deus Alá.

No comentário que fiz no Poste 6320, prometi que traria o tema do Fanado novamente ao Blogue, isto porque no espaço de um ano houve uma mudança muito acentuada na mente e no procedimento, dos Homens Grandes da Tabanca de Canjadude, para encarar as tradições e dar outra permissividade a toda a problemática que envolve o cerimonial do Fanado. Deu-se uma abertura, salto de gigante, impensável, porque pela primeira vez em Canjadude foi facultado (convidados) aos militares metropolitanos, que se envolvessem um pouco, nos rituais festivos da Tabanca, quer assistindo fisicamente, quer nas tarefas de organização dos meios de suporte, de forma a poder criar condições e disponibilizar estruturas com mais potencialidades de salubridade, para que a execução do Fanado fosse operado em local menos inclemente, com utensílios e meios mais higienistas (anti-sepsia), de forma a minimizar os efeitos funestos das infecções e seus colaterais.

Foto 4- Reunião dos Homens Grandes das etnias representadas, Anciães, a planear o desenrolar do ritual, vendo-se no meio, o Sr. Capitão Costeira.

Foto 5 - Momento solene de passagem de penhor.

Esta abertura de comportamento da parte dos civis de Canjadude, deve-se em parte ao empenho e envolvimento do Sr. Coronel Arnaldo Silveira Costeira, que na época como Capitão, foi um dos quatro Comandantes na CCAÇ 5, que eu conheci. Foi a diligência e a visão para por em prática, toda uma política de reconciliação e entrosamento à comunidade civil, levada a cabo pelo Sr. Capitão Costeira, homem com sensibilidade, sensatez, sentido de responsabilidade e dever, que estimulou toda uma conduta de avizinhamento, favorável para os militares e civis. Soube interpretar e aproveitar, no bom sentido, as deliberações das linhas orientadoras da política que aspirava implementar na Guiné, o Comandante-Chefe, Sr. General António Spínola, (vulgarmente chamada “psico”) tão propalada na altura em que o lema era “por uma Guiné Melhor”. A partir daqui, creio eu, que as portas do Aquartelamento Militar de Canjadude, ficaram mais permeáveis e acolhedoras às celebrações das solenidades civis, dando assim um contributo e prova de compromisso para uma aproximação sadia entre civis e militares, assim como ficou implícito uma confluência de sinergias propícias à melhoria da qualidade de vida da população civil, contribuindo de alguma maneira para um ajuste de vontades. Houve uma mudança perceptível para melhor, com mais confiança, acolhimento e doação, na coabitação dos civis com os militares, desde que eu cheguei a Canjadude, até sair de lá, algo melhorou.

Foto 6 - Deões juntos com a criançada e com os animadores de festividades, cujo trio se vê em último plano, de pé, tendo um polo verde.

Foto 7 - Início da preparação das meninas de Canjadude que iam ser Fanadas, com os familiares.

Em rituais de Fanado, as crianças ficaram um pouco mais protegidas, ao ser feito no Aquartelamento, onde se criaram algumas condições de salubridade e assepsia, não tantas quantas o acto exigia, mas já foi positivo. É digno de destaque o precioso contributo do envolvimento do pessoal de enfermagem que estava a postos para socorrer alguma urgência, ou se algo descambasse para além do propósito. Neste âmbito, pode dizer-se que já foi uma pequena vitória.

Para mim, é muito complicado compreender a circuncisão nos dois sexos como imposição religiosa, ou a base que sustenta a sua execução. É lógico, que no homem, quando necessária, por uma questão de sanidade, ou disfuncionalidade, (fimose, com anel prepucial muito apertado, podendo provocar estrangulamento) deve ser praticada em condições higiénicas.

A abominação, pela circuncisão masculina, dobrou ao ver dois miudinhos na “enfermaria” de Canjadude, a fazer curativo ao pénis, com a glande e área do sulco coronal, tudo infeccionado devido a uma má prática da circuncisão e, à dilação de tempo que mediou até os familiares decidirem, com tibieza, que as crianças precisavam de ser observadas e tratadas. Uma das crianças aparentava já não ter glande peniana, confundia-se glande com coroa peniana. Por aquilo que vi, fiquei sem saber se foi no acto da circuncisão, em que um auxiliar distende o prepúcio com uma das mãos, num sentido, retraindo a glande com a outra mão, no sentido oposto, com o pénis apoiado num cepo (base de encosto) para decepar o prepúcio com objecto cortante. Não sei se terá sido ao executar a acção de eliminar o prepúcio, que terá falhado a orientação do cutelo rumo à direcção do objectivo e, mutilaram acidentalmente parte da glande, ou se foi devido à evolução da infecção, que já estava em estado avançado, pois mais parecia que ia tudo gangrenar, porque os familiares só recorreram à enfermaria em último caso e com desconfiança. O que esta criança padecia/ceu, pois até urinar se tornava suplício …

Foto 8 - Preparação dum bebé para ser Fanado.

Foto 9 - Meninas de Canjadude a serem preparadas (perliminares) para o Fanado.
Ora, se eu era um inconformado e execrava a circuncisão masculina da maneira e razão pela qual era feita, muito mais me repugnava o acto da excisão do clitóris e dos pequenos lábios vaginais, nas meninas, ou seja a Mutilação Genital Feminina. Acção horrenda, impossibilitando e negando à mulher o direito ao prazer sexual, além de todos os inconvenientes para a saúde mental e física, assim como ficam sequelas, durante a vida, geradoras de graves problemas nefastos para a função da maternidade. Ainda que na mulher, a região púbica seja pouco ramificada por terminações nervosas, mutilar sem anestesia e anti-sépcia, e sabe-se lá com que tipo de objecto cortante, deve ser horripilante para a criança o feito que a fanateca executa ao fanar os órgãos do corpo da infeliz fanada. (nos partos quando a dilatação não é suficiente e há perigo de rasgar a abertura vaginal, o mais provável é que o médico, para controlar e orientar o rasgo, se antecipe e dê um corte a frio, (episiotomia) na zona do períneo e, é depois provável, que a sutura do corte até seja feita sem anestesia, atendendo à particularidade de insensibilidade da região púbica da mulher).

A MGF é uma prática execrável, e é lamentável que os Portugueses, nos séculos que estiveram à frente dos destinos da Guiné, nunca tivessem tido a preocupação, para ir minimizando a barbárie, que é, a prática da execução da Mutilação Genital Feminina.

Foto 10 - Rapazes de Canjadude calçados a caminhar na Tabanca rumo ao Aquartelamento para serem Fanados.

Foto 11 - O Sr. Capitão Costeira, como anfitrião, a receber e a cumprimentar à entrada da porta do Aquartelamento, os rapazes que se dirigiam para o local onde iam ser Fanados, a quem desejava felicidades.

Pelos relatos e descrição que me foram feitos por nativos de Canjadude, a forma como era efectuada a MGF, era dum barbarismo primário, consumando-se o fanado da pobre criança, na presença das outras meninas do grupo, insurgindo-se estas, negativamente e repudiando a que estava a ser fanada, caso esta chorasse ou tivesse lamentações. No cerimonial as meninas caminhavam descalças.

Nos preparativos que antecediam o acto da circuncisão dos rapazes, posicionavam-se em alinhamento, sendo incentivados por um adulto, a entoar cânticos guerreiros para exorcizar os espíritos malévolos e maus-olhados, assim como serviam, o extasiar dos cânticos, para expulsar o medo e incutir coragem e orgulho aos efebos.

Foto 12 - Rapazes no local onde estavam a ser Fanados, dentro do Aquartelamento, lado direito quando se saía para Nova Lamego, entre as rochas e o abrigo das praças, a entoar hinos guerreiros dirigidos por um adulto. Podem ver-se os biombos e estruturas, instalados pelos Militares. Aqui, os rapazes já estão descalços, em sinal de pureza e humildade para terem contacto com a terra.
Pelo que sei do fanado dos rapazes, estes não assistiam visualmente à circuncisão do companheiro, cada um avançava por sua vez para o local onde era executado o acto, ouvindo-se de seguida gritos lancinantes deste, quando lhe eliminavam o prepúcio. Logo de seguida, ele já fanado, saía do local aos saltos, a rir e a dizer que já era homem. No cerimonial os rapazes caminhavam calçados.

Em Canjadude estavam representadas quase todas as etnias do povo da Guiné, pelos militares da CCAÇ 5, e suas famílias. Cada etnia realizava o fanado nos seus membros em idades distintas. Havia etnias que o executavam logo em bebés e outras só o faziam já em adultos.

Foi insensibilidade dos nossos governantes, ao longo de anos e anos, ignorarem esta prática aberrante, sobre tudo no sexo feminino, sem que nada tenha sido feito para a debelar, quer em termos de educação, sensibilização, ou sanidade, faltou coragem e arrojo, para enfrentar o problema, embora o fármaco fosse difícil de administrar, mas era preciso curar esta tradição anormal e desviante no ser humano, mas nada foi feito, mesmo agora, parecem andar adormecidos os defensores da libertação da mulher! Foi pena…

Um abraço para todos e boa saúde.
José Corceiro

P.S.
Lanço um repto a algum camarada que tenha sido efectivamente Fanado e que com conhecimento de causa, nos possa tecer algum comentário, esclarecedor, sobre o significado das diversas etapas do ritual porque passam, até ser Fanado, referenciando as próprias fotos.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6641: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (22): José Corceiro, um bom filho, um melhor pai, um avô babado

(**) Vd. poste de 5 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6320: José Corceiro na CCAÇ 5 (10): Dia de Fanado em Canjadude

Vd. último poste da série de 3 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6527: José Corceiro na CCAÇ 5 (12): Canjadude visitada por dois ilustres Generais

sábado, 24 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6243: O 6º aniversário do nosso blogue (29): Aqui vamos adquirindo conhecimentos sobre outras culturas e tradições (Filomena Sampaio)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Filomena Sampaio com data de 22 de Abril de 2010 com a sua contribuição para a comemoração do 6.º aniversário do nosso Blogue:

Amigo Carlos,
Motivos não me faltam para deixar uma mensagem de parabéns pelo 6º aniversário do Blogue.

Como leitora do Blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que leio quase diariamente, quero dar os parabéns ao comandante Luís Graça e aos seus co-editores, pelo sucesso deste distinto espaço de leitura e informação. Para além de ficarmos com uma ideia do que foi a vida dos Nossos Militares em Guerra no Ultramar, também vamos adquirindo conhecimento sobre outras culturas e tradições, algumas que nos levam a reflectir e a querer saber mais.

Frequento o Clube de “Cidadania é Cultura” e decidi levar para discussão do grupo o tema “Mutilação Genital Feminina”. Foi através deste Blogue que tomei conhecimento desta tradição, e com base no que li e pesquisei escrevi um texto e fiz uma apresentação em Power Point.
Foi interessante, levantou muitas questões.
Obrigada a todos.

O livro que li – “Pami Na Dondo, A Guerrilheira” que me foi oferecido pelo autor Mário Fitas, (ex-Furriel Miliciano Operações Especiais, Guiné 1965/1966), um homem de palavra sentida, com uma vivência fortemente marcada pela guerra geradora de brutalidade e simultaneamente de forte amizade entre camaradas.

Esta obra varia entre a ficção e a realidade, somos transportados desde a vivência dos militantes do P.A.I.G.C. (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde) até à acção e forma de viver dos soldados que compõem a companhia, uma Unidade do Exército Português, onde o autor esteve integrado, numa comissão de serviço militar na Guiné.
Nesta obra, o autor retrata a vida duma jovem guerreira que luta pela Independência do seu país, a Guiné.

É uma história interessante, pois relata a vida de Pami em várias fases, fazendo referência entre muitos outros aspectos, ao facto de Pami não ter sido sujeita à mutilação genital feminina, o que na comunidade guineense muçulmana à qual pertencia, era prática tradicional.
Conta a maneira como Pami se transformou numa guerrilheira do P.A.I.G.C. que para ela seguia a prossecução dos objectivos que ela também visava.

Alistada nas hostes da guerrilha, sofre um acidente que lhe incapacita um dos braços e acaba professora do P.A.I.G.C., devido à sua formação escolar, (quarta classe de alfabetização) e pelo facto de falar correctamente o português.
Muito do que sabe, aprendeu sozinha lendo e interpretando um dicionário que um padre lhe ofereceu.

É na escola que ela mentaliza e doutrina os futuros guerrilheiros.
Numa emboscada das N.T. (Nossas Tropas), à tabanca (povoação) Pami e outros guerrilheiros são feitos prisioneiros, são interrogados pelas N.T., uns são mortos outros são libertados, mas Pami, continua prisioneira das N.T. pois não conta a verdade sobre a sua condição, afirma que só responde em balanta, (dialecto da tribo com o mesmo nome, uma etnia muçulmana existentes na Guiné), fazendo-se ignorante a qualquer outra língua.

Pami fica retida no Interior do Aquartelamento, é vigiada e interrogada várias vezes, mas não confessa a sua condição de guerrilheira.
Quando é descoberta, pensa que o comandante das N.T., a vai matar da mesma forma que matou os seus companheiros de luta, mas contrariamente ao que aconteceu com os seus companheiros, foi libertada e deixada livre para seguir o seu caminho.

Não sendo a mutilação genital feminina o tema de maior relevo na história contada neste livro, despertou-me uma certa curiosidade e talvez pelo facto de ser mulher me tenha levado a pesquisar sobre o assunto.

O que li não é de forma alguma agradável, muito pelo contrário.

A mutilação genital feminina praticada em certas partes da África, na Península Arábica e em zonas da Ásia, tem uma origem de ordem cultural.

É rejeitada pela civilização ocidental, considerada um dos grandes horrores do continente africano que pensa que a forma de mudar esta mentalidade é educar as mulheres mais velhas que perpetuam este costume, bem como os homens mostrando os danos físicos e psicológicos causados nas meninas que têm de se sujeitar a esta prática.

Não fundamentada religiosamente, acredita-se que esta prática seja muçulmana e que a mutilação genital feminina está certa. Os pais, mais propriamente a mãe e a avó têm voto na matéria, eles acreditam que se a jovem não for "cortada" nunca irá arranjar um marido, isso é a pior coisa que pode acontecer a uma jovem. Se a jovem se sujeitar à MGF (Mutilação Genital Feminina) é uma condição prévia do casamento. Se uma mulher não for mutilada pensa-se que ela não é pura sendo vista como prostituta e excluída da sua própria sociedade.

Algumas razões apontadas para a realização da MGF são assegurar a castidade da mulher, a preservação da virgindade até ao casamento e a fertilidade da mulher. Por razões de higiene, estéticas ou de saúde, também se pensa que uma mulher não circuncidada não será capaz de dar à luz, ou que o contacto com o clítoris é fatal ao bebe.

A mutilação genital feminina elimina o prazer sexual. A sua prática está cercada de silêncios e é vivida em segredo, acarreta sérios riscos de saúde para a mulher, é muito dolorosa, por vezes de forma permanente, causa danos físicos e psicológicos irreversíveis sendo responsável pela morte de muitas meninas.

A remoção do órgão genital pode ser feito com instrumentos de corte impróprios (faca, caco de vidro ou navalha) não esterilizados e raramente com anestesia.

Um dos motivos para a continuidade deste ritual é a fonte de rendimento para os que a realizam. Mesmo para os médicos que a realizam em algumas clínicas, na tentativa de evitar que as meninas sofram os riscos e traumas resultantes de ablações anti-higiénicas e sem anestesia.

Normalmente é o pai que paga a “cirurgia”, para poder casar as filhas com homens que não aceitam mulheres não circuncidadas.

Têm-se promulgado leis para ilegalizar e criminalizar este costume. Embora muitos códigos penais não mencionem directamente os termos Circuncisão Feminina ou Mutilação Genital Feminina, é perfeitamente enquadrado como uma forma de "abuso grave de criança e de lesão corporal qualificada".

Vários organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), tem envidado esforços para desencorajar a prática da mutilação genital feminina. A ''Convenção sobre os Direitos da Criança'', assinada em Setembro de 1990, considera-a um acto de tortura e abuso sexual.

Em 2003 o Comité Inter-Africano de Práticas Tradicionais que Afectam Mulheres e Crianças, uma rede não-governamental, já levou à adopção de legislação contra as excisões em alguns países, iniciativa patrocinada pela ONU.


Reflexão:

Reconheço que em algumas situações devem ser mantidos os usos, costumes e tradições. Não se deve pôr em causa os valores nem as tradições dos povos. São símbolos de identidade, dentro ou fora do país. No entanto, considero que manter a tradição duma prática que causa um enorme sofrimento, é um atentado à saúde das mulheres e jovens, que as leva frequentemente à morte. É um desrespeito inaceitável pelos direitos humano.

Todos os países deviam adoptar uma legislação contra a mutilação genital.

Bibliografia:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Mutilação
http://www.acidi.gov.pt
Blogue de: Luís Graça & Camaradas da Guiné (marcadores: Mutilação Genital)

Filomena







Clicar nas imagens para as ampliar
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Nota de CV:

Vd. poste de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6242: O 6º aniversário do nosso blogue (28): O meu bem haja com o vozeirão maior que se possa conceber (Manuel Maia)