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sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca

Guiné-Bissau > Região Leste > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/69) > O Alf Mil Beja Santos, ladeado por dois milícias, de etnia fula: à esquerda, o Albino Amadu Baldé, natural do regulado do Corubal, comandande do Pelotão de Milícias 101, de Missirá; a direita, Indrissa Baldé, soldado do Pel Mil 101. Finete era guarnecida pelo Pel Mil 102. Estas subunidades está sob o comando do Alf Mil Beja Santos. E lá ficaram, agora que o ´Beja Santos e o Pel Caç Nat 52 são transferidos para Bambadinca, em meados de Novembro de 1969.

Foto : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Depois de um interregno de duas semanas, por causa da quadra natalícia e da festa de Ano Novo, retomamos a publicação da série Operação Macaréu à Vista - Parte II, do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70). O episódio nº 14 foi-me enviado em 12 de Novembro de 2007 (LG):

Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14):

O DEDO MINDINHO DO FURRIEL PINA

(i) Operação Truta Vivaz com o Pel Caç Nat 54 e a CCAÇ 12


De 14 a 19 de Novembro estou ao serviço de Missirá através do Pel Caç Nat 54 e do Pel Mil 101 que está novamente todo reunido. Com efeito, as duas secções que andavam destacadas regressam a Missirá e, vendo-as chegar a 15, ao alvorecer, interrogo-me se não valeu bem o esforço de me carpir permanentemente em Bambadinca pedindo um contingente compatível com as idas diárias a Mato de Cão, emboscadas, patrulhamentos e um sem número de digressões logísticas e actividades de faxina.

O Alves Correia, [comandante do Pel Caç Nat 54,] veio a 14, quando escurecia e gentes de Madina/Belel fogueavam para dentro do aquartelamento, com um grau de destruição mínima. Trazia instruções do major de Operações para desencadear, no amanhecer de 16, a Operação Truta Vivaz, de colaboração com um grupo de combate da CCAÇ 12. E mostrou-me a ordem de batalha, que me deixou estupefacto: 60 homens iam fazer um patrulhamento ofensivo entre Finete, Sinchã Corubal, São Belchior e Saliquinhé.

De imediato chamei o guia e picador Quebá Soncó, e dei as seguintes sugestões: o Pel Caç Nat 54 encontrar-se-ia com a força da CCAÇ 12 ao amanhecer de 16, em Finete. Seguiriam por Malandim até Gambana, sempre a corta-mato atravessariam o palmeiral de Chicri sobre Mato de Cão e, no caso de não haver quaisquer indícios da presença de gentes de Madina/Belel nas imediações, subiriam até muito perto da antiga tabanca de Sinchã Corubal. A manter-se a falta de indícios, a força em patrulhamento aproveitaria a luz do dia para atravessar o palmeiral junto ao rio de Ganturandim, fazendo o reconhecimento de Iaricunda.

Esclareci o Alves Correia que subir este rio até ficar de frente a Madina fazia correr riscos desaconselháveis para dois pelotões que desconheciam inteiramente o terreno. A única vantagem dessa operação temerária seria a de detectar eventuais novos trilhos, preço que me parecia muito elevado. Sugeria que se reduzissem os riscos emboscando abaixo de Sinchã Corubal, se possível junto de um trilho inimigo, e partindo de manhã cedo para S. Belchior espiolhando as bolanhas até Saliquinhé, em toda a orla do Geba, no intuito de procurar canoas que fizessem a cambança para os Nhabijões.

O Alves Correia aceitou este plano, falei olhos nos olhos com Quebá Soncó, pedindo-lhe para não se desviar um milímetro do que aqui se acordara. A 16, o Pel Caç Nat 54 parte para Finete pelas três da manhã e eu fico a cuidar do quartel com as milícias.

Enquanto decorrem operações de arrumos dos milícias que chegaram, o burrinho vai à fonte de Cancumba e as crianças estão na escola, tenho a minha última conversa com Lânsana. Ele beberrica chá verde enquanto falamos de questões vegetais. Com a sua voz lenta e o seu olhar doce, fala-me dos mangais e as suas palmeiras de azeite, dando como exemplos Mato de Cão e São Belchior.

Respondendo às perguntas que lhe vou fazendo sobre as árvores das florestas, veio comigo até à porta de armas para me falar dos poilões de diferente porte, o tempo que é necessário para um bissilão ficar gigante, mostrou-me o pau-conta e falou do pau-incenso e do pau-veludo, bem como da farroba e do pau-bicho e da calabaceira que existiam para lá de Cancumba, sim, era possível encontrá-las, por exemplo entre Sancorlã e Salá. Lembrou-me também que a paisagem da savana pode ter bambu, cibe, tambacumba e poilão-forro. Quando regressámos ao interior de Missirá, Lânsana falou com Bubacar Baldé, o comandante das milícias em exercício, pedindo-lhe que me mostrasse as árvores da savana quando me trouxesse até Finete.

Arrumo todos estes dados no meu caderninho viajante, anoto os temas que quero ainda desenvolver: paludismo, doença do sono, elefantíase; choros e fanados; culturas do arroz e do amendoim, fundo e mandioca; pesca na bolanha. Fecho o caderno e vou falar com Malã, começando por discretamente lhe devolver o anel de Infali Soncó:
- Régulo, o seu filho Quebá é um valoroso guerreiro, um dia vai suceder-lhe é ele quem tem dignidade para usar este anel. Nunca esquecerei a confiança que depositou em mim e os laços de família que me unirão para todo o sempre aos Soncó.

É então que o régulo começou a exaltar Alá como o Deus misericordioso e me perguntou o que é que eu pensava da sua infinita clemência e do que disse o Profeta. Terei respondido algo como isto:
- Régulo, o Deus que orienta as nossas vidas é o amor. O Corão diz claramente que os fiéis, os judeus e os cristãos e todos aqueles que praticam o bem serão recompensados no Juízo Final. O Corão fala de um Deus revelado a Abrãao e às tribos de Israel, e que não há distinção entre este Deus e o Deus dos muçulmanos. Para quê, então, não aceitar as nossas diferenças cantando glórias a Deus, sem nenhuma intolerância?

Malã continuou a falar no Livro de doutrina e de adoração a Deus, abracei-o e pedi-lhe para irmos pela última vez rezar juntos à mesquita. O dia continuou placidamente, tive tempo para fazer termos de juntada em vários autos, de um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa que me foi oferecido em Bafatá, de 1952, li o conto “Éguê Baldé”, de Fausto Duarte, que me impressionou muito pelo drama de uma jovem fula que é vendida a um velho e está louca de dor. Fausto Duarte fala de casos de lepra na tabanca, na vergonha e repugnância de Éguê, no espancamento a que a sujeita o pai e de um régulo corrupto de quem não se pode esperar justiça.

Aproveitei também para ler um pequeno ensaio de autoria do Ruy Cinatti intitulado “Tipos de casas timorenses e um rito de consagração”. A dedicatória é muito bela: “Para o Mário olhar para as casas antes de as habitar... Com um pé no pedal e a mão no coração, Ruy”.

Ele descreve a habitação no sudeste da Ásia, revela as distinções, as fases fundamentais da construção e o que se diz na consagração da casa, que tem uma força poética assombrosa. Dizendo que está a transcrever da língua tetun de timorenses construtores de casas rectangulares, sinto perfeitamente o sopro do poeta Ruy Cinatti:

Em terra umbigo, em terra centro,
Em pedra angular, pátio sagrado,
Terra plana, terra nivelada.
A terra alarga-se, a terra rasga-se ...
Passada a primeira fase, cortados os primeiros prumos,
Depois que tudo correu bem,
Fazer como, fazer de que modo?
Ir pedir de novo, suplicar novamente,
Pai Deus, Mãe Deus,

Avós Deus, Impérios Deus,
Agora mesmo fazer como, agir de que maneira?


Isto pode ser um rito de consagração timorense, mas está aqui o halo místico e religioso de um dos maiores poetas do nosso tempo. Fiz a escala de reforços, conversei com os sentinelas, escrevi aerogramas, dormi como um justo.

A Op Truta Vivaz acabou bem, sem encontros nem desencontros, não se deu pela presença do inimigo, as tropas do Alves Correia vêm ensonadas, aproveito para levar as milícias até à ponte do rio Gambiel, despeço-me dos mais lindos palmeirais que já vi em toda a minha vida.

No dia seguinte, vistorio com o Alves Correia tudo quanto está no depósito de víveres, examinamos as metralhadoras e os morteiros. Cá fora, à volta do quartel, depois em Cancumba, em Morocunda e junto a Mato de Madeira conferimos as zonas minadas e armadilhadas pelo Reis sapador. E ainda fomos à Aldeia de Cuor, visitámos as ruínas, mostrei-lhe os carris e as vagonetas ferrugentas.

(ii) Uma despedida emocionada de Missirá e de Finete

Chegou a hora de partir e aproveito a coluna que vai buscar arroz a Bambadinca. Junto todas as minhas forças para esconder a emoção da despedida. O meu espólio foi levado a 14, por Ussumane Baldé, guarda-costas em exercício. Uma multidão silenciosa aguarda-me na porta de armas. Prometo voltar em breve, um Soncó volta sempre. Peço para ir a pé, quero despedir-me do Cuor captando-o em todo o seu esplendor: paro em Cansonco junto da destilaria do açoriano, olho os ferros dos alambiques e os despojos da maquinaria apodrecida, o que resta das paredes do que terá sido uma bela construção de carácter colonial; na estrada para Canturé, observo o caminho que dá para Gã Joaquim, depois Gã Gémeos, vejo os laranjais, os imensos morros de baga-baga, os limoeiros e os cajueiros em flor, em Canturé ajoelho-me e rezo ao pé dos destroços do 404, desfeito pela mina anti-carro de 16 de Outubro, mais adiante desço a ladeira íngreme de Finete, cumprimento o chefe de tabanca, os homens e as mulheres grandes, visito Bacari Soncó e recordo-lhe que ele é um irmão muito amado, abraço e beijo o meu querido Abudu Cassamá.

À saída do aquartelamento, procuro reter tudo, como se a vista pudesse empapar-se como um mata-borrão e reter a panorâmica entre Santa Helena, Ponta Nova, até Malandim, só falta a bola de fogo do fim de dia tropical. Junto ao Geba, antes de embarcar na canoa e me despedir de Mufali Iafai, olho pela última vez o meu Cuor, sinto que algumas lágrimas me bailam nos olhos. Volto as costas, subo a rampa de Bambadinca, começa neste instante uma nova etapa na minha vida.


(iii) Uma nova (!) vida... Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70)


A minha habituação não vai ser fácil. Fiquei num quarto de quatro camas, os outroslocatários em permanência são o Abel [foto à esquerda] e o Moreira [foto à direita, a seguir, ladeado pelo Reis e pelo Levezinho], ambos da CCAÇ 12. Desenvolverei com eles, nos próximos dez meses, uma excelente relação. Mas tudo aquilo me confunde, a gritaria dos corredores, as portas que se abrem e fecham subitamente, o estar longe dos soldados, o ter confirmado à chegada as diferentes condenações sem apelo nem agravo que nos esperam:
- ir ás tabancas fazer psico;
- montar segurança nos Nhabijões, onde está uma equipa coordenada pelo alferes Carlão;
- passar noites em desespero numa alfurja que dá pelo nome dos abrigos do rio Udunduma;
- fazer emboscadas na missão do sono, no Bambadincazinho;
- ir levar e buscar correio a Bafatá;
- patrulhar a estrada entre o rio Udunduma e Amedalai, patrulhando também junto ao Geba para dissuadir as cambanças dos que vêm de Madina;
- fazer colunas ao Xitole;
- colaborar em todas as operações dentro do sector, com forte incidência nas regiões do Xime e Mansambo...

Várias vezes o Queta Baldé termina as reuniões que temos para recordar ao múltiplos episódios que vivemos juntos desabafando:
-Vínhamos à espera de encontrar descanso em Bambadinca, estávamos estafados, logo ficámos rebentados, nunca mais houve um dia de descanso, a montar segurança, a ir a Madina Bonco, aquele rio Udunduma era o Inferno. Quero que o nosso alfero saiba que ficámos bem arrependidos por ter pedido para ir para Bambadinca!”.

(iv) Na estrada para o Xime, o furriel Pina mete o dedo na G3


A 20, estreei-me como oficial de dia e à noite fui montar uma emboscada para a estrada do Xime. No dia seguinte escrevi à Cristina:
- Tu não vais acreditar neste episódio burlesco: saímos depois do jantar para uma emboscada decidida pelo major de Operações, a caminho do Udunduma, em ataque anterior a Bambadinca foi aqui que os rebeldes puseram os canhões sem recuo e morteiros. Estava uma noite serena, saí com duas secções, acompanhou-me o Pina, o Pires tem agora trabalho numa terra aqui perto chamada Sinchã Mamajai. Teríamos feito um quilómetro por um caminho saibroso, e subitamente um grito medonho atravessou a noite, logo me apercebi que não era nem emboscada nem mina. Fui ao local da gritaria e dei com o Pina estatelado no chão a gritar com um dedo mínimo dentro do cano da espingarda. Tentei tirar-lhe o dedo, impossível. Ele escorregara no saibro e acontecera aquela coisa impensável. Imagina o que é regressar a Bambadinca com o Pina lívido, um soldado a segurar-lhe a arma, ele a gemer com o seu dedo esfanicado lá dentro. À cautela, retirei-lhe o carregador para evitar acidentes. Fomos para a enfermaria, ele sentado com a arma em cima da marquesa, com braço estendido. O David ficou embasbacado, o dedo ia inchando, todos os esforços para lhe retirar o dedo resultavam infrutíferos. Em dado momento, o David, com a testa perlada de suor, chegou a admitir a hipótese de lhe cortar o dedo e aí o Pina gritou que não, preferia ter todas as dores necessárias até se encontrar uma solução para ficar com o dedo inteiro. O Reis sapador foi buscar varetas, começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Pina deu um urro, tal era o sofrimento, o Reis enfureceu-se e enfiou-lhe um tabefe, não sei que é que ele se julgava, se feiticeiro ou a desmontar uma mina, pedi ao David para lhe dar uma injecção ao Pina que o deixasse a dormir... Lembrei-me então que tínhamos desempanadores e pedi para falar com o Alexandre. O primeiro cabo desempanador Alexandre conhecia perfeitamente Missirá, dizendo que sempre que a visitara fora recebido à morteirada. Foi ele quem conseguiu desatarraxar o tapa-chamas, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fractura exposta, lá se deu um calmante ao Pina (que foi na manhã seguinte evacuado para Bissau) e eu regressei para os mosquitos na emboscada (2).

(v) O novo médico do batalhão, Joaquim Vidal Saraiva

Os tempos que vêm são de duros para me aclimatar a esta atmosfera de sede de batalhão, viver aqui em permanência. Na manhã seguinte, volto a Bafatá, por causa do correio, compro na Casa Teixeira uma História da Filosofia, de Nicola Abbagnano, dos pré-socráticos a Aristóteles.


Cap do romance policial A Mulher Fantasma, de W William Irish. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vamprio, 38). Capa de Cândido Costa Pinto.


Voltamos por Galomaro para entregar caixas de armas. De Bambadinca vou a Afiá buscar doentes que vão ser vistos na enfermaria pelo David. Começou a minha vida nova, à tarde vou para os Nhabijões, à noite novamente para uma emboscada. O correio que recebo é cada vez mais doloroso. Amanhã volto a Bafatá e vou buscar a procuração para o casamento civil.

Ao almoço, na messe de oficiais, Jovelino Corte Real [, comdante do BCAÇ 2852,] apresenta-nos o novo médico, Joaquim Vidal Saraiva, que veio de Guileje. O David Payne parte para Bissau, manteremos sempre o contacto, ele irá ajudar-me imenso quando em Janeiro eu passar uma semana a dormir graças ao Vesperax e outras drogas.

O Vidal Saraiva (3) vai ser um grande amigo, estou a vê-lo desesperado a tentar salvar Uam Sambu, ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970.

(vi) O Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque


Estou empanzinado de bons policiais. Primeiro, li A mulher fantasma, de William Irish. É hoje um clássico: um casal à beira da rotura, o marido sai de casa depois de uma discussão conjugal, janta e vai a um espectáculo de variedades com uma estranha que encontrara num bar. Quando regressa a casa, a mulher fora assassinada, ele é preso, apresenta um álibi que ninguém confirma, sim, ninguém se recorda se ele estava acompanhado, no bar, no jantar, no espectáculo de variedades. Condenado à morte, recorre à ajuda de um amigo para procurar desesperadamente aquela mulher e vão suceder-se mais mortes. Um polícia desconfiado reabre o processo e irá prender o verdadeiro criminoso. Scott Henderson, o falso assassino, é inesquecível pela vontade indómita em que se esclareça a verdade. Os capítulos começam sempre assim: O centésimo quinquagésimo dia antes da execução, o vigésimo primeiro dia antes da execução, um dia após o dia da execução... Um suspense bem equilibrado, perfis psicológicos bem desenhados, uma atmosfera de angústia devidamente condimentada.

O Caso Benson, de S.S. Van Dine, traz a apresentação de Philo Vance, esse superculto e aristocrático detective. Van Dine excede-se no barroquismo do seu retrato, depois de exaltar o método analítico e interpretativo que ele aplicou nas investigações criminais: coleccionador sofisticado de arte, rodeado de primitivos italianos, de Cézanne e Matisse, desenhos de Miguel Ângelo e Picasso, gravuras chinesas, ânforas romanas, vasos coríntios, estatuetas Ming, marfins e tesouros egípcios. Vance pratica desporto, desde esgrima ao golfe. É rico, bem parecido, viajado, é inteligente e quer descobrir criminosos.

O Caso Benson foi uma estreia feliz, com Philo Vance a decifrar a estatura do assassino de Alvin Benson, a não dar importância a sinais que apontavam para uma mulher que visitara Alvin na noite do homicídio, induzindo o criminoso a estar tranquilo até à revelação final. Sempre gostei muito deste Philo Vance, às vezes canastrão, e tenho já aqui outros livros dele para me deliciar.

Capa do romance de Ercih Maria remarque, Arco de Triunfo. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Dois Mundos, 6). Capa de Bernardo Marques.


Mas o prato de substância da semana foi o Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque. Estamos nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, vamos conhecer o drama dos refugiados que vivem em Paris. Ravic é um médico alemão que conseguiu fugir às garras da Gestapo e sobretudo ao seu algoz, Haake. O romance começa com o encontro entre Ravic e Joan Madou, haverá uma história de amor e uma separação triste. Ravic descobre Haake em Paris e mata-o. Joan é morta numa cena de ciúmes, por um apaixonado de ocasião. Vem a guerra, os refugiados, políticos e judeus, vão todos para um campo de concentração francês. São páginas memoráveis, registo uma frase que ainda hoje me persegue: “O destino nunca é mais forte do que a serena coragem com que o enfrentamos”.

Antes de entrar no camião que o leva para o campo de concentração, Ravic despede-se do seu amigo Boris Morozow e dizem: “ - Encontrá-lo-ei, depois da guerra, no Fouquet. - De que lado? Campos Elíseos ou George V? - George V”. E separam-se. E assim termina o romance: “ O veiculo seguiu ao longo da Avenida Wagram, ingressando na Praça da Étoile. Não havia luz em parte alguma. A praça estava imersa em trevas. Tão escuro que nem se via o Arco do Triunfo”.

Deitado na minha cama, na minha nova morada, fecho o livro e recordo o filme com Charles Boyer a interpretar Ravic, Ingrid Bergman esplendorosa em Joan Madou e Charles Laughton quase sublime no tenebroso carrasco Haake. Mal sabia eu que dentro de dias vou ver cinema em Bambadinca, uma Ford T a cheirar a gasóleo, a resfolegar ruidosamente a correia de transmissão. Há uma bobine que se projecta sobre uma tela, ouvem-se muitos tiros e há muita acção para divertir militares na guerra. O primeiro filme chamar-se-á Hércules contra Ciclope, com Steve Reeves no protagonista.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2349: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): Na despedida de Missirá, em que me tornei um Soncó

(2) O Fur Mil Pina também integrou, posteriormente, o Pel Caç Nat 63, na altura comandado pelo Alf Mil Jorge Cabral.

(3) Contacto actual:

JOAQUIM VIDAL SARAIVA, Dr. (ex-Alf Mil Médico, CCS do BCAÇ 2852)
Esplanada Fernando Ermida,
284405-335 S. FÉLIX DA MARINHA
Telf 227810206 / 227624167

Vd. post de 21 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1773: Lista do pessoal de Bambadinca (1968/71) (Letras C / Z) (Humberto Reis)

No nosso blogue temos, pelo menos, duas referências ao Alf Mil Médico Saraiva (de quem me lembro bastante bem, mas que não sabia que tinha vindo de Guileje; fizemos juntos a Op Tigre Vadio):

1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

29 de Junho de 2006

Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

(...) Nota de L.G.:

(...) O médico da CCS do BCAÇ 2852 (que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra), na altura, o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis), veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...

O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...

O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça, entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina, estive a ajudá-lo a fazer curativos"... Se alguém souber do seu paradeiro, que entre em contacto connosco... Gostaríamos de conhecer a sua versão dos acontecimentos: por certo que nunca mais terá esquecido a Op Tigre Vadio... (LG)

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2154: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (4): Cartas de Missirá, Setembro de 1969

Texto enviado, em 8 de Agosto último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).


Foto (à esquerda) > O Beja Santos, em Bissau, em Janeiro de 1970.

Luís:

Aqui vai o episódio nº 4. Já seguiram os livros correspondentes, amanhã segue uma fotografia do Carlos Sampaio. Não posso escrever mais esta semana, depois faço férias, na semana de 20 escrevo-te.

Vai haver mais uma flagelação a Missirá, depois vou ficar sem o Casanova, exactamente no momento em que mais precisava da sua ajuda. É sempre assim na vida. Recebe um abraço do Mário.


Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (1)
por Beja Santos

Carta para Luís Zagalo Matos

Estimado Luís Zagalo,

Aqui vão notícias que seguramente lhe darão alegria. Voltámos ao Enxalé, conciliei um patrulhamento a Mato de Cão, levei duas viaturas e picadores, ainda há vestígios da época das chuvas, na estrada andámos com água até aos joelhos junto da bolanha, os nossos soldados iam contando histórias vividas em 1966 e 1967, o seu nome era permanentemente invocado, junto da antiga picada para Madina encontrámos um sinal de trânsito de sentido proibido(!) e sinais recentes de presença humana.

Continuam a impressionar-me muito as casas dos ponteiros em ruínas, a maquinaria abandonada, a beleza do Geba é inexcedível, na estrada para Porto Gole virámos á direita e picou-se com muita prudência já que a picada para o Enxalé é muito arenosa, propícia a minas.

O alferes recebeu-nos com simpatia, ao princípio estava desconfiado, julgava tratar-se de uma operação para Madina. A estrada de Porto Gole está interdita, o Enxalé é reabastecido através de um pequeno porto a 3 Km, e o correio é atirado da avioneta (seria assim já no seu tempo?). Alguns dos abrigos foram ainda construídos pelos meu soldados, há dois anos e meio atrás.

Em Missirá, todas as cubatas estão protegidas por abrigos, nenhuma cubata aparece como protecção do abrigo. No Enxalé há um aterro entre as instalações e os abrigos do pelotão, é uma enorme tabanca povoada por balantas e mandingas, escandalizou-me que a tabanca aparecesse com um escudo do quartel.

Dei a notícia ao nosso camarada que passaríamos ambos a pertencer ao sector de Bambadinca e que eu contava que iríamos colaborar regularmente face ao mesmo inimigo. Almoçamos à pressa, tínhamos que regressar rapidamente pois começou a cair uma chuva torrencial, isto quando a manhã fora resplandecente... Coisas do fim da época das chuvas.

Sei que não acredita, mas o seu nome foi várias vezes referido no Enxalé. De Missirá, tenho pouco a contar. No início do mês, fomos fogueados ao anoitecer sem consequências. Com as viaturas muitas vezes empanadas, usamos o Sintex para transportar os combustíveis e munições para Missirá. A burocracia está pior do que no seu tempo. Imagine que caiu um Unimog na bolanha de Finete, foi o cabo dos trabalhos removê-lo, perderam-se acessórios e ferramentas, foi um dia inteiro que passei num auto de averiguações, em Bambadinca. E foi só a abertura do auto...

Tenho um grande favor a pedir-lhe, é se V. podia visitar no Hospital Militar Principal dois militares gravemente feridos que o conhecem. Se estiver disponível, por favor, escreva-me. Junto uma fotografia junto da fonte de Cancumba, tal como me pediu. Receba a muita estima daquele que ouve todos os dias elogios ao seu nome e ás suas façanhas.

Carta para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Obrigado pela sua linda carta. Gostei sobretudo dos seus pequenos poemas que me lembram os haiku, não sei porquê. Por exemplo:

Vamos chorar tanto
que a terra se inunda
Como inundar
o mar?
-
Atracção do nada
é o mar em frente.

Vejo aproximar-se
quem do mar me chama.


Que maravilha! Acabo de saber pela a Amélia Lança que V. lhe comprou a Enciclopédia Britânica... Que luxo! As notícias que tenho para si são triviais: cheio de limitações, espero o inimigo e, regra geral, ele não vem; fala-se que iremos abandonar Missirá, o que não me parece razoável quando tenho obras em curso, mas suspeito que os meus soldados anseiam partir, devem ter a ilusão quanto ao fim das nossas dificuldades.

Como eu suspeitava, Finete sofreu uma pequena flagelação, houve um ferido ligeiro e uma cubata atingida, foi um foguetório pesado mas mal dirigido, já que o quartel está num baixio, é fundamental a precisão de tiro, o inimigo não tem a visão a não ser a dos abrigos posicionados no alcantilado da rampa que protege toda a estrada para Canturé e Malandim.

O seu afilhado e meu padrinho, Felipe Fernandes, continua a enviar-me livros da Portugália. Estive a ler cheio de interesse A Revolução de 1383, de António Borges Coelho. É uma visão marxista da caracterização feita por Fernão Lopes da revolução burguesa. O historiador começa por registar o Portugal da segunda metade do Séc. XIV, observando muito bem o que distingue a agricultura feudal dos centros urbanos e os núcleos burgueses rurais do centro e do sul do país, que elegeram o Mestre de Avis.

Depois, descreve o Portugal marítimo, os interesses dos mercadores e a sua hostilidade aos senhores feudais. Temos depois a revolução, a conjura chefiada por Álvaro Pais e Antão Vasques e o confronto a nobreza feudal. Nuno Álvares Pereira é para Borges Coelho um herói dúbio. Segue-se a apresentação de um rei que é eleito pelas Cortes, submetido a essas mesmas Cortes, e a um conselho régio.

Com D. João I entrámos no mundo contemporâneo, no renascimento urbano e, aproveitando-se de um continente em convulsão, os portugueses avançam para África. É uma tese curiosa, guardo aqui o livro para si. Estou a cair de sono, ainda vou escrever à minha Mãe, pelas 5 da manhã parto para Mato de Cão. Como tenho saudades suas e gostava tanto de conversar consigo! Só falta um ano para que isso aconteça. Receba a profunda estima.


Capa do ensaio do historiador António Boregs Coelho, A Revolução de 1383. Lisboa: Portugália Editora. 1965. Capa de João da Câmara Leme

.Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados

Carta para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Querida Mãezinha,

Fico contente pela visita que o Teixeira lhe fez. Espero que tenha apreciado o anel em prata filigranada de um ourives de Bafatá, a pedra é insignificante, sugiro que ponha uma ametista ou um topázio.

Passando para assuntos mais sérios, volto a insistir de que gostaria que os meus familiares não se envolvessem nas minhas decisões e que me fosse evitado este massacre de acusações acerca da Cristina. Nada está decidido sobre a sua vinda, não sei se vou para Bissau, gostaria de deixar adiantado o que aqui comecei, independentemente da guerra, as pessoas devem ser respeitadas, verem obras acabadas, enfim, haver continuidade na criação de bem estar, instrução, apoio médico e até reagrupamento das populações. Tenho agora novos milícias em Finete, vai haver um período de adaptação, eles vão colaborar nos patrulhamentos à volta do Geba, são fulas que nunca viveram dentro de uma comunidade mandinga.

Obrigado pelos livros que me enviou. O que é curioso é que eu não conhecia o Dennis McShade, não sei quem é, logo que possa vou ler este Requiem para Dom Quixote. Estive a folheá-lo, lembra-me o romance negro norte-americano tipo Raymond Chandler ou Ed McBain.

Diverti-me imenso com Dois crimes no Inverno, por S.S. Van Dine. Desta vez Philo Vance acompanha o procurador Markham a casa de Carrington Rexon, proprietário da uma importante colecção de esmeraldas. Tudo se passa num sítio campestre, dentro de uma propriedade onde se concentram convidados, jovens do jet set da época, gente que vem acompanhar uma possível noiva do filho do proprietário. É assassinado um guarda e depois um escroque. Desaparecem esmeraldas e Philo Vance, num ápice, desvenda tudo. Como é próprio dos romances de S.S. Van Dine, o criminoso suicida-se. A obra tem subtileza mas não tem chispa.

Falando da guerra, tenho muitos soldados doentes, Missirá e Finete sofreram só pequenas flagelações, não se assuste com os comunicados que aí aparecem, este fogo aqui é uma ninharia. Muito obrigado pela visita que fez ao Paulo Semedo e ao Fodé. Prometo escrever ainda esta semana. Beijinhos do filho que nunca a esquece e reza pelas suas melhoras.



Capa do romance policial de S.S. Van Dine, Dois crimes no inverno. Lisboa: Livro so Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 57). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Para a Cristina Allen


Meu adorado amor,

A ver se consigo dar ordem a tudo quanto gostaria de te dizer. Não fiques atormentada com os comunicados de guerra que por aí aparecem. As flagelações a Missirá e Finete foram insignificâncias, mais adiante vou falar de Finete onde chegaram novos soldados milícias oriundos de Amedelai e Quirafo, não conhecem esta região.

O gerador eléctrico continua sem poder atravessar o rio. O correio que aqui me chega da minha família, magoa que se farta. O Ruy Cinatti escreveu furioso por causa do casamento por procuração, acha-nos loucos e imprevidentes, desaconselha o casamento por procuração, diz não entender quem está a fazer este casamento uma exigência. Eu penso que deve haver aí uma orquestração de vozes, conjugam-se contra ti más vontades. Já não sei lidar com a situação, no caso do Ruy tinha-lhe dado conhecimento das diligências em Bafatá para o casamento por procuração. Acho estranho este tipo de reacção, paciência.

Gostava que fizesses uma lista dos meus convidados, lembra-te da minha prima Teresa, da Amélia Lança, das minha amigas Cândida Lopes e Maria Júlia Apóstolo, dos serviços mecanográficos. O Paulo Semedo escreveu, mandou a fotografia do seu rosto mais composto, deu-nos a boa notícia que o braço que se julgava perdido já faz movimento. Comprei em Bafatá O Trigo e o Joio, do Fernando Namora, fala dos trabalhos e canseiras do teu Alentejo, vou mandar-te esta leitura para as tuas férias.

Escreveu o Jolá Indjai, está tuberculoso, vai para o Caramulo. Recebi hoje carta do Carlos Sampaio, está num teatro de operações muito duro. Amanhã vou a Bambadinca, o comandante quer falar-me, parece que vamos mesmo sair de Missirá. Nada tenho a opor, os soldados insistem que chegou a hora de mudar, não sei se é bom para as populações estas mudanças e interrupções nos trabalhos. Amanhã escrevo de lá, logo que saiba coisas. Não me esquecerei de ir até Bafatá por causa dos documentos. O Teixeira ainda não chegou. Beijinhos e ternura e até muito breve.

Carta para Carlos Sampaio

Meu inesquecível amigo,

A tua carta deixou-me muito preocupado, não sabia que o norte de Moçambique estava a ferro e fogo. Por favor, não te excedas. Os nossos teatros de guerra são diferentes. Dou-te um exemplo. Chegávamos ontem aqui a Missirá ao fim da tarde, quando foi desencadeada uma flagelação a Finete, de que há tanto suspeitava. Eu vim do tal patrulhamento a Mato de Cão, ainda estive em Finete a falar com os novos milícias, conversei depois sobre o abastecimento de arroz que é sempre deficítário e deixei lá elementos de uma esquadra de morteiro. Logo desencadeado o fogo, pedi pelo rádio para a sede do batalhão que usassem o morteiro 120 na retaguarda da força atacante.

E lá regressámos a Finete, onde cheguei pela meia noite, felizmente fora uma flagelação sem consequências, um fogo desalmado mas desorientado. Apurei que houve um comportamento destemido de um jovem de 16 anos, chamado Mafoge Djau, que combateu de peito feito, quando se acabaram os dilagramas veio para o arame farpado lançar granadas de mão. De manhã fiz um patrulhamento, o inimigo retirou sem baixas, foi um quase empate. Esta é a nossa dura guerra, mas como vez diferente da vossa. Não temos sossego, o inimigo está muito perto, benefiicia do efeito surpresa.

Nos poucos tempos livres, oiço música (estou a descobrir as cantatas de Bach, que prazer), leio e escrevo. Já te disse que deixei de ter ilusões sobre a qualidade da minha poesia e gostava sinceramente de desistir. Mando-te o que escrevi ontem. Podes mandar para o lixo depois de leres:

Patrulhamento de rotina

Tu és o agrimensor do meu passado, a minha primeira litania e primeira testemunha.
Tu és o campanário feito catavento que em mim é o feto libertado.
Redigimos, tu e eu, ao longo destes anos a nossa lei interna,
com o giz traçámos o próximo e o distante,
conformámos todas as sílabas onde se lêem o dia e a noite, a paz e a guerra.
Tu és o proscénio deste teatro da linguagem, em teus dedos ponho anéis,
aos teus lábios levo diademas.

Tun és o exemplo de cadastro terrestre, graças ao drama plaino de tanto sofrimento,
minha Mãe evanescente.
Para ti, nesta lonjura feita de lianas que se prendem nas a´rvores gigantes no mais fundo da floresta tropical,
aqui vai o meu trapézio que se eleva acima do mar azul
e grita a abastança do teu sangue no meu.
Neste trapézio onde te encimo o meu amor, tu és uma nave balouçante.
Porque com a nossa lei interna, eu tenho o poder de te transformar em areia escaldante,
vibração atómica ao olfacto e ao tacto.
E de te dizer que me suavizas com a tua veste opalina
o tormento deste meu tempo com armas na mão.

Sê o mar uterino que me aplaca a solidão,
meu mar encantador que chegará porta do meu abrigo-casamata, minha Mãe!

Carlos, continua, dentro das tuas possibilidades, a dar-me companhia. Não podes imaginar o bom que é receber as tuas notícias. Recebe um abraço que atravessa todo o interior de África.

________

Nota de L.G.:

(1) Vd. último post > 28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2138: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (3): Op Pato Rufia (Xime, Setembro de 1969)

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2094: Álbum das Glórias (25): O meu Natal de 1969, em Bambadinca (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca >Natal de 1969 > Cena de uma renhida disputa de bola (1) protagonizada pelo Beja Santos (da equipa dos velhinhos da CCS / BCAÇ 2852 mais adidos) e por um dos periquitos da CCAÇ 12)... Na foto, julgo reconhecer, pelo perfil, o nosso querido Tony Levezinho, furriel miliciano da CAÇ 12 (LG).


Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Foto com legenda enviada pelo Beja Santos, com data de 23 de Julho último, para o nosso Álbum das Glórias.

Comentário do B.S.:

Emboscadas,colunas,operações,missões psico,vigilâncias nas obras, nada me faltou no mês do Presépio. Perdi momentaneamente a pachorra para escrever, lia desalmadamente.

A pretexto de um futebolada em Bambadica (CCS/ BCAÇ 2852 e adventícios contra CCAÇ 12),pedi a alguém que disparasse um rolo para mandar aos mais queridos, em Lisboa.

No verso desta reza o seguinte: Ruy, Dear Father, Obrigado pela Peregrinatio ad loca infecta, do Jorge de Sena - uma grande estopada! Desejo-lhe um Natal cheio de Paz.Só me lembro do Natal de Missirá, irrepetível (2). Um abraço cheio de saudade, Mário.

O Ruy Cinatti (3) entregou-ma em Lisboa, convicto que eu viria a escrever as memórias...

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1096: O álbum das glórias (5): Futebol em Bambadinca, oficiais contra sargentos (Beja Santos)

(2) Vd. post de 22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1392: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (26): Missirá, 1968, um Natal (ecuménico)

(3) Um dos grandes amigos e correspondentes do B.S.: vd. post de 10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)

"Depois da flagelação de 19 de Março de 1969, em que perdi todos os meus livros (e discos),escrevi a muitos amigos que prontamente vieram em meu auxílio.

"O Mário Braga foi um deles. Tinha-o como uma referência da litertura neo-realista, sempre me dei bem com os seus contos,admirava-lhe a postura cívica. Ele veio até Missirá com livros de norte-americanos. Foi grande tradutor,e a sua mulher é nome obrigatório da tradução em Portugal. Falei já da tradução do Mário Braga, O silêncio e o Mar, de Vercors, que me deu uma grande companhia. Fui há dias ao seu aniversário, qualquer dia fará 90 anos"...



"Um dia fui visitar o Ruy Cinatti e ele disse-me: Estou a posar três vezes por semana para a minha vizinha. Vou ter quadro de artista, ela melhorou-me bastante.

"A Maluda estava na época no pico da notoriedade, já com as suas janelas e telhados. Vivia na Travessa da Palmeira nº12, 3º Esq., era portanto vizinha do Cinatti. Habituei-me a este belo quadro que estava pendurado na sala, não muito longe de um óleo do António Dacosta, obra que o Cinatti muito estimava. Um dia ofereceu-me esta fotografia que meti numa moldura e estava na minha secretária. Por testamento, este quadro faz hoje parte do património da Obra do Gaiato. É pena que não seja exposto num museu, nem que fosse a título temporário ou numa exposição dedicada ao Cinatti. Vamos esperar".

Fotos e legendas : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.




Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado a 17 de Julho último. Correspondente ao episódio nº 57 (e último) da I Série da OperaçãoMacaréu à Vista, ou ao primeiro volume das suas memórias do Cuor, correpondendo cronologicamente ao seu 1º ano de comissão (1).

Caro Luís, aqui vai o texto revisto. Agora, começa a penitência da revisão geral, da ordenação da papelada toda. Estive a pensar, vou ordenar tudo por mesas: melhora os textos, dá uma melhor sequência ao leitor. Recebe um grande abraço do Mário.

Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)
por Beja Santos (2)

Para o Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father:

Agradeço-lhe do coração a sua carta. Tem razão, sou palavroso, manipulador, forço as palavras como forço as pessoas. E o resultado vê - se nos meus pseudo-poemas e nas relações humanas. Sensibilizou-me o seu poema "De um postal seu":

Donde sei
pra onde
não se sabe
sou
retirante.

O resto
irá por carta
ou
pelo telefone
- . -
Que outros relatem
o meu cansaço.

Eu anuncio
o poder da morte
lembrando tudo o que me prende à vida.

Viver a pedir,
receber, porquanto
quem recebe deve
- estranha condição.

Eu nunca pedi.
Devo solidão.

As minhas notícias, hoje não são famosas. Continuo punido, não posso ir a férias, vou repensar a minha vida e as decisões que vou tomar com a Cristina. Por aqui, com o contigente de Missirá reduzido, com a obrigação diária de irmos a Mato de Cão e fazermos uma emboscada, com a tropa doente em plena época das chuvas, ainda com obras em acabamento, estou atado de pés e mãos. Há quem pretenda consolar-me em Bambadinca dizendo que não há mais exigências operacionais para Missirá e Finete... como se eu pudesse desdobrar-me ou fazer uma vida operacional deixando dois aquartelamentos às moscas, entregues à população civil.

Dentro do que é possível fazer, há um pouco mais de conforto neste quartel, não tem falhado a abastecimeto de arroz para a população civil, os salários são pagos a tempo e horas, não há neste tempo sinais das destruições de Março, conseguimos pagar a um professor para dar aulas às crianças, acabou-se um paiol de munições e combustíveis, os cozinheiros podem fazer esparguete com chouriço, feijão com carne enlatada, galinha com legumes em conserva, a padaria funciona, temos no frigorífico águas Perrier e Vichy, os inimigos de Missirá e Finete sabem que andamos constantemente na mata.

Procuramos ajudar as famílias nos seus cultivos, não é fácil mantermos aqui centenas de pessoas na época das sementeiras mas é muito bonito ver as hortas cheias de tomate e beringela, as papaias são deliciosas, a população civil leva sempre um reforço militar quando vai cultivar para as antigas tabancas, há uma, chamada Canturé, entre Missirá e Finete, cheia de cajueiros, laranjeiras e limoeiros, com imensos morros de baga-baga, que é uma beleza. Tenho as consciência tranquila de que há empenho, uma boa relação entre civis e militares, o inimigo em respeito. Mas não podemos fazer mais nada, não posso levar civis para os patrulhamentos, não os posso pôr nas emboscadas nem nos reforços.

Os guerrilheiros estão relativamente perto de Missirá, no Gambiel, onde trabalhou o Prof. Armando Cortesão, colega do Teixeira da Mota. A propósito, estive com ele no início de Julho, jantámos, ofereceu-me livros e revistas (daí na sua carta escrever: "O Teixeira da Mota diz-me que V. está metido num buraco, vivendo como uma toupeira", o que não é verdade pois não me escondo debaixo da terra). Estou doente e não sei como resistir a algumas dores. Há dias, numa emboscada, um dos meus colaboradores mais capazes perdeu a cabeça e chamou-me branco assassino, sei muito bem que são frases demenciais, gritadas no instante, mas deixam marcas profundas, laceram o tecido afectivo, destroem a confiança. Enfim, o primeiro ano de guerra está feito, não sei por quanto mais tempo estarei em Missirá, adoro as gentes, a floresta, pergunto-me às vezes como é que esta experiência enformará o jovem adulto que sou. Receba a saudade e a profunda estima.

Carta para Luís Zagalo Matos

Estimado Luís Zagalo,

Desculpe ser breve. A Missirá civil e militar quer notícias suas. A sua recordação está muito vincada nesta gente que cultiva o heroísmo. Posso compreender que V. pretende esquecer o que aqui viveu, mas asseguro-lhe que deixou memórias e amigos. Tornou-se uma lenda em Missirá. Todos falam de si como aquele que não tinha medo, que se dava ao respeito, que se interessava pelos problemas de todos. Estamos a viver um período difícil, subtraíram-nos mais soldados milícias, quase que não posso dar passo sem contar quem vai e quem fica, quem está doente ou vai de férias.

Despeço-me com uma novidade: regressou o bom senso, Enxalé voltou ao sector de Bambadinca. Eu vou comemorar, farei como V. fazia tantas vezes, meto-me ao caminho e vou almoçar com os camaradas de lá, na primeira oportunidade (espero que não se tenha esquecido que são cinquenta quilómetros ida e volta). A gente de Madina está muito activa, acabo de ter a notícia que foram descobertas nos Nhabijões várias canoas enterradas no lodo, com que eles fazem a cambança a partir da bolanha de Gambana. Ali perto, há dias, encontrei uma coluna de noite, escusa de me perguntar se havia mais militares ou população civil, morreu uma mulher, os outros fugiram porque um dos meus cabos perdeu a cabeça e desatou aos gritos. Escreva, por favor. Bem gostava de lhe mandar toda a estima que vejo no olhar de toda a gente quando se fala em Luís Zagalo.






Portugal > Bilhete postal > Edição Lifer - Porto, s/d. Colecção Postales Escudo de Oro > Impresso en España / Print in Spain, Barcelona / Nº 516 > Vouzela (Portugal) > Vista panorâmcia / Panoramic view / Vue panoramique...Enviado ao Alf Mil Mário Beja Santos, SPM 3778, por sua mãe:

S. Pedro do Sul, 27/8/1969:

Meu estimado e querido filho: Estou sem notícias tuas há uma semana. Mas possivelmente [há] atrasos na correspondência... De Lisboa, escrever-te-ei uma longa carta. Peço que rezes pelas minhas melhoras e que as águas produzam o seu efeito na minha saúde. Sigo com o Rudolfo para casa. Estive aqui 15 dias. Vês como é lindo, este sítio ? Muito tenho pensado em ti, meu querido filho. Como estarás de saúde ? (...).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Carta para Ângela Carlota Gonçalves Beja


Querida Mãezinha,

Fiquei muito contente em saber que as suas férias nas termas de S. Pedro do Sul lhe trouxeram mais saúde. Cá recebi os seus livros, adorei o do Ruben A. Como se recorda, dediquei-lhe um programa que fiz nos serviços mecanográficos, onde trabalhei, fou uma exposição em 1966, depois disso ele recebeu-me na sua casa perto do Estremoz quando lá fui com o Ventura Porfirio fazer a reportagem sobre uma colecção de Cristos para o jornal Encontro. A sua autobiografia (O mundo à minha procura) é uma obra-prima.

Venho informá-la de que a redacção da minha punição foi alterada mas os dois dias de punição mantêm-se, pelo que só a poderei ver no próximo ano, se Deus quiser. Peço-lhe que não se mortifique, a vida continua, eu vou resistir como me ensinou. Ainda chove muito por aqui, mas estou cheio de saúde, o trabalho prossegue. Pergunta-me se vou ficar aqui mais tempo. Nada sabemos, até há uns meses atrás as comissões estavam divididas em doze meses em locais de alto risco e doze meses em locais com mais tranquilidade (em Bolama, por exemplo, a dar instrução). Agora é diferente, permanecemos praticamente nos mesmos locais e sempre ligados à mesma tropa. Fico contente quanto a este aspecto, a minha relação com os soldados guineenses é fraternal, gosto muitíssimo deles.

Estou a preparar a documentação para me casar, indeciso quanto à deslocação da Cristina, dadas as novas circunstâncias. Rezo todos os dias pela sua saúde, sinto-me cada vez mais feliz pela formação que me deu, sem ela eu não teria sabido resistir a todas as dificuldades com que me defrontei e defronto. Aceite a muita saudade e receba muitos beijinhos.


Carta para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

Começo por te dar notícias de um livro arrebatador que trouxe de Bissau, A sangue frio, do Truman Capote. A tradução é preciosa, da mulher do Mário Braga, a Maria Isabel. Ao princípio, eu não sabia se estava a ler uma reportagem, um documentário ou um romance. Capote anuncia que o livro se baseia em relatos oficiais e em entrevistas. Começa-se a ler e fica-se confuso: ficção ou realidade? Fala-se de uma aldeia onde houve o assassínio de uma familía de quatro pessoas. O autor descreve com tanta agudeza o pai austero, o dia-a-dia de uma mãe convencional e dois jovens perfeitamente triviais, que se vacila entre a reportagem e o romance. Os diálogos, as descrições, as entrevistas são impressionantes. Depois a polícia descobre os dois homicídas. Regressa a confusão: é o autor que conversa com os homicidas? O detective é mesmo aquele homem que se chama Dewey? Os dois homicidas mataram por ódio ou por dinheiro? São centenas de páginas que se lêem com grande comoção, tal o gigantismo da palavra.

Enquanto lia este romance-documentário (existirá este género literário?) eu interrogava-me, roído de inveja, se não era um livro como este que gostaria de escrever sobre esta guerra da Guiné. Felizmente que tenho consciência da falta de méritos literários, mas gostava de dignificar um dia a epopeia nestas terras dos Soncós.

Obrigado por tudo quanto me tens escrito, os sopros de coragem e de ternura que aqui fazes chegar. Para ser sincero contigo, como tu gostas, ainda não me refiz da acusação de "branco assassino". Sei que vai sarar, mas sei também que me vou olhar de maneira diferente. Mantendo-se a punição, e sabendo-se agora em definitivo que só voltarei em 1970 aí, e não antes de Agosto, vamos ter de tomar os dois decisões importantes. Do meu lado, vou reagir à ofensa desta punição injusta, vou procurar de novo recorrer. Já me disseram que não é fácil recorrer de uma punição de um oficial general, mas estou por tudo.

Prometo-te que volto a Bafatá, para refazer os nossos documentos, já que havia declarações mal preenchidas, não estava lá o teu nome completo, faltava até a morada do meu pai ( a que propósito é que tenho que pôr a morada do meu pai, sendo eu maior e vacinado?). Não sei se estou a ser praxado, mas também me informaram que tenho de pedir ao comandante de Bambadinca autorização para o enlace. E lá vou ouvir de novo o secretário do Sr. Administrador, com o seu bigodinho à Clark Gable, a explicar-me o que é um casamento com separação de bens e uma convenção antenupcial. Nós não vamos desmoralizar. Sê prudente, não sofras com tudo aquilo que não se deve sofrer só porque não se compreende. Vivemos os dois esta agrura, não deixemos que as lágrimas se percam na terra.

Assim se passou um ano desde que a chorar me acenaste para o "Uíge". Graças a ti, ao ânimo que me trazes todos os dias, aconteceu este milagre de eu ter aprendido a resistir, a saber ultrupassar as dificuldades. Aprendi a fazer contas, a saber o que era a gestão de um quartel, aprendi a meter-me na mata profunda, a encarar como uma obrigação o defender e o combater. Não sabia o que era matar, aconteceu e não sei se voltará a acontecer. Sinto-me muitas vezes entorpecido, tenho saudades do cinema, do teatro, da música, do bailado, das conferências, das exposições, dos meus queridos amigos. Mas a vida ensina-nos as prioridades de um momento, colamo-nos a elas, e, a uma dada altura, descobrimos que valeu a pena e aceitamos a mudança como uma dádiva do Senhor.

Dói muito não poder fazer planos para o futuro. Missirá, a sua defesa e o seu combate, é o que tenho ao alcance da mão. Promete-me que me continuas a ajudar. Um belo dia, descobriremos os dois que mais um ano se passou. E que estamos preparados para viver um grande amor. Muito cansado, e para te dizer a verdade doente, beijo-te daqui até Lisboa.

_______

Notas dos editores:

(1) Vd. último post desta série: 20 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!

(2) nVd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)