Mostrar mensagens com a etiqueta UNITA. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta UNITA. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17088: Notas de leitura (932): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (3) (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Baía dos Tigres foi o primeiro livro dos jornalista Pedro Rosa Mendes, a obra ganhou prontamente notoriedade e foi publicada em Espanha, França, Alemanha, Itália, Grã-Bretanha e Estados Unidos.
Não conheço na literatura de viagens, em língua portuguesa, um pesadelo de tal envergadura no desenho do teatro de horrores, há para ali figuras de Shakespeare, umas desavindas com o destino, outras obstinadas em manterem-se naqueles lugares com que se identificam, nenhuma razão os faz partir, é uma peregrinação trágica de um repórter que partiu de Lisboa com a convicção de que era exequível, um século depois, cumprir o famosíssimo trajeto de Capello e Ivens, de Luanda a Quelimane. Pedro Rosa Mendes deambulará entre guerras, e mesmo a tragédia moçambicana não escapa ao seu olhar.
Quando concluímos a leitura desta obra prodigiosa somos levados a rememorar a guerra que experimentámos, a que se atribuía uma causa e um sentido. E à distância física dos tormentos, temos que reconhecer que quem fica, por amor ou obrigação, é joguete de ambições, carne para canhão, e naqueles jogos monstruosos há gente que se locupleta e goza com o sofrimento dos outros.

Um abraço do
Mário


Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes: 
uma obra-prima na descida aos infernos (3)

Beja Santos

Em “Baía dos Tigres”, Publicações Dom Quixote, Pedro Rosa Mendes não só descreve e anota magistralmente os lugares e as pessoas que vai encontrando numa viagem impossível que seria a travessia do continente africano por terra, algo como o itinerário que Capello e Ivens percorreram e que consta do famosíssimo relato “De Angola à Contracosta”, como conta histórias e ouve testemunhos que nos deixam pregados às descrições emocionantes. Tome-se o caso de Ben-Ben:
“Ben-Ben, futuro chefe do estado-maior das FALA e delfim de Jonas Savimbi, era apenas um alferes quando foi a casa de João Miranda no Dirico para o escoltar à morte. João Miranda estava havia 20 dias em prisão domiciliária porque a UNITA o acusara de ser um agente da PIDE. O preso não se revia em nenhuma das acusações.
João Miranda, natural de Bragança (1945) e em Angola desde os 11 anos, tinha família e loja no Dirico. A administração, a polícia e os muitos amigos na pequena povoação tentaram protegê-lo da condenação mas a UNITA insistia em relacioná-lo com a PIDE. A solução foi a fuga. O agente Covachan da PSP (mais tarde fez parte da segurança do presidente Ramalho Eanes), preparou-lhe a fuga numa noite de Janeiro de 1975, providenciando diesel às escondidas para que João Miranda pudesse atingir o Mucusso.
A mulher, Elisabete, e as filhas saíram noutra viatura com o pretexto de irem na direção contrária, de compras ao Huambo. O plano era atravessarem o rio Cubango de canoa, no Calai. Quando chegou ao Mucusso e passou a fronteira para o Sudoeste Africano, as autoridades sul-africanas responderam com rapidez. Comunicaram com o comando do Rundu, que enviou prontamente tropas para receber a família no Calai”.

Há um Paulo de Sousa em Lusaca que é super-enérgico e super-influente, o repórter esboça uma água-forte portentosa, inigualável. Como portentosa é a descrição dos bombeiros, mestiços ou negros, que representavam interesses comerciais em zonas do sertão angolano onde os brancos não podiam chegar. A história é tão mais curiosa dado o facto de Pedro João Baptista e Anastácio Francisco se terem antecipado meio-século à primeira travessia do continente por Livingstone (1854-56) de Luanda a Quelimane. E sabe-se que tal aconteceu de ciência certa, Pedro João Batista escreveu um diário. E o autor observa:
“Uma das delícias do Diário de Pedro João Baptista é o seu estilo. Não era um letrado não sendo um analfabeto, era um militar sertanejo. Escrevia com os pés mas olhava com génio. O pombeiro inventou uma gramática anárquica, onde o discurso direto irrompe sem aviso e os verbos não têm isso de conjugação, onde a pontuação tem a irregularidade do fôlego e expressões eruditas convivem com um léxico existente em nenhum dicionário. Os conceitos científicos não estão lá. Os pontos cardeais não existem mas é uma evidência que Leste se diz “andar com o sol na cara”. O rigor da descrição é tal que foi fácil identificar os locais e acidentes por onde passou o pombeiro”.

Outra apreciação exemplar é a do brigadeiro-general Kalutotai:
“O brigadeiro-general vive numa das pequenas casas arrasadas pela invasão sul-africana e pela guerra civil. Não serão mais do que 10, as ruínas delas, moradias de guerreiros, sem arruamento mas alinhadas numa alameda de árvores enormes que dão sombra a uma história de violência total. A mobília desapareceu no fogo e o resto são instalações de zinco, esteiras, buracos de bala e de obus, alguidares e cães, roupas que secam e bebés que choram a céu aberto. Estes são os privilégios de Kalutotai, comandante da UNITA na área militar do Caiundo. A localidade do Caiundo – o antigo centro de cantineiros, lojistas do mato – erguia-se numa elevação sobre o Cubango, a ponte que ligava ao Sudoeste Africano foi dinamitada em 1975. De dia, se é de paz, o brigadeiro senta-se na varanda térrea e, sem mexer um dedo, ou mexendo apenas o pequeno chicote contra a perna esticada, controla a reta que traz ao rio a estrada de Menongue para a Namíbia. Ele vê sempre muito antes de ser visto. É talvez por isso que continua vivo. O Caiundo é uma célula onde flutuam canoas e Kalutotai é comandante da sua própria prisão perpétua. Em Angola, os partidos – dois exércitos – não são opções ideológicas, tornaram-se simples contingências geográficas – combate-se e vota-se pelo sítio onde se está”.

É Kalutotai que autoriza que o autor prossiga viagem, será uma viagem indescritível. A carta que Pedro Rosa Mendes escreve ao senhor Ventura, diretor da Direção de Estrangeiros e fronteiras de Angola, Cuíto, Bié, Angola, é prosa memorável, crítica mais mordaz aos pequenos poderes do funcionário déspota e mesquinho não pode haver. O autor despedaça-o, redu-lo à sua insignificância:
“Disseram-me que Vossa Excelência era muito nervoso e muito crente. Fiquei chocado e contente. Gente assim produz conversões dramáticas. Deus é a sua última hipótese.
Como na última vez que o vi, Vossa Excelência não me está a olhar nos olhos: nessa ocasião não conseguia, hoje não pode. Dá igual: “Não lhe dou mão nem adeus. Nada fez para merecer isso”.

Viajamos aos tropeções, sempre pela mão do autor, atravessamos fronteiras, conhecemos pessoas extraídas de preciosas antologias do exótico ou do extraordinário. Viajamos à toa, por vezes com a respiração suspensa, o autor corre perigos:
“José rema o meu sarcófago pelas ilhas e rápidos. Costuramos uma fronteira: há ilhas que são Namíbia, outras são Angola. Vou deitado no chão da canoa, com os braços estendidos ao lado do corpo, e a canoa adapta-se ao meu corpo. A cabeça e os ombros encaixam nela. Um sarcófago é isso, uma caixa à medida para a última travessia. Tivemos de aguardar a noite para voltar a Angola encobertos por ela. Devido ao embargo das Nações Unidas, a fronteira angolana está fechada nas áreas controladas pela UNITA, como é o caso do Cuando Cubango. Na Faixa de Caprivi o controlo é muito apertado. As patrulhas namibianas andam rio acima e rio abaixo. São renhidamente zelosas eficientes, quando veem alguém atravessar o rio atiram a matar”.

O belo horrível é dado pelo cristalino da língua, impecável, e os pormenores mais medonhos, contados com absoluta dureza. Ouve-se um piano, este sufoca os gritos dos executados, temos uma descrição do horror absoluto:
“Os jovens da Organização dos Pioneiros de Angola tinham a sua bandeira e toda a gente tinha que se pôr em sentido num raio de três quarteirões quando era hasteada. Quem não, levava um tiro ou era preso, os meninos da OPA treinavam-se nisso para ser futuros dirigentes. Os camponeses não sabiam, distraiam-se, eram levados para a cave daquela casa abandonada – era de uma professora de música que fugira meses antes – e torturados ao som do piano para o piano abafar os seus gritos. O terror lança mão de qualquer objeto. Até de um piano”.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de Fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17079: Notas de leitura (931): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17079: Notas de leitura (931): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (2) (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Tinha para mim que o livro "Kaputt", de Curzio Mallaparte, era a última palavra sobre os horrores da guerra. Mallaparte viaja por pontos críticos, durante a II Guerra Mundial, presencia guerra na Finlândia, URSS, em Itália, percorre países ocupados.
Buscando uma linguagem neutra, magoa-nos até ao tutano no gueto de Varsóvia, nos pogrons na Roménia, põe a falar pilotos soviéticos que julgam que foi a Finlândia que agrediu a URSS, entre tantíssimas situações.
A questão nevrálgica da "peregrinação" de Pedro Rosa Mendes é a guerra civil angolana, socorrendo-se de uma linguagem sóbria, somos confrontados com a demência, a maldade pura, a degradação ao extremo da condição humana, a quase impossibilidade da fé no futuro, vale a pena ler e reler este documento primorosamente escrito, falando por mim é o documento maior sobre os demónios à solta naquela guerra civil de Angola que só deixou de existir quando acabou o confronto entre superpotências.

Um abraço do
Mário


Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes: 
uma obra-prima na descida aos infernos (2)

Beja Santos

Falamos repetidamente daqueles livros que nos exigem uma leitura compulsiva, a necessidade de nos grudarmos a uma prosa exigente, infatigável, com todas as cambiantes da amargura aos sentidos da sobrevivência. Pois bem, “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, é um diamante da literatura de viagens, às vezes sentimos a toada poderosa de um grande romance, mas o escritor na pele de um repórter não engana ninguém, meteu o prego a fundo na guerra civil de Angola, andará por outras paragens mas é nesta terra mártir que seremos induzidos, até à repugnância e ao sufoco, sobre os mais absurdos casos que imaginar se possa do teatro de horrores.

Estamos no Planalto, numa região controlada pela UNITA, somos brindados por prosa de primeiríssima água:
“Lutaram pela sua terra, muito e tanto, até fazerem dela uma terra de guerreiros, e de nenhum outro cultivo. Começaram então a nascer dela, homens com raízes aéreas, raízes da terra, até ao osso do caule, até à seiva do nervo. Raízes no lugar das pernas, férteis na terra que as mutilou.
Aparecem, altos, sem espessura, de dentro da neblina do Planalto, do interior do perfume fresco do eucalipto. É de manhã que saem. E vêm. Aparecem, testemunhando o pesadelo e o milagre, agarrados à silhueta das árvores, confundindo-se com elas, caminhando no alto das suas raízes-ossos-troncos-madeiras-andas-próteses: muletas: uma nova espécie, meio-homem, meio-planta, metade-vida e metade-fingida. Os vegetais da terra que se tornou esta.
É de manhã e é para mim que avançam. O cheiro das folhas pica as narinas: aproveito, choro e disfarço, sucumbo. A primeira árvore de madeira-carne alcançou o sítio de onde o choque não me deixa mexer. Aperto, nessas mãos mesmo, o tesouro vivo que lhe resta: as mãos”. E, mais adiante: “Um ex-combatente com dupla amputação de pernas está erguido no alto das raízes que lhe enchem as calças. Um dos pés é um bocado de pneu, com a marca Michelin ainda visível no relevo do “peito”. Mostra-me as suas próteses com orgulho, porque eu não acreditava que as usasse: tinha-o visto chegar de bicicleta”.

Temos novas peripécias em terras do Galo Negro, já se saiu de Caiundo, segue-se um interrogatório burlesco feito por um administrador da UNITA, em Calai. Na continuação, ocorre uma reflexão ao escritor:
“Angola elaborou de forma perversa o conceito de que informação é poder. O que é visto por ser contado, o que é dito já não pode ser retirado. Para uma população em guerra, condenada a servir dois totalitarismos siameses, a informação pode regressar como arma nas mãos do inimigo”. E segue-se uma exposição espantosa sobre a cultura da mentira. A viagem tem altos e baixos, acidentes de percurso, entremeiam-se relatos pavorosos, histórias que até podiam ser pícaras, não tivessem como pano de fundo a destruição, a maldade mais velhaca, e por vezes ocorrem aparecer pontos de heroísmo, vale a pena ler e reler a odisseia de Daniel Libermann, um hino à tenacidade. Há histórias de gente muito antiga, descreve-se a pescaria do Mucuio, falemos então de peixe: “Pode ser uma mulamba de espada, mulamba de corvina, mulamba de carapau. É a forma de abrir o peixe antes de mais. O peixe é aberto pelas costas, pela espinha, e geralmente tira-se a cabeça se é para mulamba de corvina ou de carapau. Depois faz-se uma moura muito leve, com pouco sal, de maneira a não ficar com muito sabor. Deixa-se algumas horas: põe-se a secar um ou dois dias, é rápido. Aqui comemos o peixe grelhado, que é o mufete – o carapau grelhado sem tirar as vísceras, vai para a brasa todo ele, completo. A cabeça é a melhor parte do peixe – o mesmo para o kalulu, com óleo de palma”.

Volta-se a cenários de destruição, estamos de novo no Cuíto:
“O Cuíto é uma vala comum. Há gente enterrada em todo o lado. No adro, na igreja, naqueles jardins, na avenida, nas casas, nos quintais, nos prédios (…) Disparava-se blindados com os canos na horizontal. Disparava-se de uma casa para a outra, a 20 metros do alvo. Tiro à vista, o ódio em cheio no branco dos olhos. Um oficial francês, em operações de desminagem e formação no Cuíto, contou-me que até aí, Julho de 1997, tinham encontrado 71 tipos diferentes de explosivos.
- Costumamos gozar e dizer que, com um pouco de trabalho, acabaremos por encontrar os 700 que faltam – existem cerca de 800 tipos de munições referenciadas em todo o mundo. Aqui a guerra foi diferente de todas as que conheço, Camboja, Afeganistão, Bósnia. Nesses sítios as munições estão dentro do convencional. Minas, aqui, são de todo o tipo. Não há sequer, minas artesanais. O material aqui é do mais sofisticado que há. Israelitas, sul-africanos, chineses, coreanos, franceses, russos, americanos, tudo. É uma espécie de universidade para nós. E ninguém ouviu falar do Cuíto.
As crianças aqui brincam com projéteis ar-terra, que têm um palmo e pouco de comprimento e lhes podem explodir nas mãos a qualquer momento porque não detonaram na queda. Uma ficou em bocados com uma coisa dessas há pouco tempo. Não sei como vão reconstruir isto”.

E a viagem prossegue até Bibala, no sopé da chela, depois Lobito. O viajante telefona para Lisboa, informam-no que morreu Al Berto. Temos mar e linha férrea, avistam-se desmobilizados, mutilados e desempregados. Temos seguidamente uma descrição em Lubumbashi, Congo, vive-se no caos, falam portugueses, contam histórias, andam tropas ruandesas por ali. Mais histórias desta vez em Elizabethville. E a trama regressa a Angola, a Caiundo, entram novas personagens, desta feita os sul-africanos como John Van Der Merwe, comandou os Flechas Negras que, juntamente com o batalhão Búfalo puseram em retirada as tropas de Agostinho Neto e Fidel Castro, do Cuando Cubango até ao Cuanza Norte, este soldado excecional veio da base ómega, Faixa de Caprivi, Sudeste Africano, é uma das histórias mais surpreendentes e galvanizantes deste livro. John Van Der Merwe confessa-se ao escritor:
“Não estou a dizer que fui um assassino: somos treinados para isso, faz parte da vida de um gajo. Fui um indivíduo que em combate carregou muitos homens neste ombro, pretos inimigos, para os salvar. Salvei muita gente. Nunca tive tendência para eliminar pessoas. E foi por isso que não aguentei muito mais tempo. Tenho passagens tristes. Mas matar por prazer não”.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17065: Notas de leitura (931): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17065: Notas de leitura (931): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Em 1999, Publicações Dom Quixote davam à estampa uma obra ímpar da literatura de viagens, onde há um véu de romance e se sente desde a primeira página o poderoso artífice que nos introduz na guerra, nos revela todo um teatro de horrores como se estivesse a ver e se recusasse a sentir, todos aqueles figurantes e toda aquela classe de sofrimento parecem saídos de um bloco de notas de alguém que não quer tomar partido pelas demências que lhe são contadas. Em nenhum outro livro encontrei tantas semelhanças com "Kaputt", de Curzio Malaparte, outro viajante que anotou horrores num dado período da II Guerra Mundial, ouviu monstros deleitados com as suas doutrinas da supremacia racial e ouviu povo anónimo, agarrados às raízes da humanidade. De algum modo, são estes os cenários da "Baía dos Tigres", um livro extraordinário, irrecusável, uma paleta espantosa daquele pesadelo que deu pelo nome da guerra civil angolana.

Um abraço do
Mário


Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes: 
uma obra-prima na descida aos infernos (1)

Beja Santos

O escritor e jornalista Pedro Rosa Mendes, em 1997, propôs-se realizar a travessia do continente africano, por terra, “De Angola à Contracosta”. Queria afoitar-se a levar por diante o itinerário seguido por Capello e Ivens, como escreveu José Eduardo Águalusa, “um século depois, muitas guerras depois, através de estradas já mortas e campos semeados de minas”. O relato desta aventura é um livro esplêndido, uma pedra preciosa da literatura de viagens, um género literário em que damos cartas, seguindo a herança, ao melhor estilo, do que escreveu e viveu Fernão Mendes Pinto.
O que nos oferece esta “Baía dos Tigres” é um género de odisseia, voltando a José Eduardo Águalusa, com heróis anónimos, habitantes dos limites da vida, e também monstros, estranhos monstros reinventado o horror no seu vasto território de sombras. Portugal precisava de um livro como este. Um livro capaz de justificar todo um passado comum de errância pelo mundo e de renovar a chamada literatura de viagens.

O núcleo central da obra descreve situações da guerra civil angolana. Dentro da banalização do horror com que nos atrai do princípio ao fim, vamos começar exatamente perto do final na Pousada Número Um da Jamba:
“Tem 16 hóspedes que estão lá para sempre. Não tem iluminação porque é melhor assim para eles. Não se vê e a escuridão tem pudor do pesadelo que esconde, recortado contra um cheiro nauseabundo. Quando se entra os olhos ganham a vertigem do chão e o estômago quer voltar para trás. Os ocupantes são 6, quartos e um corredor de homens amontoados, quase todos cegos ou amputados e ainda outros que são surdos. Na verdade, o grupo maior é daqueles que estão cumulativamente imóveis em todas essas desgraças: não vêem, não ouvem, não mexem. Todos falam e mesmo os que não têm língua olham de uma maneira ensurdecedora.
A Pousada Número Um foi o primeiro centro de acolhimento de deficientes das FALA, criado no início da guerra quando Savimbi e um punhado de homens fizeram quartel-general no canto inferior direito da sua retirada de Luanda. Em Angola, a morte é um luxo barato. O preço maior é ficar vivo quando a vida é uma mercadoria insuportável. Em 1976, a Pousada era o exemplo Número Um do carinho que o Galo Negro dedicava aos heróis da luta: os homens que tinham pago esse preço exorbitante em lascas do próprio corpo. Têm minas na ponta das muletas, granadas onde faltam as mãos e bombas ao alcance das pestanas. Comércio de troca direta, a guerra deles: um pé por cada passo, um dedo por cada atraso, um homem por cada palmo, um grito por cada dor”.

Pedro Rosa Mendes não aterrou em Luanda à procura de uma reportagem de guerra, embora soubesse que a guerra aqui permanecia, tinha pela frente uma linha sinuosa que vai de Luanda a Quelimane. Uma odisseia, iria descobrir, cheia de campos de minas, o repórter vai descobrir aqueles azares da fortuna em que um guerrilheiro se desencantará, passando para o adversário, encontrará durante a viagem algumas dessas histórias em Angola e Moçambique. E logo descreve a batalha de Cuíto Cuanavale, onde combateram angolanos das FAPLA, guerrilheiros da SWAPO, tropas cubanas e aviões soviéticos contra angolanos da UNITA, comandos sul-africanos e aviões franceses:
“Milhares de homens morreram com bombas, morteiros, rockets, minas, tanques, metralhadoras, fome, pântanos, crocodilos. Com a loucura: é incontável o número de todos os outros que deixaram ali a vida e regressaram a Moscovo, Havana ou Joanesburgo contrabandeando a sua bagagem de pesadelos. O Cuíto Cuanavale é um epicentro do nada mas possui a única pista asfaltada da região preciosa para o transporte de tropas e material. O seu controlo podia decidir a guerra, como veio a acontecer”.
O repórter anda por perto, deambula por ruínas de alvenaria, ali não há eletricidade, água canalizada ou potável, é a desolação absoluta. As histórias sucedem-se, nenhuma é verdadeiramente feliz, Pedro Rosa Mendes prossegue viagem num doloroso anda-pára, tomas notas sobre vidas fantasmáticas e a descida aos infernos prossegue com minas à frente, atrás, à esquerda, à direita, mais dor parece impossível, como ele escreve:
“Andar de dia. Andar de noite. Comer fuba ou não comer nada. Poupar a última lata. Ferver chá colhido em arbustos. Cozinhar em panelas negras na terra lavrada pelos pneus. Comer a última lata. Comer à mão em pratos de esmalte esboroado. Imaginar água fresca. Salivar línguas de sal. Quebrar de frio uma hora depois da Lua. Abafar de calor uma hora depois do Sol. Sonhar com uma cama. Acordar com ratos. Adormecer com um susto. Desprezar as lágrimas. Evitar os cães. Defecar à frente dos outros. Tomar banho nos rios, nadar na sesta dos crocodilos, fugir das cobras, secar o corpo com as mãos. Colher os arrepios por fora dos ossos, vestir a pele da roupa imunda. Vomitar o próprio cheiro. Dormir ao relento, dormir em alerta, em trânsito, em casas abandonadas, em colchões de palha e piolhos, em cobertores com buracos e sarna”.

O repórter tem que atravessar a Jamba, é retido, ali passa horas intermináveis à espera de autorização para continuar. Sabe escutar, apercebe-se de dramas, daquelas guerras em que rapidamente se passa de herói a traidor, de quinta-essência a refugo. E vamos sendo atormentados com histórias macabras com a do Fogacho:
 “Fogacho estava condenado. Como oficial das FALA, foi integrado no exército único ao abrigo do Protocolo de Lusaca. Era uma das patentes da UNITA nas FAA; tenente-coronel. Há um ano que tinha trocado o mato pela cidade. Agora ia à Jamba, por terra, buscar a mulher, os filhos e duas viaturas que lá continuavam. Mas ninguém chega à Jamba por terra. Nem mesmo um tenente-coronel da casa. Ou talvez, melhor: muito menos um tenente-coronel que trocou de casa.
- Luanda é só traição. Esses ditadores se passeiam lá nos governos, comendo do nosso petróleo. Eles financiam o totalitarismo com o petróleo. Enquanto lhes bastar o petróleo não vamos ter cheiro de pluralismo. Devíamos ter estendido a guerrilha nas plataformas. Quando lhes estoirar nas mãos, aí eles percebem.
(…) Fogacho era estrangeiro. De Angola para Angola, do Bailundo para Luanda, mudara para sempre de país. Na UNITA, que sempre fanatizou a pureza, não há dupla nacionalidade. Fogacho foi para não voltar. Além disso, a cidade é uma sedução em si, depois de 20 anos no mato”.

A viagem prossegue, o escritor desorienta-nos com histórias e situações entre Angola, a Zâmbia e Moçambique, histórias de horror, de corrupção, daquela pura maldade que só é possível nas guerras insanas, onde foram esquecidos todos os princípios.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17055: Notas de leitura (930): “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16632: Notas de leitura (894): “Guerra e Paz, Portugal/Angola, 1961-1974”, pelo Brigadeiro-General Willem van der Waals; Casa das Letras, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de um estudo muito bem documentado, a galeria dos protagonistas é servida com rigor e objetividade, o contexto da guerra angolana toma sempre em conta as outras frentes, no final da obra o autor diz que aquela guerra estava inextricavelmente ligada a conflitos não resolvidos nos outros territórios africanos. Fala-se da Guiné onde se sabia não seria possível para qualquer um dos lados uma vitória retumbante e a seu propósito escreve o autor: “A Guiné seria o teste crítico de resistência e de força de vontade das Forças Armadas e a razão principal para o colapso do governo em 1974”.
Outro autor por ele citado dirá mesmo que Caetano não podia ter aqui a sua batalha de Dien Bien Phu e prosseguir como se nada tivesse acontecido.

Um abraço do
Mário


Guerra e paz, Portugal/Angola, 1961-1974

Beja Santos

Não se trata propriamente de um olhar de um historiador estrangeiro, o Brigadeiro-General Willem van der Waals autor de “Guerra e Paz, Portugal/Angola, 1961-1974”, Casa das Letras, 2015, foi vice-cônsul da África do Sul em Luanda, entre Abril de 1970 e Dezembro de 1973. Conheceu na perfeição a UNITA e este seu livro tem por base a sua tese de doutoramento numa universidade sul-africana. Com o 25 de Abril de 1974, o autor, colocado na Namíbia, contactou a UNITA. Foi depois colocado no quartel-general sul-africano em Pretória, o dossiê Angola não mais o largou. E como ele bem diz, para se compreender totalmente a guerra civil Angolana, o envolvimento de África do Sul e a Angola de hoje é necessário compreender todos os acontecimentos luso-angolanos, sobretudo a partir de 1961.

O estudo de van der Waals aparece bem compartimentado, baseia-se numa tese de doutoramento, é multidisciplinar e tem ambições de enquadrar os múltiplos protagonistas desenvolvidos. Começa por nos dar o ambiente físico e humano e enquadramento histórico de Angola, a emergência do nacionalismo a partir da era de Salazar e o despontar de forças como o MPLA e a UPA. Recorda que o Acto Colonial previa uma maior dignificação do indígena e o fim do trabalho forçado, mas que nada se passou assim, como observa: “Um fazendeiro que requeria trabalhadores solicitava-os às autoridades governamentais, após o que se abordavam os líderes negros para preencherem a quota com gente das suas comunidades. Se não o faziam, a questão passava para a polícia, que realizava batidas arbitrárias arrebanhando homens até preencher a quota. Tais práticas laborais revoltantes tornaram-se no foco da atenção não só em Portugal mas também a nível internacional. Em 1947, o Capitão Henrique Calvão, na qualidade de Inspector-Chefe da Administração Colonial apresentou um relatório numa reunião secreta da Assembleia Nacional, alegando que a economia angolana explorava mão-de-obra negra barata comparando o trabalho do contratado ao da escravatura. Avisou o governo de que haveria uma catástrofe iminente caso as condições de trabalho não fossem rapidamente melhoradas”.

Temos seguidamente o ano crítico de 1961, correspondente ao início das sublevações, segue-se a luta revolucionária limitada entre os anos de 1962 a 1966 e a guerra prolongada entre os anos de 1967 a 1974. Não havendo qualquer surpresa na documentação apresentada, louva-se o autor pela capacidade de síntese na apresentação dos protagonistas e dos demais movimentos de libertação em colónias portuguesas. O mesmo se dirá da boa capacidade esquemática apresentada para os factos da luta revolucionária, inicialmente centrada na região Norte e posteriormente na frente do Leste. Fica-se com o entendimento dos altos e baixos na representação das três forças anticoloniais, as suas filosofias e até os seus aliados. Há muito que se sabe que o MPLA, no início de 1974, vivia precariamente e com destino aleatório. Em 18 de Abril de 1974, o comandante de esquadrão Manuel Muti rendeu-se às autoridades portuguesas, dando informações dentro das fileiras do MPLA, ficou-se a saber que havia duas fações distintas encabeçadas por Agostinho Neto e Daniel Chipenda. A figura-chave que leva à neutralização temporária da sublevação de Luana é Costa Gomes. Enquanto Comandante-Chefe de Angola, reformou a estrutura do comando e do controlo e assumiu o real comando das operações, africanizou as forças da ordem e colocou o General Bettencourt Rodrigues como Comandante da Zona Leste onde, em 1971, lançou uma ofensiva bem-sucedida. Van der Waals esmiúça com detalhe a evolução da FNLA/GRAE/ELNA, da UNITA e procura interpretar as razões do êxito temporário das forças portuguesas frente ao inimigo. E escreve: “Encarada isoladamente, a guerra em Angola redunda num excelente exemplo de luta contrarrevolucionária relativamente bem-sucedida. Em 1974, os movimentos de resistência que desafiavam a autoridade de Portugal em Angola encontravam-se exaustos e divididos. Do mesmo modo, o cansaço da guerra impregnara já a mentalidade portuguesa, muito em concreto no seio das Forças Armadas. Este sintoma, resultado de 13 anos de guerra, mostrava-se menos palpável em Angola mas viria, não obstante a determinar o seu destino. A guerra de Portugal e Angola, quando chegou ao fim, estava inextricavelmente ligada a conflitos não resolvidos nos outros territórios africanos e a tendências subterrâneas existentes na própria Metrópole”.

De leitura obrigatória para compreender a mais sangrenta sublevação contra o colonialismo na história de África a Sul do Sara.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de Outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16624: Notas de leitura (893): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (3) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 15 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9904: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (22): Havia mais "PALOP" (entendimentos) antes das independências

1. Mensagem do nosso camarada António Rosinha, (ex-Fur Mil em Anagola) topógrafo na TECNIL na Guiné-Bissau, depois da sua independência, com data de 11 de Maio de 2012:

Havia mais "PALOP" (entendimentos) antes das independências

Guerra colonial portuguesa, Guerra do Ultramar, Luta de Libertação Nacional de Angola, Guerra de Independência da Guiné-Bissau, Luta de libertação de Moçambique, sem falarmos nos casos de São Tomé e Cabo Verde, são tantos os nomes da guerra da geração dos que nasceram nas décadas de 40 e 50 do século passado, que todos os nomes se podem ajustar a cada circunstância.

Mas se quisermos balizar a guerra entre as datas que provocam a frase “para Angola e em força” de Salazar, até à entrada de Marcelo Caetano no Chaimite de Salgueiro Maia, então se quisermos ser realistas com a história, foi como “Guerra do Ultramar”, nome com que no continente e ilhas era alcunhada a guerra pelos soldados que embarcavam no continente e ilhas, a caminho das colónias.

Mas para os movimentos que lutaram contra os que iam do continente e ilhas e imensos que eram naturais das colónias, essas datas dizem muito pouco, pois eles próprios, que são vários movimentos, cada qual tem as suas datas, ignorando mesmo as datas importantes dos outros movimentos irmãos.

E exigem para cada um, o seu próprio protagonismo, e hoje, até fazem por ignorar os feitos dos “irmãos” e assumiram as suas próprias datas comemorativas, exclusivas e isoladas uns dos outros, quando na realidade foi em conjunto que trabalharam.

Esta é uma realidade que se quer varrer para debaixo do tapete pelos 5 PALOP, que estiveram sempre associados na luta contra o colonialismo português, e hoje quase se ignoram.

Claro que podem ser encontradas razões para esse afastamento entre os governos MPLA/FRELIMO/PAIGC/PAICV
(Não incluo aqui São Tomé nem a UNITA nem FNLA nem RENAMO porque estes foram secundarizados por aqueles).

É que o protagonismo dos dirigentes desses movimentos “vitoriosos” que se relacionavam entre si a nível internacional, era tão excessivo que apagaram o sacrifício que os povos sofreram, tanto dos que acreditaram nesses movimentos como aqueles que ainda hoje não acreditam.

E como esses dirigentes, que se conheciam todos uns aos outros e se entendiam bem, eram tão poucos que rapidamente foram sendo apagados e excluídos politicamente e até eliminados fisicamente alguns, e hoje “desconhecem-se” mutuamente, após as independências e as vicissitudes que se seguiram, porque os dirigentes que “sobraram” eram desconhecidos uns dos outros.

Ao contrário do que se passava no tempo colonial, que havia uma união entre os principais protagonistas da luta anti-colonial, e mesmo entre eles e a oposição política portuguesa metropolitana, e agora não há CPLP nem PALOP “que lhe valha”, e é uma pena que a tal elite tradicional que existia se tenha apagado tanto, embora fosse previsível que tal acontecesse.

Era uma mais valia enorme para todos os 5 PALOP, pois havia muito entendimento entre eles e é a união que faz a força, pode ser que um dia reapareça essa união que existiu, o que parece difícil.

A conjugação de esforços e entendimento entre os dirigentes dos referidos movimentos era tal que no caso de Amílcar Cabral é considerado nos relatos históricos como co-fundador de MPLA, angolano, e do PAIGC.

E após as independências, no caso da Guiné é bem conhecida a colaboração de guineenses e cabo-verdianos do PAIGC que se prolongou durante bastantes anos, e acabou essa colaboração com maus resultados para o futuro da Guiné.

Mas sabemos que não era a colaboração que estava errada, mas as políticas “importadas” e completamente erradas e contrárias ao espírito dos povos e que não diziam nada às pessoas, e que acabaram num virar de costas, mau para todos.
(Absurdos como ideologias guevaristas em balantas, Ganguelas e macuas ou beirões e algarvios, nem em Cuba foi bom)

Ainda no caso da Guiné, conhecemos no tempo de Luís Cabral, um angolano como ministro do governo guineense, Mário Pinto de Andrade, que foi, durante a luta anti-colonial um dos presidentes do MPLA.

Mas como todos os casos semelhantes a Mário Pinto de Andrade, que já era um “exilado” de Angola, tornou-se exilado também da Guiné, foi péssimo a fuga dos mais informados.

E foram milhares de angolanos, guineenses, e de todos os PALOP, que se “exilaram” em Portugal, no Brasil e por todo o lado. Por cá, ainda há quem chame a alguns de retornados. Mas periodicamente, durante estes 38 anos de independências, os mais informados vão-se afastando dos seus países.

Embora muitos países em África descolonizada tenham problemas semelhantes, no caso das ex-colónias portuguesas têm uns problemas específicos, à vista de todos.

Menciono dois:

Um desses problemas mencionava-o Samora Machel numa visita a Portugal num discurso com Ramalho Eanes, presidente, dizia Samora que: “…todos têm pai, só nós (moçambicanos) não temos pai", referia-se à colaboração dos vizinhos com a Inglaterra. (neocolonialismo???), chame-se o que se queira, mas da parte de Portugal era impossível impor-se à “bola de neve” que esses movimentos criaram, que até os próprios dirigentes esmagou.

O outro enorme problema específico é o êxodo quase total da tal elite que Amílcar falava como a “burguesia “ que corria o risco de se suicidar, mas que tanta falta fazia viva, mas bem viva, porque eram patriotas, bem formados e formavam uma sociedade sã e adaptada aos vários ambientes étnicos, religiosos e culturais e já não se consideravam nem eram vistos pelas etnias, como simples colonos, embora a maioria fossem brancos ou mestiços e muitos eram negros já desintegrados da respectiva etnia.

Não se suicidou, mas exilou-se contra a vontade da maioria deles que não viram maneira de contrariar as forças internacionais, tremendamente malignas para todas as etnias africanas, que a “demagogia das independências” atraiu naquele momento errado.

Claro que esta gente que (conheci e fui colega de centenas) teve que se “exilar”, também deita muitas culpas para cima da tropa e dos políticos tugas, por certas coisas correrem tão mal.

Mas para a “morte ter desculpa”, quando vemos as revoluções e os massacres por motivos étnicos, religiosos, fronteiriços ou políticos em África, se for nas ex-colónias portuguesas pode-se dizer que a culpa foi do atraso em que Portugal deixou aqueles territórios, noutros casos fica à responsabilidade da ONU, essa abstracção.

Quando digo que havia mais PALOP (entendimento) entre aqueles cidadãos desses futuros países, havia mesmo uma irmandade tão saudável e até com alguma rivalidade competitiva e orgulho na própria terra que era entusiasmante e saboroso conviver e assistir ao entusiasmo daquela gente, antes do terrorismo do Norte de Angola e mesmo depois.

Mas há certos motivos para explicar a diminuição de um sentimento “PALOP”, mas deixo para momento mais propício,

Claro que a Europa colonialista cansada da guerra da Índia, da guerra da Indochina, da 2.ª Grande Guerra, optou por ver os outros em guerra, sozinhos.

Alguns de nós portugueses, assim como em tudo, seguimos sempre a Europa um pouco mais atrasados, tinha que ser.

Um abraço e coragem para os editores “editarem sempre”
António Rosinha
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9655: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (211): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte III)