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sexta-feira, 7 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P668: Do Porto a Bissau (4): A fortaleza de Schengen retém 20 caixas de material médico-cirúrgico (Zélia)

A Zélia mandou-me ontem notícas, às 15h48, que não pude inserir no blogue por falta de tempo (tive que ir e vir Funchal), e que a assim (excerto):

(...) O principal motivo era dar-te noticias da nossa gente,pois ontem e já hoje lançaste notécias deles... Pois é, lá está um dos meus dois tesouros, a minha Inês que faz 27 anos em Agosto e tirou férias, incentivada por mim «,para ir conhecer a Guiné, pois ela tem Formatura em Design de Equipamentos e a partir de 1 Maio efectiva na fábrica de mobiliário onde vem trabalhando em part-time quase há um ano porque há 5 que trabalha no Jornal O JOGO, das 18 às 2 da manhã ,de onde se vai agora desvincular... Era lá efectiva.. Tem também o bacharelato em Design Gráfico e faz lá a montagem das páginas do jornal que concerteza já tantas vezes leste (se por acaso te interesses por desporto).

A talho de foice, posso dizer-te que nesta área ela praticou Atletismo como velocista, tendo passado por alguns clubes além do FCP. Chegou a subir ao Pódio como Campeã Nacional.Além disto é bonita (parece mal a mãe dizer?), simpática, prestativa e alegre, o que julgo ajudar nesta viagem.

Hoje,falando mesmo ou através de mensagens,já contactámos umas 6 vezes, pois como ontem e já em Ceuta o jipe teve que ficar no posto fronteiriço pois implicaram com as caixas de material cirúrgico(soro e seringas) destinadas aos hospitais... Pernoitaram no hotel IBIS, convencidos que seriam liberados logo pela manhã, mas acabei de saber que tiveram que deixar lá as 20 caixas desse material pois não deixaram seguir.

Vale a pena alguém de boa vontade tentar ajudar quem mais precisa, caso de países como a Guiné, quando a burocracia criada por OUTROS não deixa ou não quer?

Além do desalento causado por este incidente - pois conheço bem o Xico e o empenho que teve para angariar estas coisa -, foi o tempo que ali perderam, pois julgando eu que por esta altura já iriam bem mais adiante, seriam 14h de cá quando estavam a passar Tânger.

Agora, permita Deus que nada mais os atrapalhe pois sempre tem havido problemas na fronteira do Senegal.

Sempre que possível vou-te dando notícias, pois com a minha filha lá o meu telemóvel não vai ter descanso (estava habituada em situações idênticas a fazer o mesmo com o Xico, só que ele resmungava sempre).

Um grande abraço e até logo,quem sabe!?

Zélia

domingo, 5 de março de 2006

Guiné 63/74 - P591: Mulheres e mães-coragem (Zélia Neno)

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > Viúva de Chambel, régulo de Cantabane. Na pessoa desta mulher guineense, fica aqui uma singela homenagem da nossa tertúlia a todas as mulheres, mães, namoradas, esposas, amantes ou companheiras de todos os combatentes da guerra colonial ou da guerra de libertação (como queiram), de 1963 a 1974... (LG)

© José Teixeira (2006)

Texto da Zélia Neno:

Uma vez mais aqui estou, tentando não fugir ao tema generalista do blogue, vou falar de pessoas que também viveram o drama da Guerra Colonial mas tão pouco têm sido focadas em qualquer texto ou livro ao longo do tempo, e porque se está a aproximar o dia 8 de Março que, não sendo o da Mãe, é O DIA DA MULHER.

Porquê? Porque as mulheres que viveram esse período da Guerra Colonial não devem ser esquecidas. Algumas, militares, normalmente enfermeiras paraquedistas, que à época tiveram de ultrapassar certos tabus para seguir essa carreira de resignação (à família e ao meio que lhes era querido), de coragem e amor ao próximo, contribuindo para que muitos feridos sentissem seu sofrimento amenizado ou até conseguissem sobreviver, as quais bem merecem ser lembradas e reconhecidas.

As outras quem eram? - Simplesmente MULHERES. Algumas já esposas, que sofreram nessa qualidada, mas a minha singela e mais profunda homenagem é para todas aquelas Mães que deste lado do Oceano ficavam a orar a Deus e Nossa Senhora para que os filhos regressassem sãos e salvos, o que infelizmente nem sempre aconteceu, e mães houve que por lá tiveram mais do que um filho em simultâneo.

Hoje, como mãe, atrevo-me a perguntar: quem terá sofrido mais? Os filhos lutando naquela guerra, ou suas mães que, a tão longa distância, nada sabiam deles durante semanas e semanas, casos houve de meses e anos (caso dos aprisionados), alimentadas pela Esperança que as fazia aguardar ansiosamente notícias suas ou contando cada dia que ainda faltava para abraçar os seus queridos meninos?

Quantas noites elas não conseguiram dormir ? Quantas lágrimas, algumas de sangue, lhes marcaram os rostos? Será que “as mães desta guerra” também não sofreram ou sofrem (as que ainda vivem) de stress pós-traumático ou de qualquer outra doença mental, provocada por essa situação? Sofrimento num coração de mãe deixa marcas irreparáveis!

Ao percorrer algumas daquelas picadas, onde ainda se vê marcas das minas anticarro que ali deflagraram, decerto causando muito sofrimento, não consegui evitar que as lágrimas me corressem pela cara, nem sequer imaginar qual inferno eu teria vivido se tivesse sido uma dessas mães. Elas tinham “fibra”, eu não (ou penso que não).

Mãe é Mãe, foi e é no seu ventre que se forma (claro, com a ajuda de um pai) e se desenvolve aquele pequenino ser, que desde logo se torna tão importante em nossa vida mais até do que o ar que necessitamos para viver e que, quando crescidos e chegada a ocasião que pensamos ser a oportuna, embora a evolução do tempo nos induza às vezes a errar, temos que fazer como a águia, quando ainda no ninho seus filhotes já estão crescidos e aptos para voar, no mais supremo acto de amor, lhes dá o derradeiro empurrão para que descubram suas asas e aprendam a fazer uso delas, sempre sob a sua protecção, vivendo assim o privilégio de terem nascido.

Esta oportunidade nem sequer foi dada às mães dos ex-combatentes, pois foram obrigadas a vê-los partir, tão jovens ainda, com regresso incerto, ficando sem poder dar um carinho, uma palavra de conforto ou sua protecção quando eles mais precisavam, nem tão pouco saber da sua vivência diária, o que acontecia só quando algum aerograma chegava e casos houve em que nessa ocasião quem o escrevera já não se encontrava no mundo dos vivos.

Não posso nem devo esquecer todas as outras mulheres de raça negra, espalhadas pelas ex-colónias, pois também elas sofreram, como mães de combatentes, quer seus filhos se enquadrassem, como milícias, nas nossas fileiras quer nas do inimigo.

Como viviam em pleno cenário de guerra, mesmo sendo população civil, sofreram as dores físicas de ferimentos e amputações, viram suas crianças chorar e gemer pelo medo ou pela dor e até morrerem em seus braços sem nada poderem fazer para as salvar, pois em situações de ataques, o que viam elas em seu redor? Sofrimento e Destruição!

Estas são as MULHERES E MÃES-CORAGEM do meu país de então, Continental e Ultramarino, e é para elas esta minha homenagem escrita, póstuma para muitas delas mas não em vão.
Zélia Neno


N.B.- Perdoem-me se com estas palavras feri a sensibilidade de alguém, cuja mãe somente esteja viva em seu coração.

quarta-feira, 1 de março de 2006

Guiné 63/74 - P579: A viagem do Xico Allen e da Zélia Neno em 1998


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > Este foto já correu mundo... ou, pelo menos, já deu a volta à nossa caserna...De facto, foi enviada em primeira mão para a nossa tertúlia…A legenda é do Albano (Costa): “Esta foto vale pela imagem, e os brancos em África converteram-se? Não é que ficaram a ver a Zélia a puxar o burro, mulher de armas!"... O Albano fez questão me mandar esta e outras fotos da viagem do Xico e da Zélia, em 1998, com o seguinte recado: "... para ilustrares o que entenderes, com a devida autorização da Zélia" (sic).

© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


1. Mensagem da Zélia Neno, nossa nova tertuliana, portuense, mulher do Xico Allen:

Luís:

Por falta de oportunidade ainda não agradeci a atenção com que fui recebida no blogue. Fiquei não só sensibilizada mas também contente pelos elogios e, como na verdade, sou uma "mulher do norte" (nascida e criada, assim como o Xico, nas casas que existem imediatamente a seguir à Ponte da Arrábida para quem vem de sul para norte, bem pertinho onde o nosso famoso rio Douro se encontra com o mar), vou tentar não ser um estorvo para a escrita de todos os tertulianos, porque além de ser crescidinha, também sei pelo Xico, das necessidades sexuais que todos os meninos/homens ditos normais, mandados para aquela guerra, tiveram de enfrentar, alguns já casados e com filhos, que ali tinham de se desenrascar conforme podiam nem que tivessem de partir catota na Rua da Palma nº 5 .

Por tal não se inibam, por favor, de falar dum tema que hoje mais do que nunca já não deve ser tabu para ninguém e todos os momentos e factos por ali vividos é que compõem a vossa própria História de Vida.

Obviamente que eu, Zélia, aquilo de que possa vir a escrever nada tem a ver com relatos daquela guerra, alguns minuciosamente aqui contados, mas porque ela existiu é que eu já lá fui várias vezes e logo que possível, pois é o meu sonho desde 1992 poder passar lá uns meses como voluntária em qualquer Missão no interior do país, e como por lá tenho vivido e compreendido tantas coisas, até então desconhecidas, só delas posso falar.

Há dias o nosso amigo Albano enviou algumas fotos minhas/nossas mas todas elas falam pois todas têm na minha lembrança algo a contar, o momento e situação em que foi tirada, o sentimento que naquela ocasião eu sentia e muito mais. Por exemplo, aquela dos burros foi um dia muito especial para aquele grupo que connosco foi ter, como anteriormente contei, porque aquele ia ser o dia D, pois saíramos de Bissau para ir a Jumbembem, onde eles haviam estado e dali seguiríamos para o Saltinho.

Algumas das peripécias desse dia já as contei, por email, ao "nosso fotógrafo de serviço" [o Albano Costa], e aqui e uma vez mais agradeço a sua disponibilidade em as enviar.

Quanto ao Xico, ele ainda nada escreveu para o blogue porque anda ocupadíssimo com os preparativos da próxima viagem [, em Abril de 2006], pois para além de o jeep, comprado propositadamente para este fim, requerer uma preparação especial e rigorosa (para não ficar pelo caminho), tem todos os bastidores que uma Expedição de Solidariedade requer, desde a angariação de materiais, especialmente escolar e médico, a alguns pequenos patrocínios, pois este tipo de viagem tem muitos gastos e não sendo isto um rally, o nome dessas empresas ao ir mencionado no veículo fica a ser conhecido do Porto a Bissau.

Talvez, senão antes, o Xico após esta nova jornada, muito mais vai ter que contar, assim como o tertuliano coronel Marques Lopes que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente, já que factos importantes e previstos se irão passar por terras da Guiné.

Parabéns a todos e continuem. Luís, obrigada e até um qualquer dia.

2. Nova mensagem da Zélia:

Luís

Ao ver agora a imediata resposta que deste ao meu email e como dizes ir lançar as fotos no blogue, vou tentar documentá-las minimamente, pois quem as vir não sabe nem onde nem as circunstâncias de cada momento. A foto dos burros vai como Anexo, pois há dias mandei ao Albano e evito escrever a mesma coisa. Que me lembre, além dessa ele enviou outras [que passo a comentar a seguir].

(...) Aproveito para enviar um beijinho para tua esposa que sendo uma "mulher do norte" é minha conterrânea e tem que ser "especial", porque ter maridos como os nossos que não passam um dia sem falar de ou com alguém da Guiné, mesmo eu gostando tanto dela, às vezes torna-se complicado (...). Zélia



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > "Luís, esta é, julgo eu, da tua zona, Contuboel... Esta foto é tirada no centro da picada que vai para Bafatá... Esta picada é um autêntica autoestrada, dá para circular a 120 km, mas à vontade" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá> Bambadinca > 1998 >"Eu rodeada pelo capim quando observava uma queimada, na estrada entre Mansoa e Bambadinca" (Zélia). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu >S. Vicente > 1998 > Travessia do rio Cacheu (1) © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu >S. Vicente > 1998 > Travessia do rio Cacheu (2)© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 1998 > A famosa Fonte de Empada... " O calor era tanto que o melhor naquele momento foi despejar várias bacias de água pela cabeça abaixo somente para refrescar e tirar a maioria do pó apanhado ao atravessar as muitas picadas para ali chegar. Fomos ali pois era àquela fonte que o Xico ia fazer o carregamento de água e assim nos deparamos com as mulheres a lavar a roupa após o que tomavam banho. Na foto eu estava nas escada a filmar enquanto meu marido tirava fotos" (Zélia)... "A Zélia é mesmo assim e lá foi tomar o seu banho" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006).

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada, Canchuma> 1998 > "Fazendo a cama...Foi em Canchuma, onde como hóspedes especiais, dormimos na única cama de madeira existente por aquelas bandas. A cama nem era má, os lençóis eram meus pois mulher prevenida vale por duas, e se não fosse a brincadeira dos cabritinhos a correr toda a noite ao redor da casa que era construída sobre uma plataforma ou coisa do género, até teria sido uma noite repousante devido ao cansaço" (Zélia)... "No hotel de Empada o seu director (chefe de tabanca) ofereceu-lhes a sua suíte, só na Guiné" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006).

Região de Quínara > Empada, Canchuma> 1998 > "Eu em camisa de dormir, quando acordei após a dita noite, saindo da Casa de Banho, que era algo de inédito até então. No interior daquele cercado, montado com algumas placas de chapa, pedaços de madeira, ramos de palmeira e a porta era um pano que movíamos para entrar e sair, o chão era em cimento com um leve declive para a água correr para a terra ao tomar banho a qual nos ia sendo entregue pelas gentis mulheres daquela família, que a retiravam de um poço e a iam passando dentro das meias cabaceiras, utensílio com várias utilidades por terras de África. No centro daquele espaço, no chão, existia uma abertura circular com cerca de 20 centímetros, tapado com um pedaço de lousa amovível e cuja função era a de sanita. Giro, não? Isto é África, não é especial da Guiné pelo que sei, assim como sei que nem toda a gente acharia graça a meter-se nestas andanças, mas estas experiências fascinam-me e fazem-me sentir muito feliz e só convivendo com culturas, hábitos e costumes de gentes tão iguais e tão diferentes, é que vamos evoluindo um pouco na nossa curta existência - é isto que penso" (Zélia) ... "A Zélia admirando o espaço à sua volta" (Albano Costa). 

© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 1998 > "Eu e Xico numa tabanca entre Empada e Binhar, rodeados pelo velho Mamadú e família, homem este por quem o Xico sentia muita admiração e respeito, graças ao qual ele não passou muitas vezes fome pois ele sempre o safava , como dizemos, pela porta do cavalo

A nossa primeira visita ao Mamadú foi em 1994, o que quase o endoideceu de alegria quando viu o Xico pois reconheceu-o de imediato e a mim era como se sempre me conhecera. Foi tamanha a sua euforia, e sabendo nós que na Guiné a riqueza dos homens vê-se pelas cabeças de gado que possuem e que somente matam para consumo próprio em ocasiões muito especiais, que ele queria insistentemente que nós trouxéssemos um cabrito para comer no hotel em Bissau, o que era impossível. Voltamos lá em 1998 e esta foto foi a última que tirámos com aquele homem grande, pois faleceu algum tempo depois. Os seus gritos e risadas de alegria ainda hoje se mantêm gravados na minha memória auditiva" (Zélia)... "A alegria estampada no rosto de toda a gente, assim como no Xico e Zélia" (Albano Costa).
© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

domingo, 19 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P547: Zélia, um caso de amor e paixão (III)

Texto da Zélia Neno, publicado no JN - Jornal de Notícias, em 19 Agosto de 1992



GUINÉ - TãO LONGE E TãO PERTO!

AFRICA! Quem nunca ouviu falar deste Continente, cheio de mistérios, outrora desbravado pelos nossos colonizadores e onde os portugueses enraizaram quinhentos anos da sua História?

Pois milhares de nós passaram por lá. Uns voluntariamente, procurando melhores condições de vida, pois África tinha muito para oferecer; outros, jovens que aos vinte anos, quando começavam a despertar para a vida, foram para lá empurrados, sem terem tempo sequer para compreender porque lhes haviam colocado uma arma na mão.

É com um destes jovens que me casei há dezassete anos, depois de haver cumprido o serviço militar na Guiné. Daí para cá tenho ouvido as suas narrativas pormenorizadas dos bons e maus momentos vividos no interior daquele mato, onde tudo lhes era adverso, pois para além da companhia dos colegas, só tinham a arma como "fiel companheira" e a solidão própria daquela situação.

Apesar disto, penso eu, a maior parte deles aprendeu o verdadeiro valor das palavras Amizade e Solidariedade, pois o viver em conjunto todos aqueles momentos, alguns bem difíceis de suportar, tentando sobreviver conforme podiam, auxiliando-se mutuamente, fez com que adquirissem valores morais que ainda hoje prevalecem no seu dia-a-dia, sendo frequente ouvi-los recordar com uma certa nostalgia esses anos vividos no seio da guerra, quando em cada dia existia a incerteza do dia seguinte.~

Apesar de tudo isto, os que sobreviveram, ainda aproveitaram algo de bom como o conhecerem um pouco terras africanas, pessoas de outras raças onde abundam várias etnias, cada uma com seu dialecto e seus ancestrais costumes, bem característicos do continente africano, onde tudo é tão diferente, até o ar que se respira.

E foi com este saudosismo de meu marido, a minha curiosidade, pois quis ser como S.Tomé -“ver para crer”, que nasceu o sonho de umas férias na Guiné. Mas Férias destas não são muito fáceis de se realizarem para pessoas que, como nós, vivem de ordenados médios, criando dois filhos adolescentes com todos os gastos inerentes à sua educação, pagando empréstimo pela compra da casa e com as despesas normais de qualquer família. Mas como “o sonho comanda a vida” e com muita vontade, sacrificando muitas saídas nos fins-de-semana durante vários meses, o sonho tornou-se realidade no passado mês de Abril. Juntamente com outro casal amigo, (eles, homens, companheiros de guerra) então partimos rumo àquele país, onde outrora se via desfraldada a Bandeira das Quinas.

Sempre tive espírito de aventura, mas não minto se disser que tinha um certo receio pelo que poderíamos ir encontrar, pois era a primeira vez que ia a um pais africano e obviamente conviver com pessoas diferentes e com outro estilo de vida, além da duvida como iríamos ser recebidos, já que eles eram ex-combatentes.

Tudo isto se dissipou logo no primeiro momento de contacto com aquela terra pois desde a saída do avião as novas sensações que experimentei foram tantas que este espaço é pequeno para as enunciar.

Depois de uma volta por Bissau, que já não era aquela mesma cidade que eles conheceram entre 1972 e 74, pois agora é uma capital pobre, suja, com o piso das ruas muito degradado aguardando conserto sabe-se lá para quando, mas onde não vi pedintes nem crianças subalimentadas como as que sabemos existir noutros países africanos, já que a televisão isso nos mostra nos noticiários, coincidentemente quando a maioria das famílias está a jantar, partimos de barco para uma das muitas ilhas do Arquipélago de Bijagós, daquelas ditas de paradisíacas. E aí, sim, pensei estar no Paraíso, se é que ele existe. Lá conhecemos quatro casais portugueses, dois dos quais em lua-de-mel, e que haviam escolhido aquele local para passar uns dias de férias, inesquecíveis para todos nós.

Desfrutamos de um mar estupendo com águas quentes e calmas banhando um extenso areal onde a sombra das palmeiras se projectava de dia, e à noite era iluminado por um luar que antes eu nunca tinha visto. Este cenário real tinha como musica de fundo o chilrear da passarada exótica abundante naquelas zonas e que nos transmite uma sensação de paz e tranquilidade só possível de encontrar em locais como aquele.
Mas, além desta aguarela africana, o que de mais forte me impressionou foi o espírito aberto e generoso dos guineenses, com a sua espontânea vontade de serem gentis para connosco e dizendo-se honrados por já terem sido portugueses.

Quantos de nós sabem ou ainda se lembram do nome dos rios, seus afluentes, onde nascem e desaguam que atravessam Portugal e que aprendemos na escola primária? Pois alguns desses “homens grandes” (assim chamam aos mais velhos) com quem passei horas a conversar, conhecem mais sobre o nosso país do que muitos cá da terra. Isto porquê? Porque o sentimento que têm por um povo ao qual chamam de irmão não deixa que o cordão umbilical que nos uniu enquanto mesma nação ainda não esteja cortado, passados que estão quase vinte anos desde a sua independência.

Tudo isto se torna mais notável para mim, ao pensar que estas gentes sofreram e consequentemente ainda sofrem, no corpo e na alma os malefícios de uma guerra evitável para ambas as partes, mas para eles o inimigo era Portugal, na realidade era quem o governava, mas para eles era os que por lá andavam de arma na mão.
Mesmo no interior da ilha, pude ver como vivem as populações indígenas no seu habitat natural, praticamente sem contacto com o exterior, comendo do que a terra produz e o mar lhes dá. Ali mesmo e uma vez mais, vi a alegria daqueles homens e mulheres por estarem a falar connosco, não no seu dialecto mas em português, língua que lhes é muito querida por todo um passado recente.

Depois deste dias, pouco para quem queria conhecer muito mais daquele pequeno país, regressei ao meu que muito amo, mas trouxe muita saudade daquela terra e da sua gente, além de uma enorme vontade de poder lá voltar.

Agora já consigo entender todos aqueles que um dia por lá passaram e trouxeram um pedaço no coração, pois a Guiné embora esteja longe está bem mais perto do que parece.

Zélia Neno

Guiné 63/74 - P546: Zélia, um caso de amor e de paixão (II)


Guiné-Bissau > > 2005 > O Xico Allen em convívio com antigos combatentes do PAIGC .

© José Teixeira (2005)
Texto da Zélia Cardoso, mulher do Xico Allen, e nossa mais recente tertuliana.

Gaia, 15 de Janeiro de 2006

Como é normal em circunstâncias destas, começo por me apresentar: meu nome é Zélia Neno, tenho 52 anos, 2 filhos (1 casal de 28 e 27 anos), casada há 30 com o Xico Allen, ex-combatente (Empada, 1972/74) e que alguns dos tertulianos, de quem costumamos ambos ler os seus relatos no blogue, já bem conhecem (1).

Após casada, comecei a ter que conviver com os seus pesadelos que me conseguiam acordar e a ver quanto se assustava com o rebentar de um simples foguete no ar. Então comecei a pedir que me fosse contando aquela passada mas recente vivência que ainda o atormentava, pois receava que tal se mantivesse ao longo dos anos, o que me assustava, como é obvio.

Dizem que o tempo cura as feridas mas casos há em que é necessário abri-las, fazendo-as sangrar até, para limpar com um anti-séptico e então esperar que curem completamente.

E assim, durante anos, algumas vezes já deitados e antes do sono chegar, comecei a ouvir os seus relatos, revivendo os 27 meses vividos num cenário de guerra, sofrendo com toda aquela adversidade, onde para ele e todos os outros o estar vivo no dia seguinte era incerteza constanste.

Falar disto aos jovens de hoje pouco lhes diz pois foram crescendo vendo a guerra dos filmes, onde quase todos os enredos são ficcionados e quando aparece o END, viram costas e entram noutra.

À época, o Xico e eu, além de vizinhos, unia-nos uma amizade fraternal, mas quer por ele como por todos os nossos amigos distribuídos pelas várias colónias, eu também sofri e chorei, quer no momento da partida, quer pela saudade que a ausência provoca, quer com o que podiam contar nos aerogramas que me enviavam, alguns dos quais ainda guardo religiosamente.

Quase todos puderam vir passar as tão merecidas férias, mas já se notava que alguns tinham sido "apanhados pelo clima", e passado esse curto período tudo se repetia, com um "Adeus até ao meu regresso"...

Voltando ao tema das horas passadas ouvindo o Xico relembrar alguns dos momentos maus,outros menos maus, alguns divertidos e até caricatos, especialmente enquanto "periquito", a alegria que sentia ao rever um companheiro, pelo que quase logo tomou a iniciativa de os ir juntando anualmente num almoço de confraternização, nos quais eu também participava, despertando em mim cada vez mais curiosidade por aquele pedaço de terra, que lá a 4.000 Kms, se estava a tornar saudoso e nostálgico e que para mim era virtual.

Marrocos, a caminho da Guiné-Bissau > 2005 >Uma paragem técnica para revisão das viaturas. De pé, o Xico Allen (à esquerda) e o Camilo (à direita).

© José Teixeira (2005)


Decidimos então começar uma poupança para poder realizar um sonho que então já ambos alimentávamos, pois com 2 filhos adolescentes, pagar as prestações da casa, e os gastos inevitáveis na manutenção duma família, tivemos que sacrificar saídas nos fins-de-semana, férias fora do país e outras coisas, pois nunca devemos de abandonar os nossos sonhos sem nada fazermos para os tentar realizar, mesmo que alguns nunca se concretizem: - Não é o sonho que comanda a Vida ?

Em Abril de 1992, com outro casal amigo, ele fora companheiro do Xico em Empada, o Artur Ribeiro, depois de tratados todos os requisitos exigidos, desde vacinas a vistos de autorização no passaporte, lá partimos embora com alguns receios pois para nós, mulheres, era a primeira visita a um país africano, para os dois ex-combatentes era a dúvida como nos iriam receber uma vez que lá tinham combatido como inimigos.

Aterrámos era 1 da manhã, no mesmo velho e degradado aeroporto donde eles haviam partido, de regresso a casa, em Junho de 1974, na altura sem qualquer vontade de lá voltar, mas como "o coração tem razões que a própria Razão desconhece", ali estavam e mal as portas do avião se abriram, os receios se dissiparam.

Apesar da hora tardia encontrámos pessoas afáveis, educadas e gentis, instalando-nos no melhor e mais recente hotel de Bissau, o Sheraton Hotel, hoje Hotel Hotti, com atendimento e condições óptimas, condizentes com o nome que tinha.

No dia seguinte e como era óbvio, fomos dar uma volta pela cidade e falando com uns e com outros todos faziam questão de dizer que eram nossos irmãos, pois acabara a guerra mas as condições de vida e o próprio país caira na decadência bem visível aos nossos olhos, pois Bissau tornara-se numa cidade feia, com as ruas degradadas, mal cheirosas, onde o lixo se amontoava servindo de alimento aos abutres, o que nunca havia visto e infelizmente revi quando em 92, também na minha primeira visita ao Brasil, e no interior da Baía por onde andei 2 meses, me confrontava diariamente com estas degradantes situações.

Deixando Bissau, rumamos a um verdadeiro paraíso que são as Ilhas Bijagós, com praias de areia branca sobre as quais se debruçam palmeiras e coqueiros, banhadas por águas quentes e serenas das quais é extraído muito e variado peixe e cujo marulhar só se mistura com o chilrear da passarada exótica que ali existe, formando assim um cenário paradísíaco convidativo ao descanso do corpo e da mente.

Ali, assim como pelo interior da Guiné, onde verdadeiramente a guerra se desenrolou já não se via lixo mas sim os nativos semi-nus, vivendo nas tabancas, onde não existe luz nem água canalizada e cuja base de alimentação é fundamentalmente o arroz e frutos, como os deliciosos mangos e a fruta do cajueiro, cujo sumo é uma delicia, para além das suas propriedades benéficas para a saúde e que depois de fermentado se torna em vinho.

Guiné-Bissau > > 2005 > O Xico Allen (à direita) em convívio com habitantes locais, o Kebá (antigo milícia, à esqterda) e o Braima (antigo ajudante de enfermagem, vestido de azul, ao meio).

© José Teixeira (2005)



Nunca esquecerei esta primeira ida à Guiné, e lamento que poucas famílias portuguesas por ali passem, pois ao dar-lhes um lápis, uma aspirina ou um rebuçado recebemos como agradecimento um grande sorriso franco e terno e vemos um brilho no seu olhar que só aquelas gentes nos podem proporcionar, transmitindo-nos uma energia que nos faz meditar e crescer espiritualmente, pois vivemos noutra parte do mesmo mundo, rodeados pelas novas tecnologias mas onde reina uma ambição sem limites, geradora de ódios, crueldades e muita pouca Paz.

Será isto um dos mistérios que faz nascer a paixão por África a quem a visita pela 1ª vez? Em mim a dita paixão virou quase doença e assim em 94 lá voltamos, já 3 casais e novas experiências vivemos. Desta vez conseguimos ir a Empada, onde os nossos 3 homens tinham perdido talvez o melhor tempo da sua juventude interrompida.

Encontraram entre a população alguns ex-milícias da nossa tropa e outros, ex-combatentes mas do lado inimigo e então ali frente a frente, entre abraços, risos e algumas lágrimas, reviveram factos passados, distanciados pelo tempo mas sem dor nem rancor. Pediram que voltássemos mais vezes, dissemos que o faríamos sempre que a vida tal nos proporcionasse e assim, 2 anos volvidos, em 96,lá estávamos novamente, acompanhados por mais um outro casal amigo, de Viana, e que também ele estivera em Empada.

Em Maio de 98, só os dois lá fomos e como costume, super carregados de roupas, brinquedos, medicamentos e alguns comestíveis, tudo para por lá distribuir. Xico sempre se zangava comigo na hora da partida pois parecia que eu desconhecia que de avião cada passageiro só pode levar 30 kgs de bagagem a não ser que pague o excesso. Mas eu, confiando sempre na minha boa estrela, deixava-o resmungar pois logo se veria, já que pagar é que não fazia parte dos nossos planos. Chegados ao balcão do chek-in e pesadas as malas, o peso total atingia quase 130 kgs. Que fazer?

Enquanto ele resmungava pois sentia-se envergonhado perante tal situação, eu fui conversando com o gentil assistente, dizendo o que levava e porque o fazia, pois ia ao encontro de tantas carências quando as podia amenizar um pouco com tudo que ali estava, levando assim um pouco de felicidade e muita alegria sobretudo às crianças que nunca tinham tido um brinquedo de verdade. A minha argumentação conseguiu que a sua sensibilidade ultrapassasse o cumprimento das regras impostas e, já que não havia risco de perigo, pois se uns levam peso a mais outros levam a menos, o facto é que conseguimos levar tudo sem pagar mais por isso.

Lá chegados, passamos uns 2 dias em Bissau e num jipe alugado viajámos para o interior, tendo como destino Empada, onde estivemos 2 dias. Aí sim, a experiência foi única até hoje, pois dormimos, comemos e tomamos alguns banhos na tabanca, onde luz só a da lua, das estrelas e da nossa lanterna pois desde a saída da tropa portuguesa não mais houve energia assim como outros bens essenciais, desde material escolar, medicamentos e alimentação. Os banhos, se assim se podem chamar, eram feitos despejando cabaceiras cheias de água retirada de um poço que gentilmente algumas mulheres nos iam entregando, fazendo-os passar por cima de um cercado e que funcionava como banheiro e não só...

Quis cozinhar um almoço pois havia levado 1 kg de esparguete, o que causou muita alegria entre os homens já que não comiam tal coisa desde 74 e para tal pedi que matassem 2 "pica no chão" mas de tão pequeninos que eram mais pareciam pintos e então comecei a minha aventura.

Sentada numa das pedras que rodeiam a fogueira comunitária, situada no centro duma palhota onde as mulheres grandes fazem a comida e sob um calor intenso que rondava os 40 graus, eu lá consegui distribuir e estufar aqueles pedacitos de frango em 2 grandes tachos, colocando num o esparguete e no outro arroz e ainda hoje não sei como saiu tudo gostoso e se houve algum milagre como o da multiplicação dos pães, já que somente aquele esparguete e igual quantidade de arroz conseguiu chegar para mais de 40 pessoas, na maioria homens e alguns até repetiram.

Nunca tinha vivido nada assim, mas senti-me imensamente feliz. Afinal a Felicidade não é mais do que o conjunto de momentos felizes que vivemos durante a nossa vida. No sábado regressámos a Bissau, onde outra grande aventura nos aguardava mas é demasiado longa assim como tantas outras para as inserir aqui, regresso esse devido a que no domingo à noite, com a chegada do avião,iria juntar-se a nós um grupo de 10 pessoas, 7 deles ex-combatentes, na sua 1ª romagem de saudade, que como todos os outros era a concretização de um sonho, sendo um deles o Sr. Casimiro, aqui do Porto, que se fez acompanhar pelo seu jovem genro, o Carlos, e outros seus amigos e companheiros de guerra, tendo então eu a oportunidade de conhecer o Sr.Armindo, de Moreira de Cónegos, o Sr. Camilo, do Algarve, o Sr. Pauleri, de Vizela, o Sr.Amílcar, aqui de Gaia, único que levou a esposa sendo assim eu beneficiada pois tive companheira para o resto da estadia e dos restantes lamentavelmente não me recordo dos nomes.

O que não esquecerei nunca, foi poder ver a alegria misturada com a emoção, quando chegámos a Jumbembem, local bem conhecido deles, pois mais não me pareciam do que crianças irrequietas em pleno Portugal dos Pequeninos, tentando ver todo o canto e recanto onde viveram outrora.

Esta foi até hoje, 2006, a minha ultima visita à Guiné. Porquê ? Porque um amigo convence outro e este mais outro e outro, e estas viagens passaram a ser anuais, 3 das quais foram por via terrestre em jipes referenciados como Missão Humanitária pois têm ido carregados de material escolar e medicamentos e penso que iria empecilhar o grupo, devido à ausência feminina. Não sei se isto acontece por falta de vontade dos maridos ou das esposas pensando que não vale a pena ir à Guiné já que existem tantos destinos para passar férias bem mais conhecidos ! ! !

Posso afirmar que para nós mulheres, que já lá estivemos, em momento algum nos arrependemos de o ter feito, bem antes pelo contrário, não só pelas experiências vividas no contacto com um povo cuja vida, costumes e ideais são tão diferentes dos nossos mas também porque a partir de então, ouvir nossos maridos falar daquele pedaço de chão com cerca de 36.000 klms quadrados, já visualizamos o cenário que para nós deixou de ser virtual.

Para os homens estas viagens, além de "romagem de saudade",servem para alguns deles exorcizarem algum fantasma da guerra que infelizmente tem destruido a saúde e a vida de muitos ex-combatentes e consequentemente de suas famílias, pois embora sem rosto visível tem nome-: Stress de guerra pós-traumático.

Não sendo perita neste assunto que em cada ano que passa faz mais vitimas, a minha opinião é que todos aqueles que podem e ainda têm saúde para isso, voltem a esses lugares, sejam em Angola, Moçambique ou Guiné.

Entretanto a próxima ida do Xico, via terrestre, está para breve com os preparativos já a decorrer mas com ele irão uns 5 ou 6 amigos, entre os quais o Sr.Armindo e o Hugo, filho do Sr.Albano, da Foto Guifões, que apesar de tão jovem já é a 2ª vez que lá vai e os restantes do grupo, Sr.Casimiro e C.A. seguirão de avião após uns dias, tentando chegar a Bissau em simultâneo, Até lá que Deus a todos acompanhe.

Perdoem esta minha intromissão e tão alongado texto, mas como meu marido diz, sou um perigo a falar ou escrever sobre a Guiné, pois não me canso de o fazer mas devo cansar quem me empresta os ouvidos, neste caso os olhos.

Zélia Neno

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Notas de L.G.

(1) Vd posts de

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)


31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDV: a tertúlia do Porto

Guiné 63/74 - P545: Zélia, um caso de amor e de paixão (I)

A Zélia, de quem eu já tinha ouvido falar, no último Natal, na nossa minitertúlia do Porto-Matosinhos-Gaia, é o que se pode chamar, com toda a justiça, uma mulher de armas, uma mulher do Norte, uma caso sério de amor e de paixão (pelo seu Allen mas também pela Guiné e o seu povo)... Foi, por mor (como se diz no Norte) da guerra e do stresse pós-traumático da guerra, que ela acompanhou o marido à Guiné, em 1992, e já lá voltou várias vezes...

Fico muito honrado por publicar esta carta e, por desde já, convidá-la sem mais demoras a figurar no quadro de honra da nossa tertúlia (a ela e ao Allen, pois claro!). A Zélia (trato-o como se a conhecesse há anos!...) mandou-me mais documentos que serão inseridos no blogue ainda este fim de semana.

Quanto às lendas fulas e mandingas (que eu adoro!), recolhidas por Manuel Dias Belchior, deve haver exemplares nas nossas bibliotecas públicas, a começar pela Biblioteca Nacional. Depois tratamos disso.

Zélia: Fiquei muito sensibilizado pela tua carta. A partir de agora, como nova tertuliana,e de acordo com as regras do nosso blogue e da nossa tertúlia, o tratamento é por tu, com o respeito que é devido a qualquer camarada, independentemente do género e da arma. Um xicoração para o Xico (Allen). Luís Graça
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Porto, 2006-02-16

De: Zélia Maria Neno Cardoso

Luís Graça:

Achará estranho receber este email enviado por uma mulher do Blogue-Fora-Nada, onde se encontram largas centenas de quilómetros de palavras sobre a Guiné.

O senhor não me conhece, o mesmo não acontece comigo, pois não só através da escrita como por foto. Sou casada com o Xico Allen, que o senhor conhece mas ainda não é tertuliano, mas foi ele que há meses me alertou para a existência deste blogue e como sou uma verdadeira amante da Guiné e da sua História, passada, presente e futura, que lamentavelmente teima em não vir a ser bem mais favorável para aquele seu povo tão sofredor, estou quase viciada a diariamente ler o que vão contando no blogue.

Por influência do Sr. Albano [Costa] e até do Sr. [José] Teixeira, que conheço pessoalmente pois ambos já foram à Guiné com o meu marido, fui incentivada a escrever contando algumas (pois são muitas) das minhas vivências naquela maravilhosa terra que conheci em Março de 92, conforme conto no texto inicial e que enviei para o senhor no passado dia 15 Janeiro [por erro no endereço de -mail, não deve ter chegado, pelo que se volta a enviar].

Não abordo factos da guerra que não vivi, embora seja esse o tema do blogue, mas com ela está relacionado, pois por ela ter existido é que já lá fui 4 vezes. A principal intenção foi dar um empurrãozinho a quem ainda quer mas tem receio de lá ir e de algumas esposas de ex-combatentes
também o poderem fazer, pois nada há a recear.

Nós, dois casais, fomos quase pioneiros destas viagens, pois em Bissau já alguns ex-combatentes tinham ido, especialmente por razões de trabalho, mas bem lá no interior nunca mais por lá passara nenhum branco ex-combatente, muito menos acompanhados pelas mulheres e em férias.

Desta primeira viagem vou tentar enviar ao senhor um outro texto que escrevi na altura e saiu publicado no Jornal de Notícias, em 19 Agosto de 1992, onde desde logo se pode verificar o sentimento que me deixou ligada à Guiné.

Para além de já ter lido alguns livros sobre os anos desta guerra sem sentido, (teria para alguns!!!), pois meu marido tem uma substancial biblioteca sobre este assunto, nesta ocasião estou a ler um pequeno livro, fotocopiado de um original muito antigo e que me foi oferecido há alguns anos por um jovem colega da Portugal Telecom, cujo pai então já falecido, cumprira o serviço militar na Guiné quando a Guerra iniciou e de lá trouxera o tal exemplar cujo titulo é: Grandeza Africana - Lendas da Guiné Portuguesa - fulas e mandingas, escrito por um tal Dr.Manuel Dias Belchior que viveu a sua carreira administrativa no Ultramar entre 1932 e 1961, tendo sido investigador da Junta de Investigações do Ultramar e foi nessa condição que na Guiné fez um levantamento de antigas lendas (Sec.XIII,XIV e XV), juntando as devidas anotações históricas e etnográficas. O prefácio sido escrito pelo seu amigo de então, Major Carlos Gomes Bessa, Comissário Adjunto para o Ultramar da Mocidade Portuguesa.

Como diz o autor,"...elas fazem parte do património histórico e intelectual dos mandingas e fulas da Guiné Portuguesa...". Hoje haverá algum fula ou mandinga que conheça este dito património? Será que algures ainda existe um exemplar deste livrinho?

Para mim ou pessoas como eu, que gostando das estórias que fazem a História de qualquer país lêem isto pelo prazer, tal não será muito importante, mas talvez alguns guineenses gostassem de as conhecer para descobrir a origem e como nasceu aquele pedaço de chão a que foi posto o nome de Guiné.

Se eu puder contribuir par tal, não me importo de as transcrever, só não sei para onde e talvez aí o senhor me possa dar a sua opinião, que desde já agradeço.

Parabéns pelo blogue e a todos que nele contribuem com seus depoimentos dando a possibilidade aos interessados no assunto de ficarem a saber mais e aos nossos jovens que vivem ligados à Internet, por procura ou casualidade lá passem, leiam para se convencerem que a guerra que alguns de seus pais sofreram no corpo e na alma não é ficção.

Para finalizar e segundo julgo saber, o senhor ainda não foi à Guiné do pós-guerra. Porquê? Não esqueça que O POVO MAIS GENTIO É O DA GUINÈ !!

Atenciosamente.
Zélia