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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 10 de Janeiro de 2021:

De um projecto de livro autobiográfico que pretendo editar e publicar na íntegra, um dia destes, destaquei este trecho para, caso mereça algum interesse, ser publicado na nossa Tabanca Grande.

Aproveito para cumprimentar os editores e desejar-lhes saúde e felicidade.
Carvalho de Mampatá


1 - CONTRA OS CANHÕES MARCHAR, MARCHAR…

Naquela noite fria de 10 de janeiro de 1971, por amabilidade do meu saudoso amigo José Augusto Baptista Oliveira, seguíamos ambos no carro de seu avô que nos conduzia à estação de Campanhã onde, pela meia noite, tomaríamos o comboio que nos levaria até ao Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha, com transbordo em Alfarelos de permeio.

 Pela manhã do dia seguinte lá estávamos nós, com muitos outros, à porta de armas do quartel, prontos a servir a Pátria, como então se dizia. Não que essa ideia de serviço e dedicação à Pátria nos preenchesse a mente como algo de adquirido ou absolutamente acomodado. Pelo contrário, eram já muitas as interrogações que nos assolavam o espírito, pelo menos a mim que já tinha conhecido, dois anos antes, a perda de um primo na guerra de Angola. 

E é admissível que o meu amigo Zé Baptista, por entre todas as suas cogitações, tivesse até antevisto, senão mesmo a eventualidade da sua morte, em qualquer emboscada montada pela guerrilha, num dos cenários da guerra ultramarina, pelo menos algo que lhe pudesse acontecer de grave, como a perda de uma perna numa mina ou algum ferimento que lhe impedisse a realização dos sonhos próprios da juventude. Infelizmente, para ele, para os que mais o amavam e para os seus amigos, aconteceu a pior das hipóteses, no dia 18 de fevereiro de 1974.

Mas, na verdade, não era fácil escolher o caminho da deserção que implicava, naquele tempo, um adeus à família para sempre ou por muito tempo. O regime, depois da morte de Salazar, em 27 de julho de 1970, tinha dado alguns sinais de abertura, mas muito ténues e, nas questões essenciais, como era a guerra do ultramar, nada havia mudado, mantendo-se a aposta na defesa intransigente dos territórios ultramarinos onde os insurgentes lutavam pela independência de Angola desde 1961, da Guiné desde 1963 e de Moçambique, na costa do Índico, desde 1965. 

Soubesse eu que iria ocorrer uma revolução vitoriosa em 1974 e outra coisa estaria eu a fazer naquele dia, em vez de receber um fardamento da cor do feijão verde. 

Havia já o registo de muitas deserções, sobretudo nas camadas mais instruídas, mas nada que fizesse perigar o prosseguimento daquela guerra sem sentido e sem fim à vista. O período dos primeiros três meses de instrução básica, comummente designado por recruta, passei-o ali, em sessões diárias de exercícios de ordem unida, ginástica, marchas e corridas fora do perímetro das instalações militares, formação sobre manuseamento e funcionamento da arma, instrução de tiro, teoria sobre guerra de guerrilha e ação psicológica. 

Após esse período, a cada um de nós foi atribuída uma especialidade cujo processo de formação era constituído por mais três meses, a frequentar num outro aquartelamento. A mim coube-me o curso de enfermeiro que me foi ministrado no Hospital Militar de Lisboa, entre abril e junho de 1971, seguido de um estágio de seis meses no Hospital Militar do Porto.

Estava assim transcorrido o meu primeiro ano de serviço militar. Antes da minha mobilização para a Guiné havia ainda de prestar serviço no Regimento de Cavalaria n.º 4, em Santa Margarida, durante cinco meses. 

Ao tempo, os comboios, sobretudo à sexta-feira à noite e no final do dia de domingo, andavam superlotados de soldados que se deitavam no chão e até nas bagageiras, por falta de lugares sentados, em cansativas viagens de fim de semana para reverem os seus familiares. Alguns soldados não visitavam as suas famílias durante todo um período de três meses, fosse por falta de dinheiro para a viagem,  fosse até por se encontrarem num dos extremos do país e a sua residência ser no lado oposto. 

Diga-se, para conhecimento dos leitores mais novos que, por esse tempo, as autoestradas estavam ainda a nascer e estendiam-se por curtas dezenas de quilómetros. Os militares viajavam sobretudo de comboio mas havia também, nalguns aquartelamentos, organizadores de excursões que contratavam autocarros de ida e volta no fim de semana. O governo de então não nos assegurava transporte gratuito, a não ser nas viagens consideradas em serviço ou por doença. Ora, as viagens em serviço eram aquelas que tínhamos que fazer, pela primeira vez, entre a nossa residência e o quartel que nos fosse destinado, sempre que houvesse lugar a mudança de quartel e, finalmente, na viagem de regresso a casa, no fim do serviço militar. 

A alimentação era entre o aceitável e o péssimo. Passei por quartéis onde havia alguma qualidade na alimentação e até no asseio das instalações e outros onde a comida era imprópria para pessoas. Sendo que todos os quarteis recebiam o mesmo abono em dinheiro por cada militar só posso concluir que nuns regimentos se roubava muito e noutros pouco ou nada. 

A sistemática má qualidade das refeições chegava a produzir movimentos de revolta a que chamávamos levantamento de rancho. Não me lembro de ter vivenciado algum, mas tive conhecimento da ocorrência de vários. O levantamento de rancho é uma manifestação de repúdio generalizado contra a má qualidade ou quantidade de uma refeição e consiste, para ser bem sucedido, na sua rejeição, por parte de todos os militares, sem uma única exceção, tendo por consequência a confeção de novo repasto.

A disciplina militar, pela sua rigidez, constitui um obstáculo à análise crítica e ao escrutínio do funcionamento da instituição castrense, permitindo assim, mais facilmente, atitudes abusivas quer no que diz respeito à instrução ministrada quer no que se refere à gestão dos seus próprios recursos, nomeadamente a aquisição de materiais, equipamentos e produtos alimentares. E se a corrupção era evidente nesse período de antes do 25 de Abril, ela permanece nas instituições militares atualmente, como no correr dos dias vamos lendo nos órgãos de comunicação. (...)
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