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terça-feira, 14 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20855: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte IV: Saúde e terror até ao fim do Antigo Regime


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI  (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade de Lisboa).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo,  e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira. Em 1569, no reinado de Dom Sebastião, por por acasião da "Grande Peste",   a cidade perde um terço dos seus habitantes. Era então uma das maiores cidades da Europa.


Mesmo no auge dos Descobrimentos, a deslumbrante e magnífica Lisboa, celebrada por viajantes estrangeiros que aportavam ao estuário do Tejo, não passa de uma montureira em que a peste é endémica. A Lisboa que o médico, de origem hebraica, Amato Lusitano (1511-1568) evoca nas suas "Centuriae", não é apenas a do conhecido "postal ilustrado", publicado na obra de J. Braunius, Civitates orbis terrarum (1572). Para além da sua ímpar topografia e da benignidade do seu clima, a par da grandiosidade do seu porto, muralhas e palácios bem como das centenas das suas igrejas e conventos, Lisboa continua a ser uma cidade medieval no que respeita à sua malha urbana e sobretudo às suas condições sanitárias.





Como diz Ricardo Jorge, na sua biografia de Amato Lusitano (s/d. 170/171), "as ruas afogavam-se em estrumeiras; quem podia, só as transitava a cavalo. Canos, apenas mencionados no regimento de municipal de 1502, só ao findar do século XVI é que tinham traçado figurável - tudo parcelar e desconexo, contando-se tão somente dois canos reais. Na praia vazavam-se todos os despejos e despojos; e a barbárie era tal que os próprios cadáveres dos escravos eram deitados ao monturo, entregues ao dente do cão, do rato e à podridão livre". E acrescenta: "Daí a mortandade, a curteza de vida. Amato viu superiormente, e é o primeiro a dizê-lo, quanto Lisboa reduzia a vida dos seus habitantes, assinalando o seu regime de baixa longevidade; e, antecipando-se à observação mais moderna, afirma de ciência certa que a maior parte dos lisboetas sucumbem às primeiras idades - maiori ex parte juvenes e vita decedunt ".


Até aos séc. XVI/XVII, há três grandes
Luís Graça,
docente jubilado da ENSP/NOVA
 epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. No séc. XVIII,o maior flagelo será a varíola. E, depois com a industrialização, o tifo, a febre amarela,  a cólera, a tuberculose, passam a ser os novos problemas de saúde pública, a par dos acidentes de trabalho. 


Estamos a abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19.

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa.


São excertos de textos que estamos a rever e a atualizar, mas também a aligeirar, retirando por exemplo  maior parte das citações e referências bibliográficas, descabidas num blogue como este. Depois da lepra  e da peste, duas epidemias que continuam no nosso imaginário, depois da peste negra (1348-1253) ,  o maior desastre demográfico da Europa, o Ocidente cristão continua assolado por um um ciclo de pestes que se prolonga até ao séc. XVII. Importa pereceber melhor as medidas que foram sendo tomadas pelos nossos embrionários sistemas de saúde.


1. "Regimento do Que se Ha-de Observar Succedendo Haver Peste (de que Deus nos Livre!)" (1695)


As preocupações com a defesa da saúde pública não são exclusivas do Estado Moderno, ou seja, dos últimos dois séculos, já vêm de muito mais longe. Em todo o caso, as medidas propostas tanto pelo poder central e pelos municípios como pelos próprios médicos que se interessaram pela higiene (sinónimo de saúde pública até aos princípios do séc. XX), sempre foram avulsas, inconsequentes e, em grande parte, ditadas pelo terror que inspiravam as cíclicas epidemias.por ex., rarefacção da mão de obra nos campos e subida dos salários) e nos reinados seguintes. 

O curto reinado de D. Pedro I (que sobe ao trono em 1357 e morre em 1367), é marcado pelos efeitos da terrível crise demográfica, sanitária, social e económica em que está mergulhado o reino de Portugal bem como o resto da Europa. 

Mas, por outro lado, essa conjuntura vai ser propícia ao reforço do centralismo laico e estatal, de que D. Dinis fora o arquitecto. Para fazer face aos novos surtos de peste que se registam até 1365, e para impedir o alastramento da doença, são tomadas sobretudo medidas repressivas, incluindo a perseguição às feiticeiras e a discriminação contra os judeus.

A partir das três principais fontes que compulsou (Leis Extravagantes, de Duarte Nunes de Leão, princípios do Séc. XVII; Colecção dos Regimentos por Que se Governa a Repartição de Saúde do Reino, 1819; Elementos para a História do Municipio de Lisboa, de E. Freire de Oliveira, 1881), o grande historiógrafo da medicina portuguesa, Maximiano Lemos  (Régua, 1860- Porto, 1923)  inventariou e analisou sumariamente o essencial da legislação sanitarista que foi promulgada desde o início do Séc. XVI ao Séc.XVIII (
Lemos, 1991. 155-159).

Sobre a natureza desta legislação, o nosso ilustre historiógrafo da medicina portuguesa começa, aliás, por fazer uma distinção entre:

(i) aquela que se reporta à "profilaxia das epidemias" (sic), em geral emanada pelo poder régio;

(ii) e a que se refere a "medidas de higiene local", em princípio da iniciativa dos municípios (ou, pelo menos, dos principais municípios do Reino, com destaque para o de Lisboa).

O conceito de prevenção das doenças transmissíveis ou infectocontagiosas era, obviamente, desconhecido na época, embora já fosse intuitivo para os médicos de formação arábico-galénica. A sua fundamentação científica, como se sabe, é recente, remontando ao triunfo da bacteriologia, com Pasteur e Koch,  na segunda metade do Séc. XIX.
 

Medidas que hoje são óbvias,como a higienização das mãos e das superfícies, a desinfeção, a esterilização, enfim, a antissepsia e a assepia, eram complemente estranhas à medicina e aos médicos... A teoria miasmática das doenças e a teoria da geração espontânea eram então dominantes... Foi preciso que surgisse a 1ª revolução científica e técnica no campo da medicina, em meados do sec. XIX para que estas teorias se tornassem, pouco a pouco, obsoletas.

O que os tratadistas da higiene, enquanto ramo do conhecimento e da prática médicas, podiam até aí propor não era mais do que um conjunto de medidas elementares com vista não só a erradicar a doença ou eliminar as suas causas (atribuídas a estranhos miasmas ou à conjugação dos planetas, em particular Saturno, Júpiter e Marte) como sobretudo a minimizar, tanto quanto possível, os seus efeitos devastadores. 

Para se ter uma ideia desses efeitos, basta referir que,  durante a Grande Peste de Lisboa , que durou de julho de 1569 à primavera de 1570, terão morrido 50/60  mil pessoas (Roque, 1982). Tudo indica que tenha sido trazida por mercadores vindos de Veneza, dando razão mais uma vez ao provérbio Mercator, ergo pestiferus (Sou mercador, logo portador de peste). De qualquer modo, ficou na memória dos portugueses que grafaran a expressão e no passado usavam o provérbio "Não matou mais a Grande Peste de Lisboa", quando precisavam de um termo de comparação para uma grande mortandade.

A natureza endémica ou epidémica da doenças então mais prevalentes, aliada ao total desconhecimento da sua etiologia e à total ineficácia terapêutica, não dava aos médicos grandes alternativas de acção. 

A via da repressão, com as suas diversas variantes (v.g., isolamento, segregação, internamento forçado ou abandono puro e simples dos doentes), é o traço comum do sanitarismo até ao final do Antigo Regime. O termo "quarentena" só aparece nas línguas modernas (por ex., em inglês) no princípio do sec. XVII); o cordão sanitário (, do francês, "cordon sanitaire", é um terno de meados do séc. XIX.

A pouco e pouco vai-se criando um corpo de administração de saúde (provedor-mor de saúde e seus ajudantes), fazendo parte integrante do aparelho de Estado.

Um dos regimentos de saúde mais antigos que se conhece é o alvará de 1506, no reinado de D. Manuel I, estipulando violentas medidas de repressão para quem, acometido de "peste" (nome comum para muitas das doenças transmissíveis da época), entrasse na cidade ou para quem mandasse para a cidade algum "empestado": multas, penas como çoites em público, ou degredo na ilha de S.Tomé. Outras providências: marcação, com sinais especiais, das casas com doentes empestados; criação da futura "Casa da Saúde", no Vale de Alcântara, em Lisboa; enterramentos em cemitérios especiais; fecho das casas de prostituição ao sol posto, etc.

Era compreensível o terror que as epidemias (e sobretudo as de peste bubónica, depois da pandemia de 1348-1353), ainda continuava (e continuaria) a infundir século e meio depois. Talvez mais aos burgueses e à "outra gente de melhor condição", a começar pelo rei e a sua corte, a nobreza e o alto clero, do que propriamente à arraia miúda (na feliz expressão de Fernão Lopes) para quem a experiência continuada da miséria, da doença, do sofrimento e da morte fazia parte integrante do seu quotidiano. 

De qualquer modo, ficou-nos da memória dessa época ditados como: "Da fome, da guerra e da peste ...e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine!" ou "Não matou mais a Grande Peste de Lisboa" (a de 1569).

Não sabemos como, na prática e com que relativa eficácia, eram aplicadas estas medidas punitivas por parte do poder régio, secundado pelo provedor-mor de saúde. De qualquer modo até as penas, devidas por infracções às leis sanitárias, eram diferenciadas, em função da condição social do infractor:

(i) o peão era açoitado em público e, em seguida, posto em degredo, na Ilha de S. Tomé, durante sete longos anos;

(ii) ao escudeiro, cavaleiro ou mercador, aplicava-se uma pena mais suave e menos vergonhosa: multa e dois anos de degredo que o rei, eventualmente, comutaria em fixação da residência por uns meses numa qualquer aldeia da Beira Interior.

Na legislação de 1506 previa-se já a construção de um tipo de estabelecimento, completamente novo, distinto do hospital e da gafaria: destinar-se-ia, em particular aos pestiferados e aos portadores de doenças infectocontagiosas que não podiam ser internados no Hospital Real de Todos os Santos.


A esse estabelecimento se referem as cartas régias de 22 de junho e 23 de julho de 1520, em que se recomenda à câmara municipal de Lisboa a sua construção e em que se aprova a escolha do terreno.  

A futura "Casa da Saúde" será construída no Vale de Alcântara, junto ao estuário do Tejo, num local espaçoso e arejado, e na altura bem longe das portas da cidade e do paço real (situado no que é hoje a Praça do Comércio, vulgo Terreiro do Paço, e destruído com o terramoto de 1755). Em 1520 o plano aprovado pelo rei previa um estabelecimento de 160 camas.

Noutros sítios, como Évora, também existiam casas de saúde que, no entanto, mais não eram que casas particulares,  situadas fora das muralhas,  requisitadas pelo município, e transformadas em hospitais temporários.

A "casa da saúde" é a versão portuguesa  do "lazzaretto" italiano (, termo grafado no séc. XVI,)  uma estrutura que no final da Idade Média irá desempenhar um papel indispensável na gestão da saúde pública em Itália.  





Ilha do "Lazzaretto Vecchio", em Veneza, perto do atual Lido de Veneza.  


Por um decreto de 1423 pelo Senado da República Sereníssima Epública, foi aqui criado  o primeiro lazareto da história. O seu nome deriva do nome  da ilha que o viu nascer, n altura ILha de Santa Maria da Nazaré... O povo chamava-o "Nazaretum", mais tarde  tornou "Lazzaretto", talvez por analogia com a leprosaria que existia numa ilha ao lado, já desde o séc. XII (e que hoje se chama  San Lazzaro degli Armeni). 

Como se sabe,São Lázaro era o patrono dos leprosos. Mas o novo estabelecimento sanitário destinava-se a isolar e a segregar um novo tipo de doentes, os de doenças infecto-contagiosas ou "exótico-pestilenciais", e nomeadamente as vítimas de peste, os "pestiferados".

Posteriormente, será craido, em 1468, noutra ilha ("Vigna Murada") o "Lazzaretto Nuovo", que funcionará como uma espécie de depósito  de  convalescentes... Enquanto os doentes eram, sem dó nem piedade, isolados no "Lazzaretto  Vechio", e aqui chegaram a morrer, às centenas, os que tinham a sorte de sobreviver, passavam depois do "Lazzaretto Nuovo" antes de poderem regressar à comunidade.

A ilha (que hoje que se chama "Lazzaretto Vechio" foi progressivamente ampliada com terras roubadas à lagoa de Veneza. Mas não oterá mais do 2,5 hecares. Escavações arqueológicas recentes (2004) revelaram a presença de valas comuns, contendo milhares de esqueletos que datam das epidemias de peste dos século XVI e XVII. Sucessivamente, o "Lazzaretto Vecchio" também foi utilizado como local de quarentena e descontaminação de mercadorias.

Sabe-se que nos surtos de peste do séc. XVI chegavam a morrer 500 pessoas por dia, de todas as classes sociais. Uma das vítimas do surto de peste de 1485 terá sido o
 "doge" Giovanni Mocenigo (1409-1485) (Valsecchi, 2007).

Com o tempo, o lazareto passa a ser distinto do hospital e de outros hospícios (onde coabitam a doença, a miséria, o vício, a deficiência, a loucura...). Começa pela sua localização: extra-muros, fora da cidade, isolado, é um espaço que, criando um tampão de segurança, entre o seu perímetro e a população, confere segurança, não apenas psicológica mas também física. É, portanto, uma primeira medida preventiva: afastam-se e isolam-se os marginais, os vagabundos, os indigentes, os mendingos, todos os grupos de risco que podem infetar os saudáveis, em caso de surto epidémico.

Para além da segregação socioespacial dos doentes, vítimas de epidemias (só os pobres eram internados à força na "Casa da Saúde", em Alcântara...), criava-se ao mesmo tempo um esboço de aparelho sanitário com o seu corpo de funcionários, sob a autoridade do provedor-mor da saúde.

Não sabemos exactamente quando foi criada esta figura, que era distinta do físico-mor e do cirurgião-mor (cuja origem remonta ao reinado de D. João I e que tinham funções de regulamentação das respetivas profissões). A criação da figura do provedor-mor da saúde dataria do início do Séc. XVI. A sua origem seria provavelmente municipal. Na Câmara Municipal de Lisboa, o serviço sanitário constituía mesmo um dos pelouros mais importantes do Século dos Descobrimentos:

"No princípio de cada ano, era este pelouro distribuído a um dos vereadores que tomava o nome de provedor-mor da Saúde da corte e do Reino e cuja esfera de acção transpunha a capital, irradiando por todo o País (Lemos, 1991. 156).


Em 1506 sabe-se quem é o provedor-mor, o desembargador Pedro Vaz, de nomeaçao régia.  Terá vistado a Itália (Roma, Milão, Florença), em missão de estudo sobre o sistema em vigor na prevenção e combate às epidemias.

No reinado de D. João III também terá ido a Veneza uma legação para se inteirar das medidas sanitárias a adoptar em caso de peste. A República Venesiana, pelas relações comerciais que mantinha com o Oriente, era uma das cidades europeias mais expostas ao risco de peste. Mas também foi das primeiras a adoptar medidas de profilaxia contra a doença, medidas essas rapidamente imitadas por outras cidades e nações (por exemplo, as quarentenas, os lazaretos, o culto de São Roque).


Por carta régia de 1525, alargam-se as medidas a tomar em caso de epidemia, ampliando-se as providências constantes do Alvará de 1506:
  • isolamento dos doentes em ruas e bairros especiais;
  • pastagem pelas ruas de manadas de gado vacum;
  • purificação do ar por meio de queima de ervas aromáticas;
  • encerramento, a pedra e cal, das casas em que houvesse vítimas mortais da peste;
  • sinalização das casas com bandeiras ou ramos de alecrim;
  • utilização do vinagre e da cal como desinfectante;
  • proibição da compra e venda da roupa de doentes;
  • criação de cemitérios especiais foras de portas;
  • proibição de procissões e ajuntamentos, etc.

Estas medidas constam do "Regimento que Leva Pedro Vaz sobre o Que Toca ao Bem da Saude", de 1526.


O alvará de 1537 prevê penas severas para quem vier para Lisboa, proveniente de lugares empestados, ou para quem sair das embarcações ancoradas no Tejo sem a devida licença. As sanções são extensíveis a quem acolher pessoas suspeitas de contaminação.

Em 1569, será a vez de D. Sebastião mandar vir de Sevilha dois médicos (Tomas Alvarez e Garcia de Salzedo) com experiência no combate a epidemias (Mira, 1947. 124-125).

O conselho que estes especialistas espanhóis deram às autoridades portuguesas para minimizar os efeitos da "grande peste de Lisboa" (1569) incluíam medidas de natureza diversa (resumindo assim o que então se sabia em matéria de saúde pública, incluindo medidas repressivas), tais como:

  • reforçar o abastecimento e víveres à cidade;
  • zelar pela qualidade e conservação dos géneros alimentícios;
  • proceder à limpeza cuidados das ruas;
  • lançar ao mar as imundícies;
  • acender fogueiras de lenhas aromáticas na via pública, de manhã e à noite;
  • evitar expor ao ar o sangue obtido das sangrias;
  • proibir os bailes e os ajuntamentos de negros;
  • fechar as casas de prostituição;
  • encerramento dos banhos públicos;
  • manter desabitadas as casas onde tivessem morrido doentes de peste;
  • mandar queimar as roupas, de menor valor, das pessoas atacadas pela doença (e mandar lavar as de maior valor, com água do mar e vinagre);
  • proibir a circulação, nas ruas, de mendigos portadores de chagas;
  • pôr em quarentenas os navios de transporte de escravos;
  • mandar enterrar de imediato os mortos, em covas fundas e com ma espessa camada de cal viva por cima dos cadáveres;
  • organização de dois hospitais nos extremos da cidade para prestação dos primeiros socorros, internamento e convalescença;
  • contratação de médicos para prestação de cuidados domiciliários;
  • emprego de terapêuticas de "purificação do sangue" (sangrias, clisteres, sudoríferos, etc.), etc.

A nível da prolifaxia individual, os médicos espanhóis faziam também algumas recomendações: 


  • não abrir as janelas antes do nascer do sol; 
  • não sair de casa senão decorridas duas horas depois de ele ter nascido; 
  • aspergir o interior da casa com água e vinagre ou com vinho aromático;
  • fazer lume de lenhas aromáticas; 
  • enramar as casas com plantas de aroma agradável;
  • trazer nas mãos pomas feitas de substâncias balsâmicas, etc. 

E, por fim, uma nota de humanização: que se procurasse "alegrar e pôr ânimo ao enfermo nesta enfermidade por todas as maneiras possíveis" (Mira, 1947. 126).

O alvará de 1580 cofirma e amplia o regimento do provedor-mor da saúde: 

  • declaração obrigatória de casos de peste perante o cabeça de saúde (o representante do provedor a nível da paróquia); 
  • tratamento diferenciado dos empestados ricos e pobres (devendo estes últimos serem internados na Casa de Saúde); 
  • providências sobre os enterramentos;
  • lavagem e desinfecção das roupas; 
  • criação de um corpo de emergência de médicos e cirurgiões dependente do provedor-mor. 


2. Um incipiente corpo de administração sanitária

O pensamento geral do século XVI sobre as causas da peste não tinha evoluído: a peste era atribuída aos misteriosos e invisíveis miasmas, enfim, à corrupção do ar, à contaminação dos poços pelos judeus, a condições telúricas mal definidas, a castigo de Deus, a conjunções malévolas dos planetas e dos cometas... E recomendava-se o isolamenento dos doentes e e das zonas de infeção bem como a adoção do regime das quarentenas. 

Acreditava-se em que era suficiente o hálito para transmissão do contágio. Daí já o uso de panos, tapando a boca e o nariz,   no contacto com os doentes, bem como de máscaras e fatos especiais,  para se evitar o contágio pelo corpo do doente e da roupa da cama.

Pelo alvará de 1580, o regimento do provedor-mor da saúde é não só confirmado como ampliado. Cem anos depois, através de decreto de 1688, a autoridade do provedor-mor sai aparentemente reforçada, ao ordenar-se que as câmaras e as justiças do reino não só não se intrometam na esfera de competência do provedor-mor da saúde como cumpram e façam cumprir as as suas ordens. 


Por alvará de 1627, e devido à epidemia em Málaga, são cortadas todas as comunicações com esta cidade e outras do sul de Espanha. As cartas devem ser desinfectadas (através do vinagre e do fogo).

Por decreto de 1688, ordena-se que as câmaras e as justiças do reino não se intrometam na jurisdição do provedor-mor da saúde e que, além disso, cumpram e façam cumprir as suas ordens. A autoridade do provedor-mor de saúde estende-se aos territórios de além-mar.

Já no início do Séc. XVIII, é publicado novo "Regimento do Provedor-Mor de Saúde" (1707) ampliando e modificando algumas das disposições relativas à administração san

O provedor-mor da saúde passa a ver alargada a autoridade: a eles e aos provedores, seus ajudantes, compete fazer o registo dos facultativos, a inspecção das boticas e dos depósitos de géneros, o controlo sanitário de bebidas, exercer as funções de polícia sanitária marítima do porto de Belém, etc.

Em 1695, tinha entretanto saído o famoso "Regimento do Que se Ha-de Observar Succedendo Haver Peste (de que Deus no Livre) em Algum Reino ou Provincia Confiante com Portugal".

Trata-se de um típico documento de sanidade internacional que será completado, dez meses depois, com o Regimento para o Porto de Belém. Entre outras medidas, estes dois diplomas vêm instituir o cordão sanitário à volta das fronteiras e as quarentenas (isolamento de 40 dias ou mais) para tripulações e navios que demandassem os portos portugueses, oriundos de país suspeito. 


Curiosamente, estas providências surgem noventa e dois anos depois da última e derradeira epidemia de peste bubónica no nosso país. Esta epidemia desaparece depois de 1603 do território nacional,com excepção do Algarve (em que irá ressurgir por meados do Séc. XVII) e do Porto (onde haverá um derradeiro surto epidémico em 1899, atempo de Ricardo Jorge).

Para além do provedor, havia ainda o guarda-mor de saúde (uma figura que foi copiada do sistema italiano e que chegará inclusive até ao séc. XX, estando consagrada nos diplomas da reforma sanitária de Ricardo Jorge, 1899-1901) (Graça, 2017).

Originalmente, os guardas-mores estavam incumbidos de vigiar as portas e os postigos das cidades, de modo a impedir, tal como aconteceu no Porto, durante o inverno de 1574-1575, a entrada dos "pobres", e o risco da sua sempre temida aglomeração.

Em 1579, por ocasião de outra epidemia de peste bubónica, era guarda-mor de saúde de Lisboa o Dr. Diogo Salema (Lemos, 1991. 176).

Ainda a propósito da figura do guarda-mor da saúde, refira-se o caso de Évora, estudado por Abreu (2004) ("A cidade em tempos de peste: medidas de protecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637"): Duas dessas medidas foram a criação do cargo de Guarda-Mor da Saúde (1569) e o Regimento da Porta de Alconchel (1582). 


"A ordem dos procedimentos a seguir em caso de declaração de peste era relativamente simples: nomeado o Guarda-Mor da Saúde, este indicava dois meirinhos a quem, por sua vez, competia recrutar os homens que considerassem necessários à defesa da cidade. 

"As portas eram imediatamente encerradas, sendo colocadas bandeiras brancas ao longo das muralhas - sinal identificador de que a urbe estava sob quarentena e, portanto, com acesso condicionado. Brancas eram também as varas que os meirinhos transportavam, símbolo legitimador do poder que o monarca, temporariamente, lhes concedia.

"A partir deste regulamento, pelo menos em termos teóricos, os abusos deixaram de ser tolerados passando a ser exemplarmente punidos: concretamente, e para além das penas pecuniárias estipuladas, quatro anos de degredo para o ultramar, tratando-se das elites, açoitamento público e dois anos de degredo para as galés, um pregão era encarregue de as divulgar pelas ruas da cidade.

"Seria, porém, o Regimento da porta de Alconchel que, em 1582, apertaria as malhas do controle sobre o espaço, definindo com mais precisão as atribuições do Guarda-Mor da Saúde e daqueles que com ele faziam equipa (...).

"Três notáveis da cidade tornavam-se depositários das chaves das portas, que lhe deviam ser entregues pelos meirinhos ao cair da noite. 

"Terminada a epidemia, a vereação recolhia as chaves e levantava as bandeiras da saúde, o Guarda-Mor e os meirinhos suspendiam as suas funções. 

"A precaridade nestes cargos (...) acabaria por limitar não só o grau de conhecimentos, e portanto de eficácia, dos seus detentores como até a sua própria autoridade. Ao contrário de muitas cidades italianas onde o poder e o prestígio destes indivíduos se tornou uma força normativa da cidade". (Fonte: Abreu. 2004)

Para além do cargo de guarda-mor, a cidade do Porto também tinha ao seu serviço um físico e um cirurgião que, entre outras, exerciam funções de autoridade sanitária, competindo-lhes, por exemplo, examinar todos os que chegavam em naus e navios de terras donde havia  novas de estarem impedidas por causa de epidemias (caso da França, Flandres, etc., com quem os mercadores do Porto tinham relações comnerciais, pro mar).  


Em meados do séc. XVIII continua a ser uma preocupação das autoridades sanitárias a prevenção e o controlo das epidemias. Em 1748 é publicado o "Tratado sobre os Meyos da Preservação da Peste mandado fazer por ordem de Sua Magestade". Lemos (1991. 145) resume no essencial as medidas preventivas que deveriam ser tomadas, segundo o tratadista cujo nome se desconhece:

  • estabelecimento, nas fronteiras,  de um cordão sanitário [, "avant a lettre", já que a expressão em francês aparece pela primeira vez em 1821 para designar o encerramento da fronteira da França com a Espanha, nos Pirinéus por ocasião de surto de febre amarela, e a medida será depois teorizada pelo grande higienista francês Adrien Proust (1834-1903)];
  • imposição de rigorosas quarentenas nos portos de mar;
  • manutenção cuidadosa da limpeza nas ruas, mercados e habitações;
  • vigilância do estado dos bens alimentares;
  • repressão da mendicidade;
  • criação de hospitais especiais, fora de portas, para empestados, suspeitos e convalescentes;
  • criação de cemitérios próximos desses hospitais;
  • organização de primeiros socorros...

Há ainda uma medida, aparentemente nova, a "proibição de instalação, no interior da cidade, de oficinas cujos produtos possam inquinar o ar. É muito provável que esta seja a primeira referência, entre nós, aos  famosos "estabelecimentos insalubres, incómodos e perigosos" que vão surgir como desenvolvimento do capitalismo industrial. 

O país tinha conhecido um primeiro surto industrialista a partir de 1675 (, ano em que Duarte Ribeiro de Macedo, o nosso primeiro teórico da 'política industrial', publica a sua obra "Sobre a Introdução das Artes",) e vai conhecer outro,  entre 1720 e 1740, antes do pombalismo. 

 No final do Antigo Regime, é à intendência geral de polícia, de que Pina Manique (1733-1805) será o todo poderoso superintendente, no período que vai de 1780 a 1803) que se devem medidas legislativas tais como:
  • o decreto que cria a obrigatoriedade da inspecção sanitária das prostitutas (1781);
  • a regulamentação da oferta de trabalho para os indigentes (1781);
  • a organização da estatística das mortes violentas e o estudo da criminalidade (1791);
  • o plano de construção de cemitérios públicos (1791).

Este último tinha um objectivo sanitário explícito, além do registo e controlo da mortalidade (por ex., proibição de enterramentos sem certidão de óbito).


Em resumo, pode-se dizer que até ao século das Luzes, o séc. XVIII, não há  consciência colectiva da saúde/doença, o que  terá a ver, antes de mais, com o nível de conhecimento sobre a etiologia (ou a causalidade) das doença humanas. 

Até à revolução bacteriológica de meados do Séc. XIX (protagonizda por Pasteur, Koch e outros), as doenças infecciosas eram atribuídas a misteriosos miasmas; daí (i) o sentido do provérbio português "Livra-te dos ares, que eu livrar-te-ei dos males" e (ii) a vulgarização de práticas mais ou menos ritualizadas como as fogueiras nas ruas em caso de epidemia, as fumigações de pessoas, animais, objectos e casas, a travessia das ruas por manadas de gado bovino, etc... (
A proibição dos porcos deambularem livremente pelas ruas da cidade de Lisboa data apenas de 1773!).

Quando surgiam epidemias (, de resto, cíclicas), a única resposta societal era a da imposição do terror através da segregação socioespacial (separação dos doentes e dos sãos, separação dos doentes ricos dos doentes pobres). O lazareto, distinto do hospital,  é uma das "instituições totalitárias" que o Ocidente cristão vai criar para lidar com as epidemias da 1ª era da globalização. E não é por caso que nasce em Veneza.

(Continua)

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Referências bibliográficas:

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GRAÇA, L. - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994)26-31.


GRAÇA,  L. - Ricardo Jorge e a modernização da saúde pública. In: Veloso AJ, Mora LD, Leitão H, editors. Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book; 2017. p. 34–49.

JORGE, R. (s/d) - Amato Lusitano. Comentos à sua vida, obra e época. Lisboa: Instituto de Alta Cultura.

LEMOS, M. - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, Volume II. Lisboa: D.Quixote; Ordem dos Médicos, 1991 (1ª ed., 1899)

MIRA, M.F. - História da medicina portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1947.

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VALSECCHI, M. C. - Mass Plague Graves Found on Venice "Quarantine" Island."National Geopraphical", AUGUST 29, 2007.

4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença

terça-feira, 7 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença

Os grandes temas da actualidade em debate
 aos sábados, às 9h30. Uma parceria da
Renascença com a Fundação
Francisco Manuel dos Santos.
1. Com a a devida vénia, reproduz-se aqui a transcrição da entrevista dada pelo nosso editor Luís Graça, ao jornalista  José Pedro Frazão, locutor e editor  do programa da Rádio Renascença,  "Da Capa à Contracapa" (que vai para o ar todas os sábados, às 9h30, sendo uma parceria com a prestigiada Fundação Francisco Manuel dos Santos):

[ Pedimos a devida autorização à produtora do programa, Ana Marta, para reproduzir aqui o teor da entrevista que, por razões de deficiente qualidade técnica do som, e também pela sua extensão, não chegou a ir  para o ar, como estava previsto, no passado sábado, dia 4 de abril; na altura não foi possível fazer um debate, através de videoconferência, com a outra convidada do programa, a doutora Helena da Silva; o meu agradecimento especial a estes dois grandes profissionais da Rádio Renascença; e os meus cumprimentos à jovem colega da NOVA, Helena da Silva, que não conheço pessoalmente: a sua intervenção está disponível em podcast, aqui, no sítio do programa, "Da Capa à Contracapa"].


Pandemias. Uma breve história de mortes e progressos

03 abr, 2020 - 06:56 • José Pedro Frazão

As maiores epidemias ficam lá mais para trás, para os tempos medievais onde a Peste Negra dizimou um terço da Europa. Luis Graça, sociólogo e professor jubilado da Escola de Saúde Pública, ajuda a traçar as lições da história das pandemias dos últimos 120 anos.

Sociólogo de formação, doutorou-se em Saúde Pública e trabalhou até há poucos anos na Escola Nacional de Saúde Pública. Escreveu dezenas de capítulos e estudos sobre a história da Medicina e da Saúde em Portugal e em particular de Ricardo Jorge. O médico municipal que detetou a peste bubónica em 1899 no Porto lançaria mais tarde as bases da política de Saúde Pública que foi sendo consolidada até aos dias de hoje. Luís Graça esteve na resposta portuguesa à pandemia H1N1 de 2009 e acredita que com a Covid-19 esta geração fica "servida" das pandemias que os historiadores definem como cíclicas. Numa longa conversa, este especialista em Saúde Pública pede humildade e cautela perante o vírus e aconselha muita solidariedade inter-geracional.


Desde a gripe espanhola, nunca mais tivemos um número de mortos sequer comparável com aquela pandemia, incluindo a gripe asiática de 1957/58 e a de Hong Kong entre 1968/70 . O triunfo da ciência nestes 100 anos pode aferir-se por esta mortalidade a decrescer ?

Seria um pouco mais cauteloso. A pandemia altamente mortífera em 1918/19, conhecida como a gripe espanhola, fez entre 50 mil e 130 mil vítimas no nosso país em mortalidade específica e pós-pandemia. Os historiadores e os demógrafos não estão de acordo quanto aos números, mas foi tremendo para um país que tinha 6 milhões de habitantes. A faixa etária mais atingida foram jovens adultos dos 20 aos 40 anos e as crianças até dois anos. Foi uma pandemia que poupou os mais velhos.

A gripe asiática de 1957 provocou uma grande morbilidade. O Prof. Arnaldo Sampaio, pai do ex-Presidente Jorge Sampaio e do psiquiatra Daniel Sampaio, que foi diretor da Escola Nacional de Saúde Pública onde trabalhei e a que ainda estou ligado, fez um estudo sobre a morbilidade em Lisboa e [concluiu que] 40 % dos lisboetas estiveram acamados. Isso dá uma ideia da gravidade da doença. A gripe de Hong Kong foi mais benigna.

Os historiadores e os epidemiologistas calculam que há três pandemias por século. Isto significa que esta é a segunda e nós temos uma boa probabilidade de escapar de terceira pandemia até ao fim do século.

A primeira que está a considerar é a gripe pandémica de 2009.

Foi uma variante do H1N1 que provocou algum alarme em Portugal. Falou-se da falta de tratamento profilático, o Tamiflu, que Portugal não conseguia arranjar e as pessoas estavam inquietas. O primeiro caso apareceu em abril/maio quando a ministra era a minha amiga Ana Jorge. O primeiro caso de infeção mortal foi em setembro de 2009. Foi sub-valorizado, não provocou o alarme social que esta provocou. Houve conceitos como o distanciamento social, não houve confinamento, mas ensinou-se a pessoa a lavar as mãos. Estive num grupo com o Professor Constantino Sakellarides na Escola Nacional de Saúde Pública e fizemos imensa formação, um plano de contingência, desenvolvemos conceitos como o de "cidade inteligente" para dar uma resposta adaptativa e firme à gripe pandémica.
Capa do livro "Nós e a Gripe:
informação, conhecimento e bom senso",

 de Constantino Sakellarides [Lisboa,
Gradiva, 2009, 200 pp.]

Que modelos anteriores tinham nessa altura para trabalhar ?

Um conhecido virologista que ainda hoje faz parte do Conselho Nacional de Saúde Pública, o
Professor Jorge Torgal, fazia uma estimativa de que um terço da população seria contagiada, uma taxa de letalidade de 2% , que previa 60 a 75 mil mortos. Como nada disso aconteceu, mandámos vacinas para o lixo, 1 milhão de Tamiflu. Como não houve mortos por aí além, houve uma grande desvalorização e as pessoas disseram que a montanha pariu um rato. E houve um grande alívio quando entrámos no inverno.

Publicámos um livro "Nós e a Gripe",  do Professor Sakellarides,  em resultado desse trabalho sobre a resposta social à gripe pandémica em outubro de 2009. Em todo o caso houve uma subestimação, porque a OMS [Organização Mundial da Saúde], num estudo recente, calculou que a gripe [pandémica] tenha feito mais de 250 mil mortos em todo o mundo. Nada disso é comparável com os números das pandemias de outros tempos.

A pandemia de 2009 surgiu já na primavera e não propriamente no inverno.

É um caso estranho. A gripe veio do México de onde veio a primeira infetada portuguesa. Veio de avião com um vírus que também viajou a uma velocidade supersónica uma vez que se transmitia pelas gotículas de espirro.

Não veio do Oriente.

Não, desta vez não veio do Oriente e teria uma origem suína e não propriamente aviária. O vírus passou a barreira das espécies, é inteligente e acompanha-nos há milhares de anos na nossa evolução humana. Uma das lições que devemos tirar da história das pandemias e das epidemias é a existência de um estigma sobre a Ásia, associada a algumas das maiores pandemias que se refletiram no Ocidente. Desenvolveram-se também imensas teorias da conspiração contra a empresa Roche, porque iria fazer fortunas com o Tamiflu. Estas coisas repetem-se sistematicamente quando a humanidade sofre uma crise desta envergadura. A China está associada a muitos destes estigmas. Já ouvi falar por exemplo da "pandemia amarela".

Houve de facto a "febre amarela" mas no século XIX...

Mas não tinha nenhuma conotação racista. A Peste Negra também não tinha, os cadáveres ficavam muito escuros. Há alguma "sinofobia", mas o vírus não é deste ou daquele território.

Regressando a 2009, foi um embate de um vírus então contra um sistema nacional de saúde já estabelecido em Portugal, ao contrário do que aconteceu nos anos 50 ou 60. O aparelho de saúde em Portugal era completamente diferente. Nessa medida, os modelos de intervenção dos anos 50 ou 60 foram ou não aproveitados ?

Ricardo Jorge (Porto, 1858 -Lisboa, 1939).
Imagem do domínio público.
Cortesia de Wikimedia Commons
Nós temos um sistema de saúde pública criado por Ricardo Jorge em 1901, mais no papel do que no
terreno. Faltaram sempre recursos humanos, técnicos e financeiros. Do ponto de vista conceptual, Ricardo Jorge teve um papel muito importante. Aliás, teve também um papel de liderança na luta contra a pandemia de 1918/19. Mas lá está, damos sempre muita importância aos homens providenciais, carismáticos. Estas situações de graves crises sanitárias têm que ser lidadas com unidade de comando e controlo, conceito que foi muito importante em 2009. Tal como a ideia de solidariedade e de resposta inteligente, baseada no conhecimento científico, nas melhores práticas da OMS, com quem passou a haver um alinhamento muito importante.

Hoje estamos muito aflitos porque não temos ventiladores, máscaras e equipamentos de proteccão e a ênfase está toda nos hospitais, quando realmente o que é importante é prevenir situações destas.

Mas é dificil prevenir, porque uma pandemia não se faz anunciar. Países como os Estados Unidos, com a melhor medicina do mundo, podem vir a ter uma catástrofe demográfica e sanitária porque têm um sistema de saúde muito remendado, com fortes desinvestimentos, devido a opções que aquele país toma, privilegiando a medicina e o sistema de saúde privados, hospitalocêntricos, tecnicistas. Em 2009 já estávamos melhor preparados, hoje penso que estamos muito melhor preparados do que em 2009.

Hoje sabemos as ligações entre Portugal e o resto do mundo na resposta à gripe espanhola por estudos retrospetivos, ao contrário de hoje, em 2020, em que estamos a ter uma avaliação online minuto-a-minuto sobre o impacto no outro lado do mundo. Fará a diferença na forma como os cuidados de saúde podem ser preparados e prevenidos ?

De acordo. Essa é uma das lições que devemos tirar da história. Em todo o caso, é importante ter humildade e não arrogância. Houve há alguns tempos pessoas que diziam que as pandemias eram coisas para os historiadores. Havia um optimismo excessivo. Até aos anos 50, 60, tínhamos o conhecimento, as terapêuticas, sabíamos a etiologia e os fatores favoráveis e tínhamos todo o arsenal terapêutico, nomeadamente a vacinação e o reforço do organismo para fazer face a doenças infeto-contagiosas transmíssíveis que foram um pesadelo para a humanidade. 

É o caso da varíola - que terá morto entre 400 milhões a 500 mihões de homens, mulheres e crianças e que é a única doença até agora erradicada - a tuberculose, a malária, a cólera. E a peste, que foi um pesadelo. Foi o maior desastre demográfico do Ocidente entre 1348 e 1352. Foi a Peste Negra ou a bubónica. Vem do latim "peius" que significa "a pior doença". Portugal teria um milhão e meio de habitantes no reinado de D.Afonso IV e a peste provocou uma crise brutal no plano social, demográfico e económico que sobrou para o seu filho D.Pedro. Terá morto um terço da população portuguesa, em torno de 500 mil habitantes. Só repusemos esse saldo dois séculos depois. A Europa teria 100 milhões de habitantes e terá tido entre 25 milhões e 30 milhões de mortos. Os números são muito controversos mas há estimativas credíveis.

Nos anos que antecederam a 1ª Guerra Mundial e Pneumónica, começou a ser criado um conjunto de estruturas. No início do século foi criado o Sanatório do Outão para tuberculosos. Foi criada uma Direção de Saúde, na reforma de Ricardo Jorge. O Instituto Ricardo Jorge é herdeiro do chamado Instituto Central de Higiene mas já tinha sido fundada uma Escola de Medicina Tropical. Este tipo de doenças tinha sido estudado logo no início do século ?

Sim. A criação das instituições que citou não foi avulsa. Ricardo Jorge teve um protagonismo na luta contra o surto epidémico da peste bubónica no Porto de 1899. Um barquinho que vinha de Bombaim - onde havia um surto de peste - carregada de cereais entra pelo Porto e desembarca na Ribeira. Os ratinhos são os primeiros a sair e levam a pulga com o bacilo que tinha sido já identificado pelo bacteriologista francês Alexandre Yersin. 

De facto, nenhum médico em Portugal tinha visto uma doença destas. Foi Ricardo Jorge, médico municipal, que fez o estudo epidemiológico e clínico dos primeiros mortos da doença. Estamos em junho, julho, com consequências porque o poder central entrou em pânico e tomou medidas como um cordão sanitário "manu militari", imposto pelo exército, com 2500 soldados de baioneta desde Leixões até à Madalena em Gaia e um navio de guerra ao largo do Porto. Os portuenses entraram numa situação de total pânico.

Isso foi muito polémico. Visto à distância, foi uma medida acertada ?

A medida foi pouco efetiva. O cordão sanitário era furado. Quem tinha dinheiro corrompia os soldados. A medida foi muito polémica e inclusivamente houve casos de alastramento. Não houve uma epidemia ao nível do país, mas houve casos no Norte. O Porto ficou sem transportes, sem comboio, ninguém entrava ou saía. A comunicação social teve um papel muito importante. Jornais como "O Comércio do Porto", refletindo sobre os interesses dos comerciantes do Porto, "A Voz Pública" como o jornal da oposição republicana e o "Jornal de Notícias" passou a ter grandes tiragens, com 25 mil exemplares na cobertura da peste.

Muitos médicos e a elite económica do Porto minimizaram a peste até porque quem estava a morrer eram os pobres coitados dos estivadores da Ribeira. Essas medidas foram vividas de uma forma muito emotiva. Penso que muito do anti-poder central vem desse tempo. Foi tão traumatizante para a população do Porto que houve um asco, um ódio quase patológico contra Lisboa por causa do cerco sanitário que durou ainda uns meses. Não foi efetivo, foi desporporcionado, não foi uma resposta inteligente ditada pelo medo da elite dominante em Lisboa. Estávamos no final da monarquia e na resposta os portuenses elegeram pela primeira vez três deputados da oposição republicana, incluindo Afonso Costa. Eram os chamados "deputados da peste". 

Ricardo Jorge foi aconselhado a sair da cidade e só voltou 20 anos depois. Entretanto, foi encarregue pelos governos de Luciano de Castro e Hintze Ribeiro de fazer a sua reforma de Saúde Pública. Nessas medidas nascem, entre outras entidades, o Instituto Central de Higiene de que são herdeiros o Instituto Ricardo Jorge e a Escola Nacional de Saúde Pública. O Instituto de Medicina Tropical decorreria da nossa necessidade de combater as doenças tropicais e transpôr a Saúde Pública para o domínio das colónias.

Afinal o que é que a História dos últimos 100 anos nos ensina sobre pandemias ?

Lembro um provérbio antigo comum a toda a Europa: "Da fome, da peste e da guerra, livrai-nos Senhor". Hoje não passamos fome, não tem havido grandes crises cerealíferas, mas há algum paralelismo com a situação do século XIV. A Peste Negra dá-se num contexto de passagem da sociedade feudal para uma economia mercantil e para o desenvolvimento das cidades, com êxodo rural e explosão do gótico. É uma pandemia pós-feudal ao contrário da lepra. Há guerras na Europa que provocam fugas do campo para a cidade. Há crises cerealíferas, com a população desnutrida e uma dieta desiquilibrada. Há uma deterioração das defesas imunológicas. As cidades medievais eram absolutamente imundas. As populações não tinham hábitos de higiene pessoal. Edwin Chadwick, um inglês da Saúde Pública, fez um inquérito e concluiu em 1842, em plena industralização, que o operário inglês só se lavava duas vezes, quando nasce e quando morre. Isso significa que as populações europeias até ao século XX estavam muitíssimo mais fragilizadas.

Os grandes avanços sanitários no Ocidente apareceram com 100 anos de antecedência face à Medicina que hoje tem meios terapêuticos. Não precisámos de médicos para ter o salto qualitativo em que as pessoas sobreviviam num contexto de uma explosão demográfica, como observada em Inglaterra. Deveu-se a medidas fundamentais como o saneamento básico, água potável, vacinação, melhoria da habitação e das condições de trabalho. Os hospitais vieram muito mais tarde. A melhoria da saúde não se deu porque tínhamos uma medicina excecional em termos de ciência e tecnologia. Historicamente está relacionada com o desenvolvimento económico e social a par do sanitário onde a vacinação foi fundamental para prevenir muitas doenças. E depois o reforço das medidas de saneamento. A saúde explica-se por quatro grandes fatores: o nosso património genético, os nossos comportamentos individuais coletivos, o meio ambiente em que nos inserimos e a existência de políticas e sistemas de saúde. O equilíbrio entre estes quatro fatores é fundamental.

É difícil prevenir situações destas. Estamos sempre mal preparados porque desinvestimos. Em Portugal houve um desinvestimento brutal na Saúde Pública. Os médicos não queriam ir para Saúde Pública porque era desprestigiante. Houve uma altura em que só iam estrangeiros para a minha Escola fazer o curso de Saúde Pública. Eram homens que nem sabiam falar português. E passaram no exame à Ordem [dos Médicos] porque apesar de tudo eram clínicos brilhantes. Mas o desinvestimento acontece também nos outros países.

É muito importante manter o suporte psicossocial. A comunidade tem um papel extremamente importante e isso vê-se também na história. Inicialmente as elites fugiam. A Corte ia para Santarém para fugir dos ares empestados e ficavam os pobres confinados nas cidades amuralhadas, com os guardas-mores da saúde que eram o Exército. Hoje sabemos que estas doenças atacam os ricos, os pobres, os famosos, os remediados e todas as classes sociais. Em 1918/19 morreram jovens e hoje estão a morrer sobretudo os mais velhos. A solidariedade inter-geracional é extremamente importante.

[Foram feitas pequenas correções, e introduzidas ilustrações para efeitos de publicação do texto neste blogue]


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Nota do editor:

Último poste da série > 4  de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

sábado, 4 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"


Esta aquarela mostra um EPI (equipamento de proteção individual) usado pelos médicos que lidavam com doentes de peste no início do século XVII. O EPI foi descrito por Jean-Jacques Manget (1652-1742) no seu 
 "Traité de la peste: recueilli des meilleurs auteurs anciens et modernes, et enrichi de remarques et observations théoriques et pratiques : avec une table très ample des matières"(Geneva: Philippe Planche, 1721). 

O EPI era composto por; (i) blusa feita de couro marroquino, (ii) por baixo do qual usava-se uma saia, calções e botas, todas em couro e ajustadas uma à outra; (iii) a parte comprida do nariz tinha forma de um longo bico de pássaro; (iv) estava cheia de substâncias aromáticas; (v) e os olhos estavam portegios por um óculo de vidro.

Fonte: cortesia de Wikimedia Commons / Imagem do domnínio público.


1. Até ao séc. XVI, há três grandes epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. Estamos a abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19.

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. 


São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas a maior parte das citações e referências bibliográficas. Depois da lepra (*), vamos falar da peste.




Peter Bruegel, o Velho (Breda, c. 1525/30 - Bruxelas, 1569): "O Triunfo da Morte" (c. 1562). Museu do Prado, Madrid. Pintura a óleo, de médias dimensões (1,17 m x 1,62 m), que mostra o triunfo da morte sobre o mundo dos vivos, simbolizada por um grande exército de esqueletos que devastam a Terra (, tema por certo inspirado nas frequentes pandemias e guerras que assolaram a Europa desde a Alta Idade Média, e noemadamente a "peste negra").

Ao fundo, surge uma paisagem, terresttre e marítima, desoladora, árida, ainda com cenas de destruição. Em primeiro plano, a figura da morte, com a sua foice apocalíptica, à frente dos seus exércitos triunfantes: vem montada num esquelético cavalo avermelhado. Todos os vivos são empurrados para um caixão enorme, tipo terminal, sem qualquer esperança de fuga ou de salvação. Todas as classes sociais, os ricos, os poderosos e os pobres, estão aqui reprentados, e nada os salva, o dinheiro, o poder, a fé, a devoção.



Imagem do domínio público. Cortesia de: Wikimedia Commons


A Peste ou o Triunfo da Morte 

2. Mais uma vez a mobilidade espacial, neste caso o regresso dos cruzados, terá igualmente contribuído para a introdução de muitas doenças transmissíveis, até então desconhecidas na Europa, e que se transformaram em terríveis epidemias. 

A mais mortífera de todas foi, sem dúvida, a peste negra (ou "pestilentia pestis", do latim peius, "a pior doença"). Estima-se que terá vitimado cerca de 25 a 30 milhões de pessoas (entre um terço a um quarto da população do Ocidente) em meados do séc. XIV. 

No caso português, a peste negra terá dizimado um terço a um quarto da população. De qualquer modo, as epidemias, as fomes e as guerras continuarão a acompanhar toda a segunda metade do séc XIV até quase ao final do séc XV, condicionando de tal modo a evolução demográfica que só nos primeiros anos do séc XVI o nosso país atingirá o volume populacional que tinha no início do séc XIV (cerca de 1.5 milhões de habitantes).

A peste negra está admiravelmente retratada em quadros de Pieter Brueghel, o Velho (ca.1525-1569) e em particular em O triunfo da morte (ca. 1556, Museu do Prado, Madrid). 


Por sua vez, Giovanni Boccaccio (1313-1375) descreveu magistralmente, em Il Decamerone (justamente iniciado em 1348 e concluído em 1353),  as cenas pungentes da epidemia que se abateu sobre Florença. 

Endémica na Ásia (ou, pelo menos, no planalto à volta dos Himalaias), a peste negra terá chegado ao Ocidente através dos tártaros que cercavam Caffa, na Crimeia, porto comercial utilizado pelos mercadores genoveses que operavam no mar Negro, e que  através destes últimos entra em Messina, na Sicília, espalhando-se rapidamente por toda a península de Itália e pelo resto da Europa, entre 1347 e 1352.

Caffa, antiga colónia genovesa, entre 1281 e 1475 (, e depois Keve à época do Império Otomano), chama-se hoje Teodósia: é uma cidade da República Autónoma da Crimeia, na Ucrânia, sendo um importante porto e localidade turística de veraneio. 



Mercator ergo pestiferus 
("Sou mercador, logo portador da peste") 


3. Foi um pandemia brutalmemte mortífera, de que resultou talvez a maior catástrofe demográfica do Ocidente.  Foi também uma  tragédia social, económica e cultural, gerando uma tremenda crise de valores. 

Factores que terão favorecido esta tragédia: 

(i) tempo de guerras, crises alimentares, fome, subutrição, enfraquecimento do sistema imunológico; 

(ii) ausência de estruturas sanitárias, incipiente medicina arábico-galénica, as doenças transmissíveis sendo atribuídas a misteriosos miasmas; 
  
(iii) populações mentalmente predispostas à superstição,  à vitimização, ao fanatismo e ao pânico.

"Por todo o lado, na Itália, na França, na Alemanha, os homens mais responsáveis e os marginais mais anónimos parecem irmanados num instinto selvagem de subsistir. Subsistir primeiro e, se possível, lucrar. Emparedam-se em nome da lei casas e bairros com mortos, moribundos e sãos; enviam-se para os monturos e valas comuns, pais a filhos e vice-versa, doentes ainda vivos; lincham-se peregrinos e viandantes; queimam-se judeus; fabrica-se com o pus dos bubões e banha de enforcados venenos para matar e roubar; usam-se cadáveres de pestosos como balas biológicas no assalto a cidades; organizam-se cortejos de autoflajelantes possuídos da mais paroxística histeria; realizam-se orgias; chama-se o Diabo; invectiva-se Deus". (Sousa, 1992)

O mais surpreendente é que esta epidemia flagelou brutalmente a cristandade do Ocidente, enquanto o mundo árabe (ou de influência muçulmana), da bacia mediterrânica, foi relativamente poupado. 

Para Cosmicini (1995), o homem medieval do Ocidente cristão, ao contrário do seu contemporâneo oriental, nomedamente na bacia mediterrância, não tinha hábitos de higiene (limpeza do corpo, lavagem da roupa, higiene doméstica, saneamento urbano...) A extrema contagiosidade da infeção comprova que o seu vetor é mais a imundície humana do que o rato, o transportador das pulgas...

Além disso, não é apenas é uma peste bubónica, transmitida pela pulga, é também pulmonar e seticémica (e, portanto, mais mortal ainda).

"A peste também é pulmonar e septicémica, transmitida diretamente de homem a homem, através - hoje sabemos - das partículas de espectoração,  carregadas de bacilos, projetadas pelos doentes no ato de tossir, e inaladas pelos saudáveis". 

O adjetivo "bubónico" (do francês "bubonique") quer dizer que a doença  se caracteriza(va) pela formação de bubões  ou  tumefacções ganglionares dolorosas.

  Quais foram, afinal, as condições que predispuseram a Europa Ocidental a esta terrível pandemia ? Há que compreendê-las a vários níveis, segundo Cosmicini (1995): 

(i) Ao nível veterobiológico ["vetero", de velho, oposto a "neo"]

A peste terá sido relativamente pior na Europa do que na Ásia (onde era endémica), devido a mudanças quer orgânicas quer ambientais, seis séculos depois da vaga de epidemias na Alta Idade Média, precedida dois séculos antes da pandemia que se abateu sobre o Império Romano (542-548) no reinado de Justiniano; em meados do séc. XIV, a peste negra irrompe no quadro de uma economia mercantil em franco desenvolvimento, com contactos comerciais com o Oriente (através da Rota da Seda, a primeira "estrada" da globalização) e de uma população, fugida dos campos e  concentrada em cidades, e, portanto, muito mais vulnerável. 


(ii) Ao nível económico e socioecológico: 

Constata-se uma relação bi-unívoca entre a fome e epidemia, agravada por problemas climatéricos e pela quebra da produção cerealífera: "a crise de subsistência de uma população que cresce cada vez mais e que come cada vez menos é mecanicamente traduzida em desnutrição coletiva e morbidade epidêmica".


(iii) E, por fim, ao nível neo (oposto a vetero…) biológico ou imunológico: 


A dieta da população da época era, já de si, muito pobre em calorias, proteínas e vitaminas; a má nutrição crónica agravou-se com a crise alimentar que antecedeu a peste; como resultado, terá havido uma progressiva debilitação do sistema de defesa imunológico, e em particular uma atrofia dos tecidos linfáticos... Estavam, pois, reunidas todas as condições para que o bacilo de Yersin, Yersinia pestis, se tornasse terrivelmente letal.  (Este bacilo só foi descoberto em 1894,  por Alexandre Yersin, um médico francês, de origem suiça, do  Instituto Pasteur, ns sequência de uma epidemia de peste em Hong Kong.)

“A fame, peste et bello, libera nos, Domine!" ("Da fome, da peste e da guerra, livrai-nos Senhor!"), implorava ao céu o homem medieval... A que o povo, em Portugal, acrescentava, em surdina: "... e do bispo da nossa terra, ámen!!  



Foge depressa, vai para longe e volta devagar...


4. Sobre a falta de hábitos de higiene pessoal e ausência de salubridade pública, convirá acrescentar o seguinte: as condições sanitárias ambientais eram péssimas. As cidades medievais não tinham sistemas de saneamento básico. Os despejos domésticos eram feitos para a via pública. A água potável era escassa.

Quanto à tradição romana dos banhos públicos, de algum modo valorizada pela medicina judaica e árabe na península ibérica, sabemos como ela foi duramente combatida pelo cristianismo: por exemplo, homens da Igreja como São Jerónimo (c.343-420) não viam razões válidas para um cristão tomar banho depois do baptismo, se bem que na planta arquitectónica do célebre mosteiro de Sankt Gallen (Séc. IX) estivessem previstas latrinas e balneários.

Refira-se que este preconceito teológico em relação aos cuidados de higiene corporal vai ter consequências nefastas na saúde da população europeia.

Além disso, a teoria demoníaca da doença tinha então muito ascendente e, no caso das devastadoras epidemias que assolavam a Europa (sob o nome comum de peste), o bode expiatório eram geralmente os judeus ou grupos espeíficos como as bruxas. Ou até os próprios médicos, os comerciantes ricos, a nobreza, o alto clero e a corte real que sempre tinham mais meios de fugir, "depressa e para longe", dos sítios atingidos pela peste ou outras epidemis, de acordo com a aforismo da Escola de Salerno: "Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi" (Foge depressa, vai para longe e volta devagar.)


5. A peste negra na Europa tinha sido já precedida por graves faltas de alimentos entre 1308 e 1318. A fome nunca foi um fenómeno isolado, acabando por escancarar,  mais cedo ou mais tarde,  as portas às epidemias, reconhecem os historiadores.

Por outro lado, a peste negra aparece num contexto de crise do feudalismo, de êxodo rural, de sobrepopulação, de concentração urbana e de desenvolvimento da economia mercantil. 

Todavia, parece que continuam por explicar os "ciclos da peste" que, em todos os 10-12 anos, irá ressurgir, no Ocidente, durante quase quatro centúrias, de meados do séc. XIV até às primeiras décadas do Séc. XVIII. 

Entre nós, a última epidemia ocorrerá no Porto, em 1899, sob a forma de peste bubónica.  Mas no princípio do séc.XX ainda se morre de peste nos Açores onde a doença se manterá endémica sob forma murina. Em "Mau Tempo no Canal",  o escritor Vitorino Nemésio (1944) evoca, na figura impagável do Manuel Bana, o medo atávico que os homens continuarão a ter do rato e da pulga por causa do risco de contágio que eles representam.  

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Referências bibliográficas:

COSMACINI, G. (1995) - Storia della medicina e della sanità in Italia. Roma: Economica Laterza

SOUSA, A.: 1325-1480. In: História de Portugal (Dir. de José Mattoso), II vol.: A monarquia feudal (1096-1480). S.l.: Círculo de Leitores. 1992. 311-556.



Para saber mais, do ponto de vista clínico, vd. Larry M. Bush  e Maria T. Perez - Peste e outras infecções por Yersinia. In:  MANUAL MSD Versão para Profissionais de Saúde.  

(...) Peste é causada por bactérias gram-negativas Yersinia pestis. Os sintomas são de pneumonia grave ou linfadenopatia acentuada com febre alta, progredindo frequentemente para sepse. O diagnóstico é epidemiológico e clínico, confirmado por cultura e sorologia. O tratamento é feito com estreptomicina ou gentamicina; as alternativas são fluoroquinolona ou doxiciclina. (...) 

(...) Nos EUA, o último surto urbano da peste associada a ratos ocorreu em Los Angeles em 1924 a 1925. Desde então, > 90% dos casos de peste humana nos EUA ocorrem nas áreas rurais ou semirrurais da região sudoeste, especialmente Novo México, Arizona, Califórnia e Colorado.

Em todo o mundo, a maioria dos casos desde os anos de 1990 ocorreu na África. Nos últimos 20 anos, quase todos os casos ocorreram entre pessoas morando em pequenas cidades e aldeias ou áreas agrícolas, em vez de em grandes cidades. (...)

Em áreas endémicas nos EUA, vários casos podem ter sido causados por animais de estimação domésticos, especialmente gatos (infectados ao comer roedores infectados). A transmissão a partir de gatos pode ser por meio de mordida ou pulga infectada, se o gato tiver peste pneumónica, por inalação de gotículas respiratórias infectadas. (...)

(...) Transmissão: A peste ocorre principalmente em roedores selvagens (p. ex., ratos, camundongos, esquilos, cachorros-de-pradaria) e é transmitida do roedor ao ser humano pela picada de uma pulga-vetor infectada. A peste também pode ser transmitida através de contato com secreções ou tecidos de um animal infectado. (...) A peste pneumônica também pode ser transmitida pela exposição em um laboratório ou pela propagação intencional de aerossóis como ato de bioterrorismo. (...).

(...) Sinais e sintomas:  Peste tem várias manifestações clinicamente distintas: Peste bubónica (a mais comum); Peste pneumónica (primária ou secundária); Peste septicémica; Pestis minor. 

Peste faríngea e meningite por peste são formas menos comuns. (...)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado ? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média