sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P561: Corvacho, um homem com honra (João Tunes)

Post do João Tunes, membro da nossa tertúlia, publicado do seu blogue Água Lisa (5), de hoje, sob o título, altamente sugestivo, "Veneno e contra-veneno", aqui reproduzido com a devida vénia (como mandam as boas regras de respeito pela propriedade intelectual).

É também mais uma homenagem, singela, de um ex-combatente da Guiné, o João, para com outro ex-combantente, o outrora capitão Corvacho, da CART 1613 (Guileje, 1967/68), que agora trava uma outra luta, bem mais mais difícil, desigual e cruel, a luta contra a doença.

1. Ontem mesmo, aconteceu-me o que já não imaginava. Um “retornado” do meu bairro, daqueles que vieram de trambolhão de Moçambique por causa da colonização descolonizada, de que me sobravam no ouvido os falares altos da sua tertúlia com comparsas de azedumes e pragas que normalmente terminam na constatação partilhada de que "este país só de endireita com um ou dois salazares" ou "ainda diziam mal da PIDE...", ao contrário do habitual, estava sozinho lá num canto. E eu no meu.

Numa pausa em que descansei o livro que agora me ocupa, o sujeito resolve, pela primeira vez, meter-me fala: "- Já reparei que o senhor gosta de ler, tome lá, leia isto que é ligeiro" e passa-me uma meia dúzia de folhas dobradas que aceito por delicadeza e que desfolhadas e vistas em diagonal, eram afinal um miserável apanhado daquelas anedotas velhas e relhas com ranço racista sobre Samora e a Frelimo.

Aguentei uns minutos para não destrambelhar, aí o sacana do stress, aguenta, pensando que raio de fel este em que, passadas tantas décadas, ainda bolsa e se quer propagar e aliciar. E perguntando-me se, tendo feito a guerra por eles e para eles, aos colonos depois descolonizados, ainda lhes teria dívidas por saldar. Meti travões a fundo. Limitei-me a mostrar ao sujeito que vi de que se tratava mas que não lhe queria ler a sua cartilha, devolvendo-a com a máxima e possível delicadeza "- Obrigado pela atenção, mas dispenso a leitura, não sou reaça". E o "retornado moçambicano" ficou embasbacado, a olhar-me com ar de não perceber. Ou não querer. Ou nem sequer disso ser capaz.

2. É fácil denegrir. Como em tempos fizeram a Samora. Mas, de Samora, hoje não falo, porque me vem à lembrança as folhas de papel com vinagre do "retornado moçambicano", meu vizinho. Escolho falar de um "militar de Abril" (teve papel decisivo no levantamento na Região Norte e comandou as forças que ocuparam o Forte de Peniche), também muito maltratado, objecto de ódios mais que mil no turbilhão da revolução, sabe-se lá de sanados.

Trata-se de um Oficial de origem transmontana, trazendo no peito a Cruz de Guerra de 3ª Classe, o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar. Chama-se Eurico Corvacho [...]. Fiquei hoje a saber que está muito doente. E li, recompondo-me por continuar a haver homens com honra, dois depoimentos sobre ele que me reconciliam com o tempo e a memória, devolvendo a honra aos honrados - este e mais este.

João Tunes

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P560: Corvacho, um capitão de Abril (A.Marques Lopes)



Caros camaradas:

O meu grande apreço e sensibilização pelas palavras do camarada José Neto para com o "seu capitão" Eurico Corvacho.

Ele foi o militar do MFA, então major, a quem Otelo Saraiva de Carvalho, no dia 16 de Abril de 1974, deu a missão de dirigir o Agrupamento Norte, "November" (CICA1, CICA2, CIOE, RI10, RI14, RAP2, RAP3...) para a revolução. E às 03H30 do dia 25 de Abril o QG da, então, Região Militar do Porto foi tomado. Foram também forças do Agrupamento Norte que cercaram o forte de Peniche.

O alferes Eurico Corvacho, um transmontano de Torre de Moncorvo, foi para Angola em Junho de 1961, onde esteve até Setembro de 1965, e aí sendo promovido a tenente e capitão. Foi para a Guiné em Novembro de 1966, até Setembro de 1968. De Setembro de 1970 a Outubro de 1972 esteve novamente em Angola. Daí regressado, foi colocado no QG da Região Militar do Porto como comandante da CCS e do Esquadrão de Polícia Militar, onde foi o primeiro a dinamizar uma nova classe de defesa pessoal, o soshinkai, de cuja associação chegou a ser presidente.

Em Janeiro de 1974 foi graduado no posto de Major e, após o 25 de Abril, foi nomeado Chefe do Estado-Maior da Região Militar do Porto, tendo sido graduado em coronel em Dezembro de 1974. Assumiu o Comando Interino dessa Região Militar em Abril de 1975, altura em que foi graduado em brigadeiro. Foi desgraduado destas funções em Setembro de 1975, durante as convulsões preparatórias do 25 de Novembro. Passou à reserva a 24 de Janeiro de 1981 e à reforma em Janeiro de 1992.

É condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª Classe, com o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e com a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar.

Dou estes dados para complementar a "fotografia" tão fielmente tirada pelo José Neto. E ele sempre mostrou aquilo que este nosso camarada viu nele. Eurico Corvacho foi sempre um homem coerente, frontal nas suas opiniões, com um humanismo e uma honestidade a toda a prova e um combatente empenhado pelos ideais do 25 de Abril. Por isso, é verdade, foi um homem controverso para todos os que não apreciavam a sua coerência e honestidade.

Acrescento a minha simpatia e admiração por esta figura, infelizmente, agora, com saúde débil.

Abraços
A. Marques Lopes


Comentário de L.G.:

O meu obrigado (meu, mas também nosso, da nossa tertúlia), ao Zé Neto e ao A. Marques Lopes, pelo depoimento sobre uma extraordinário e discreto camarada da Guiné que honrou as melhores tradições das forças armadas portugueses e foi um exemplo de verticalidade moral, competência profissional e honestidade intelectual. Se ele nos puder ler (ou se alguém puder transmitir-lhe os nossos desejos), aqui vão as nossas melhores saudações e votos de coragem para enfrentrar mais esta dura batalha contra a doença... É bom que ele saiba que há camaradas que com ele privaram e que muito o admiram e estimam.

Guiné 63/74 - P559: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Regresso ao quartel de uma operação, com o Cap Corvalho à frente, seguido pelo Costa da Bazuca. © José Neto (2005)


Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho

Nota prévia: O texto que segue é, apenas e só, destinado à difusão no Blogue-fora-nada. O autor.

Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.

Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.

Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia.

No dia 25 de Dezembro vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.

Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.

O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BEng [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.

Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.

O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Retrato de família...
© José Neto (2005)


Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.

O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.

Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.

Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Um secretaria improvisada no mato... © José Neto (2005)

Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do comando-chefe, era outra.

Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.

Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a “minha tropa” foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.

Com a voz embargada pela comoção o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.

Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.

Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de “vai e volta”. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).

Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.

Ironicamente, saliento que o "meu Capitão” tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.

E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.

Com “torneados e floreados” foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.

Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guilege, onde “morámos e combatemos” cerca de um ano.

Podia terminar aqui a minha narrativa.

Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.

O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de “falta isto, falta aquilo”; e a última a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.

Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.

Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionamos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do “reles da Bolola”.

Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o “meu Capitão”.

Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.

Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente (1), considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.

Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave.

No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guilege em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.

José Afonso da Silva Neto
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Nota de L.G.:

(1) Foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P558: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte


Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros aramados de kalash e de RPG-7.

Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) . O João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro da CCAÇ 5 (1973/74), é hoje farmacêutico e membro da nossa tertúlia.

Inicimos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contempânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).
 
Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.
 
Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG).
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Caro Mário Dias,
Caro Luís Graça,
Restantes tertulianos,
Amigos e camaradas,

Como prometi, segue em anexo o meu comentário sobre o testemunho presencial de Mário Dias, à propósito de Pindjiguiti. Estou aberto a qualquer reparo, chamada de atenção, troca de ideias e experiências, caso houverem.

Seguem também, igualmente em anexo, duas ou três fotos (bom, mais imagens que fotos) que se reportam ao Pindjiguiti. Infelizmente, todos em ficheiros Word, mas o Luís Graça (ou alguém da Tertúlia) certamente saberá os converter em ficheiros normais de imagem, se se entender publicar o meu texto, apesar do seu desmedido tamanho. Uma sugestão: talvez se deva publica-lo no Blogue, mas em formato PDF, devido aos itálicos, palavras entre comas/aspas e sobretudo devido as notas de rodapé.

Peço entetanto ao Luís que me faça o favor enviar o texto de volta, depois de composto e introduzido as imagens que não consigo converter em ficheiros normais de imagem, a fim de que o possa publicar nos meus blogues:

Lamparam I

Lamparam II

Um abraço e boa semana de trabalho a todos
Leopoldo Amado


Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau 
(Leopoldo Amado) - I Parte


O testemunho presencial de Mário Dias é sem dúvida uma peça imprescindível para um melhor enquadramento da historiografia da guerra colonial “versus” guerra de libertação, de resto, algo que enquadra perfeitamente no significativo esforço que a Tertúlia tem vindo a desenvolver de forma empenhada, entre outras plausíveis razões, porque todos estão profundamente conscientes – penso eu – de que os povos sobrevivem sempre às turbulências próprias de uma guerra, qualquer que ela seja, donde a importância do estabelecimento da necessária ponte de ligação com as novas gerações, através da memória histórica.

Porém, apesar de muito limitada no tempo (11 anos) e no espaço (cerca de pouco mais de 30.000 Km2), as malhas históricas em que se processou e se desenvolveu a guerra colonial e/ou guerra de libertação, conforme o lado dos contendores onde nos posicionamos, a mesma revela-se de uma profunda complexidade, tanto pelo potencial de estandardização factual que a sua evolução comporta, como pelas intrincadas conexões que os acontecimentos ou episódios inerentes apresentam, aconselhando este estado actual dos conhecimentos a espécie de humilde resignação metodológica ante a evidência, de resto compreensível, das eventuais ou prováveis obliterações decorrentes do eventual défice de objectividade ou não com que a temática é aqui e acolá aflorada, contanto nos convençamos de que tanto as abordagens que procurem explanar uma visão de conjunto (aparentemente, a mais cómoda) como as parcelares (aparentemente, a mais trabalhosa) afiguram-se por um lado autonomamente importantes e, por outro, altamente complementares aos esforços tendentes a uma mais cabal e bem sucedida reconstituição histórica.

Assim, o justamente ou o impropriamente denominado Massacre de Pindjiguiti (abstemo-nos metodicamente, pelo menos por agora, a tecer juízos de valor), apresenta-nos como bom exemplo para se ilustrar a complexidade referida, na medida em que, não obstante inéditos e importantes, os factos relatados como fazendo parte da sua decorrência apresenta-se-nos também, à jusante e montante da ocorrência, como factores limitativos à uma abordagem com horizontes mais abrangentes.

Guiné-Bissau > Luís Cabral, o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau (1974-1980). Fonte: desconhecida.

Efectivamente, à jusante de todo o processo que o antecedeu, por um lado, Pindjiguiti não foi senão um marco, uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente é certo –, pese embora a fuzilaria e o derramamento de sangue que lamentavelmente resultou em mortes, mas em cujos acontecimentos, tanto à jusante como a montante, apresentam suficientes elementos que nos permitem, tanto quanto possível, conferir uma interpretação histórica a fenomenologia que, por comodidade, designaremos Pindjiguiti. Eis o percurso que iremos tentar delinear para doravante para situarmos a contextualização histórica de Pindjiguiti.

Convenham-nos então que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros dependendo da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense.

Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no boom das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denodada resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciada nos finais do século XIX, prolongaram-se praticamente até a ao início da segunda metade do século XX, mediando assim pouquíssimo espaço de tempo o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que, coincidente e curiosamente, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições para a implantação da administração e o seu domínio sobre o território.

É certo, outrossim, que acontecimentos tal como a segunda Grande Guerra e suas ressonâncias na Guiné, diminutas que sejam, contribuíram igualmente com a sua quota-parte para que o povo guineense começasse a questionar o seu papel e o seu lugar.

Aliás, Rafael Barbosa lembra-se (1) de, durante a segunda guerra mundial, os jovens em Bissau se terem se posicionado do lado dos Aliados contra a Alemanha de Hitler, seguindo com entusiasmo e acrescido interesse (sobretudo pela BBC e outras rádios internacionais) o evoluir dos acontecimentos no teatro das operações, tal a convicção da que tinham os jovens guineenses da adopção, por parte de Portugal, de uma espécie de neutralidade dúbia, apoiando subtilmente a Alemanha de Hitler, pelo que não se pode a partir destes aspectos aferir-se da crença ou da antevisão, por parte desses (ainda) imberbes nacionalistas, de que na II Grande Guerra jogava-se, de certo modo, o futuro dos povos das colónias africanas.

Estava-se na Guiné, isso sim, perante manifestações libertárias, mas algo difuso, tanto mais que junto aos grumetes e elementos da pequena burguesia local, independentemente do grau da sua justeza ou de qualquer outro juízo de valor que elas se possam fazer, pelo menos por parte de alguns desses africanos, bifurcavam-se também na vontade oculta de ascensão na sociedade e estruturas de poder coloniais.

Vivia-se, convenhamo-nos, naquilo a que hoje se convencionou de certa maneira denominar de protonacionalismo, mas de per si este facto não deixa de ser demonstrativo de que, na década de 40 do século XX, essas aspirações libertárias quase que apenas se manifestavam como contraponto da exploração imposta pelo desumano e repressivo aparelho colonial e só de forma subsidiária e residual como resultante de uma hipotética influência ou impulso importados do movimento das ideias e aspirações libertárias que já se fazia sentir no plano africano e até internacional, mormente através do movimento pan-africanista cujas ressonâncias – não obstante terem a chegado a Guiné em 1910 com a fundação da Liga Guineense –, não tiveram nem continuidade e nem expressão assinalável, tal a repressão que o temerário Teixeira Pinto (autrement conhecido pelo epíteto de “Pacificador”) engendrou contra os seus membros mais activos e que conduziu posteriormente a sua proibição em 1915.

Para lá do ambiente gerado pela longa e penosa guerra de ocupação colonial (“pacificação”) versus resistência à ocupação – que durou oficialmente até 1936 (apesar de que várias importantes revoltas foram aqui e acolá assinaladas até aproximadamente 1950), o relacionamento entre o aparelho colonial e as populações guineenses era, em geral, bastante hostil. Inclusivamente, em 1942, toda a estrada de Plubá foi aberta pelos prisioneiros que, na maior parte dos casos, eram presos porque não quiseram ou não puderam pagar a daxa ou o imposto de palhota.

Guiné > Amílcar Cabral e Nino Vieira, na época da guerrilha. Amílcar viria a ser assassinado em 1973. Nino, por sua vez, derrubará o sucessor de Amílcar, o seu meio-irmão Luís Cabral, através de um golpe de estado militar (1980). Fonte: desconhecida.

Durante todo o período que durou a II Guerra Mundial, no tempo do Governador Vaz Monteiro, havia em Bissau, Safim e Quinhamel algo que em muito imitava os campos de concentração na Alemanha do Hitler. O maior assassino era o administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, que veio a ter aqui preso o Benjamim Correia. A partir daí, o filho da Guiné tomou consciência de que havia que lutar pela sua causa (2)".

No início, a pequena burguesia organiza-se num quadro africano, mas cujo fim não é ainda a independência nacional. Trata-se de mais um desejo confuso de encontrar o seu lugar, de emergir socialmente. Mas a dominação portuguesa não é ainda contestada, a aspiração a assimilação mantém-se, nesta etapa, largamente espalhada. Isto apesar de alguns elementos da elite guineense são já serem sensíveis a uma “reafricanização”.

A prova eloquente do acima dito é o facto de a maior parte dos "notáveis" guineenses da sociedade colonial pertencerem ao Conselho Legislativo do governo da Guiné, tais como Mário Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva, Joaquim Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante), Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado) (3).

A estes juntaram-se outros guineenses pertencentes à pequena burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e de portugueses que na altura eram claramente anti-situacionistas. Este grupo, que não escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial, dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente nacionalismo guineense.

Portugal > Lisboa > s/d > Cartaz de propaganda de apoio à luta dos povos das colónias africanas portuguesas. Cartaz da UAC - Unidade Anti-Colonial. 

Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).

Os notáveis desse grupo que se destacaram, tendo por isso merecido um registo das suas actividades pela PIDE, foram Eugênio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca” (comerciante) e Fernando Lima ( comerciante). Estes membros da pequena burguesia foram acusados de fomentarem a rebeldia entre os guineenses considerados indígenas, chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação, embora sem nela tomarem parte activa (4).

Com efeito, a maior parte dos povos da Ásia tornou-se independente após a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1946, com o fim de realizar a união de todos os africanos, realizou-se lugar em Bamako (Mali) uma reunião em que se fixaram os princípios do Rassemblement Démocratique Africain (RDA), propondo-se a fusão de todos os agrupamentos e partidos democráticos de cada território num partido democrático unificado, passando o RDA a ser inicialmente dirigido por um Comité de Coordenação, apesar de que sempre se debateu ao longo dos anos com a unidade proclamada.

No decorrer deste período a acção das massas africanas, as organizações políticas e os seus dirigentes impuseram nos territórios vizinhos, sobretudo nas colónias francesas, um certo número de realizações no campo económico e social que eles próprios que eles próprios consideraram positivas, pelo que a ideia da unidade das organizações políticas africanas na luta pró-independência ganha novamente vulto entre essas mesmas massas e nas organizações não aderentes ao RDA.

As organizações que não aderiram ao RDA agrupam-se no MAS (Movimento Socialista Africano) e na Convenção Africana, esta animada por Leopoldo Sédar Senghor. Em 1957, foi criado o PAI, o qual lança a ideia da independência africana. Em Julho de 1958, verifica-se uma reunião em Paris dos principais dirigentes africanos, onde se reafirmou o principio da unidade com vista à independência. Em Maio-Junho de 1958 a França atravessou uma grande crise, retomando o destinos do país o General De Gaulle. Este desloca-se a Conakry e no decurso da sua visita declara que os povos da África sob dominação francesa podiam escolher entre responder “sim” e aceitar a sua Constituição que sob o nome da “Comunidade” substitua a chamada “União Francesa” ou responder “não” caso em que o território se tornaria independente.

A maior parte dos territórios, confiantes nas promessas feitas, votou “sim”. Só a Guiné por votação popular realizada pelo PDG respondeu “não” em 28 de Setembro de 1958 à Constituição do general De Gaulle e em 2 de Outubro a sua independência era proclamada.

Esse feito deveu-se sobretudo a acção do PDG (criado em Maio de 1947), sete meses depois do Congresso de Bamako, o qual resultou da fusão étnica das associações que na Guiné Conakry e especialmente à acção de Sékou Touré que dirigia o sindicato e era o Secretário Político do Partido.

Repúlica da Guiné-Conacri > Bandeira nacional > A simbologia das cores...
Fonte: Wikipedia (2006)

A República da Guiné adoptou uma bandeira tricolor – vermelho, amarelo e verde em que o vermelho simboliza a determinação do povo em aceitar todos os sacrifícios até ao derramamento do sangue, o amarelo a cor do sol e das areias de África e o verde a cor da esperança e da vegetação africana, cores estas que se encontram nas bandeiras de quase todos os países do Oeste africano, diferindo apenas a disposição.

Em Março de 1952, Cabral subscreveu com outros uma exposição a Sua Excelência o Presidente da República, em que entre outras coisas, reclamavam a retirada de Portugal do Pacto do Atlântico.

Cabral desembarcou em Bissau a 20.9.52, no navio Ana Mafalda, tinha ele 34 anos. Chegou a Bissau a sua mulher a 2.11.52. Cabral foi contratado pelo Ministério do Ultramar como Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné até 18.3.55, data em que regressou à Metrópole. Em 1952, Amílcar Cabral rumou para a Guiné colonial, após ter estado em Cabo Verde (1949), onde, segundo o próprio, fez "todas tentativas de acordar a opinião pública contra o colonialismo".

Nessa época, Portugal tinha o compromisso internacional de apresentar o Recenseamento Agrícola da Guiné e até então este trabalho não fora sequer iniciado. Depois de vários contactos de trabalho, particularmente nos momentos em que o Amílcar exercia interinamente as funções de chefe de serviço, o Governador decidiu confiar-lhe a execução daquela importante tarefa, na qual veio a ser secundado pela engenheira Maria Helena Rodrigues, sua esposa. "Em cada tabanca deixava uma palavra como ele a sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta (6)”.

O Recenseamento Agrícola acabou por permitiu a Cabral conhecer mais de perto as populações e os seus problemas, constituiu-se assim na antecâmara da mobilização urbana que se lhe seguiu.

Em 1952, Amílcar Cabral sugeriu a formação de um Clube de Futebol apenas reservado aos naturais da Guiné opinando que dentro do mesmo devia existir uma biblioteca para a elevação do nível cultural dos associados. Várias reuniões foram realizadas tendo também para a arrecadação de fundos sido efectuado um baile no bairro Chão de Papel.

Nessa altura, tentou, aparentemente sem sucesso, Amílcar Cabral quis disfarçar as actividades políticas com a criação de um clube desportivo e recreativo cujos subscritores da petição foram: o próprio Amílcar Cabral, Carlos António da Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Carvalho Alvarenga, Paulo Martins, Julião Júlio Correia, Martinho Gomes Ramos, Víctor Fernandes, Bernardo Máximo Vieira.

O aparente insucesso acabou todavia acabou por insuflar a ideia de associativismo. Segundo Luís Cabral, " (…) o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…) (6)”.

A não admissão, neste clube, de europeus acabou por gerar dissidências deixando os propósitos do seu mentor bem à vista: lançar as bases duma organização de nativos irmanando-os na mesma fé e nos mesmos destinos. O clube não chegou a ser autorizado, mas o certo é que ficou entre os nativos a ideia duma união entre todos.

Com efeito, durante a sua permanência nesta cidade, diz uma notada PIDE, “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado (7)”.

A mesma nota dava ainda conta de que “(...) eram anti-situacionistas o João Vaz, ajudante de mecânico, de 33 anos, natural de S. Tomé, Carlos António da Silva Semedo Júnior, de 21 anos, estudante, a estudar em Lisboa; Pedro Mendes Pereira, enfermeiro de 1ª classe de 52 anos, Inácio Carvalho Alvarenga, 42 anos; Julião Júlio Correia, de 50 anos de idade, Martinho Gomes Ramos de 35 anos, Víctor Fernandes, de 30 anos Bernardo Máximo Vieira, de 33 anos, tendo esses mesmos indivíduos assinado uma petição no sentido da criação de um clube denominado Clube Desportivo e Recreativo de Bissau, destinado ao desenvolvimento de actividades nativistas, superiormente orientadas pelo engenheiro Amílcar Cabral.

As reuniões, presididas por Cabral para esse fim realizavam-se clandestinamente na casa de João da Silva Rosa (guarda livros da NOSOCO). Tomaram parte nessas reuniões o Isidoro Ramos, João Rosa, Víctor Robalo (agricultor em Bigimita), Martinho Ramos (empregado da Gouveia), José Maria Dayves, Elisée Turpin (empregado ao tempo da SCOA), Godofredo Vermão de Sousa (professor primário), Crates Nunes (carpinteiro). Para essas actividades, chegaram até de organizar um baile muito frequentado no Chão de papel, tendo Estevão da Silva (Alfaiate), na altura nomeado tesoureiro.




Um cartoon histórico alusivo ao reconhecimento, por parte do Portugal democrático, da independência da Guiné Bissau, em 10 de Setembro de 1974. 

Fonte: Gaiola Aberta. n.º 8 (1 de Outubro de 1974) 

© José Vilhena (1974) (com a devida vénia). Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).

Foi com estes fundos que se financiaram as cópias dos Estatutos que Cabral elaborou e que depois o levou a uma reunião para ser apreciado e na qual foram aprovados, secundando este acto a constituição de uma Comissão que os deveriam levar a aprovação do Governador, porquanto foram inicialmente entregues e esta entidade não o submeteu a despacho com a brevidade que os interessados então pretendiam. Que essa Comissão foi então constituída por João Rosa, Víctor Robalo e João Vaz (alfaiate) que igualmente não conseguiu aprovação do Governo, exactamente porque uma das clausulas dos Estatutos aludia ao facto de que nesta agremiação que não podiam tomar parte os europeus e caboverdianos, razão pela qual passou-se a dizer que Cabral estava feito com os grumetes.

Depois de 1954, alguns povos de África tornaram-se independente. No Sul da Guiné, mais concretamente em 1956, registaram-se no Sul da Guiné certas actividades dos nativos, nas áreas de Cacine e Bedanda a favor do chamado Rassemblement Democratique Africain, tendo-se mesmo formado o que apelidaram de “clubes de trabalho”, em quase todas as povoações vizinhas. Prenderam-se alguns responsáveis e deu-se a fuga de outros, pelo que estas acções foram desmanteladas.

Em 1955, José Ferreira de Lacerda (9), futuro patriarca e líder lendário do MLG, redigiu, a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas) uma “Representação” que foi entregue ao Presidente da República de Portugal aquando da visita deste a Província da Guiné, documento esse onde se condensava, segundo os seus subscritores, o essencial das aspirações da Guiné.

Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da “oposição”, os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província, proposto pelo grupo de Benjamim constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior (9), 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da Comarca, natural de Bolama (10).

É igualmente digna de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva (11), o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Víctor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido à feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente nas camadas ligadas à pequena burguesia local.

Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005

(Continua)
_____

Notas do autor:

(1) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado em Bissau.

(2) Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado.

(3) Cf. Proc. 4415 - CI (2), Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 34

(4) Cf. Proc (Proc. 5466 - CI(2), , Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 307

(5) Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Edições "O Jornal", 1984, p.36

(6) Segundo Víctor Robalo (Entrevista concedida a Leopoldo Amado em Bissau) "(…)aquilo morreu mas, o Amílcar não parou. Depois, veio a ideia da criação da cooperativa, cujo nome já não me lembro. Era uma cooperativa cuja sede havia de ser na minha ponta. Foi a última tentativa para a criação de uma cooperativa agro-pecuária... Era uma cooperativa de sociedade por quotas de 500 escudos na altura. Cada cooperativista entrava com o que tivesse até completar aquilo, que era para ver se as coisas marchavam"

(7) Nota datada de 3.5.55, Proc. N.º 3589 – CI (2)9.

(8) Segundo Rafael Barbosa (entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado), José Ferreira de Lacerda estudou em Coimbra e teria sido aluno de Salazar.

(9) Gastão Seguy Júnior , como oficial de Justiça, foi acusado de propagandista quando sempre que os assuntos indígenas subiam ao poder judicial, observando-se este facto com maior clareza aquando julgamento do administrador aposentado, António Pereira Cardoso, acusado de ter praticado carnificina junto as populações indígenas.

(10) Proc. PC5519 - CI(2), 1956, fls.119-120

(11) O Dr. Artur Augusto Silva (*), pai do nosso amigo e conhecido PEPITO, foi advogado de muitos nacionalistas guineenses acusados de "subversão” e "terrorismo". Correligionário político e colega de Álvaro Cunhal durante o período de estudos em Coimbra, desempenhou um papel importantíssimo no processo de defesa e consciencialização dos guineenses.
_____

Nota de L.G.:

(*) Vd posts de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

Guiné 63/74 - P557: A morte a caminho de Mondajane, com os madeirenses da CCAÇ 2446 (Carlos Marques dos Santos)

Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):

Humberto:

Há dias evocaste aqui uma companhia de madeirenses, que levou porrada em Madina Xaquili, no subsector de Galomaro, com vocês, da CCAÇ 12 (1).

Eu também estive em reforço a Galomaro e disso já dei referência e andei por Dulombi e Mondajane, Madina Xaquili, etc. Essa história está, por mim, contada no blogue salvo erro com o título um mês a feijão frade (2).

Referiste os madeirenses e presumo que são os mesmos que, em treino operacional, andaram comigo.

Esses factos não estão descritos na história da minha Companhia, mas eu tenho-os registados nas minhas notas pessoais diárias que elaborei enquanto estive na Guiné.

Há poucos dias, com o Luís, que estava em trabalho em Coimbra, pude com o Victor David recordar factos de Galomaro e Dulombi.

Lembro-me que em coluna para Mondajane, onde eu iria estar em reforço da CCAÇ 2405, a coluna sofreu o rebentamento de uma mina (a/c ?) na viatura que seguia ao meu lado (nós estávamos apeados) e desse rebentamento um soldado madeirense, pela acção da mina, desintegrou-se. Esta mina rebentou a cerca de 12 metros de mim e felizmente nada sofri.

O Luís perguntava: então o lenço que estaria mais tarde e durante algum tempo pendurado numa árvore nesse itinerário seria dele? (4)

Presumo que sim, pois bocados desse soldado, o relógio, roupa, etc… ficaram agarrados à árvore.

Seria essa a Companhia a que te referes?

Se foi, parece que não entraram na guerra com sorte e também não a tiveram depois. Consegues referenciar no tempo esse ataque? (4)

Poderei a partir daí confrontar as minhas notas, desconhecendo no entanto a denominação da tal Companhia.

Um abraço,
Carlos Marques dos Santos
Cart 2339 – Mansambo, sempre em diligências solitárias
___________

Notas de L.G.

(1) Vd post de 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIII: Portugal, tabanca grande (Humberto Reis e Paulo Raposo)

(2) Vd post de 24 de Janeiro de 2004 > Guiné 63/74 - CDLXXVI: Um mês a feijão frade... e desenfiado (Mondajane, Dulombi, Galomaro, 1969)

(3) O tristemente famoso lenço pendurado numa árvore localizava-se algures no troço da Estrada Bambadinca-Mansambo, e não no subsector de Galomaro, na estrada para Mondajane, como suegere o CMS:

Vd post de 8 de Dezembro de 2005, no Blogue-Fora-Nada... e Vão Dois > Quinta-
Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné

"(...) Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador,
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro" (...).

(4) Vd post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)

" (...) Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24 [de Julho de 1969], à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.

"0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos].

"0 IN utilizou mort 60, lança-rockets e armas ligeiras, tendo danificado uma viatura e causado vári¬os feridos às NT. O primeiro ferido da CCAÇ 12 foi o soldado Sori Jau, do 3º GR Comb, evacuado no dia seguinte para o HM [Hospital Militar] 241 [Bissau] (...)".

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P556: Pidjiguiti: Comentando a versão do Luís Cabral (Mário Dias)

1. Pedido feito ao Mário:

Gostava que comentasses as afirmações do Luís Cabral sobre a "caça ao preto" no dia 3 de Agosto de 1959...São afirmações graves, que eu desconhecia... Não sei se queres acrescentar mais alguma coisa sobre o Pidjiguiti... O teu depoimento foi importante. Obrigado. L.G.


2. Primeiro texto do Mário Dias, antes de ler o post do A. Marques Lopes:

Caro Luis:

Desconheço as afirmações do Luis Cabral sobre a "caça ao preto" no dia 3 de Agosto de 1959. Creio que elas devem ter sido ditas em sentido figurado e no contexto da fraseologia própria dos seguidores do PAIGC que não contesto e compreendo. Aliás, neste tipo de guerra, o aproveitamente de qualquer ocorrência com fins de propaganda favorável à causa defendida por cada uma das partes, é prática corrente. Como é costume dizer-se, está nos livros.

O que sei a respeito da revolta no Pidjiguiti é aquilo que narrei. Como referi, quando a tropa lá chegou já a polícia tinha dominado a situação. Não vi os acontecimentos anteriores nem após a nossa chegada houve perseguição aos elementos revoltosos.

O que narrei sobre o início da revolta e a forma como a mesma foi reprimida, é fruto dos comentários por mim colhidos nos dias imediatos junto de pessoas que a tudo assistiram, principalmente muitos amigos, familiares incluidos, da firma Eduardo Guedes, Lda., que mais tarde veio a unir-se à Ultramarina e que, muitos se devem lembrar, tinha uma vista privilegiada sobre o local onde tudo aconteceu. Também ouvi alguns marinheiros dos barcos pertencentes à NOSOCO, empresa onde eu trabalhava antes da minha incorporação militar, e que me narraram o sucedido.

Nos dias imediatos, Bissau regressou à calma e não se notava qualquer sentimento de mal-estar. Aparentemente, tudo parecia sanado. Digo aparentemente porque nos meios clandestinos que desde o ocorrido se tornaram muito activos, certamente os ânimos estariam mais exaltados. E é o desconhecimento do que se passou nesses meios que nos impede de fazer uma análise mais correcta dos factos. Porque, desses factos, apenas sei o que vi e me foi contado.

Em breve seguirão mais algumas memórias da Guiné dos tempos antigos de antes da guerra.

Um abraço
Mário Dias


3. Segundo texto do Mário, depois de ler o post de 18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)

Caro Luis

Acabo de ler o post que referes e que me havia escapado. Imperdoável!...

Ainda bem que o nosso camarada A. Marques Lopes se refere a massacres e outros desnecessários excessos cometidos pelos portugueses e que devem ser trazidos ao conhecimento de todos. É bom que tudo seja revelado com a isenção de espírito que a distância temporal dos acontecimentos nos proporciona.

Infelizmente, em qualquer guerra e, mais ainda, nas guerras do tipo daquela que enfrentámos em África, existem excessos (autênticos crimes) que nem sequer o ambiente de nervosismo ou insegurança justificam. Isto, aplica-se a ambos os lados embora a história tenha a tendência de endeusar os vencedores e diabolizar os vencidos.

Quanto ao texto do Luis Cabral, exceptuando alguns pequenos mas importantes pormenores, ele não difere muito, na sua essência, do que por mim foi descrito. As divergências principais são as seguintes:

- Os militares não participaram nos disparos pois nem se encontravam lá quando estes ocorreram. Quando os militares chegaram (eu fui um deles) já não havia tiros e, além do mais, nem tínhamos munições. Estavamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local.

- O Luis Cabral refere que as tropas estavam armadas com armas automáticas modernas, o que não é verdade. A polícia tinha armas de repetição Lee-Enfield 7,7 mm que datavam da 1ª Guerra Mundial. Os militares estavam armados com as velhas Mauser 7,9 mm.

- Refere ainda que alguns civis se juntaram "com as suas armas pessoais, que depois se vangloriaram da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto". Embora não pretendendo desmentir pois não assisti ao início dos acontecimentos, parece-me pouco plausível que tenha acontecido.

- Outro ponto de divergência é o que se refere ao modo como ocorreu o "tiroteio" que lamentavelmente vitimou tanta gente e que começou apenas quando os revoltosos se dirigiam ameaçadoramente armados de paus e remos, já no exterior do Pidjiguiti, para a Casa Gouveia. Foi o próprio comandante militar quem deu ordem de fogo, junto à estátua de Nuno Tristão. Custa-me um pouco acreditar que um polícia se disponha a fazer fogo (tipo tiro ao alvo) sobre um indefeso homem que tenta escapar a nado tratando-se, sobretudo, de um seu conterrâneo. Que monstro cometeria tão bárbara acção?

- Quanto às vítimas, foram 16 que, de novo o digo, são muitas. Uma que fosse seria demais. As 50 fazem parte do natural exagero, com fins propagandísticos, que os movimentos de libertação sempre utilizaram. Por exemplo, as 10.000 da Baixa do Cassange segundo a versão do MPLA; ou as propaladas e estrondosas vitórias da FRELIMO sobre as nossas tropas em Moçambique que, numa emissão da Rádio da Tanzânia, conseguiu, num só dia, abater mais aviões que o total existente em Moçambique.

- A versão dos acontecimentos que chegou às emissoras enviada, segundo o próprio Luis Cabral, por Fernando Fortes, chefe da Estação Postal e um dos fundadores do PAIGC, foi de certo e compreensivelmente empolada.

O resto do texto, que muito apreciei e me fez recordar tantas pessoas - conheci todas as que lá estão referidas - está bem concebido mas não deixa de nele transparecer a fraseologia e os chavões (nós também tínhamos os nossos) próprios da propaganda mentalizadora em que o PAIGC era perito. Do mesmo modo, e analisando bem, se chega à conclusão que, embora, segundo o autor, já existesse alguma acção clandestina de aliciamento não refere que a "organização" da ocorrência tenha sido preparada pelo PAIGC.

Já me alonguei em demasia, o que não era meu propósito, tudo porque, sem enjeitar as responsabilidades que, enquanto militar e combatente, possam ser atribuídas a Portugal, me custa verificar que se relatem os acontecimentos de uma forma parcial e "partidária".

Um abraço do
Mário Dias

Guiné 63/74 - P555: Abrir os cadeados da nossa memória (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali (Catió) > Rio Cumbijã > Junho de 1970 
© João Tunes (2005)

Guiné > Região de Tombali (Catió) > Rio Cumbijã > Maio de 1970 © João Tunes (2005)


Ai, camarada Luís, que a sabes toda. Quanta manha sábia nessa tua forma discreta e estética como nos abres nos nossos tabus armazenados na memória, sabendo que o tempo e a idade nos tornaram aptos à grande e completa catarse. E é disso que mais precisamos, malta nos sessenta ou à volta dela, a preparar uma suave (e demorada) paz na preparação da viagem para a cova.

Porque o pior na memória da guerra são esses malditos cadeados com que fechámos aquilo que não nos queremos lembrar. Umas vezes os sons (cabrão do Nino, são os sons das morteiradas dele em Catió, em Cacine, em Gadamael e em Guileje, os que ainda hoje me lixam os cornos, me fodem a cabeça quando oiço o som seco da porta do frigorífico a fechar-se, num eco repetido que ameaça ser-me perpétuo), outras imagens (de tanta nobreza camarada e de tanta miséria da dimensão humana dos limites da resistência de pessoas não feitas para a guerra, e então não me sai da cabeça a imagem do meu camarada e amigo alferes das viaturas, engenheiro mecânico já formado, e que, quando as morteiradas começavam a assobiar, sem ter função nem ponto de abrigo, se encafuava junto ao cão do quartel na sua pequena casota, reduzindo-se a uma igual condição de cão com medo), incluindo, pelo meio, o espanto de encontrar vocação guerreira insuspeita quando, a caminho de Jolmete, encontrei, na prevenção de eventual emboscada, um meu camarada, bom camarada, da luta antifascista e anticolonial e agora ele ali fardado de furriel dos comandos a proteger do ... PAIGC, mijando-nos os dois a rir, quando o abraço esmoreceu, daquela cena de reencontro depois do tanto que havíamos partilhado, no Porto, de fugas da polícia de choque e fintas aos pides que não queriam que abríssemos o bico contra o escroque do Salazar, e agora os dois ali, na mata entre Pelundo e Jolmete, um na tropa macaca e outro na elite dos comandos, às ordens do mesmo cabrão velho e teimoso que estava a foder a história de todo um povo, o nosso, mostrando o pueril absurdo da nossa vontade de fazer a contra-história, sacando o país dos pântanos do fascismo e do colonialismo.

Já falámos do sexo, começando a romper o tabu das incontornáveis história da nossa líbido na guerra. Mais haverá muito ainda para contar e podemos contá-las todas, sem rodeios, como velhos que falam do passado das suas grandes tesões. Agora vens com essa dos copos. E os copos eram outra âncora e que âncora. E quanto a copos só te digo, vos digo, que foi pelos copos que cometi a minha maior cobardia na aversão à guerra, aquela guerra. Lembro-me bem e mantem-se como mancha maior de prova da minha inaptidão para ser guerreiro. E, por isso, é um ferro em brasa que me aquece a memória.

Lá para Julho de 69, o meu batalhão foi encaminhado de Bissau para o Pelundo, espalhando ainda companhias em Có e em Jolmete. Fizémos o trajecto na descoberta do mato. Quando albergámos em Có, na passagem e largando uma das companhias, periquitos e veteranos misturados, deu-me uma imensa depressão pela descoberta de que tinha entrado no miolo da guerra, agora é que elas iam morder, não havia ou podia haver retorno, os camaradas veteranos, hospitaleiros e alegres por serem rendidos, deram-nos festa de recepção com fados e copos. E eu, a pensar em Lisboa, a merda de Lisboa não me saindo da ideia, e pensava e repensava na mulher (estava casadinho de fresco), baldei-me da Guiné em pensamento e emborquei um copo de penalty cheio de whisky solo até às bordas, assim de seguida e de um único gole. Caí de borco e em coma, em processo de desidratação súbita, valendo-me que o camarada médico, meu amigo e compincha, estava menos bêbado que eu e rápido me acudiu.

Não sei como, no espaço de uma hora, pôs-me conforme o RDM e apresentável como Oficial e já pronto a disparar. Como disse, foi a minha maior cobardia na guerra, daí para a frente sempre soube dosear o uso das munições, nunca parando de disparar. Hoje, felizmente, continuo a apreciar disparos mas já só lá vou espaçado e sempre com um pouco de água lisa.

Abraços para todos os estimados tertulianos.
Para ti, Luís, o meu sempre repetido obrigado.
João Tunes

(i) Ex-Alf Mil Transmissõe > Pelundo (1969/70) e Catió (1970/71) (Recusa-se a identificar os dois batalhões por onde andou: vd. posts de 25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)
(ii) Blogador-mor, cavaleiro andante, solidário, transmontano e dinamarquês, benfiquista dos quatro costados...
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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P554: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973) (J.C. Mussa Biai)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > Vista aérea (1969 ou 1970) . Imagem (diapositivo digitalizado) do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)

Guiné > Bambadinca > 1969 > A escola do posto administrativo: que eu me lembre, era a única povoação, na região, que tinha uma professora branca... pelo menos no tempo em que por lá andou a CCAÇ 12 (1969/71). Noutros postos escolares, como o Xime, os professores eram militares... (LG)

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)



Caro Luís

Acabo de ler o relato do António Duarte sobre o trágico acontecimento que ocorreu em Xime (1).

Devo dizer que, apesar de ser criança à época, ainda me lembro porque afinal morreram sete pessoas nesse ataque, para além das mortes serem a menos de cinco metros da casa onde eu dormia.

Ainda por cima morreram lá duas pessoas (João Jorge e o irmão mais novo) com os quais eu e mais outras crianças à época estavamos a brincar. Só que a avó deles foi buscá-los para irem dormir e passados mais ou menos 30 minutos eu tabém fui dormir.

Antes de adormecer ouviu-se um estondo enorme de uma granada de canhão em cima da casa deles e eles começaram a gritar, passados talvez 2 ou 3 minutos caiu um segunda granada canhão e foi o silêncio total. Passados mais uns 2 ou 3 minutos caiu uma terceira granada a talvez 50 - 100 metros para a frente.

Depois disso não se ouviu mais nada e mais ninguém dormiu. Daquela família, dos que estavam em Xime, só se salvaram três pessoas. O chefe de família que tinha pernoitado no mar (na pesca) e a filha mais velha e a filha desta, porque estavam de zanga e tinham-se mudado para a casa duma outra família.

Esse acontecimento foi dos que mais mais me marcaram pela negativa. Nessa altura já tinha consciência que havia uma gerra, as razões desconhecia-as.Talvez seja próprio da infância, o certo é que pereceram amigos de brincadeira e vizinhos...

As datas não sei, mas os factos ocorridos são esses (2).

José Carlos Mussá Biai
________

Notas de L.G.

(1) Vd post de hoje > Guiné 63/74 - DLXVIII: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)

(2) Recorde-se que o nosso amigo e tertuliano José Carlos é natural do Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 1746 (1968/69), a CART 2520 (1969/71), CART 2715 (1970/72), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74)...

Lembra-se de ter tido, como professores, no Posto Escolar Militar nº 14, o furriel miliciano enfermeiro Carvalhido da Ponte, da CART 3494, e o furriel Osório, da CCAÇ 12 (que dava aulas juntamente com a esposa).

O José Carlos aprendeu a ler e a escrever português debaixo de fogo. Nascido em 1963, o José Carlos devia ter já 10 anos, aquando do ataque ao aquartelamento e tabanca do Xime, em 1 de Dezembro de 1973 (segundo relata o António Duarte), do qual resultaram sete vítimas mortais entre a população civil, incluindo dois amigos de infância e vizinhos do Mussá Biai...

Já aqui dissemos que um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. Por sua vez, o seu pai, um homem grande, mandinga, do Xime, era o chefe religioso da comunidade islâmica local (um almanu).

A vida não foi fácil para eles. A família teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Teve irmãos que fizeram o serviço militar em Farim e que depois foram presos (3).

O José Carlos foi para Bissau fazer o liceu. Foi cinco anos professor, até vir para Lisboa e obter uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Hoje é formado em engenharia florestal. É casado. A sua mulher é natural do Xitole, filha de um comerciante conhecido dos tugas, o Braima.
Trabalha e vive em Portugal, no Instituto de Geográfico Português. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime.

Também já o dissémos e voltamos a repetir: o José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a que ele continua a pertencer, apesar de ter optado pela nacionalidade portuguesa e de viver em Portugal.

(3) Vd post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

Guiné 63/74 - P553: Da água de Lisboa às bajudas de Bafatá (Luís Graça)

Guiné > Bambadinca > 1969 > No Zé Maria, comendo lagostins do Rio Geba... A dolce vita dos nharros de 1ª da CCAÇ 12: na ocasião, o Alf Mil Cav Rodrigues (já falecido) e os furriéis milicianos Tony Levezinho e Humberto Reis, nossos queridos tertulianos.

A chapa foi batida - salvo erro - por mim, membro assíduo desta tertúlia gastronómica. O pobre do Zé Maria, que era tuga, tinha fama de ser turra... e fazia-nos pagar caro os lagostins, "pescados em zona de grande risco" (a 50 pesos o quilo!)... O problema depois era subir a rama de acesso ao quartel... (LG)

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


1. "Mas ainda melhor que as mulheres, é o vinho que faz esquecer as mulheres" (Luís Pacheco)

... E da água de Lisboa, camaradas ? Que me dizeis ? Muitos hectolitros de cerveja (bazuca), vinho verde (!), vinho a martelo, água do Poço do Bispo, surrapa, uísque escocês, uísque de Sacavém , cuba livre, água suja do imperialismo com coca-cola, a gente bebeu, do Cacheu ao Rio Grande Buba, passando pelo Geba e o Corubal !!!

O mote foi deixado pelo Carlos Marques dos Santos, a toupeira de Mansambo... Mas também do Paulo Raposo, que há dias nos mandou esta enigmática mensagem:

"Eh, pessoal! O cabo cripto apanhou ontem outra cadela. Já não tenho mão nele. Está mesmo apanhado do clima. Diga se me ouve, escuto. Correcto afirmativo, mas negativo diga se me compreende, entendido. Alfa charli papa... Eu pergunto, como é que isto era entendido pelo IN? Para que era a cifra? Segue meio aéreo para levar água de Lisboa ao pessoal.

"Meus amigos um bom fim de semana para todos, cuidado que o IN anda nas estradas fardado de GNR".

Assinado: "Os Baixinhos do Dulombi".

Com o seu inegável sentido de humor alentejano, o Paulo mandou-me outro aviso (sério) à navegação costeira:

"Os ingleses dizem que quando um homem sai à rua e nota que os polícias são rapazes novos, quer dizer que já estamos velhos. Por aqui diz-se de outra maneira, quando te esqueces de fechar o fecho das calças, é o primeiro sintoma, o seguinte e último é quando te esqueces do que está lá dentro.

"É a vida, rapaz, o que vale é que tens os registos em ordem para consultares.

"Por aqui temos outra vez problema com o cabo cripto, ontem apanhou outra bebedeira que ninguém o consegue acordar, assim este rádio vai outra vez em claro, eu dá-me ideia que já nem o IN se importa.

"Um grande abraço para ti deste guerrilheiro decadente"...

Parafraseando desta vez um poeta maldito, o portuga Luís Pacheco, bem podíamos dizer que melhor que as bajudas, era a água de Lisboa que nos fazia esquecer as bajudas, todas as bajudas do mundo, as de Lisboa e as de Bafatá, Bolama, Barro, Bambadinca, Guileje, Bigene, Binta, Guidage, Xitole, Mansambo (não havia!!!), Candamã, Afiá, Satecuta, Xime, Fá, Missirá, Sare Gana, Geba, Banjara, Cantacunda, Contuboel, Olossato, Empada, Buba, Mampatá, Quebo, Cansissé, Canjadude, Cheche, Madina do Boé, e por aí fora...

Eu costumo lembrar aos filhos e aos meus amigos mais íntimos que fui para a Guiné com uma mala cheia de livros (à espera de umas férias tropicais!) e ao fim de seis meses estava a beber uma garrafa de uísque por dia... com água de Perrier.

Bom, já me confessei... Espero que o meu fígado me perdõe...

Na Guiné, em Mansambo ou em Madina, o que fazia mal ao fígado fazia bem à alma... Não sei o que teria sido a guerra sem a nossa cachaça... "for the Portugese Armed Forces from Scotland with love"...

2. Há dias esqueci-me de inserir esta mensagem do nosso periquito António (Duarte):

Caro Luís,

Fala num dos seus textos da Helena de Bafatá (1). Se bem me lembro era uma pequenina que era mais ou menos a chefe das outras meninas ???

Que saudades meu Deus !!! Nunca me mais tinha recordado dela.

Desconhecia o drama da morte do vago mestre nos braços da dita pequena. A Ponta Coli era crítica. O 1º morto do BART 3873, o furriel Manuel Bento, foi precisamente nesse local.

+ 1 abraço

A. Duarte

(ex-furriel miliciano da CART 3493 e da CCAÇ 12, Mansambo, Bambadinca e Xime, 1972/74)
________

Nota de L.G.

(1) Vd post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá

" (...) Amorosa Helena, pequena fula dengosa, ‘salva das garras do Islão’ (sic) por zelosos missionários católicos – mas não da faca da fanateca, que te extirpou, na festa do fanado, o clitóris – para se tornar o colchão de todas as camas, a Vénus negra de batalhões inteiros, a iniciadora sexual de mancebos que as sortes vieram arrancar às saias da mamã, a alegre e traquinas companheira de muitas farras de caserna, correndo nua e lasciva do regaço de tropas bêbedos que nem cachos, para o abrigo mais próximo quando às tantas da madrugada soava o canhão sem recuo!...

"... Bela Helena de Bafatá que sabias pôr na ordem os arruaceiros paraquedistas de Galomaro que te batiam à porta a pontapé quando eu estava contigo, deitado na tua liteira, e me dispensavas pequenas gentilezas – um ronco de missangas, vermelhas, ou uma talhada de papaia que trazias do mercado – sempre que eu ia a Bafatá e procurava a tua companhia, na melhor das hipóteses, uma vez por mês, no dia de folga dos guerreiros… Tu e as tuas amigas de Bafatá que tanto trabalho deram que fazer ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins, que nunca punha os pés fora da sua enfermaria e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá, o nosso querido Pastilhas que vivia 24 horas dentro do arame farpado, trabalhando incansavelmente, de bata branca, em prol de uma Guiné Melhor, que nos aturou mil e um travessuras, partidas de mau gosto, brincadeiras estúpidas, bebedeiras de caixão à cova e sobretudo nos curou de alguns valentes esquentamentos…

" … Destes e doutros males de amores, estás perdoada, Helena. Afinal, quem vai à guerra, dá e leva… Tu curavas-nos dos males da alma, o Pastilhas dos males do corpo… Entretanto, quando a guerra acabar, para mim e para os meus camaradas da CCAÇ 12, não terei tido tempo de te devolver a pulseira de missangas vermelhas nem de te dizer um 'Adeus, até sempre', um adeus sem regresso… Guardarei de ti a doce lembrança das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas, do cheiro exótico do teu corpo, das tuas sagradas funções de sacerdotiza do amor em tempo de guerra… Imagino que a tua vida não tenha sido fácil depois da independência, se é que lá chegaste com vida e saúde… Nunca mais tive notícias tuas, mas hoje, revendo a minha primeira viagem, por terra, no interior da Guiné, do Xime até Contuboel onde me esperavam os meus queridos 'nharros', ao longo do interminável dia de 2 de Junho de 1969, o teu nome, o teu rosto e as tuas gargalhadas vieram-me à lembrança…

"...Lembrei-te de ti em Ponta Coli, frente à vasta bolanha, agora seara inútil de capim alto, com o cadáver do furriel vagomestre nos braços; lembrei-te de ti e das minhas escapadelas a Bafatá… Também foste, à tua maneira, uma heroína daquela guerra, minha impossível amiga, separada pelos papéis que nos obrigaram a representar na tragicomédia da guerra colonial da Guiné… Daí figurares, contra a toda a ortodoxia (do teu povo fula, dos teus missionários católicos, dos 'tugas' que apenas queriam o teu corpo, dos revolucionários do PAIGC que não te terão perdoado o colaboracionismo com os colonialistas, para mais sendo tu conterrâneo do pai da Pátria, o Amílcar Cabral), daí figurares, dizia eu, na minha galeria de heróis e de heroínas… Com todo o direito, com o direito que ganharam as mulheres do teu país, ofendidas e humilhadas, violentadas pelo sistema, pela guerra, pela dominância dos machos, pelo imperativo da sobrevivência… Aceita esta pequena homenagem da minha parte, onde quer que estejas, na terra, no céu ou no inferno!" (...)

Guiné 63/74 - P552: Uma bebedeira colectiva (Mansambo, Novembro de 1968) (Carlos Marques Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cart 2339 > Novembro de 1968> As longas noites quentes de Mansambo...

© Carlos Marques dos Santos (2006):


"Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte..."

Extractos de Esquecer a Guiné... por uma noite
Luís Graça (1971-2005 )

Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel mil, CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):

Luís:

Volto a entrar no blogue mais uma vez enviando uma fotorreportagem de momentos vividos na CART2339 em Mansambo. Por motivos técnicos enviarei uma a uma.

Era Novembro de 1968 e a Companhia voltava a estar reunida, agora num novo aquartelamento, por nós executado de raiz no meio do nada.

O aquartelamento era um charco, as condições de vida eram péssimas e o moral baixo, quer pelo peso do trabalho físico executado, quer pelas sucessivas e difíceis operações em que a companhia esteve envolvida.

Além disso já dois comandantes tinham abandonado a companhia, por vários motivos.
O pessoal andava à deriva.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cart 2339 > Novembro de 1968> Uma longa noite, nos abrigos de Mansambo, com muita água de Lisboa ...

© Carlos Marques dos Santos (2006)


Dias antes, a 11 (dia de S. Martinho), no decorrer da Op Hálito (1), uma coluna ao Xitole tinha sido emboscada, com rebentamento de mina comandada e vários feridos.

A cambança do rio (Pulom) (2) tinha sido efectuada em 4 barcos de borracha e uma jangada, tornando extremamente difícil a sua concretização. Só com a acção de bombardeiros T6 foi conseguido o nosso retorno a Mansambo.

Tudo isto - é necessário imaginar o contexto - nos levou a libertar o extremo stresse. Só podia ser com uma garrafa de whisky (ou melhor, muitas).

Era assim a vida dos combatentes. Não teremos sido os únicos.

Um Abraço.
CMS
_________

Notas de L.G.

(1) Vd post de 22 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXI: Quando até os picadores tinham medo (Mansambo, 1968)

" (...) A Op Hálito (11 de Novembro de 1968) foi outra das operações dramáticas que aconteceram no Sector L1, no tempo do Carlos Marques dos Santos (...). Foi a última coluna logística de Bambadinca para o Xitole, entre Novembro de 1968 e Agosto de 1969. A partir daí a estrada, no troço Mansambo-Xitole, ficou interdita.
"As NT sofreram duas emboscadas, tendo que recorrer a apoio aéreo para poder prosseguir. Os picadores foram obrigados, sob a força das armas, a continuar a picar o itinerário: Cerca das 16.00h foi feita uma distribuição de munições e obrigaram-se coercivamente os picadores a continuarem a picagem...
"Destas duas emboscadas resultaram 1 morto, 1 desaparecido e 12 feridos, além de danos materiais em viaturas e armas" (...).

(2) Afluente do Rio Corubal: vd. mapa do Xime.

Guiné 63/74 - P551: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > O 1º Capitão da CCAÇ 12 (1969/71), o Capitão Brito (hoje, coronel na reforma).

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


Caro Luís Graça,

Acabei de ler a inserção do meu e-mail, bem como o comentário do Sousa de Castro, no blogue.

De facto estive na CCAÇ 12 desde Janeiro de 1973, primeiro em Bambadinca e a partir de Abril no Xime, após as rotações das companhias, geradas pela transferência para Cobumba da Cart 3493 (minha unidade inicial). Regressei à metrópole em Janeiro de 1974.

Numa breve resenha e procurando arrumar os dados por ordem cronológica, diria que a vida em Mansambo, de Janeiro até Dezembro de 1972, foi com baixa actividade de guerra, no entanto com situações graves e desgastantes.

Accionámos três minas, que custaram três feridos com amputação de membros inferiores. A primeira em Jonbocari (mina antipessoal), com um ferido (1º cabo Ribeiro do 3º Pelotão). Salvo erro em 9 de Maio.

No dia seguinte foi accionada uma mina anti carro por um burrinho, que custou a perna a um furriel do 2º pelotão (Ferreira) e mais 2 feridos com alguma gravidade. Este incidente aconteceu aquando do regresso ao quartel da segurança à operação de capinagem, na estrada de Mansambo a Candamã/Afiá (Candamã era à época uma tabanca em auto defesa, com um pelotão de milícias e uma secção da unidade de Mansambo).

Em Agosto mais uma mina antipessoal accionada em Sanguê Demba (não sei se estará bem escrito), em que ficou ferido um cabo (Silva 2º Pel).

Entretanto no mês de Agosto houve um ataque ao quartel sem incidentes.

Quanto ao ano de 1973 na CCAÇ 12 a acção foi mais animada. Instalados em Bambadinca, naquilo que se classificava de hotel, fazia-se operações sobretudo na zona do Xime. Assim em 3 de Fevereiro tive a primeira emboscada na Ponta Varela em que participaram três grupos de combate da CCAÇ 12 em conjunto com 2 pelotões da Cart 3494 (à época aquartelada no Xime). As NT não registaram feridos mas segundo se apurou em informações recolhidas no Enxalé, o PAIGC teria tido baixas.

A 25 do mesmo mês houve uma outra emboscada numa operação na zona de Ponta Varela/Poidom e Ponta do Inglês/Ponta João da Silva, também com forças semelhantes à anterior, em que registámos 7 feridos, felizmente ligeiros. Foi praticamente toda a minha secção (Bazuca do 3º grupo de combate), que foi tocada. Por infelicidade um RPG 7 rebentou ainda no ar (com era normal), apanhando o pessoal abrigado. Não participei nesta acção, pois estava em Bissau para vir gozar as minhas segundas férias na Metrópole.

Até final do do ano houve mais 3 emboscadas, tendo sido a mais grave na Ponta Coli (segurança à estrada Xime-Bambadinca) e n ataques ao quartel, felizmente com má pontaria, na maioria das vezes.

Salvo erro em 1 de Dezembro de 1973 a tabanca do Xime foi atingida e registaram-se-se várias mortes entre a população. Talvez o José Carlos (que já tem participado no blogue e que era criança à época e vivia no Xime) se lembre.

Agora falando aos velhinhos e fundadores da CCAÇ 12, quero dar-lhes nota que o espírito da Companhia era excelente. Registo a boa convivência dos graduados, de origem portuguesa, com todos os militares, que eram na sua maioria muçulmanos.

No meu pelotão (3º), tinha dois cabos que eram uns senhores na arte da guerra. Eram o Malan Turrè (?) e o Sajá (?). Os dois foram graduados furriéis e integraram a CCAÇ 21 do Ten Jamanca, já perto do final do ano de 73. Segundo me foi dito, não tive oportunidade de confirmar, as coisas teriam sido muito feias para eles, no período pós-independência.

Aproveito para perguntar à velhice da CCAÇ 12 se ainda se recordam de alguns dos soldados e cabos da 12. Aqui vão alguns nomes:

Recordo-me do Arfan Jau (Bazuca do 3º ), Braima Sané (HK 21 do 4º), Mamadu Candé, Iero Jau (3º), Malan Embaló, Mamadu Seidi, João Gerá, Bubacar Colubali, Amadu Baldé, Alfa Sané, Suleiman (Cabo do 4º com excesso de peso),etc.

O comandante da CCAÇ 12 no início de 1972 era o Cap Bordalo, homem de grande carisma, seriedade e bravura. Era um líder. Penso que será ou viverá na região de Lamego.

Para acabar por hoje, quero dar nota que eu serei vosso neto, pois rendi os que vos renderam. De acordo ?

Da próxima vez falarei de outros temas.

Um abraço fraterno para todos,
António Duarte


Sousa de Castro,

Fica descansado. Contactarei o Luciano de Jesus (estava no Enxalé).

Guiné 63/74 - P550: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (15): um dia negro para a 15ª Companhia de Comandos (Setembro de 1969)

Guiné > Aldeia Formosa > 1969 > Viatura destruída por mina anticarro. Resultado: dois mortos.
© José Teixeira (2006)


XV Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Buba, 1 de Setembro de 1969

Empada continua a ser a preferida do IN para brincar às guerrinhas. Ontem, pelas 4.30 h da madrugada, sofreu novo ataque. Foi chamada a aviação que não chegou a intervir.


Empada, 9 de Setembro de 1969

Desde ontem que estou por estas bandas, após dois meses em Buba sem novidade de maior.

O ataque do dia 31 não foi tão perigoso como constou em Buba. Atacaram de Morteiro 60, LGFog e bazooka sem causarem prejuízo. Não caiu nenhuma dentro do quartel.

Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência...

A Companhia de Comandos tinha vinda a fazer uma série de operações no Sector e dirigia-se para o Cais no Rio Grande, perto de S.João, para se retirar para Bissau.

Tem tido muito azar esta Companhia de Comandos. O Zé João sempre que sai com a Companhia fazem ronco, mas no regresso tem tido sempre problemas graves. Ainda há pouco tempo, quando estavam em Buba comigo, sairam para uma operação em Saredivane, fizeram um ronco de 15 mortos, apanharam 21 armas, apenas com dois feridos ligeiros, mas no regresso cairam num campo de minas e uma bailarina matou um Furriel e um soldado ficou sem uma perna...

Nesse dia o Zé João foi buscar o morto e ferido ao campo de minas tendo recebido o prémio Governador, que não chegou a gozar devido a este brutal acidente que o afastou da guerra definitivamente.

domingo, 19 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P549: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador

Guiné > Bissau > Praça do Império > Monumento ao “Ao Esforço da Raça” > O Mário Dias sentado do "local do crime", o local da improvisada serenata a Sua Excelência...
© Mário Dias (2006)

Continuação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66) (1)

A Serenata

Nos idos dos anos 50, Bissau, cidade pacata e ordeira, onde muito se trabalhava e muito nos divertíamos, era palco de cenas impensáveis de acontecerem noutro qualquer lugar. O progresso demorava a chegar. Não havia uma só rua alcatroada, uma só gota de alcatrão que fosse. A ponte-cais, que serviria para atracação dos barcos, estava ainda em construção. Os navios que quinzenalmente chegavam (nesse dia era dia de S. Vapor, como dizíamos) fundeavam ao largo, frente ao ilhéu do Rei e os passageiros e carga eram transportados para o Pijiguiti em pequenas embarcações a motor e até a remos. E o cais do Pijiguiti dessa época ainda não tinha ainda a actual cabeça que forma o “T”. Era um simples paredão. Electricidade? Luxo só possível das seis da tarde à meia-noite.

Apesar disso, sentíamo-nos lá como no paraíso. Diariamente nos juntávamos para os nossos passeios pela cidade e arredores, de bicicleta ou a pé, bebíamos umas cervejas nas esplanadas, especialmente na pastelaria Império, na praça do mesmo nome (o proprietário era o senhor Estácio, tio do nosso amigo António Estácio que já interveio no blogue) no Hotel Portugal, mais conhecido por hotel do Espada (nome do proprietário) ou ainda na esplanada existente ao fundo da avenida principal na placa central que então existia. A configuração desta avenida era bem diferente daquela que os nossos amigos desta tertúlia conheceram mais tarde. A seu tempo falarei sobre isso.

Um dos nossos pontos de encontro favoritos era na marginal, junto às ruínas de uma ponte de atracação de barcos da qual só existiam alguns pilares no meio do rio, já meio enterrados no lodo, e o encontro de onde a ponte partia. Disseram-me ter sido um navio alemão que se pôs em movimento desatracando sem que os cabos estivessem completamente soltos, que levou pedaços dessa ponte atrás de si arruinando-a. Foi antes de eu ter chegado à Guiné que assim se viu privada de uma infraestrutura indispensável. O local a que me estou a referir é onde hoje fica um pequeno largo em formato de meia-laranja existente na marginal de Bissau. Se consultarem o mapa disponível no blogue facilmente o encontrarão.

Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)
© A. Marques Lopes (2005)

Uma noite de sábado, depois do jantar, reunimo-nos nesse local como era nosso hábito, e, por não se trabalhar no dia seguinte, prolongámos um pouco mais a paródia. Anedotas, aventuras que cada um ia narrando, até que às tantas, alguns (entre os quais eu) puxaram das gaitas-de-beiços e vá de tocar com todas as nossas ganas. A noite estava convidativa, o calor não era muito e o luar ajudava. As pessoas que passavam iam parando para nos ouvir e aplaudir. Alguém sugeriu que podíamos ir pela avenida acima até à praça do Império. De acordo. Lá fomos nós sempre a tocar, a cantar e a rir. O mundo era nosso.

Chegados à praça do Império, já a meia-noite estava próxima, instalámo-nos naquele arremedo de degraus existentes no monumento “Ao Esforço da Raça” que ainda lá se encontra embora com outra designação e dedicatória.

Faço um pequeno parêntese para contar um dito jocoso que então corria sobre esse monumento, dito esse da autoria de um tio meu que uns anos antes da minha ida tinha sido escrivão no tribunal de Bissau. No monumento em causa encontra-se um busto de mulher, e que farto busto, empunhando nos braços erguidos uma coroa de louros. Qual o significado? Aquilo queria dizer que a Guiné deu e continuava a dar de mamar a muita gente. Voltemos à nossa história.

Encarrapitados no monumento, virados para o palácio do governador que ainda estava em construção, embora quase pronto, (Já agora: o palácio inicialmente não era assim pois tinha terraço em vez de telhado mas, não sei qual o motivo, um engenheiro acabou por alterar a planta) prosseguimos a serenata.

O governador (Raimundo Serrão)(2) residia numa grande vivenda existente ao lado direito não muito longe, portanto, do nosso improvisado palco. Toca, canta, canta e toca, viva a alegria, vimos que de nós se aproximava um polícia, um segurança, como eram mais conhecidos. Chegado disse mais ou menos isto:
- O senhor governador manda dizer para não fazerem tanto barulho porque já é tarde e quer dormir.- Perdemos o pio e pedimos desculpas. Mas, como ainda era cedo, meia-noite de sábado para malta nova é dia, por lá ficámos embora sossegados. Foi então que alguém se lembrou, era quase uma hora:
-Eh pá, o governador já deve estar a dormir; vamos lá tocar e cantar mais um pouco. -Dito e feito, embora com menos decibéis que anteriormente. Estávamos nisto quando vimos um vulto, de roupão, saindo do quintal da vivenda com toda a calma vir em nossa direcção. A serenata continuou até que reparamos no vulto que já estava próximo. Era o governador. Ficámos gelados, paralisados. Vai-nos mandar prender, pensava eu. Qual quê?
- Boa noite, rapazes! - cumprimentou. Levantámo-nos, aterrorizados e respeitosos e retorquimos:
- Boa noite, senhor governador.
- Como não me deixam dormir, venho para aqui, sempre ouço melhor. Vá lá continuem a tocar.

E tocámos com todo o esmero de que éramos capazes. Uma música, outra e mais outra todos ufanos pois de cada vez o governador aplaudia. Até que após a execução do quarto número, que, ainda me lembro, foi a valsa do imperador, ele nos disse:
- Bom, rapazes, gostei muito de vos ouvir, mas já é tarde. Vão-se deitar porque a cacimba faz mal.

E foi assim que fizemos uma serenata ao Governador da Guiné.
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite

(2) Raimundo António Rodrigues Serrão foi Governador da Guiné entre 1951 e 1953