Capa do livro de Jules Roy, "La bataille de Dien Bien Phu",
Paris, Le Livre de Poche, 1972, 538 pp. ( a 1ª edição é de 1963;
um dos livros que o Antoine Ben Oliel nunca leu
mas por onde perpassa a sua sombra. Um dos maiores
desastres militares da França colonial e dos seus bravos soldados
da Legião Estrangeira. Juley Roy é um "pied-noir", nascido na Argélia em 1907. Morreu em 2000. Foi militar e resistente
na II Guerra Mundial. Deixou o exérito, em 1953, em protesto
contra a guerra da Indochina.
A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos...
Parte II
(Luís Graça) *
(Continuação)
Num outro dia, num dos nossos verões passados, apanhei a Rosemarie particularmente bem disposta, a cantarolar um dos fados da Amália, a sua musa inspiradora. Não reconheci de imediato nem a letra nem a música.
− C'est le fado de Paris. − respondeu-me ela.
(...) O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até o Sena se queixa de pena
Que o Tejo não quis sair de Portugal.
O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até Saint-Germain-des-Prés
Já canta o fado em francês! (…)
Foi uma deixa para falarmos do bistrot do Antoine, que tinha nome português, “O Cantinho da Saudade”… lá na petite ville, a sudeste de Paris, onde ambos viveram… Foi o seu primeiro trabalho, quando chegou a França em 1967: foi empregada de mesa e de balcão no bistrot que se tornou um local de encontro dos imigrantes portugueses da região, mas também de magrebinos, em especial de antigos combatentes da guerra de Argélia, os harkis… E a partir do momento em que começou a haver “fado ao vivo”, passou a ser também frequentado por alguns franceses, como os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos, que já eram conhecidos do Antoine, do tempo da Argélia.
Enquanto tomávamos café numa esplanada junto à praia, eu puxei a conversa para o Antoine… Queria saber como a Rosemarie conhecera o homem que a levou para França, “a salto”, em 1967, e que iria mais tarde lançá-la na “vida artística”, como cantora de fado, e depois a dormir com ela… na cama.
É uma outra história, longa e algo rocambolesca, com muitos "claros e escuros", e alguns silêncios que eu tive de respeitar.
A Rosemarie já o conhecia de Chaves. “Vagamente”, garantiu-me ela. “Ainda antes de casar”…Já não podia precisar o ano, nem as circunstâncias, de resto “não era muito boa em datas”. Talvez nalgum baile ou nas festas da cidade. Alguém o terá apresentado à Rosemarie, na altura criada de servir, na cidade:
− Eu dava nas vistas… E ele tirou-me logo a 'fotografia'… Disse-mo dez anos mais tarde, quando me levou para França… Tinha vindo da tropa, usava o cabelo à escovinha, ainda falava um português avec accent… Não lhe achei muita piada, para mais numa terra de magalas que passavam a vida a mandar piropos parvos às raparigas, quando vinham à cidade…
A Rosemarie reparou, isso sim, na extensa cicatriz, com quatro ou cinco centímetros, que o Antoine ostentava no rosto, no maxilar direito, no enfiamento da orelha. Parecia exibi-la com orgulho, apesar do disfarce das patilhas. Vim a saber mais tarde que era a sua “medalha de guerra”, ganha com sangue na Indochina, em março de 1954, logo no início da batalha de Dien Bien Phu.
O Antoine era de nacionalidade francesa, mas de origem portuguesa, por parte do pai. Este era flaviense e tinha integrado o corpo expedicionário português, o CEP, na I Grande Guerra, como 1º cabo ou sargento, a Rosemarie não sabia precisar o posto.
E por lá ficou, em França, o pai do Antoine, tendo-se tornado francês por casamento. Vivia na região da Île de France. Segundo percebi, foi um dos prisioneiros portugueses da batalha de La Lyz, em abril de 1918. No cativeiro contraiu a tuberculose e escapou, com sorte, à pneumónica de 1918/19.
Nunca mais regressou à Pátria, e fez um primeiro casamento, logo que foi libertado. Ficou com uma pequena pensão de guerra, mas cedo enviuvou, não tendo filhos. Até ao final dos anos 20 só se sabe que trabalhou como capataz ou encarregado numa grande quinta que fornecia produtos agrícolas e animais para os mercados abastecedores de Paris.
Foi lá que conheceu a segunda mulher, também francesa, mas de origem judia sefardita, com antepassados em Marrocos. Terão sido, muito provavelmente a avaliar pelo apelido, Ben Oliel, judeus expulsos de Portugal no tempo de Dom Manuel I.
A Rosemarie não sabia grandes pormenores sobre a “árvore genealógica” do Antoine, do lado da mãe, embora usasse o seu nom, o apelido de família. O seu companheiro era uma pessoa muito reservada, muito raramente falando do seu passado, e em especial do tempo da tropa e da guerra.
A Rosemarie não chegou a conhecer a família do Antoine, nem sequer a sua segunda mulher, que morrera onze antes de ela chegar a França. O pai morrera ainda mais cedo, em 1939, na véspera da II Guerra Mundial, não tendo por isso sofrido a vergonha, la honte, da derrota militar da França, cujo território ele estava convencido que era “intransponível” devido à mítica “linha Maginot”… Nem conheceu, felizmente para ele, a amargura da ocupação da sua querida França pelo exército nazi. Tinha quarenta e poucos anos, e deixou 4 filhos órfãos, dos quais três rapazes e uma rapariga.
Em junho de 1940, a família, em pânico, como milhões de outros franceses, fugiu para o sul, refugiando-se em Bordéus, onde sobreviveu, algumas semanas, com as suas escassas economias e parcos haveres.
Com a ajuda do cônsul português de Bordéus (de que a Rosemarie, imperdoavelmente, não sabia o nome, Aristides Sousa Mendes, acrescentei-lhe eu), a família Ben Oliel conseguiu obter um visto que lhe permitiu chegar a Vilar Formoso, sã e salva. O Antoine não tinha ainda 10 anos nessa época mas, ao que parece, terá ficado com recordações bem vivas dessa dramática viagem de comboio, de noite, e do alívio da chegada a Portugal, país de que ele irá gostar muito, até ao fim da vida.
− Il aimait trop le Portugal! − jurava a Rosemarie.
A família é, entretanto, separada, a mãe fica com os filhos mais novos. O Antoine e outro irmão mais velho vão para um seminário ou orfanato.
−Tempos difíceis! – comentei eu.
−Viveram da caridade. Tanto quanto sei, e pelo que o Antoine me contava, e que era muito pouco, a mãe, viúva, sem qualquer contacto com a família do marido, que era de Chaves, estava num lar de freiras, no Porto ou arredores, com o apoio discreto de uma organização judaica.
Com 15 anos, o Antoine, já rapagão, voltou a França, depois da Líberation, para ver em que pé estava o assunto da casa da família… A quinta ( e a casa onde viviam, com mais trabalhadores, franceses e estrangeiros) fora requisitada pelas autoridades militares alemãs, e havia notícias de que tinha sido alvo de ações de sabotagem por parte da Resistência francesa ou bombardeada pelos Aliados.
Entretanto, o Antoine encantara-se por Chaves onde descobriu, com a ajuda dos padres, alguns parentes da família do pai, incluindo um tio, que era guarda fiscal, e alguns primos, que o ajudaram a ele bem como à mãe e aos irmãos. Ia lá passar férias enquanto esteve no seminário.
Mas em 1944 terá sido expulso pelos padres por razões que a Rosemarie nunca soube. Desconfiava, isso sim, que terida sido pelo seu comportamento truculento e até violento, enfim, pela sua maneira de ser e de falar, que “não ficava bem num futuro representante de Deus na terra”.
Fixou-se em Chaves, "deu em malandro" (sic). Já perto do final da guerra, meteu-se numa "troupe" que fazia contrabando fronteiriço, com um dos primos, filho do tio da Guarda Fiscal. Pequeno contrabando, como café e cigarros...
Mas, logo em finais de 1946, o Antoine voltou a Chaves e às atividades lucrativas do contrabando. Aprendeu a conhecer aquelas serras e o caminhos dos contrabandistas. Passados uns meses, teve que fugir para França quando um dos elementos do bando foi atingido, na Galiza, pela Guardia Civil. O tio aconselhou-o a ficar por lá uns tempos.
A família Ben Oliel conseguiu reaver a casa que tinha, a sudeste de Paris. Os miúdos voltaram. E por lá cresceram e casaram. A Rosamarie só conhecia os mais novos. O mais velho já tinha, entretanto, emigrado para Buenos Aires e por lá ficou, sem nunca ter regressado a França ou a Portugal. Nem sequer ter dado notícias.
Em França, a vida da família melhorou um pouco com o apoio da Sécurité Sociale, enquanto o país ia recuperando do pesadelo da guerra, da ocupação e da resistência.
Os “30 gloriosos”, o “milagre económico francês”, fizeram também esquecer os conflitos militares nos territoires d’ outre-mer em que a IV República estave mergulhada, a começar pela sangrenta guerra da Indochina e depois a da Argélia.
Sem paradeiro certo, vivendo de biscatagem, o Antoine não resistiu a uma campanha de recrutamento da Legião Estrangeira, fazendo por volta de 1950 um contrato de seis anos. Era menos uma boca a alimentar lá em casa. Por outro lado, tinha frequentes conflitos com a mãe e os irmãos mais novos.
A Rosemarie sabia pouco deste período obscuro da vida do Antoine e não conseguia sequer localizar no mapa a Indochine … e muito menos pronunciar Dien Bien Phu. Desculpava-se que a geografia também não era o seu forte. E quando chegou a França em 1967, no tempo do De Gaulle, já não se falava dessas guerras,
Por outro lado, dizia-me que ele tinha sido paraquedista, o que não correspondia à verdade. Os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos é que me deram informação adicional, mais detalhada e precisa, sobre o passado militar do nosso homem.
Nesse aspeto eles conheciam o Antoine, légionnaire, muito melhor do que a Rosemarie. E confirmaram-me que o Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia não aos paraquedistas mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. De resto, o Antoine não gostava de voar, tinham vertigens, pelo que nunca teria passado sequer nos testes para paraquedista.
Em finais de 1953 estava na Indochina, para logo, passados três meses, em 13 ou 14 de março de 1954 ser ferido gravemente por um estilhaço de obus que lhe desfigurou o rosto. Teve ainda a sorte de poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.
Menos de dois meses, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressariam do doloroso cativeiro.
−Escapou da morte quase certa, em Dien Bien Phu ou no cativeiro – comentaram os nossos anfitriões, em tom lacónico.
Um ano e tal depois da convalescença ainda passou pela Algérie. Conseguiu prorrogar o seu contrato por mais uns tempos e ficou por Argel. Aí, sim, terá estado numa base aérea, numa unidade de apoio logístico aos paraquedistas, antes de completar os seis anos de contrato com a Legião Estrangeira.
A doença, e a subsequente morte da mãe, obrigou-o a apressar o regresso a casa, em 1956. E foi, talvez um ano depois, em 1957, tinha a Rosemarie vinte anos, que ele a conheceu em Chaves.
Os nossos amigos também eram repatriés ou retornados (pieds-noirs, era a expressão injuriosa que se usava em França para designar a população europeia, ou de origem europeia, que fora obrigada a deixar a Argélia, depois da independência). Professores num colégio privado, eram de origem judia, como muitas das profissões liberais a viver e a trabalhar naquela antiga colónia francesa do Magrebe, a “joia da coroa” do império colonial francês: médicos, farmacêuticos, advogados, notários, professores, agricultires, empresários, etc. A maior parte, de resto, eram já nascidos na Argélia, há várias gerações.
Os nossos amigos foram viver para a região da Ilha de França, logo em 1962, tendo vindo na leva dos cerca de 800 mil repatriés… Por volta de 1966 começaram a frequentar o bistrot do Antoine, de quem eram vizinhos, mas ele nunca ou raramente abria o jogo sobre os seus tempos de legionário. Gostava, isso sim, de falar da Argélia e de Portugal… mas nunca da Indochina. Eram as duas coisas que os aproximavam. De resto, não falavam de política. Nenhum deles gostava de De Gaulle, mas por razões diferentes, que eu também não quis esmiuçar.
O bistrot do Antoine, na petite ville de A…, no Val-de-Marne, era muito popular nesse tempo, sendo o centro da vida social dos imigrantes portugueses que chegavam a França mas também de alguns magrebinos nascidos em França ou com muitos anos de França, incluindo ex-combatentes da guerra da Argélia…
Antigos camaradas de armas do Antoine, que viviam na banlieue de Paris, também apareciam de vez em quando para saluer les copains, beber um copo em memória dos “bons velhos tempos” e fazer uma jogatana de cartas, refugiando-se numa das “salas reservadas” do estabelecimento.
A Rosemarie tinha uma presença discreta mas assídua no bistrot do Antoine, substituindo-o, nas funções de gerência, sempre que ele se ausentava por mais de um dia. Em boa verdade, não gostava dos amigos do Antoine, do tempo da tropa e da guerra. Sempre os achou "más companhias" do seu patrão. E, quando ele não estava, "apalpalvam-lhe o rabo, os salauds, os sacanas".
A pouco e pouco o Antoine começou a ser conhecido como o “padrinho” dos portugueses da região e ninguém sabia ao certo desde quando e como é que ele começara a sua atividade de “passador”. Levava, no mínimo, dez contos por cabeça, para atravessar a fronteira. Por vezes a crédito, mas sempre com juros. Começou a trazer muita gente do Norte, "do rio Minho ao Mondego"...
Respeitavam-no, para não dizer que o temiam. Aos caloteiros não estava com meias medidas: das ameaças passava aos atos e, não raramente, “andava à porrada”. Muitos foram viver para o bidonville de Champigny, e ele procurava ajudá-los a arranjar emprego e a “tratar dos papéis”. Havia redes de recrutadores de mão de obra ilegal, para o bâtiment, os chantiers, a construção e obras públicas. Enfim, tudo isto custava dinheiro, pelo que alguns desgraçados passavam um ano a trabalhar para pagar as dívidas do “salto”…
De estatura média mas com um “tronco de touro bravo”, era exímio no jogo de pés e cabeça. A cabeçada dele chegou a mandar alguns para o hospital. Não usava armas, a não ser em “casos extremos”.
Foi sempre bem sucedido nas suas “viagens de passador”, sem percalços de maior. Conseguiu arranjar passaporte português, já que tinha dupla nacionalidade, obtida em finais de 50. Ao que se suspeita, mais do que se sabe, tinha alguns bons contactos, na PIDE, na Guarda Fiscal, na GNR, na Guardia Civil e na Gendarmerie, o que facilitava as suas deslocações e a passagem da “carga” nas duas fronteiras.
(Continua)
© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)
(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.
Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)