Mostrar mensagens com a etiqueta Buruntoni. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Buruntoni. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4234: (Ex)citações (24): A grandezas humana de um comando africano (Virgínio Briote / Luís Graça)

1. Escreveu o VB, nosso co-editor, a propósito do making of do livro do de memórias do Alf Graduado Comando Amadu Djaló (foto à esquerda, em Lisboa, junto ao memorial dos mortos da Guerra do Ultramar)(*);

(...) "E depois, Burontoni e o Malan, um miúdo de 7 ou 8 anos que vivia com os pais, junto a um acampamento da guerrilha.

"Ninguém queria ficar com o Malan. O Saraiva não queria mascotes, o capitão L., da Companhia local [, Xime], respondeu negativo. Amadu trouxe a criança para Brá. Depois, com 4 metros de tecido que um camarada tinha apanhado num acampamento, foi a um alfaiate fazer 4 calções e 3 camisas. Uns sapatos e uns chinelos completaram o guarda-roupa do Malan, que teve de mudar o apelido para Djaló.

"Malan Djaló passou a viver na grande família Djaló. Nunca ninguém soube a história do rapaz até 1973. Malan cresceu, andou na escola, aprendeu bem o português.

"Quando chegou a independência voltou a ver os pais, mas à noite regressou à família Djaló. Passou a dar aulas de português em quartéis do PAIGC, até conhecer uma jovem por quem se apaixonou. Casou e nasceu-lhe uma menina. A sorte da vida não estava com o Malan. Uma doença rápida, em dias, matou-o numa cama do hospital de Bafatá. Um ano depois, a menina morreu também, vitima da mesma doença, presume o Amadu" (...).


2. Comentário de L.G.:

Histórias dentro da história, VB! E que histórias! E esta é particularmente comovente!... Nos anos de brasa (c. 1965), quem é que se preocuparia com um miúdo, aterrado, as mãos atrás da nunca, que é encontrado no mato, turra, futuro turra... ? Miúdo é como velho e mulher, só atrasa o regresso da tropa e põe em causa o sucesso da operação e a segurança dos camaradas... Nesse tempo, no subsector do Xime, o velho guia e picador das NT, Seco Camará, era encarregue das tarefas mais vis da guerra suja, que repugnava ao tuga, cristão... Seco Camará, mandinga, leal às NT, e também bom muçulmano, viu-o morrer à roquetada em 26 de Novembro de 1970 (**)...

Esta história do puto Malan, recolhido por um comando africano, revela o homem grande e o grande homem que é, deve ser, o Amadu Djaló (de que tens sido o confidente nestes últimos meses). E, além disso, é bom crente em Alá, bom muçulmano, que vai todas as sextas-feiras rezar à mesquita de Lisboa, na Praça de Espanha...

VB, essas memórias do Amadu Djaló estão-se a revelar uma autêntica Caixa de Pandora. E tu estás a fazer um trabalho fantástico, dando voz a um homem sem voz, exilado na pátria que escolheu: só por essa razão é que eu perdoo a tua deserção (temporária) do nosso blogue...

Conheci o Buruntoni, como outros camaradas nossos que estiveram na CCAÇ 12 (Humberto Reis), no Pel Caç Nat 52 (Beja Santos), no Pel Caç Nat 63 (Jorge Cabral)... Ou nas unidades de quadrícula do Xime: na região de Baio/Buruntoni, a sudeste do Xime, e fazendo ligação com o Poi´ndon/ Ponta do Inglês, na margem direita do Rio Corubal, havia pelo menos um 1 grupo com meia dúzia de roqueteiros que emboscavam as nossas embarcações, em Ponta Varela... Fomos lá várias vezes com o Seco Camará, demos e levámos muita porrada...

A população era beafada e balanta. O Malan Nanque era o nome do puto antes de ser perfilhado pelo Amadu Djaló...

Peço-te, VB, que faças um poste com esta história, reveladora da grandeza de alma dos homens, mesmo quando andam na guerra... ou são obrigados, muitas vezes a escolher um dos lados da guerra. Uma história também reveladora de que tudo na vida e na história não pode ser visto a preto e branco, como tendemos a fazer por razões de comodidade mental... É sempre empobrecedor ver a guerra da Guiné e os seus protagonistas, a preto e a branco... (LG)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Legenda do fotógrafo: "O milícia e guia das NT, Seco Camará: 56 minas detectadas e muitas guerras" (TM)...

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

___________

Notas de L.G.:

(*) 21 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4229: Os nossos camaradas guineenses (7): Amadu Djaló, as memórias do Comando Africano continuam (Virgínio Briote)

(**) Vd. poste de 26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1317: Xime: uma descida aos infernos (1): erros de comando pagam-se caros (Luís Graça)

sexta-feira, 14 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > O Fur Mil Op Esp Humberto Reis, da CCAÇ 12, junto aos brazões das unidades que passaram por Bambadinca, e ao pau ao da bandeira. Ao fundo, vê-se a escola onde leccionava e vivia a misteriosa professora do ensino primário, caboverdiana, Dona Violete, aqui evocada, mais uma vez, por Beja Santos, que fez dela uma informante privilegiada sobre a história e a cultura da região. O Humberto Reis, pro sua vez, é o principal contribuinte (líquido), em termos de créditos fotográficos, do livro do Beja Santos, Diário da Guiné: 1968/69: Na Terra dos Soncó (Lisboa: Temas & Debates, 2008), cujo lançamento no dia 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa, foi um acontecimento literário e social... Os parabéns ao autor, Beja Santos, nosso querido amigo e camarada, à editora Temas & Debates / Círculo de Leitires e ao nosso querido co-editor Virgínio Briote que aproveitou para fazer uma reunião da nossa tertúlia... Quem perdeu este memorável evento fui eu, que estive no Simpósio Internacional de Guiledje, em Bissau... Aproveito para agradever publicamente, à Dra. Isabel Mafra, da editora Temas & Debates, a oferta de um exemplar do livro e as palavras amáveis que me dirigiu, a mim e ao nosso blogue... (LG)

Guiné > Zona Leste > Estrada Bambadinca-Bafatá > 1969 > Coluna da CCAÇ 12, a caminho de Bafatá, vendo-se ao fundo uma AM (autometralhadora) Daimler, do Pel AM Daimler 2046, instalado em Bambadinca, e que era comandado nesse tempo pelo Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano de Montemor-o-Novo. A estrada Bambadinca-Bafatá era uma das poucas, na Guiné, que estava alcatroada. Para nós, era uma verdadeira autoestrada, originando acidentes (e alguns graves) por excesso de velocidade. Entre Junho de 1969 e Março de 1971, não me recordo de qualquer actividade da guerrilha neste troço: mina, emboscada, flagelação à distância... Ainda no nosso tempo, deu-se início à construção da nova estrada (alcatroada) Xime-Bambadinca. Este troço entre o Xime e Bafatá era de grande importância estratégica para os transportes terrestres na Zona Leste (Bafatá e Gabu). As Daimlers limitavam-se a fazer segurança à pista de aviação e, às vezes, às colunas logísticas para Mansambo e Xitole... Não sei se alguma vez chegaram ao Saltinho... A viagem a Bafatá era um passeio dominical... (LG).

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 2 de Janeiro de 2008:

Luís, enquanto aguardo as tuas notícias, aqui vai o episódio n.º 23. Seguem igualmente propostas de ilustrações. Lembrei-me, caso concordes, podíamos mostrar a imagem da escola, já em derrocada. Tens aí também fotografias do Vacas de Carvalho, do Xime e de Amedalai. Recebe um abraço do Mário.

Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXIII: OPERAÇÃO TOPÁZIO VALIOSO
por Beja Santos


(i) O regresso a Bambadinca, vindo de Bissau

No Dakota, mal saímos de Bissalanca, comecei a escrever febrilmente no caderninho viajante: recordações maravilhosas de um jantar em Mansoa, pela primeira vez atravessei o rio na jangada em João Landim, os casais Payne e Rosa acertaram pormenores quanto à vinda da Cristina; anoto que é urgente ter resposta se Bafatá me concede, a título excepcional, o gozo de uma licença para casar em Fevereiro, a Cristina anunciou que tem todos os papéis, está a prepara a cerimónia; procurar conversar com a Sr.ª D. Violete e escrever a Teixeira da Mota sobre a questão intrigante de Abdul Indjai, do Oio, premiado com o regulado do Cuor por Teixeira Pinto, e mais tarde banido para Cabo Verde, é importante esclarecer este triunfo e queda de um ídolo da Guiné do princípio do séc. XX.

O avião chega a Bafatá, o mercado ao ar livre está em todo o seu esplendor, compro um lenço para a Cristina, uma bolsa para a Celeste, caju para os meus sobrinhos, cola para enviar ao Paulo e ao Fodé. Enquanto não chega o jeep que me levará de regresso a casa, vou aos estabelecimentos Eduardo Teixeira onde descubro dois livros numa estante poeirenta de quinquilharias, entre policiais, que se revelarão muito boas leituras: Lenine, do filósofo Roger Garaudy, e O Socialismo no Futuro da Península, de Vitorino Magalhães Godinho. Aproveito ainda para escrever à minha Mãe, participando-lhe a iminência do meu casamento e pedindo-lhe para depositar dinheiro na minha conta.


Chego a Bambadinca, recordo que estava um céu límpido, um dia quente, na escola as crianças rodopiavam e gralhavam no recreio. Dirijo-me ao quarto e nisto oiço uma gargalhada estentórica e depois o bom acento alentejano. Acabo de conhecer o José Luís Vacas de Carvalho, o comandante do pelotão Daimler 2206, que vem substituir o Machado, o tal antigo estribeiro-mor de D. Violete.



O Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/72). Era (é), além de um companheirão, um exímio cantor de fado e tocador de viola... (LG)

Foto: © (2006). Direitos reservados

Se as nossas armas eram anacrónicas, nunca consegui perceber a utilidade daqueles veículos na guerra de guerrilhas. As Daimler pareciam apropriadas para as batalhas no deserto, no tempo do Afrika Korps, aqui, pensava eu, o seu desempenho era irrelevante. Todas as colunas ao Xitole levavam uma Daimler à frente, com a sua metralhadora Dreyse, lá dentro seguia um condutor e um apontador. O Vacas de Carvalho levava uma vida santa, sempre que aterrava um avião na pista de Bambadinca havia uma Daimler a montar segurança, ele comandava uma dúzia de praças e um furriel, vivia ocupado como instrutor de tiro das milícias, ouvimo-lo regularmente quando estávamos destacados na ponte de Udunduma, ele também era encarregado da escola e procurava fazer milagres com os soldados analfabetos, como todos nós cumpria tarefas como oficial de justiça e colaborava no reordenamento dos Nhabijões.

Irá revelar-se como um dos animadores das mesas de lerpa, aqui há uns tempos encontramo-nos no British Bar, em pleno Cais do Sodré, rememorámos façanhas e comédias e com a mesma voz possante do passado ele começou a sua narrativa neste modo:
- Beja, a primeira imagem que me vem à cabeça és tu a correr atrás de mim a atirares-me Lauroderme, aquele pó de talco que sempre usavas antes e depois das operações...

Enquanto conversávamos, foi como me viesse à memória esse dia, em finais de Janeiro, tinha a porta do meu quarto o furriel Vitorino Ocante, que se queria apresentar, bem como o Príncipe Samba, Albino Amadu Baldé, oriundo do Corubal, comandante de milícias de Missirá, uma das vitimas da mina anticarro de Canturé, em 16 de Outubro passado, tinha ainda os pés engessados, apoiava-se em muletas, vinha também cumprimentar e informar que seguia para Bissau para nova cirurgia. Após esta troca de cumprimentos, veio Bala, o ordenança do comandante, informar que o major de operações tinha urgência em falar comigo. Aproveitei para pedir ao Bala para falar com a Sr.ª D. Violete, pedia-lhe para me receber a seguir ao jantar.

(ii) Uma conversa com o major Herberto Sampaio


Mal entrei no gabinete, o major de operações [ do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70,] indicou-me uma cadeira em frente ao mapa e ter-me-á dito algo como isto:
- Espero que venha recuperado, parte amanhã para o Xime, vai participar numa batida à volta do rio Buruntoni. Chama-se operação Topázio Valioso. Não sei o que é que vocês vão encontrar, no reconhecimento aéreo não se vêem trilhos, não há sinal de vivalma. No entanto, eles estão activos. No dia 13, houve uma operação entre o Xime e a Ponta do Inglês, emboscaram com violência. A mata ali é muito fechada, não se consegue ver nada. Aqui há dias, a CCAÇ 12 e a companhia do Xime foram à Ponta do Inglês, de repente surgiu um trilho, foi-se por aí e apanharam população civil que andava a lavrar na bolanha do Poidom. Vamos agora saber se eles partem do Buruntoni, se têm alguma base entre o Baio e o Buruntoni. A companhia de Mansambo e o pelotão 63 saíram de Mansambo em direcção a Gundaguê Futa-Fala, se houver condições vocês regressam todos juntos até ao Xime, se não for possível fazer o reencontro, vêm separadamente. Aproveito para o informar que o mês foi anormalmente calmo, Missirá, Finete, Mansambo e Taibatá foram flageladas sem consequências, o prisioneiro que você levou para Bissau já regressou e deu muitos problemas, têm aparecido minas na estrada Xime-Bambadinca, foram detectadas a tempo. Hoje descansa, amanhã de manhã vai a Samba Juli e depois aos Nhabijões, é tudo uma coisa ligeira, a meio da tarde partem para o Xime. Recordo que chegou o tempo das insolações, cada um de vocês deve levar dois cantis, não esqueçam o mosquiteiro.



(iii) Um serão com D. Violete: recordações de uma professora no Cuor



À saída do gabinete, tenho o Mazaqueu à espera, o meu jovem amigo quer esferográficas, cadernos e algum dinheiro para doces e uma laranjada. Num aerograma para a Cristina, datado de 29 de Janeiro, refiro a minha preocupação com as cartas recentemente recebidas do Carlos Sampaio. A vida operacional em Cabo Delgado está a arrasar-lhe os nervos, a despeito da captura de armamento e de uma excelente relação com os seus militares. As suas cartas só falam dessa atmosfera a ferro e fogo, aqui e acolá há referências ao nosso futuro no projecto editorial para o qual ele me convidou, mas a sua prosa é crispada, há indícios seguros de desalento. Termino o aerograma lembrado-lhe que a minha ida a Lisboa é ainda uma completa incógnita, pelo que apoio a ideia de haver o casamento civil a 7 de Fevereiro, o resto fica tudo em aberto e renovo o meu pedido para visitar o major Cunha Ribeiro e o Casanova, ambos no Hospital Militar Principal. É nisto que Bala me vem informar que a Sr.ª D. Violete confirma que está disponível nesse serão.~

A professora recebe-me com a sua afabilidade habitual, mudou a oxigenação no cabelo, está maquilhada a rigor e conduz-me para a mesa da sala de jantar, sai e regressa com um bule fumegante. Enquanto serve o chá, recorda-me que lhe prometi levá-la a Bafatá em breve. Não esconde o sorriso quando eu abro o meu caderninho e atalhou prontamente:
- Sr. alferes, estou preparada para o seu interrogatório.

Comecei por lhe falar de Sambel Nhanta, vem nos livros como residência do régulo do Cuor, o nome não consta nos mapas, só Sansão e Missirá. Abro um desses livros, mostro-lhe, ela vê e responde:
-É Caranquecunda, uma terra de fulas, a tabanca dos sapateiros, são os artistas que fazem sapatos e os amuletos para trazer as mezinhas, os guardas de corpo. Era importante pelo seu comércio, tinha lojas, as tropas de Bissau chegaram a pernoitar aqui. Mas não era uma povoação importante no Cuor. Verdadeiramente importantes, há cinquenta anos atrás e mesmo quando a guerra começou, eram Cancumba, Canturé e Mato de Cão, tudo por causa das destilarias e do amendoim.

Perguntei-lhe se já tinha ouvido falar de Abdul Indjai, o tal herói deportado. Sim, confirmou, Abdul era sobrinho de Infali Soncó, quando este se rebelou contra as autoridades portuguesas, ele ajudou a esmagar a rebelião e fora nomeado régulo. Mais tarde Infali voltou, mas acabou por ir morrer na região de Quínara, sucedendo-lhe Bacari, que ela ainda conhecera. Perguntei-lhe depois se tinha sido professora no Cuor.
-Estive três anos em Gã Gémeos, senhor alferes, entre 1959 e 1962. No fim desse ano, a luta começou e logo muito intensa, desapareceu a grande tabanca de Canturé, Chicri, Mato de Cão, Malandim, Cancumba, Maná, Aldeia do Cuor, Sancorlã, Paté Gidé, foi um mundo que se desmoronou, fiquei com a escola vazia, as populações fugiram para o mato, para Bambadinca, Galomaro, para as tabancas de Joladu. Gã Gémeos permitia-me ir de barco de manhã cedo e regressar a Bambadinca a meio da tarde. Estava perto de Canturé, onde residia grande parte da população do Cuor, aqui a agricultura era muito rica, o islamismo já tinha grande peso mas as famílias mandingas queriam que as crianças soubessem português. Este tremor de terra acabou nos inícios de 1963, só os Soncó ficaram em Missirá, todas as famílias juraram morrer com o seu régulo. Finete desapareceu nessa altura, creio que foi por volta de 1965 que voltaram quando as tropas da milícia vieram para os proteger. Era eu professora em Fá Mandinga, em 1957, quando dei pela presença de Amílcar Cabral a trabalhar entre Gambana e Canturé, se o senhor alferes lá voltar, irá encontrar blocos de cimento a assinalar os quilómetros em direcção a Geba. Aqui me tem em Bambadinca, a ensinar meninos que vêm fugidos de vários regulados, habituaram-se a viver aqui, estão à espera que a guerra acabe para voltar para as suas terras. Tenho saudades de Gã Gémeos, de subir o rio, ir até ao Gambiel, ali a floresta é muito bela.

Confirmei essa beleza, tinha estado várias vezes no Gambiel, um dos locais mais formosos e paradisíacos que conheci. Despedi-me, voltando a pedir licença para voltar em breve.
-Que tema quer tratar a seguir, senhor alferes?.

Beijando-lhe a mão, agradecendo o saboroso chá preto, lancei-lhe o desafio:
-Se concordar, vamos falar do islamismo, como tem sido possível não haver nesta guerra de guerrilhas uma guerra religiosa.

Ficou entusiasmada com a sugestão.


(iv) Queta Baldé fala-me do Xime

É escusado pôr a memória de Queta à prova: sabe muitíssimo mais do que esqueceu, antes de chegarmos ao regulado do Xime, que ele conhece como as suas mãos, pedi-lhe informações sobre as povoações que visitávamos a partir do eixo Bambadinca-Bafatá, descreveu-me Bantajâ Mandinga, Bantajâ Assá e Bantajâ Cuta como se lá tivéssemos ido ontem, recordou-me o caminho para Quecuta, as diferentes tabancas do regulado de Badora, como Sinchâ Dembel e Bricama. Fui deslizando a conversa para o Xime, a vivacidade de Queta aumentou. As suas recordações passavam por uma placa que o PAIGC afixara em Gundaguê Beafada, em 1964, dizendo “aqui começa a Guiné Cabo Verde”, e qual tinha sido na reacção das tropas vindas de Bafatá.

Queta é de Amedalai, vira nascer o quartel de Bambadinca, fizera parte das milícias que defenderam a Ponta do Inglês, vira formarem-se pelotões de milícia que defendiam Amedalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, conhecia a palmo a região da Ponta do Inglês até ao fundo do Corubal. E vira também desaparecer quartéis, vira desmantelar-se regulados, considerava uma desgraça total o abandono da Ponta do Inglês que viera permitir a total liberdade do PAIGC no Poidom e em Ponta Varela, a sua enorme capacidade ofensiva na estrada entre o Xime e Bambadinca, sobretudo entre Taliuará e Ponta Coli, aqui o mato é denso e as emboscadas ferozes de gente que vem bem armada e que não foge só porque há reacção das tropas portuguesas.

E depois da conversa ziguezagueante, perguntei-lhe se se recordava de mais um fiasco, a Topázio Valioso, cerca de trinta horas a vaguear entre o capim alto e o arvoredo frondoso, com dois guias permanentemente perdidos que ora iam em direcção de Gundaguê Beafada, ora em direcção do rio Corubal.
-Nosso alfero, passados estes anos todos, continuo a pensar que era um erro muito grande quando chegávamos a um quartel não se perguntar à tropa quem é que conhecia a região, todos nós tínhamos que aceitar andar atrás de um guia , ou de dois guias, só porque eram propostos pelo régulo do Xime ou pelo chefe de tabanca. A maior parte das vezes, esses guias tinham ido uma ou duas vezes ao Buruntoni em miúdos, a natureza tinha mudado completamente. Na época seca, estava tudo diferente, os guias fugiam da estrada, quando encostávamos para as palmeiras de Gundaguê Beafada começava a desorientação. Era aqui que se podia ir em direcção ao Baio, ao lado do rio Buruntoni, mas era muito perigoso, começava aqui uma terra de lalas, o PAIGC tinha sentinelas, foi aqui que perdemos em 1967 o nosso bazuqueiro, Mário Adulai Camará. Perdemo-nos no rio Buruntoni, na manhã seguinte a avioneta denunciou-nos, os dois guias não sabiam bem o que andavam a fazer, fomos arrastados para perto da Ponta do Inglês, quando chegámos ao rio Buruntoni era o fim da tarde, tivemos que descansar. Na manhã seguinte, continuou o castigo, nem nos encontrámos com a tropa de Mansambo, nem avistámos trilhos e depois veio a ordem da avioneta para regressarmos ao Xime a meio da tarde, já sem água e sempre a pensar em emboscadas na mata fechada de Madina Colhido. Felizmente que nada aconteceu, mas ficámos chateados, aquilo não era maneira de fazer guerra. Foi assim que se criou a ideia que não era possível ir ao Buruntoni, ora era possível ir ao Buruntoni a partir de Mansambo ou de Moricanhe, caminho que nunca se fazia porque em Mansambo não havia guias e nunca ninguém perguntou se nós servíamos para guias. Podíamos tê-los apanhado de surpresa e nunca aconteceu. Foi triste.

(v) Uma semana de leituras incomparáveis

Não há exagero, foram mesmo leituras incomparáveis. Primeiro, Um homem de talento, de Patricia Highsmith. Tom Ripley é, pelas minhas contas, o primeiro assassino metódico realmente bem sucedido. A pedido de um industrial afortunado, Herbert Greenleaf, Tom, um pequeno escroque, sem eira nem beira, sempre à procura de expedientes, vai até Mongibello, em Itália, para ver se traz de volta Richard Greenleaf, Dickie, que tenta a vida artística. Vai começar a vida afortunada de Tom, que começa por ter férias pagas e congemina o assassínio de Dickie, apropriando-se da sua identidade, até o fazer desaparecer, deixando poucos vestígios, desnorteando a pouco motivada polícia italiana. Tom, disfarçado de Dickie, passeia-se por Roma, inventa desculpas para não ver nem visitar amigos, escreve à namorada de Dickie em termos tais que esta se convence que os afectos se esfumaram. Nas cartas forjadas para os pais de Dickie, vai deixando no ar o sentimento de uma depressão, de um abandono. Em Roma, em desespero de causa, é obrigado a matar Freddie, um amigo de Dickie, numa situação desesperada que podia ter levado à revelação da trama urdida. Tom vai viver para Veneza e aí inventa um testamento de Dickie. No final, vai receber uma boa maquia, depois de andar inquieto com os interrogatórios policiais.



Capa de Um homem de talento, por Patricia Highsmifh, colecção Vampiro, nº149. "É uma obra determinante,irrecusável.Depois deste livro,o crime cerebral ganha ampla dimensão,passou a ser possível matar sem receber a sanção exemplar. Depois, está escrito como nunca se escrevera, mesmo sabendo-se que Georges Simenon é um gigante da literatura. Neste caso, a tradução de Mário Henrique Leiria ajuda muito" (BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Tal como Sherlock Holmes era o detective inteligente, capaz de pôr a dedução ao serviço do problema, tal como Ellery Queen pusera fim ao detective dos músculos e ao policial de acção, introduzindo um equilíbrio entre o problema e o desfecho prodigioso, Patricia Highsmith reconstrói o policial dentro das regras da grande literatura, deixando-nos na dúvida se é necessário, doravante, acrescentar à literatura o qualificativo de policial. Um homem de talento é, com efeito, muito boa literatura e indisciplina os convencionais desfechos punitivos do criminoso. Eu ainda não sabia, mas Mr. Ripley ia ficar gloriosamente na literatura e até passar ao cinema.

A outra experiência avassaladora foi O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca. Já li na Guiné Seara de Vento e Aldeia Nova, bem como alguma muito boa poesia. Mas este livro de contos instala a minha reconciliação com os cânones do neo-realismo: é uma escrita afogueada, vibrante, medularmente alentejana, é tudo simples e grande, sem pormenores balofos, piruetas popularuchas. Logo o arranque do primeiro conto:

“Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoínha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila”.

São contos inesquecíveis: como a telefonia mudou aqueles lugares no fim do mundo; as declarações de amor entre miúdos, as maldades de um velho sovina que controla a existência de um filho adulto; uma noite de Natal numa venda, os amores de lavradores alentejanos, histórias de ódios, de misérias, de solidão. Manuel da Fonseca escreveu pequenas obras primas e faz-me amar ainda mais o Alentejo dos ganhões e malteses, universalizando o sofrimento desta terra bastarda.

Capa do livro O fogo e as cinzas, de Manuel da Fonseca. s/data, sem referência ao capista,1ªedição,Editorial Gleba, Lda (BS)

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Para a semana vou casar-me, haverá mesmo festa em Bambadinca. É um mês de Fevereiro em que vou descobrir que não tenho direito a férias nem a nenhuma licença. Espera-me a ponte de Udunduma, duas vezes irei ao Xitole, andarei em emboscadas e um dia abro uma carta e, aturdido, descubro que perdi o meu maior amigo na guerra. O mundo ia adquirir uma outra importância, a minha vida um outro significado. Será que vale a pena tentar falar desse meu sofrimento, desse desabamento?
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série > 29 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!
(2) Sobre a Professora de Bambadinca, vd. os seguintes postes:
(...) "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Belíssimma vista aérea da tabanca de Samba Juli, sendo visível o perimetro de arame farpado, as valas e os abrigos individuais > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos nharros da CCAÇ 12... Neste episódio, passado m Dezembro de 1969, Beja Santos refere a sua ida a Samba Juli, fazer um transporte de doentes, com o seu Pel Caç Nat 52, agora destacado em Bambadinca e morrendo de saudades de Missirá ... A lealdade dos fulas(ou a sua aliança política com os tugas contra o PAIGC) era paga com estes e outros serviços... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Capa (deteriorada) do livro de Georges Simenon, Maigret em Nova Iorque. Lisboa: Livros do Brasdil., s/d. (Colecção Vampiro, 111). Capa de Cândido Costa Pinto. "Luís, foi assim que ficou o Maigret quando cai em Ponta Varela. Cheira ainda a água da bolanha" (BS)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

Texto enviado, em 18 de Novembro de 2007, pelo nosso camarada e amigo Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Luis, aqui te entrego mais um texto, não sei porquê fora da medida habitual. Não te esqueças que já te enviei as ilustrações do Tennessee Williams, o livro do Simenon segue hoje pelo correio. Dou-te a notícia cheio de alegria: telefonou-me ontem o escritor Mário de Carvalho a dizer que aceita, na sessão de lançamento de Na Terrra dos Soncó apresentar o livro, com o general Lemos Pires. Tenho uma profunda admiração pela obra dele, sinto que ele está a crescer e se aproxima do Saramago e Lobo Antunes. Espero não fazer pausa até ao Natal, para depois fazer uma semana de férias. Recebe um abraço do Mário

2. Operalção Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVIII > OPERAÇÃO PUNHAL RESISTENTE
por Beja Santos

(i) Bambadinca, entreposto de encontros e desagravos


Já se passou um mês, Bambadinca entranhou-se finalmente na minha vida desde o cais até às tabancas próximas, desço com a toda a naturalidade até à povoação, vou palrando com militares e civis, estonteio-me com os cheiros do mercado, no cais olho ao fundo, com pudor, os palmares de Finete, subo a rampa para o quartel a conversar com Queta Baldé, Serifo Candé e Tunca Sanhá, vamos ver o estado das munições, convoco o pelotão para a revisão das armas, quero ver os carregadores dos apontadores de dilagrama, as granadas de bazuca e de morteiro.

Nisto, aproxima-se de mim o milícia Gibrilo Embaló, de Missirá, já tinha saudades deste excelente soldado, sempre amável e de uma compostura inexcedível. Olhando para o chão, pede-me para vir para o pelotão, conversamos sobre tal impossibilidade, se ele quer ser caçador nativo terá que se inscrever e depois fazer a recruta em Bolama, estou pronto a fazer uma declaração que refira as suas qualidades. Queta Baldé aproveita para lhe dizer que no seu tempo (isto é, 1966) a recruta e a especialidade eram 8 meses a fio, agora é menos, em seu entender isso é mau, reflecte-se na preparação das tropas...

Há quem esteja a ouvir a conversa e manifeste discordância, é malta da CCAÇ 12, Serifo manda calar os meninos, pergunta-lhes se eles já estiveram debaixo de fogo em Porto Gole, Enxalé, Bissá, se já subiram a Madina, se fizeram a estrada Xime-Ponta do Inglês, se entraram no Buruntoni, se sabem o que é uma emboscada de duas horas ou ver Missirá em chamas, a contar as balas, se sabem o que é ir todos os dias a Mato de Cão, depois a gritaria sobe de tom, insultam-se, vejo punhos ameaçadores, olhares chamejantes, é o momento exacto em que partimos para ver o estado das munições, eles ainda não sabem mas ao anoitecer partiremos para Fá Mandinga, daqui andaremos às voltas entre Fá de Baixo, Santa Helena e Mero, o pretexto é um recenseamento das populações, a verdade é que apareceu um grupo armado em Bricama, teme-se que tenham atravessado o Geba, um informador avançou mesmo que é gente que terá vindo através de Bucol, da base de Sinchã Jobel.

As munições estão em ordem, com uma secção ainda vamos buscar doentes a Samba Juli, chegou depois a hora do almoço. As refeições na messe, já constatei, podem ser litigiosas. O tenente Gilde apanhou dez dias de prisão por ter gritado com o major Sampaio, recordando-lhe que já se servira três vezes de leitão, havia oficiais que ainda não tinham comido, era o meu caso, que ouvi toda esta discussão aos berros na porta de vaivém, o tenente Gilde saiu aos palavrões, o major Sampaio perseguiu-o a gritar, comi o mais rapidamente que foi possível, agoniado por estas guerras da comida.

Sim, ao fim de um mês, quase esqueci os petromaxes de Missirá, o bingo a feijões na messe, as rondas de madrugada, tenho muitas saudades das conversas com o Lânsana, o gralhar das crianças, recordo agora o Natal passado, que vivemos tão intensamente. Pelo meio, o Moreira e o Abel, os meus camaradas de quarto, são muito tolerantes com os meus gostos musicais. O Moreira, no entanto, logo me advertiu:
-Pá, aquela gaja que canta em italiano e parece que está a morrer, ainda podes ouvir um bocadinho alto, não sei o que ela canta mas é bonito. Mas aquela outra gaja que está mais de vinte minutos aos berros e que consegue cantar mais alto que a música, por favor, ouve-a quando estiveres aqui sozinho.

O Moreira, afinal, gostava de La Bohème, de Puccini, e detestava o final da Salomé, de Strauss, cantada pela Inge Borkh. Até o correio aqui tem outro sabor. Recebo notícias do Fodé Dahaba, parece que a distância aumentou. O filho de Quebá Soncó, Mamadu, bateu-me à porta, dá-me um beijinho, deixa-me uma carta e foge. Afinal, pede-me material escolar e quer ir comigo a Bafatá para eu lhe comprar livros de aventuras.

Oiço a voz alta do nosso médico no corredor, o nortenho Vidal Saraiva anda furioso, vai ser ouvido nos termos do art.º 130º do RDM, foi encontrado pela polícia militar uma noite em Bissau sem a boina na cabeça, arrisca uns dias de prisão, anda apavorado, desinibe-se com este vozeirão, é assim que ele afasta os maus presságios.

Saio em direcção à secretaria, tenho o Braima Mané à minha espera. Os médicos de Bissau conseguiram pôr o seu braço direito a mexer, mas de resto tudo lhe corre mal. Veio pedir-me cinco escudos para comprar arroz, está todo sujo do barro dos adobes, pois anda a fazer uma morança no Bambadincazinho, não quer viver em Finete onde o seu irmão mais velho lhe engravidou a mulher e depois escorraçou-o da tabanca.

Na secretaria tenho alguns autos à minha espera, afago a minha caneta Montblanc, que me chegou ontem pelo correio, oferta da minha Mãe quando eu fiz o 5º ano, deixei-a em Lisboa, a que ardeu em Missirá era uma Parker 21. Aliás, toda a correspondência que passei a enviar já tem a marca da tinta Quick, a Bic é sempre um último recurso. Chega o correio, recebo um aerograma do Chico Henriques da Silva, que está agora no Olossato, passa semanas isolado num destacamento chamado Ponta Maquê, parece-me, abro um sobrescrito e sai de lá a revista O Tempo e o Modo, é um número dedicado a António Sérgio e vejo que há um artigo assinado pelo José Medeiros Ferreira (2), o Pina escreve a dizer que tem o dedo engessado e em breve regressa...

Alguém entra na sala e dá a notícia que o Pimbas, o primeiro comandante do BCAÇ 2852, já regressou a Lisboa, com o atestado de inapto... É nisto que entra de repelão o Gomes da messe, pede para me falar em particular, como sou o gerente venho imediatamente, pode haver alguma falta, afinal o motivo é outro, a queixa dos faxinas que nos limpam os quartos deixa-me embaraçado: o Cherno entrou com um balde e vassoura, vinha pronto a lavar-me o quarto, não aceitou que sejam outros a fazer a limpeza, houve discussão:
-Talvez seja melhor o meu alferes convencer esse tipo que diz que é seu guarda-costas a não voltar a aparecer aqui, ele tinha um olhar furioso, o que mais nos impressionou foi aquela quantidade de granadas de morteiro que ele trazia à volta do pescoço e na cintura, diz que é assim que anda consigo. Se aquilo rebentasse, estávamos feitos.

É assim que vivo em Bambadinca, penso que é normal na minha idade adaptar-me a isto tudo, onde eu estou a quebrar, a sentir diferenças brutais, é nas insónias, quando de manhã me levanto, depois de ouvir os camaradas a dormir bem, toda a luz do dia me magoa e me recorda o corpo moído, sem vontade de afrontar as idas à picada.

(ii) Em Fá Mandinga, o território do Jorge Cabral

Eu tinha as notas de uma ida a Fá Mandinga, nas vésperas de partir para a operação Punhal Resistente, que se realizou um pouco antes do Natal. Segundo o Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, ter-nos-emos conhecido em Julho, na tasca do Zé Maria (3). O 63, nessa altura, fazia de pau para toda a obra em Bambadinca, o que é hoje o nosso destino.

O Jorge Cabral recebeu-me há pouco tempo na Universidade Lusófona, onde conversámos sobre este patrulhamento a Mero e Santa Helena. Quando lhe perguntei se ele se lembrava de um ataque de abelhas que apanhámos na operação Lua Nova, perto do rio Bissari, ele confirmou tudo com o seu sorriso maroto e manhoso. E lembrava-se perfeitamente do nosso mano-a-mano a partir de Fá Mandinga, ele descendo a bolanha até ficar em frente à aldeia do Cuor, eu patrulhando Santa Helena, Fá de Baixo e depois Mero, numa tentativa de enxotar os intrusos de Madina em direcção ao Geba estreito, onde seriam apanhados pelo 63 ou no caso de atravessarem a nado terem do outro lado à espera o Alves Correia, de Missirá [Pel Caç Nat 54]. Ajudou-me a reconstituir o quartel de Fá Mandinga, de que guardo uma imagem difusa, não tendo esquecido, no entanto, a boa qualidade das instalações, que eu sempre associara a um quartel destinado a uma companhia e que precedera, de facto, a construção do quartel de Bambadinca.

Quando se entrava em Fá, tinha-se a noção de que houvera ali um centro agrícola experimental, lojas coloniais, talvez um presídio. O Cabral tudo confirmou, Fá tivera importância noutros tempos (tal como Geba, era a ponta avançada da presença colonial, até ao séc. XIX), havia uma zona de instalações antigas que estavam vedadas à tropa (tinha mesmo um guarda civil do Governo da Província), possuía excelentes instalações para a tropa ficar acantonada (4) , o quartel tinha valas e não havia abrigos, toda aquela região do Joladu era calma, sabia-se da cambança da gente de Madina, em Bissaque havia muitas tensões, os patrulhamentos eram completamente infrutíferos, os apoios das populações aos rebeldes eram uma realidade, só que nós não sabíamos os códigos de entendimento.

O que fizemos foi mais um patrulhamento pelas bolanhas e uma acção psico entre Mero, Santa Helena e Fá Mandinga. Era pelo bombolom que a gente de Madina chegava ao Joladu, mas nós naquele tempo nada sabíamos. E foi assim que passámos a tarde, a noite e a madrugada, entre as lamas e os mosquitos das férteis bolanhas da região de Fá, ouvindo sempre dizer que gente do mato nunca vinha à região... regressámos ao amanhecer a Bambadinca, informei os soldados que fossem dormir bem pois, a meio desta tarde iríamos partir durante dois ou três dias.

(iii) As andanças infernais da Punhal Resistente

Chegado ao quartel, fui logo falar com o major Sampaio para saber mais detalhes da batida prevista paras a região do Buruntoni, a partir do Xime. Segundo o oficial de operações, haveria dois destacamentos, um com gente de Mansambo [, CART 2404,], outro com o 52 e a gente do Xime [, CART 2520].
-Esteja descansado, os guias são muito bons. Estarei amanhã sobre vós, procurarei acompanhar as vossas rotas, vocês vão cercar o Buruntoni por terra firme, escolhi a tropa mais experimentada que disponho.

No regresso, escrevi à Cristina:

“Saí do Xime de madrugada com mais três pelotões, fugimos sempre da estrada Xime-Ponta do Inglês, junto a Ponta Varela atravessámos a estrada em direcção Gundaguê Beafada, a ideia era ao princípio da manhã juntarmo-nos com as tropas do capitão Neves em Gundaguê Futa-Fula, e daí avançarmos para o Baio e depois o Buruntoni. Ao meio dia, o guia diz que já não sabe o caminho, os soldados da região avisam-me que estamos a avançar para a Ponta do Inglês, a avioneta não nos dá indicações. Do Buruntoni os rebeldes desataram a fazer fogo de morteiro, aperceberam-se da insistência da avioneta sobre aquela área que eles controlam completamente. Pelas 5h da tarde, o guia confessa-se perdido, justificando que o capim alto alterou todas as referências.

"Se na operação de Mansambo estava um frio de esfarelar os ossos, alí era uma humidade asfixiante. Sem saber como, acampámos a 200 metros das tropas do capitão Neves, pelo meio dia do dia seguinte chamámos outra vez a avioneta, não tínhamos apoio da carta, começavam a chegar as insolações, a tropa exausta por andar às voltas, fugindo dos itinerários que se suspeitavam minados.

"A meio da tarde a avioneta deu ordens de retirada, isto debaixo do fogo do Buruntoni. Ao anoitecer partimos do Xime para Bambadinca, sempre a picar a estrada até Almedalai. No dia seguinte, já em cima do Natal, coube-nos emboscada, escolta e reforço.

"A 24, de manhã, o pelotão dividido em três secções andou pela ponte de Udunduma, Nhabijões, Madina Bonco e Galomaro, a levar e a trazer pessoas e coisas, eu fiquei nas ferroadas burocráticas dos processos por ferimentos em combate. À tarde, começou a nossa semana na Ponto de Udunduma”.


Em conversas recentes com o Pires e o Queta, pedi-lhes que me ajudassem a recordar pormenores daquela malfadada Punhal Resistente. O Pires foi sintético:
-Partimos a meio da tarde para o Xime, picámos tudo até ao quartel, naquele tempo, nada estava alcatroado. Fez-me muita confusão o fogo de obus, ao anoitecer e até sairmos para a operação. Recordo-me que andámos sem parar, desviámo-nos para junto do Corubal, ouvíamos os barcos no Geba, andámos na bolanha aos tombos, ao amanhecer houve discussão entre vários soldados e o guia, caminhámos à esquerda e à direita, a água dos cantis desapareceu rapidamente. Ou os guias não gostaram dos itinerários de aproximação e tudo fizeram para se afastar deles ou desconheciam o terreno, o capim estava muito crescido. O que interessa é que foi mais uma operação inútil, a juntar a tantas outras. Ficava-se sempre com a ideia de que inimigo era verdadeiramente inacessível.

Com Queta, natural da região, as memórias ainda estão em ebulição:
-Adulai Djaló, o Campino, ameaçou matar o guia que era de Madina, frente a Taibatá, de nome Samba. Estou certo que era um homem leal e não lhe deram as indicações mais certas. No meio da discussão, durante a manhã do primeiro dia, quando já estávamos perdidos, ele disse-me que procurava o trilho de Gundaguê Futa-Fula em direcção ao Buruntoni, mas que sabia que os sentinelas iriam certamente ver-nos na extensa bolanha à volta do Baio e do Buruntoni. Era o acampamento melhor situado naquela região do Corubal, todas as aproximações são difíceis, foi aqui que se instalou o PAIGC e logo começou a luta armada, a barraca deles ficava no mato fechado entre bolanhas. Ainda agora lembro a morte de Mário Adulai Camará, um dos nossos bazuqueiros, em 1967, nunca percebi por que é que não lhe deram uma condecoração, combateu mais de meia hora lançando fogo da bolanha para dentro da mata, nós não podíamos andar mais, tal o fogo dos morteiros 82. Aquela operação foi uma grande canseira, nosso alfero, nós não gostávamos daquelas correrias dentro da mata, era pena nunca perguntarem às pessoas da região, como eu, quais os sítios possíveis para se chegar lá. Quando atacámos Belel, em Março do ano seguinte, nosso alfero escolheu a pessoa certa, Cibo Indjai, ele escolheu o trilho possível, entrámos na barraca de Belel quando eles estavam a descansar ao almoço. Foi pena os oficiais brancos não quererem falar connosco antes das operações. Nós éramos fiéis à bandeira portuguesa, nunca pensavam em nós como gente interessada em acabar rapidamente com a guerra.


(iv) A semana Tennessee Williams

Não resisto a contar a história de um livro Maigret em Nova York, de Georges Simenon. Levava sempre no camuflado um ou dois livros revestidos em plásticos, para aguentarem as águas da bolanha e as chuvadas. Levei para o Xime o n.º 111 da colecção Vampiro, uma leitura emocionante, Maigret já está reformado em Meung-sur-Loire é procurado pelo um jovem, Jean Maura, que lhe pede que vá a Nova Iorque ver que perigos corre o pai, ideia que é corroborada pelo notário da família.

Maigret viaja num paquete transatlântico, o jovem Jean Maura desaparece à chegada, o encontro com o pai, Little John, e o seu secretário é acidentado mas Maigret continua a investigar com auxílio de colegas norte-americanos e detectives recrutados. São deambulações mirabolantes, há recordações de artistas que se lembram de uma dupla de dois irmãos, em que um deles era Little John. Há momentos fulgurantes, mas nada tem a força com um telefonema que Maigret faz a Joseph Daumale, de Nova Iorque para Bourboule, é um interrogatório a cinco mil quilómetros de distância como nunca mais lerei nas obras de Simenon. Vou devorando aos bocados, todas as pausas disponíveis são boas para ler. Nas bolanhas de Ponta Varela entrei dentro de água até à barriga, quando saí o meu livro policial deformara-se. Gostei tanto dele, no entanto, que resolvi guardá-lo até hoje, uma homenagem às leituras emocionantes, em tempos tão difíceis.

Mas as leituras da semana centraram-se em Tennessee Williams. Primeiro, li um Eléctrico Chamado Desejo, premiado com o Pulitzer. Vira a peça no teatro de São Luís, no dia dos meus anos, em 1966, na companhia do Carlos Sampaio, Eduardo Canto e Castro e José Nogueira Ramos. Mariana Rey Monteiro desempenhara Blanche DuBois, que no cinema dera a Vivien Leigh um Óscar. É um drama que nos fala da desambientação, da repressão sexual, da doença mental, as múltiplas mentiras a que por vezes nos entregamos na construção dos nossos sonhos. Blanche, que tem poses de aristocrata, vai viver para casa de Stella, a sua irmã, casada com o musculado e abrutado Stanley Kowalski. Numa atmosfera de permanente tensão, Blanche procura transmitir aos outros a ideia de um mundo refinado de onde provém, que se vem a descobrir ser fruto de uma imaginação delirante. Blanche é um caso único de mulher a caminho da meia idade que arquitecta situações amorosas, acantonada numa juventude inexistente. De ficção em ficção, Blanche irá ser internada, e a casa dos Kowalski voltará à normalidade.

A noite de Iguana que vi no filme de John Huston, com Ava Gardner, Richard Burton, Deborah Kerr e Sue Lyon nos principais protagonistas, é um outro drama de sexo reprimido, solteironas em fúria, um padre em sofrimento perseguido por uma adolescente, uma viúva sempre em festa, um avô poeta que vai recitar o seu mais belo poema e morre ao pé da sua neta tão amada. A iguana, um animal perseguido e acorrentado que o reverendo Shannon liberta naquela noite de todas as libertações, é o símbolo da verdade que se solta, da vida que é possível ser vivida. Gosto cada vez mais de Tennessee Williams e dos seus personagens em afrontamento, em que nada fica como dantes.

Aproxima-se o Natal, vivo o dissabor de não poder fazer uma festa, não tem sentido particularizar o evento no ambiente de um grande quartel. Entrego-me à pira das recordações, procuro compor uma exaltação ao Deus menino. E a 24 de Dezembro, já na noite escura, um pouco antes da nossa consoada na messe de Bambadinca os enfeites verbais conjugaram-se, todo o marulhar de saudações e saudades afluiu numa prosa poética. Afinal, o meu coração estava lá e cá, continuava a combater e, julgava eu, estava pronto a recomeçar uma vida onde se apagava a guerra da Guiné.
_____________

Notas dos editores:

(1) Vd. o último poste desta série:

25 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

(2) Vd. poste de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(3) Vd. poste de 18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)

(4) Vd. poste de 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1306: Meia Onça, Meia Operação (Carlos Marques dos Santos, CART 2339)

Guiné > Fá Mandinga > 1968 > Depois do ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1968, o Gr Comb do Fur Mil Santos - Os Solitários - é destacada para defender a Ponte do Rio Undunduma (que o IN tentara dinamitar); lá viveu duas semanas em tendas de campanha; mais tarde é destacado para reforçar Fá Mandinga. Ei-lo aqui, em diligência...

Foto: © Carlos Marques Santos (2005)


Texto do nosso camarada Carlos Marques dos Santos, coimbrão, que foi furriel miliciano, de artilharia da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69:

A Operação Meia Onça, que foi referida pelo Beja Santos (1).... Aqui vai o descritivo dessa operação inscrita no Historial da CART 2339


Operação Meia Onça
Iniciada em 13 de Outubro de 1968, às 18h00.
Duração: 2 dias.
Finalidade: atacar e destruir objectivos na região de Buruntoni – Baio.
Efectivos:

CART 1746 (Xime)
CART 2339 (Mansambo)
PEL CAÇ NAT 52 (Missirá)
PEL CAÇ NAT 53
1 Gr Comb CCAÇ 2401
4.º PEL ART

Desenrolar da acção:

A CART 2339 saíra de Mansambo em viaturas em 13 de Outubro de 1968, tendo recebido o PEL CCAÇ NAT 52 e o Gr Comb CCAÇ 2401 em Bambadinca.

AS NT seguiram para Taibatá onde se iniciou o movimento apeado às 23h00.

Os guias, logo de início, mostraram-se receosos, por causa do possível armadilhamento dos trilhos. Conduziram o Destacamento a corta-mato, mostrando-se confundidos e, em 14, às 2h30, o comandante da CART constatou que estava junto a Dembataco.

Instigando os guias, reiniciou-se o movimento constatando-se que às 4h00 se estava junto a Taibatá, ou seja, no ponto de início...

Esperou-se pelo nascer do dia e enviou-se um Grupo de Combate a Taibatá. Com uma mensagem para transmitir através de AN/GRC-9 deste destacamento em que se comunicava o sucedido.

Às 5h00 reiniciou-se o movimento.

Às 9h15 entrou-se em contacto com o PC no Xime, tendo informado do seu atraso. O PCV passou às 10h30, tendo-se ouvido a sua chamada mas não se obtendo resposta.

O PC deu ordem para continuar a marchar em direcção ao objectivo, o que se fez.
Às 13h15 as NT receberam ordem para regressar, chegando a Taibatá às 16h30, depois de terem constatado que não chegaram à nascente do Burontoni., mas sim do Gundagué.

O Destacamento foi recolhido em Taibatá, por viaturas, chegando a Bambadinca às 2015h.

PS - Não participei nesta operação pois tinha saído para férias, na Metrópole, a 4 de Outubro de 1968. Viajei no Boeing 707 – Algarve. Regressei a 10 de Novembro de 1968. A 11 houve uma operação à Ponte dos Fulas com muito, mas muito barulho. Também não estava lá ainda. Regressei a Mansambo a 13.

Comentário de L.G.:

Carlos: Quantas centenas - ou até milhares de quilómetros - não palmilhámos nós, nos penosos 21 meses de comissão ? Quantas dezenas de operações e de acções não fizemos nós, tão ineficazes e frustantes como a Op Meia Onça ? Quantas noitres, quantos dias ?... Infelizmente, operações mal planeadas, mal conduzidas!

Não me fales em PCV (Posto de Comando Volante) que eu tenho más recordações desses objectos voadores não-identificados...Tenho sempre a sensação que os turistas que iam lá em cima, no bem-bom da DO27, se riam de nós que nem uns perdidos, da tropa-macaca que andava cá por baixo, aos ziguezagues como baratas tontas...

Não me fales no Baio-Buruntoni, camarada... Ou melhor: diz-me que tudo isso não passou de um pesadelo, e que nunca aconteceu, e que nomes como Xime, Ponta Varela, Ponta do Inglês, Poindon, Gundagué Beafada, Biro, Galo Corubal, Seco Braima, Satecuta, Fiofioli, Mina, etc., nunca existiram, não existem, a não ser nas velhas cartas dos serviços cartográficos do exército colonial do tempo dos soldadinhos de chumbo e dos generais de opereta...

Obrigado, Carlos, por me teres lembrado que o Baio/Buruntoni fazia parte dos nossos percursos turísticos nos regulados do Xime e de Bissari, os pedaços de terra do Império que nos coube em sorte... (LG)
___________
(1) Vd. post de 14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca

"O Almeida [, cmdt do Pel Caç Nat 63,] respondeu descontraído:- Pá, eu não vou nada para Mato de Cão, eu vou para Missirá e tu vais para o Burontoni.
"Assim era, embora eu nada soubesse. Partimos para Missirá, alojei o pelotão do Almeida depois de lhe apresentar os meios de defesa, preparei 35 homens e nessa tarde apresentei-me em Bambadinca, tendo imediato pedido uma entrevista ao novo Major de operações, de nome Viriato Pires da Silva. Era um oficial extrovertido e com vozeirão:-Ah, quer saber o que vai fazer ao Burontoni, não é? Não se preocupe que daqui a um bocado vou fazer a apresentação da operação, espere um pouco. (...)
"Por volta das 6 e meia da tarde, teve lugar a apresentação da operação. Recordo que o Burontoni foi apresentado como um santuário quase inexpugnável, dotado do melhor armamento, bem posicionado dentro de uma floresta, o Baio, entre vários rios. Sei que ia dentro do destacamento A, seis pelotões, parámos em Amedalai, e em Taibatá partimos a corta-mato acompanhados por dois guias.
"Primeira surpresa: os guias informaram que não sabiam entrar na mata à noite, estavam desorientados. Irrompeu entretanto uma chuva torrencial, lá fomos a passo de caracol, de madrugada fez-se um alto para repouso e ao amanhecer continuámos a progressão. Talvez aí pelas 9 horas chegámos perto de um rio, o nosso guia disse que não podíamos passar não só porque o rio era profundo como tínhamos em frente uma ampla bolanha, havia que a flanquear dentro da mata.
"É precisamente quando estamos a entrar na mata do Baio que toda a floresta é sacudida de explosões. Parecia que uma aviação invisível lançava tapetes de bombas a 10 Km de distância. Pela rádio procurámos saber o que se passava e pouco depois a notícia chegou, estarrecedora: Mansambo estava a ser severamente flagelada. Ora toda a companhia de Mansambo estava nesta operação, o aquartelamento ficara entregue a milícias e à população civil. O estado de espírito da tropa era de cortar à faca. Do comando, por via aérea, chegou a ordem de retirar para Taibatá, o que veio a acontecer, e lá fomos a patinar na lama e depois regressámos a Bambadinca.
"Ainda hoje me interrogo sobre a forma como se preparou esta ida ao Burontoni, independentemente do triste acaso da flagelação a Mansambo, que marcou a corrente do jogo" (...).