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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12290: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): O dia seguinte no Xitole com as pessoas

1. Quinto episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU



A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

5 - O DIA SEGUINTE NO XITOLE COM AS PESSOAS

Após uma noite bem dormida e todos manifestamente bem dispostos, voltamos à estrada para mais um dia “fora de casa”, novamente a caminho do Xitole.
Aqui chegados, a motivação eram agora as pessoas. Sabiam que viríamos.

Os Homens e as Mulheres Grandes eram hoje em maior número. De muito poucos me lembrava. Uma Mulher Grande, de quem não recordava o nome, mas que reconheci sem grande dificuldade, era uma das esposas do proprietário dum camião civil que quase sempre integrava as colunas de reabastecimento ao Xitole. Ela e o Saido Baldé, eram os nossos principais interlocutores, talvez porque falando um Português, aqui e ali mesclado com o crioulo, facilmente se faziam entender.

Com uma mistura de sobriedade e de altivez, trajavam de vestes tradicionais e tinham uma memória soberba. Comecei a sacudir a poeira do baú das memórias. Ouvi falar de quem conhecera e dos que já haviam desaparecido. Ouvi falar de quem já não lembrava e daqueles que me foram mais próximos. Ouvi falar de quem esperava encontrar e que, por razões várias, não o consegui. Ouvi falar do antes e do agora das suas vidas. Ouvi os lamentos de uma vida dura e sem esperança e, ouvi falar com nostalgia dos tempos da nossa presença.

Saltavam os nomes do Capitão... do Alfero... do Furriel... que até tocava viola, do Formeiro... etc. etc. etc..
Era patente a alegria com que falavam desses tempos. Foi com alguma dificuldade que consegui disfarçar a emoção, sempre que faziam essas referências. Paternalismo ou outro qualquer “ismo”?

Naquele momento, eu tinha uma certeza. Era somente um ser humano, tocado pelos afectos forjados há muitos anos em circunstâncias particulares e que os deixava fluir sem mais “embrulhos”, na presença daqueles que a vida colocara no seu caminho. Estava feliz entre “a minha gente”.

O Saido Baldé era difícil esquecer. Com uma fisionomia muito peculiar, em que sobressaíam uns olhos que pareciam querer saltar a qualquer momento das órbitas, era um homem feliz. Não nos largava um minuto. Mas não tinha as notícias do Galé Djaló que eu esperava ouvir. Impunha-se uma nova ida a Quebo (Aldeia Formosa) na companhia do Saido. Voltaríamos a fazer o nosso almoço piquenique junto dos rápidos de Cussilinta, com nova paragem para um cafezinho no Saltinho. Quebo, era a derradeira tentativa para encontrar o camarada de “profissão” com quem privei, de forma quase fraternal, durante a minha permanência no Xitole. Um bom Camarada e Amigo, que a “sorte” não permitiu rever.

Se dúvidas houvesse, logo ali ficaram desfeitas. Eu tinha que voltar à Guiné. São tantos os motivos que nos “puxam” para aquela terra que, somados à necessidade de rever Galé, tornaram firme essa ideia. Eu sabia que iria voltar e, disso fiz promessa e anúncio em Quebo e o repeti no Xitole, para onde nos dirigimos novamente. Eram os nossos últimos momentos no Xitole.
Aproveitamos para dar mais uma vista de olhos, principalmente pelas redondezas do quartel. Sempre na companhia do Saido, aventuramo-nos ali para os lados da antiga picada, no sentido de quem vinha da “Ponte dos Fulas”, do antigo poço de que se abastecia o quartel e da casa do comerciante libanês Jamil. Ali por perto, a picada tinha virado trilho, o poço, que já fora substituído, estava abandonado e meio escondido e o alpendre da casa do Jamil ameaçava cair, apesar do interior estar em razoável estado de conservação. Ao que parece, esta casa teria sido utilizada para alojamento do pessoal da empresa que construiu a estrada alcatroada.

Não fora o novo posto de saúde e uma outra construção nova, e aquele local mais parecia uma cidade fantasma. Foi o último olhar sobre o Xitole. A despedida foi difícil. Algumas lágrimas envergonhadas caíram pelo meu rosto. Eram o tributo do meu carácter à reconciliação com as memórias do passado e, a expressão dos meus afectos pelas gentes do Xitole. Estava a despedir-me e já sentia saudades.

Desisti de procurar as explicações para o meu estado de alma. Era o “eu” de agora. Aquela mistura do “eu” com vinte e três anos e o “eu” com cinquenta e um anos de idade. Tantos e tantos anos a sonhar em voltar ao Xitole e já estava de partida. Emocionado, deixei aquelas gentes e aquela terra. Eu sabia que iria voltar, porque há mais mundo no nosso coração para além da nossa vida, neste cantinho à beira mar plantado. Os que me acompanhavam nesta viagem, estavam tão longe, ou não, de entenderem a guerra das emoções que estava a travar e que, com dificuldade, me esforçava por controlar.

Regressamos ao Capé para um resto de tarde na piscina e para dois dedos de conversa com os gestores do empreendimento turístico, senhor Fernando e D. Margarida. O senhor Fernando, para além de ter sido funcionário da Caixa Geral de Depósitos em Lisboa, era também um ex-combatente na Guiné. Gente simpática e com talento na arte de bem receber, e que decidira tentar a “sorte” na Guiné. O número de hóspedes tinha aumentado substancialmente. Contamos mais sete casais. Segundo o senhor Fernando, estes casais integravam médicos oriundos da Cidade do Porto e teriam vindo de avião até Dakar, prosseguindo depois de Jipe até Bafatá e, segundo nos confidenciou depois, estariam ali a expensas de um conhecido laboratório farmacêutico.

Talvez pelos muitos hóspedes, ou por ser a nossa última noite no Capé, fomos brindados durante o jantar e ao redor da piscina, com a exibição de um grupo de danças tradicionais da etnia Mandinga. Batuque forte e ritmado, jovens de ambos os sexos vestindo trajes tradicionais e dançando coreografias ancestrais. Espectáculo soberbo. No final, os hóspedes acabaram misturados com os “artistas”, na vã tentativa de os acompanharem.
Era a noite de despedida da região centro da Guiné-Bissau e dos locais que mais me marcaram. Fomos dormir. Amanhã, é o regresso a Bissau para a descoberta de uma “outra” Guiné.

Xitole - Antigo e atual enfermeiros

Xitole - Conversando, no local que era a entrada do quartel

Xitole - Reencontro com Saido Baldé

Xitole - Na escola, deixando material escolar

A minha primeira viagem à Guiné -1998 (3) - De Cussilinta, Saltinho, Ponte dos Fulas, até ao Cais do Xime

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12260: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (4): A caminho do Xitole, 26 anos depois

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12260: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (4): A caminho do Xitole, 26 anos depois

1. Quarto episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU


A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

4 – A CAMINHO DO XITOLE, 26 ANOS DEPOIS

No Capé, bem cedo, preparámo-nos para a viagem ao Xitole.
Viatura pronta, almoço piquenique na mala térmica para um dia inteiro “fora de casa” e lá partimos para uma visita cheia de incógnitas e de muita ansiedade.

Vinte e seis anos depois estava a caminho dos locais em que vivi os momentos mais marcantes e sofridos do meu percurso como ser humano. Ia levantar a poeira das memórias, ia rever um filme cujo enredo conhecia, mas cujo cenário e figurantes eram agora uma interrogação.

Atravessámos Bafatá. A partir daqui a estrada era alcatroada mas, a espaços, muito maltratada. Pela frente ficava Bambadinca. Aqui esteve sediada a CCS do BART 2917 a que pertencia a “minha” CART 2716. Em toda a comissão, só passei por Bambadinca de e para Bissau ou Bafatá e, este não era o momento para me deter por aqui.
Seguimos o nosso caminho e vos confesso que, ao atravessar Bambadinca, talvez pela presença de militares ou pelo imenso formigueiro humano que nos impunha marcha lenta, me senti algo inseguro.

Uns quilómetros mais à frente e, já só pensando no Xitole, tudo passou.
Com os olhos fixos na estrada tentava adivinhar os sinais que me ajudassem a identificar a “Ponte dos Fulas”, passagem obrigatória a caminho do Xitole. De repente, surge uma ponte que não conhecia. Aqui parámos e lesto, saltei da viatura. Um misto de alegria e de nervoso miudinho dominava-me. Debrucei-me sobre o varandim e não foi difícil encontrar logo ali o esqueleto da velha ponte. De um lado, alguns pilares carcomidos pelo tempo e, do outro, escondido entre a ressequida mas densa vegetação, estava escondido o velho fortim de vigilância. Estávamos na época seca e, do rio Pulon restava uma pequena lagoa com uma canoa submersa. Nada mais restava daquilo que a memória guardava. As obras da nova ponte e da estrada alcatroada, apagaram a estrutura principal do destacamento. Mas, qualquer coisa faltava ainda ao cenário.

A memória dizia-me que, entre a mata que deixara para trás e a ponte, existia uma bolanha que era cortada pela picada de acesso à mesma. O arvoredo que foi crescendo, algo disperso, alterou a paisagem. Da bolanha só o local. O Xitole estava agora muito próximo. Jipe em marcha, vencida uma pequena subida e, tendo por companhia cajueiros de ambos os lados da estrada, surge uma pequena placa que indicava que à direita estava o Xitole.
Abordámos a entrada da povoação. A paisagem que se me apresentou, só a espaços me dizia alguma coisa. Reconheci as árvores alinhadas de ambos os lados da antiga picada à saída do Xitole no sentido Saltinho, mas não reconheci uma mesquita que entretanto aí se construíra. Esta não era a entrada para o Xitole que eu conhecia.

Avançando devagar, entrámos pela tabanca adentro. A comparação das imagens que guardava na memória, com o cenário que tinha pela frente, dizia-me que este era o lugar em que passei os cerca de dois anos mais marcantes da minha vida. As moranças, alinhadas como no passado, eram agora em menor número e os velhos mangueiros continuavam no seu posto de sempre.
À medida que íamos avançando, a localização do “quartel” tornava-se mais nítida. Poucas crianças e alguns adultos aproximaram-se do jipe. Num primeiro olhar, não descobri qualquer cara conhecida. As primeiras palavras entre nós foram, num primeiro momento, algo cerimoniosas, passando rapidamente para o desinibido e até efusivo, o suficiente para quebrar aquela estranha sensação de estar a invadir a intimidade daquela gente.

Sentia-me tranquilo e feliz. Estava entre a “minha” gente. Reconheci neles a simplicidade, o jeito afável e as marcas das suas tradições e cultura. Era aquele povo que aprendi a respeitar, mas a quem tudo falta. Já no local da “porta de armas” e, na nossa frente, eram visíveis a casa do Chefe do Posto, o depósito de géneros, a secretaria e messe de sargentos, a messe dos oficiais e, à esquerda, o esqueleto em betão do que foram as oficinas e o posto de socorros. Aqui, mais ao centro, estava o memorial deixado pela CART 2413 que nos antecedera, e o mastro em que todos os dias era desfraldada a Bandeira Nacional. À direita, ainda resistia a casa e o armazém do comerciante libanês Jamil Nasser.

Saí do jipe e fui vasculhar o que restava do “meu” posto de socorros. Dois degraus, as vigas da estrutura da construção e os muitos “cacos” dos tijolos que tinham sido aproveitados para outros fins, eram tudo o que restava do cenário em que exerci a enfermagem possível, e de que guardo memórias que nunca mais se apagam. Continuámos até ao fundo do “quartel” e aí encontrei outra construção que não conhecia. Era a escola com duas salas de aulas.
Quando o Professor (Nicolau Afonso) se apercebeu da nossa presença, acabaram-se as aulas. Dissemos que trazíamos roupas, cadernos, lápis e uma bola de futebol. A criançada pulava alegre, ruidosa e olhava-nos com curiosidade. A notícia chegara até à tabanca e não tardou que mais crianças e adultos se nos juntassem para a distribuição. Era o brilho no olhar daquela gente e o sinal de que estavam gratos pela nossa presença.

Quando demonstrei interesse em encontrar o “meu ajudante”Galé Djaló, informaram-me que ele vivia em Quebo (Aldeia Formosa). Aproximava-se a hora de aconchegar o “papo” e fomos devorar o almoço piquenique em Cussilinta, para onde nos dirigimos, passando pelas tabancas de Cambésse e Sincha Madiu, com a ideia de irmos depois até Aldeia Formosa.
Os rápidos de Cussilinta são um lugar de visita obrigatória para quem dele desfrutou no tempo da guerra. O almoço bem regado e “farto” de carnes frias, foi saboreado à sombra de robustas e velhas árvores, junto dos rápidos. Para ajudar à digestão, saltitamos depois pelas rochas até aos canais por onde a água se escapava e até junto da piscina natural.

A paisagem é soberba. Duas águias pesqueiras sobrevoavam a zona. Estava na hora de irmos até Aldeia Formosa procurar o Galé. Pelo caminho ainda haveria lugar a uma pequena paragem no Saltinho para um café e para se apreciar aquela obra de arte. Lugar mítico este. Um antigo quartel aproveitado para uma “Pousada” de Pesca e Caça, uma ponte de porte altivo e o Rio Corubal a deixar-se deslizar por entre os espaços das rochas.

A paragem seguinte seria na procura daquele guineense futa-fula que tanto me tinha ajudado. Chegados a Aldeia Formosa indaguei, junto de um grupo de locais, da localização da morança do Galé. Depois de conversarem entre eles, informara-me que ele estava a trabalhar em Cacine, lá bem para o sul, como funcionário das alfândegas. Deixei o meu contacto e o pedido de, o informarem da minha presença no dia seguinte no Xitole. Queria encontrar-me também com o ajudante dos mecânicos Saido Baldé, que nessa manhã esteve ausente do Xitole.

Estava na hora do regresso ao Capé, para um resto de tarde junto da piscina, na companhia dumas “loirinhas” bem fresquinhas.

Foi um dia que respondeu a muitas das perguntas que trazia na bagagem e que me conciliaram com o passado. O “quartel” do Xitole retinha o essencial da sua estrutura e, apesar da degradação, tudo me era familiar. Estava tranquilo, feliz e em segurança, mas sentia a falta do contacto humano daqueles que conhecia.

Amanhã seria um novo dia.

(Continua)

Xitole - O que resta da Oficina e do Posto de Socorros

Xitole - Memorial da CART 2413

Xitole - Casa do Chefe de Posto

Xitole - Alunos a caminho da Escola

O que resta da mítica Ponte dos Fulas

Xitole - Resto da oficina e, à direita, degraus de acesso ao posto de socorros

Tabanca do Xitole

A minha primeira viagem à Guiné -1998 (2) - Do Hotel Capé (Bafatá), Xitole, Cambêsse e Sincha Madiu
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12226: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (3): A minha primeira viagem em 1998 - A descoberta da nova realidade

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12106: Estórias avulsas (69): Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole, que pescava no Rio Pulom (Jorge Silva, ex-fur mil, CART 2716, Xitole, 1971/72)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) > Forças da CCAÇ 12, a descansar na Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal), por ocasião de uma coluna logística Bambadinca - Xitole (Xitole era a unidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul; era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho.  A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo  com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento.

Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom. Perspetiva: sul-norte. A coluna logística, vinda do Xitole, regressa a Bambadinca, deixando atrás o destacamento da Ponte dos Fulas. Foto do álbum de Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Humbero Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]

1. Mensagem do Jorge Silva  (que entrou para a Tabanca Grande em 23/8/2010; de rendição individual, esteve na Guiné entre 1/5/71 e 24/04/73, tendo passado pela CART 2716 e pelo BENG 447)


Luís Graça,

Um abraço e parabéns pelo óptimo trabalho que tens produzido no blogue que, cada vez mais, agrega ex-combatentes.

Baseado na realidade que vivi no Xitole, produzi um texto cujo tema reputo de interesse e que publiquei, em 28 de setembro último, no blogue da CART 2616.

Se o pretenderes divulgar e te der mais jeito em pdf, anexo-o neste formato.

Jorge Silva
ex-Fur Mil,
CART 2716 (Xitole,1971-72)
e BENG 447 (Bissau 1972/73)





Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Carta do Xime (1955) / Escala 1/50 mil > Subsetor do Xitolke > Posição relativa da Ponte dos Fulas sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal... Ficava na estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho... A oeste, o triângulo Galo Corubal / Satecuta / Seco Braima, controlado pelo PAIGC.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013).


2. Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole

por Jorge Silva

A expressão raças humanas (branca, negra, etc.) resulta de um conceito antropológico antigo e ultrapassado, cada vez mais em desuso, embora o racismo continue a ser uma infeliz e nociva realidade.

Creio que em vez dessa divisão por raças em função da cor da pele devemos considerar, tão só, uma única raça: a raça humana.

Claro que há pessoas com cores de pele branca, negra, amarela e, até, vermelha. Tal como há pessoas que, apesar da cor da pele ser branca, têm olhos azuis, enquanto outros os têm verdes, ou castanhos, ou cinzentos, ou pretos... E há outras que sendo designadas por terem pele branca afinal têm-na muita morena (escura mesmo) e, a par disso, cabelos muito escuros (mesmo pretos), enquanto também as há de pele nitidamente branca e com cabelos loiros.

Hitler foi um verdadeiro e demoníaco “mestre” nestas distinções. E por isso tornou-se o primeiro responsável pelo genocídio de milhares e milhares de seres humanos, para além das nefastas consequências de uma guerra mundial que prejudicou de forma irreparável a humanidade. Hitler não quis ou não foi capaz de perceber que tal diversidade humana é um dom da natureza e uma mais valia da humanidade. E por isso procurou destruir a obra humana, criada pela própria natureza, cuja diversidade os homens se encarregaram de ir enriquecendo ao longo de milhares e milhares de anos.

Ao contrário de Hitler saibamos, pois, aproveitar a riqueza dessa diversidade. E para tal ultrapassemos preconceitos com mais informação válida e mais conhecimento, pois enquanto eles persistirem não seremos capazes de compreender as diversas realidades, costumes e culturas.

Eu tive a sorte de ter a oportunidade de poder começar a compreender as referidas diferenças a partir de 1971.

Com 22 anos fui para a Guiné (Xitole). Branco, e crescido no meio de brancos, fui conviver com negros. Católico,  fui para o meio de muçulmanos, de etnia Fula.

Tive lá um amigo especial, o pescador do Xitole que, na altura,  teria 40 e tal anos, mas que quando tinha apenas 15 anos foi levado de Dakar pelos franceses até Paris para, mesmo sendo menino, ser incorporado no exército francês e ser forçado a participar na última guerra mundial.

O pescador (que,  se a memória não me falha,  se chamava Mamadú), era um homem maduro, vivido e culto. Quando estive destacado na Ponte dos Fulas, juntamente com o David Guimarães, o pescador acompanhou-nos e, com excepção dos fins de semana, em que ia para junto da família, permaneceu connosco cerca de um mês, para lançar as redes no Rio Pulom e capturar o peixe que nos saciou a fome.

Nas muitas conversas que tive com o Mamadú, um dia perguntei-lhe porque é que os homens do Xitole passavam os dias sentados na aldeia enquanto as mulheres se entregavam à vida dura da agricultura, inclusive com filhos às costas e outros a seu lado. E, soltando o que me ia na mente, perguntei-lhe porque é que tais homens não ajudavam as mulheres nos trabalhos agrícolas e, ainda de forma mais directa, se tal se deveria ao facto de esses homens não gostarem de trabalhar...

O meu amigo pescador captou-me o preconceito e,  com imensa calma, feita de muita sabedoria, o Mamadú perguntou-me se na minha terra (Porto) eu encerava o chão, lavava a louça, lavava a roupa à mão, estendia a roupa para secar, passava a roupa a ferro, etc., etc.

Estávamos em 1972 e, também por preconceitos, tudo isso era, inquestionavelmente, trabalho de mulher. De tal modo que qualquer homem que assumisse a realização dessas tarefas seria alvo de epítetos nada abonatórios nem desejáveis.

Naturalmente respondi-lhe que não, o que correspondia à verdade. Mas mesmo que assim não fosse ter-lhe-ia dito na mesma que não. Com um sorriso amigo e de compreensão ele explicou-me que lá no Xitole as coisas também funcionavam de idêntico modo, pois trabalhar a terra era serviço exclusivo de mulher, pelo que se algum homem fosse ajudar a mulher a trabalhar a terra perderia a consideração e o respeito da aldeia.

E, completando a lição, o Mamadú explicou-me que os Fulas eram comerciantes por natureza, pelo que estavam sentados à espera que a guerra acabasse para, sem correrem perigos, poderem trilhar as matas, de aldeia em aldeia,  com a mercadoria às costas, para comercializarem os seus produtos e sustentarem a família.

Percebi, então, que esses amigos Fulas do Xitole não eram malandros. A guerra é que o era. De tal forma que nem sequer os deixava trabalhar.

Aprendi, então, que não devia avaliar os outros à luz da minha cultura e dos meus valores e muito menos com a mente envenenada por preconceitos. O meu amigo Mamadú, pescador do Xitole, ensinou-me isso e muitas coisas mais. E com isso ajudou-me a crescer e a ser homem.


Há pouco tempo informaram-me que ele já teria falecido, o que muito lamento. Evoco-o deste modo, cumprindo uma obrigação que tinha para com esse amigo, já que deixei passar a oportunidade de, olhos nos olhos, lhe agradecer o quanto me ensinou, com uma paciência, uma maturidade e uma humildade difíceis de igualar, a atestar que tive o ensejo de ter estado diante de um homem culto e bom de pele negra.Obrigado, Mamadú, velho pescador do Xitole. E, apesar de ser católico,  desejo que Alá te guarde.

Jorge Silva [, foto à esquerda, do tempo da CART 2716, Xitole, 1971/72]




Página do blogue da CART 2716 (Xitole, 1970/72), Amigos do Xitole,  criada e administrada pelo Jorge Silva
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12105: Estórias avulsas (68): Do meu Álbum de Fotos sobre Galomaro 2 (José Ribeiro)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12059: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (8): De Bafatá até ao regresso a casa

1. Oitavo e último episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

8 - DE BAFATÁ ATÉ AO REGRESSO A CASA

A vinda para Bafatá tinha o sabor de um doce saboreado fora de tempo. Mas era a janela que já se abria à concretização dos sonhos, construídos na esperança de mais uma etapa prestes a ser vencida. Fui aqui colocado, num aquartelamento na zona alta da cidade. Passava uma parte do tempo no parque que ficava por detrás da igreja. Lembram-se camaradas? Era um local agradável, fresco, porque repleto de frondosas árvores e aí nascia uma fonte que se perdia numa pequena bolanha adjacente. Entre as árvores do parque registei uma, de bom porte e que não conhecia. Tinha uns frutos grandes, arredondados, de pele rugosa e acastanhada. Era a Jaca, um fruto que saboreei depois e que considero delicioso, como deliciosas eram todas as outras frutas tropicais disponíveis na Guiné, em especial a polpa do caju.

Entre os outros “afazeres” que me ocupavam em Bafatá, eram uns mergulhos na piscina ali junto do Geba, umas idas ao cinema naquela rua que desembocava no mercado e umas idas ao Posto de Socorros de um Batalhão sediado na cidade e que ficava ao fundo da mesma rua. De vez em quando ia aquele café que fica à direita de quem desce a avenida, saborear um pomposo “bife de porco com batatas fritas”. Gostava de ir ver trabalhar um artesão que executava o seu trabalho na tabanca de Bafatá que, ficava na saída para os lados da ponte. Fazia lindas peças em ouro e prata. Observava deliciado o espelho de água do Geba e a tarefa dos pescadores que, de pé nas suas frágeis canoas, lançavam as redes em tal equilíbrio, quase sem provocar qualquer movimento na embarcação.

Era o sol abrasador, nesta terra no centro da Guiné. Nesta época era uma cidade tranquila, as movimentações militares giravam ao seu redor. Lembro, que daqui tinha saído o bacalhau que, faltando no Xitole, alegrou e deu sentido ao nosso Natal de 1971, apesar do risco que isso comportou. A estrada entre Bafatá e Bambadinca, sede do nosso Batalhão, era alcatroada e estava em muito bom estado. As deslocações entre estas localidades eram fáceis e frequentes. Aproveitei uma boleia e fui até Bambadinca. Lembras-te camarada? Apareci-te de surpresa e passamos um dia muito especial.

Na tua companhia, tive oportunidade de conhecer a “tua” terra, o que não havia conseguido durante toda a comissão. Na parte baixa, ao lado do Geba, ficavam a fonte, o posto dos correios, o posto de combustíveis e o comércio, maioritariamente gerido por europeus. Na parte alta eram as tabancas, principalmente na estrada da saída para o Xitole. E no quartel eram a escola, a capela, a casa do chefe do posto e as áreas militares. E era a enorme bolanha a perder de vista, e as imensas cabeças de gado a pintar a paisagem. Dava um postal magnífico, se não fossem os obuses a destoar do quadro.

Regressado a Bafatá, e uma vez mais em convívio com os meus pares em serviço no posto de socorros do batalhão desta cidade, voltei a exercer a minha função, prestando apoio na assistência a um grupo de militares acidentados, que estavam bastante maltratados. Ao que soubemos, algumas viaturas saíram de Galomaro a caminho de Bafatá e, uma delas despistou-se, ainda antes de terem entrado na estrada alcatroada. Eram algumas fracturas, e escoriações no couro cabeludo e membros. Coube-me prestar assistência a um Furriel, alto, magro, ruivo e de rosto sardento, que seria talvez o ferido com menor gravidade. Noutro momento e noutras crónicas, voltarei a este episódio.

E, os cerca de dois meses em Bafatá chegaram ao fim. Tinha sido um tempo diferente. Tal era a diferença, que cheguei a pensar e até a sentir, que não estava em teatro de guerra. Até que, me enviam para o Xime ao encontro da minha Companhia. Eram os rituais de despedida do MATO. Formados na plataforma de embarque do Xime, o Comandante referia-se ao nosso historial, citando principalmente os louvores e as baixas. Era a hora do balanço, numa linguagem fria, quase desumana, que escondia tanto sofrimento e tantos dramas individuais. Não era ainda a hora de se desligar o interruptor da guerra, mas era a hora e o momento de se levantar o olhar para o horizonte e tentar-se vislumbrar o reencontro com a nossa vida.

E, na maré alta, depois do macaréu, lá partimos na LDG a caminho de Bissau. Já não nos importavam os perigos da viagem no Geba. Já quase tínhamos esquecido os tempos difíceis que ficaram para trás. Só uma coisa importava; BISSAU. Era a ansiosa necessidade de queimarmos mais esta etapa.

Chegados a Bissau, aquartelamos uma vez mais no Depósito de Adidos aguardando transporte aéreo para a Metrópole. E a cidade foi acrescentada de uma pequena multidão ávida de novas emoções, misturadas com a pressa de regressar à VIDA. Em cada um, habitavam já os sonhos e projectos futuros que as circunstâncias tinham adiado. Havia espaço ao sorriso aberto e despreocupado e as conversas estavam carregadas de futuro. Tínhamos pressa de viver. E os dias seguintes foram de isso exemplo.

Uma vez mais, era no Café Bento que a malta tinha encontro marcado. Todos, uns mais que outros, fomos à descoberta da outra face da Guiné. Era o gastar dos “Pesos” amealhados para a “festa” da despedida. Alguns terão vivido nestes dias, momentos que jamais se voltariam a repetir nas suas vidas.

Numa dessas tardes, na companhia de camaradas, subia a principal avenida da cidade a caminho da piscina da UDIB quando senti a necessidade de me apoiar num dos postes da iluminação pública. Um acesso febril, acompanhado de uma debilidade física crescente, fizeram-me desistir da planeada tarde na piscina. Pela primeira vez em toda a comissão, estava com paludismo. Lembras-te camarada? Ajudaste-me a regressar aos Adidos e, na enfermaria, foi confirmado o meu estado de saúde. E, mais uma vez aqui fiquei internado. Tinha sido à chegada e era agora à saída. Impossibilitado de gastar os pesos que havia guardado para estes dias, pedi-te que deles fizesses o melhor uso, porque de nada me valeriam na metrópole.

No dia do embarque, deixei a enfermaria dos Adidos a bordo de uma carrinha militar, rumo ao aeroporto de Bissalanca, já praticamente recuperado do paludismo. Com emoção e uma incontida alegria, deixei que o meu olhar voasse, uma vez mais, sobre as últimas imagens daquela terra. Sentia, que as imagens colhidas naquele olhar me iriam acompanhar durante toda a vida.

Era a hora de ocupar o meu lugar a bordo do Boeing da Força Aérea Portuguesa.

Vinte e dois meses depois, tínhamos aprendido a viver e a conviver em circunstâncias muito particulares, tínhamos criado amizades indestrutíveis, e crescemos. Crescemos muito. Decididamente não éramos os mesmos. Os verdes jovens que haviam chegado tempos atrás à Guiné, partiam agora mais maduros e mais preparados para as adversidades que a vida futura lhes colocasse no caminho. Esses tempos foram uma grande lição de vida.

Chegados a Lisboa, foi uma correria até à Calçada da Ajuda, pois era necessário despojarmo-nos de todos os haveres que a instituição militar entregou à nossa guarda. Era o “espólio”, essa palavra mágica que significava a rotura física com o nosso passado recente. Mas para o sofrimento, as memórias, os afectos e as amizades não haverá nunca espólio capaz de apagar as marcas que carregamos para a sua vida futura. Serão património do carácter, e da personalidade de cada um de nós.

E a correria continuaria depois até à estação de Santa Apolónia. Era preciso chegar a casa e o comboio rumo ao Porto não esperava. Fomos muitos neste trajecto. Para uma boa parte de nós, o destino era o Douro Litoral e o Minho. Lembras-te camarada? À saída de estação de Campanhâ partilhamos o mesmo táxi porque, para chegares a Leça da Palmeira, passaríamos pela minha casa em Matosinhos. Ainda hoje recordo o teu gesto de pagares a totalidade da despesa do táxi.

Cheguei a casa já pela madrugada. Bati à porta. Algum tempo depois surge ensonada a minha querida Mãe. Naquele tempo em nossa casa não havia telefone e, mesmo sabendo os meus familiares que eu regressaria naquele dia, não me esperavam naquela hora. O meu Pai continuou deitado até eu entrar no seu quarto. A minha irmã, logo que se apercebeu da minha chegada, pulou da cama. Depois dos efusivos e apetecidos abraços, prolongamos até ao alvorecer do novo dia uma atmosfera de grande carinho e alegria. Faltava o meu irmão, que tinha ido clandestinamente para França para fugir ao serviço militar. E faltava ainda a minha namorada que, logo pela manhã, apareceu lá em casa. As boas notícias também chegam depressa e a sua presença foi um doce bálsamo.

Estava finalmente entre os meus e de regresso ao caminho para o meu futuro. Para trás ficara um tempo que me ajudou a ver o mundo e os homens com um olhar mais atento e generoso, fruto da convivência de espírito aberto com outras culturas. As realidades do mundo não se esgotam no horizonte em que nascemos.

Para vós camaradas que, chegados aqui com a vossa paciência e generosidade, não se cansaram de estar desse lado da mesa assistir às minhas narrativas, vai o meu abraço fraterno, de quem assume continuar a pertencer de corpo inteiro à grande Família dos ex-combatentes da Guiné.

Voltarei com as crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau.
Até Breve.
José Martins Rodrigues
Ex-1.º Cabo Enfermeiro
CART 2716
XITOLE -1970/72

(FIM)


O delicioso caju à mão de semear

O Mercado de Bafatá

Apreciando o Ourives de Bafatá

Catedral de Bissau
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Nota do editor

Vd. os postes da série de:

31 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11893: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (1): Mobilização

10 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11927: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (2): A viagem para a Guiné

16 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11945: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (3): Da chegada a Bissau ao aquartelamento no Xitole

22 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11968: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (4): Da adaptação ao Xitole, até ao baptismo de fogo

29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole

5 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole
e
12 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12030: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Os meses seguintes, até Bafatá

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12030: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Os meses seguintes, até Bafatá

1. Sétimo episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

7 - Os meses seguintes, até Bafatá

Ainda com a cabeça, mais lá do que cá, ainda a pensar nas férias, dei-me conta da enorme carga de trabalho que ficara às costas do meu camarada. Mesmo com a ajuda do nosso ajudante, um jovem futa-fula de seu nome Galé Djaló que gostava de ser tratado por António Galé, a tarefa de cuidar da saúde de uma companhia e da população não era nada fácil.

Um mês depois do meu regresso, “alinhei” em mais uma operação, uma vez mais por Galo Corubal, Seco Braima e Satecuta, a que se chamou “Quadrilha Sagaz”. A nossa companhia na progressão para o objectivo, num só dia, teve três contactos com o inimigo, felizmente sem feridos graves. Para este resultado, foi determinante o comportamento de um dos nossos camaradas que, com a sua acção arrojada, contribuiu para que as armas do PAIGC se calassem. Este nosso camarada viria a ser distinguido com o Prémio Governador que lhe deu o direito a umas merecidas férias na Metrópole. De Satecuta, eu e mais dois camaradas, trouxemos cada um o seu cachorrinho, ainda bebés. Transportei a minha cadelinha, sim era uma “mulher”, aconchegada ao meu peito na abertura da camisa, que fui alimentando com a bisnaga do leite condensado da minha ração de combate. Desafortunadamente só a minha “Gudhiu”, que em fula significa cão, chegaria com vida ao Xitole. Era o meu troféu de guerra.

O trabalho era intenso, quase não dava descanso. Depois dos insistentes pedidos, o Comando do Batalhão decidiu-se a enviar mais um elemento para reforçar a equipa de Saúde. Viria, na próxima coluna de reabastecimentos que iria até ao Saltinho, um camarada maqueiro de Bambadinca, que era natural do Porto. Quiseram os deuses que esse camarada não ficasse no Xitole.

Esta coluna ficou marcada por um episódio insólito e dramático.
Após a paragem no Xitole, seguiria para o Saltinho. O retomar da marcha fez-se de forma muito desorganizada. Logo à saída do Xitole a coluna ficou “partida”. Algumas viaturas, militares e civis, já haviam seguido, e outras ficaram para trás. Um Unimog, na tentativa de se reaproximar da viatura seguinte, terá excedido a velocidade para uma picada cheia de cavernas e curvas apertadas, o que provocou o seu despiste, tendo-se voltado e projectado os seus ocupantes.

Dado o alarme, desloquei-me ao local do acidente e deparei-me com uma cena muito triste. Todos os militares estavam estendidos e espalhados pelo chão, embrulhados na vegetação do local. Alguns gemiam, outros não davam acordo de si e um outro, o condutor africano, estava morto. Todos os militares europeus apresentavam sinais de fracturas diversas e o africano, tinha o crânio desfeito por uma bala. Tinha-se suicidado com a sua G3, talvez porque pensou ter morto toda aquela gente e a sua consciência não aceitasse o peso desse fardo.

O corpo do condutor africano, depois de autopsiado no Xitole, foi entregue à família. Todos os feridos foram evacuados e entre eles, por ironia do destino, estava o camarada que tinha vindo para integrar a nossa equipa de enfermagem. Má sorte a dele e, também a nossa que continuamos os mesmos para tanto trabalho.

Por estas alturas, falava-se que o nosso Capitão estaria preocupado com o excessivo número de caninos que habitava o quartel. Era um drama, cada abrigo queria o seu. Quase todos baptizados com nomes de clubes de futebol, era uma delícia quando na época do cio se assistia ao Porto a f…….. o Benfica e outros encontros caninos.
Por mais absurdo que pareça, este espectáculo tinha assistência garantida em dias ou horas de pasmaceira, quando não por outras razões.

E eu afeiçoei-me à minha Gudhiu, a quem dava vitaminas e o melhor da minha ração do rancho. Tinha uma pelagem brilhante, mesmo sedosa. Era o meu orgulho e a dona dos meus afectos mais próximos. Até que um dia, quando a GMC que estacionava defronte do Posto de Socorros se pôs em marcha, atropelou a minha cadelinha que se abrigava do sol debaixo da viatura. Era o fim. Por mais que me custasse admitir, a minha Gudhiu estava condenada. Os camaradas do abrigo dos condutores, sabendo do estado do animal, esperaram que me ausentasse e, no fim da pista, abateram o animal. Foi duro perder aquela que sonhei trazer comigo no fim da comissão.

Já assumíamos que o tempo entrara em contagem decrescente.

Chegados aqui, já sabíamos porque é que o Domingo era quase sempre diferente dos outros dias. Seria, porque o nosso Capitão reunia semanalmente o pessoal da Companhia na parada, ali ao lado da capelinha e, nos transmitia as suas preocupações quanto às questões da nossa segurança, nos alertava para os cuidados a ter com a saúde e nos incutia a obrigação de sermos respeitadores das tradições dos guineenses. Seria porque, quase sempre, saíam nesse dia três a quatro viaturas com destino a Cusselinta, com passagem pelas tabancas. Eram os grandes saltos do cimo da rocha para a piscina natural criada pelos rápidos, eram os mergulhos em que íamos armados de faca de mato à “caça” das ostras, eram os lançamentos de granadas para se recolher uma sacada de peixes e, na época, comiam-se as laranjas doces de casca verde, surripiadas do cima das viaturas á passagem por Sinchã Madiu. Eram os nossos Domingos, quase sempre, quase sempre.

E nesse, como nos outros dias, era também a atenção aos nossos camaradas que se encontravam acamados nos abrigos, quase sempre com a malária. Até que um dia, nessas andanças de cuidar dos nossos, saía eu do Posto de Socorros levando nas mãos uma caixa que continha seringas e agulhas esterilizadas para aplicar a um camarada ali nos fundos do quartel, junto da cozinha, quando deparei com um ajuntamento da nossa malta, formada em círculo. Quando tentava perceber o que se passava, ouvi uma voz que me chamava; “o nosso militar aonde vai?”.

Soou-me estranha aquela voz e levantei o olhar tentando identificar a origem do chamamento. Era o nosso Comandante-Chefe, General António Spínola, que nos fazia uma visita relâmpago. Mal fardado, sem boné, de chinelos e de barba descuidada dirigi-me para o local. O círculo partiu-se para eu entrar. Estava apreensivo e expectante. Perfilei-me respeitosamente. O monóculo e o bengalim impunham muito respeitinho. O General Spínola percebeu o óbvio quando verificou o que eu tinha nas mãos. Com aquele timbre de voz, serena e pausada disse-me:
- Continue o que estava a fazer.

Respirei fundo e retirei-me. Este encontro, tão inesperado e tão próximo, marcou-me de tal maneira que fiquei admirar o Homem e o Militar. Passei aceitá-lo como um dos nossos, mais próximo e atento aos nossos problemas e despido das suas estrelas.

E os dias iam passando. A vida no quartel era preenchida aqui e ali com uns acontecimentos mais ou menos pitorescos. Os jogos de futebol ao final da tarde entre os pelotões, quantas vezes debaixo de trovoadas, marcavam a nossa principal forma de enganar o tempo.
Até que um dia, dois pelotões acertaram mais uma peladinha de tira-teimas. Era quase como que uma desforra entre os melhores e, muito aguardada pelo pessoal. Estávamos nas nossas tarefas diárias quando, o Alferes de um dos pelotões chega ao Posto de Socorros e nos pede para lhe fazermos umas massagens. Era a vedeta da equipa, e queria estar à altura das expectativas. Talvez por excesso de trabalho, talvez porque se aceitássemos a excepção seria o "fim da macacada” com todos a bater-nos à porta, talvez porque talvez ou, não sabendo bem porquê, a resposta saiu pronta: - Nem pensar.

A reacção do Alferes veio embrulhada nos seus galões e em ameaças subtis. Fizemos saber ao oficial que, dentro do Posto de Socorros só entrava quem viesse tratar-se e que os galões ficavam fora da porta. O bom senso imperou, o assunto ficou encerrado e com o passar do tempo o episódio foi esquecido.

Outro episódio bem pitoresco tem como protagonistas o mesmo Alferes, o seu cabrito e alguns “malandrecos” do seu pelotão.
O oficial mantinha preso próximo do seu quarto um cabrito que havia adquirido nas tabancas. Mas, alguns membros do seu grupo, e não só, entenderam que o rancho estava muito repetitivo e vai daí, se bem pensaram melhor o fizeram, abotoaram-se durante a noite ao cabrito e, com a cumplicidade do cozinheiro do rancho abateram o animal e prepararam um lauto assado. O principal convidado do repasto era naturalmente o dito cujo oficial. Quando do animal só eram visíveis alguns dos fragmentos do seu esqueleto e todos se encontravam já bem bebidos, alguém solta uma “boca” deixando entender a proveniência do animal. Foi a risada geral.
No primeiro momento o oficial passou do encarnado ao rubro, mas acabou por achar piada à partida do seu pessoal. A malta esteve à altura da brincadeira e do respeito pelo seu superior e ofereceram-se para lhe repor o animal, o que não aceitou.

Dentro e fora do quartel a equipa de saúde dedicava-se com empenho no apoio às populações. Tínhamos conquistado a sua estima e disso nos davam testemunho com a oferta de ovos, frangos, carnes, frutas etc. O sentimento era recíproco. Entre tantos momentos vividos com as populações destaco a tarefa de apoio às parturientes.
Sem preparação técnica e sem qualquer experiência prática, só a vontade de ajudar e alguma intuição me permitiram ser útil nesses momentos. De entre os vários casos, um caso em particular mereceu o registo na minha memória.

Ali para os fundos do Xitole, à saída para as tabancas, vivia uma família que incluía uma jovem e bonita mulher. Esta jovem era de quase todos conhecida porque, caso raro, tinha um peito bastante maior que o outro. Um dia, sou chamado a prestar assistência a essa jovem que entrara em trabalhos de parto e que as mulheres grandes que a acompanhavam consideravam difícil.
Munido de injectáveis para facilitar a dilatação, deitei mãos à obra. Sempre na presença das “parteiras” ministrei a medicação e esperei, deixando que a tradição e a ciência funcionassem. Mas a criança teimava em não querer ver a luz do dia. Repetida a medicação e depois de nova espera o resultado seria o mesmo.

A criança estava sujeita a sofrimento e, depois de nova tentativa, acabaria por nascer sem vida. Segundo a voz da tabanca, dizia-se que a criança poderia ser filha de um branco e que a jovem dificultou o parto para esconder esse facto.

Enquanto acontecia mais um ataque à Ponte dos Fulas e às tabancas de Cambêssê e de Sinchã Madiu, a Comissão caminhava para o fim. Estávamos no início de 1972 e, para minha surpresa, fui informado de que iria ser colocado em Bafatá. Explicaram-me que iria para descansar, simplesmente. Custava-me o afastamento dos meus camaradas, mas a ideia agradou-me.

Piscina natural em Cussilinta – Corubal

Na esplanada da messe dos oficiais

Entrada do posto de socorros do Xitole

Picada Xitole/ Saltinho na época das chuvas

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole

1. Sexto episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU

6 - As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole

Ainda no Aeroporto de Pedras Rubras, tudo se conjugava para viver momentos inesquecíveis. Ficara para trás a incerteza da Guiné, a experiência de voo em aviões “Caravelle” a jacto, e era a presença da família, da namorada e de amigos da juventude.

Pela recepção e pelo carinho e emoção com que me rodearam, já sentia o quanto valeu a pena ter vindo de férias. Todos queriam saber de mim e da guerra. Para eles, essa coisa que, estando tão longe e por vezes tão perto, representava sempre risco de perderem alguém.

Já no aconchego da nossa casa, o meu Pai mostrava alguma compreensão pelas minhas escolhas na vida e era o mais interessado nos pormenores da guerra, especialmente naqueles com leitura política.
Como actuava o PAIGC?
Que forças tinham?
Que áreas controlavam?
E como é o teu dia a dia?

A minha Mãe, como todas as Mães do mundo, abraçava-me a toda a hora, como quem precisa de sentir para acreditar que o filho estava ali.
O rosto da minha namorada espelhava a felicidade de me ter a seu lado.
A minha velhinha avó paterna, que me criou até aos cinco anos e que nutria por mim uma afeição especial por eu ser o seu primeiro neto, achava que estava muito magrinho e insistia para que me alimentasse melhor.

Eram tempos de partilha com a família e do regular convívio de café com os amigos, alguns deles com a possibilidade de virem a “bater com as costas” na guerra de África.
As motivações que me impeliram para vir de férias faziam todo o sentido. Tinha agora uma relação mais afectuosa com o meu Pai, transmiti à minha namorada a confiança de que os nossos sentimentos eram o futuro e estava recuperado do enorme desgaste físico em que me encontrava. Mas o tempo voa, especialmente nestas circunstâncias e, quase sem se dar por isso, a data do regressar à Guiné estava aí.

No dia do regresso, a família e a namorada acompanharam-me ao aeroporto. Enquanto se aguardava a hora das despedidas, o meu Pai pediu-me que, no regresso definitivo a casa, lhe trouxesse duas garrafas de vodka para oferecer a amigos. Percebi a motivação do pedido e garanti-lhe que seria satisfeito.

Algo afastados do local em que me encontrava com a família, notei a presença de um grupo de pessoas que incluía algumas minhas conhecidas, todas de luto, e com semblantes de dor. Dirigi-me para junto dessas pessoas, cumprimentei as que conhecia, e indaguei dos motivos do luto e da presença no aeroporto. Foi como se tivesse levado um coice no peito. Fomos Amigos de escola, Colegas na equipa de Natação do Leixões, Companheiros da Vida e Tu, logo Tu, havias de tombar em combate na Guiné.

A família a namorada e amigos estavam ali à espera da urna para lhe fazerem o funeral. Partilhei com eles alguns momentos de pesar e dor. Quando os informei de que estava ali para regressar á Guiné, ficaram pesarosos e desejaram-me a maior sorte do Mundo.

O tempo que restava não me permitiu assistir
à chegada da urna do meu Amigo. Evitei que a minha família percebesse o motivo porque me tinha afastado. Posteriormente, viria a saber que o meu Companheiro e Amigo que servia nas tropas paraquedistas, havia tombado na zona de Galomaro, numa emboscada junto de uma fonte.

Era o regresso marcado pelas sombras da guerra. Mas valeu a pena ter vindo de férias. Estava grato pelo carinho de todos e fiquei rendido, aquelas lágrimas rebeldes que vi saírem dos olhos do meu Pai, no momento do abraço de despedida. Sim, eu sei que valeu a pena. Tal como a viagem de barco, a viagem de avião de regresso à Guiné faria escala em Cabo Verde, desta vez na Ilha do Sal.

Fizemos uma paragem de cerca de uma hora e, por aquilo que pude ver, a ilha era muito árida e pouco povoada. Desci em Bissau no início de Junho e já chovia. À boleia, numa viatura militar, fui de Bissalanca até ao Depósito de Adidos em Brá. Aqui, fiquei aguardar transporte para o Xitole.

Instalado, apressei-me a ir cumprimentar o Sargento Enfermeiro que me havia tratado quando cheguei à Guiné, pela primeira vez. Já não me conhecia, era normal, tanta gente lhe havia passado pelas mãos mas, devia-lhe a gratidão pelo seu cuidado e disso dei testemunho do meu agradecimento.

Este tempo de espera permitiu-me “saborear” Bissau, os seus recantos e encantos, mistérios e até perigos. Pude desta feita, conhecer os locais mais frequentados pela tropa “macaca”. Quantos de nós terão resistido à tentação de se aventurar pelo “Pilão” e sentir aquela atmosfera de provocação, aquela mistura de desafio, “pecado” e até magia que nos envolvia. Eram as mulheres mais lindas, sobretudo as de origem cabo-verdiana, o motivo maior da nossa atenção.
Falava-se de que, por estas bandas, aconteceriam rixas bravas entre as tropas especiais, cada qual, numa demonstração da superioridade das suas “boinas”. Eram os tempos de se “pisar o risco” e de se dar livre escape à irreverência da juventude.

Era a quase obrigação de se ir ao UDIB dar um mergulho na piscina, ver-se um filme e depois irem alguns, os poucos que gostavam, comerem-se umas ostras ali para os lados do cais. E o ponto de encontro, camaradas? Lembram-se do imperdível Café Bento? Haverá porventura alguém que tenha passado por Bissau, especialmente da classe das praças, que não conheça o Café Bento? Era o nosso ponto de encontro, camaradas. Ali se encontravam os amigos, os amigos dos amigos, os conhecidos dos amigos e até, pasme-se, os desconhecidos.
Em pouco tempo se ficava a saber tudo o que se passou, o que se passava e o que viria a passar-se em qualquer canto, por mais escondido que estivesse no território da Guiné. Era a nossa 5.ª Rep, o serviço de informações mais eficiente, existente no território.

Entre umas canecas de boa cerveja e uma engraxadela dos sapatos a conversa fluía sempre interessante e actualizada. Foi neste meio que encontrei o namorado, de uma colega de trabalho da minha namorada, que estava no Forte de Amura como Polícia Militar. Logo ali me disponibilizou cama e mesa de qualidade bem superior à do Depósito de Adidos. Porque será que não me surpreendeu a sua atitude? É que a malta, naquelas circunstâncias, é capaz das atitudes mais nobres só para ter por perto alguém que lhe fale daquilo que lhe é familiar.

E nestas andanças, chegou o dia 9 de Junho de 1971. Estávamos na véspera do Feriado Nacional e, para minha surpresa, estava nomeado Cabo de Dia ao Depósito de Adidos. Acreditem camaradas, nunca tinha feito tal serviço. Só fui promovido a Primeiro-Cabo na data do embarque em Lisboa e, no mato, os enfermeiros estavam dispensados de serviços, assim pensava eu.

Algo me dizia, e disso comecei a convencer-me, de que nada acontecia por acaso. Ao início da noite, enquanto o pessoal em formatura aguardava a chegada do Sargento de Dia para a verificação de presenças, ouviram-se uns enormes estrondos de rebentamentos, que me pareceram vir, ali mais para os lados de Bissau. À ordem do Sargento de Dia, todos fomos procurar abrigo nas enormes “valetas” que ladeavam a parada alcatroada.

Após os primeiros impactos, os Sargento e Oficial de Dia comentavam que Bissau estaria a ser atacada. Ó diabo, nem aqui se está bem? Não se ouviam sirenes de ambulâncias. O que estaria acontecer em Bissau, será que sofremos muitas baixas?
Essa noite foi de alerta geral. Aconteceu o que muitos, há muito tempo vaticinavam. Era o fim do mito do refúgio seguro.
O PAIGC tinha feito uma demonstração do seu atrevimento e força.

No dia seguinte, nas conversas do Café Bento o assunto era o ataque a Bissau. Era assunto incontornável a que ninguém ficava indiferente. Uns diziam que os “mísseis” caíram ali para os lados dos tanques de combustível da Sacor, que ficavam nas margens do Geba às portas da cidade. Outros, afirmavam que todos os rebentamentos se deram nas bolanhas bem longe da cidade. Em Bissau e no interior, esta evolução da guerra deixou-nos a todos muito apreensivos. Que futuro? 
Fiquei marcado com a convicção que nada seria como dantes na Guiné depois daquela noite.

Deixei Bissau de retorno ao Xitole a bordo de uma avioneta DO. Foi uma sensação difícil de descrever quando sobrevoei o Xitole, momentos antes de a avioneta tocar a “pista”.
Eu sabia o que via, eu sentia o que via e sabia ao que vinha. Nada podia alterar o rumo das coisas. Estava novamente confrontado com a amarga realidade da guerra.

Todas as visitas da avioneta ao Xitole geravam um movimento anormal de pessoas na zona do “hangar”, fosse pela curiosidade ou pela ânsia do tão desejado correio.
Lá estava, entre tantos, o meu camarada enfermeiro que, mal me viu, apressou o passo para me dar um abraço de boas-vindas e ajudar a carregar os meus haveres.

- Como te correram as coisas, só com o Galé a ajudar-te? - Disparei eu.
 
(Continua)

Principal avenida de Bissau

Messe dos oficiais e campo de futebol

Ponto de encontro – Café Bento

Momento de relaxe jogando-se a lerpa
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole

1. Quinto episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU

5 – Os meses seguintes até às Férias na Metrópole

Era a época das chuvas e, estavam já inscritas nas nossas rotinas a presença diária das lavadeiras, dos “putos” dos abrigos, e as idas à Ponte dos Fulas. As saídas às tabancas e patrulhamentos, passaram a ser mais espaçadas. Devido ao isolamento provocado pelas chuvas, não eram possíveis as colunas de reabastecimento o que transformou, durante meses, o Rancho Geral numa rotina que alternava entre “vianda” com atum ou com salsichas porque, os pára-quedas que traziam os frescos eram um verdadeiro milagre. Logo pela manhã, os putos da nossa estimação encarregavam-se de que o pequeno-almoço não faltasse no momento certo. As lavadeiras tratavam as roupas com esmero e desdobravam-se na conquista da nossa simpatia. Era a luta pela sobrevivência, vista do outro lado.

Já tudo funcionava, parecia um paraíso. As primeiras grandes “pielas” não se fizeram esperar. Nuns quantos abrigos cantarolava-se ao som de uma viola e as patuscadas ditavam o fim de uns quantos frangos e cabritos. Rolavam as “bazucas” da Cristal. Lembras-te camarada? Tinhas um talento soberbo para as petiscadas. Fazias uns pitéus de hipopótamo, de vaca ou de frango que eram de chorar por mais. Bons momentos, que nos faziam esquecer as agruras da guerra. Os jogos de futebol, algumas paixonetas pelas bajudas e as idas domingueiras a banhos em Cusselinta, compunham o resto do ramalhete.

Devido à intensidade das chuvas, o caudal do Rio Corubal subiu acentuadamente. Uma noite, as sentinelas do posto da cozinha assustadas, deram o alarme. Teriam ouvido um zumbido muito intenso e que lhes parecia ser um helicóptero. Todo o pessoal ficou em prontidão, mas a presença da aeronave não se confirmou. Todos se interrogavam da origem do estranho barulho. A resposta veio pela manhã pela boca da população. O “zumbido” teria origem na força da deslocação do vento, provocado pela grande altura da vaga do Macaréu no Corubal. A pouca distância do quartel para o rio fez o resto.

Não resisto camaradas, a partilhar convosco uma “estória” singular de que fui um dos intervenientes. E quero garantir-vos que, só eu e o principal actor a conhecemos e do seu nome sempre farei reserva.
Um dia, um dos oficiais da companhia em privado no Posto de Socorros, foi-me dizendo que, como já tínhamos uns meses de comissão sentia necessidade de ter relações sexuais, de preferência longe do Xitole e, não se via, devido ao seu posto a ir à tabanca solicitar os favores sexuais de uma mulher.
Mas porquê a mim este pedido, interrogava-me eu? E logo a mim, que também estive uns meses a “seco” com medo das doenças sexualmente transmissíveis, ou não fosse eu Enfermeiro e, não soubesse das misérias de uns quantos! E acabei por entender a escolha do oficial.
Devido à minha função, respeitado pela população, entendeu ele que a mim elas não recusariam um pedido. Não era tão fácil assim mas, vestido dos meus brios e dos dotes que os outros me atribuíam, não dei o flanco e respondi:
- Vamos tentar.

Engendrei uma estratégia, que nem para mim tinha utilizado.
- Quando o senhor se deslocar às tabancas mais afastadas, eu também irei prestar assistência sanitária às populações e veremos então o que se pode arranjar.

E lá fomos um dia.
Chegados a Tangali, debaixo de um grande mangueiro no centro da tabanca, pedi que se reunissem as pessoas que necessitassem de assistência. Entre o grupo que entretanto se juntou, estava uma linda mulher, alta, de tez clara, talvez Futa-Fula com uma criança ao colo, aí pelos dois anos. Adivinhava-se-lhe uns lindos seios e um corpo escultural. Vai ser esta, pensei eu.
Propositadamente deixei-a ficar para o fim.
O “consultório” era no interior de uma das habitações próximas do mangueiro e o oficial assistia ao desenrolar das “consultas”.
Quando ela entrou, eu dei-lhe sinal de que o momento tinha chegado. Abordei a mulher e, ela pediu-me “mesinho” para a criança que estava com “panga na bariga”. Antes de continuar, solicitei-lhe que “partisse catota” com o oficial, que era “manga” de bom pessoal e que eu depois trataria muito bem o seu menino. Com alguma relutância, que sinceramente vos digo, me pareceu algo artificial, acedeu ao meu pedido.
Deixei-os a sós durante o tempo suficiente enquanto me demorava, simulando ir à viatura buscar medicamentos. Por pudor ou por respeito, eu e o oficial nunca mais voltamos a trocar qualquer palavra a propósito deste episódio.

Umas horas depois eu questionava-me? Mas que desperdício, para mim “niente”.
Bem mais à distância no tempo, não pude evitar um sentimento de repulsa por me ter prestado a esse papel. Era a guerra que tudo explicava, ou antes, que anestesiava o nosso carácter.
E o tempo ia correndo até que, um nefasto acontecimento veio empalidecer os nossos dias.

No percurso entre o Xitole e a Ponte dos Fulas existia um trilho, aí a um quilómetro do quartel, que se sabia usado pelo PAIGC e que era necessário armadilhar para se evitar que viessem colocar mais minas e atacassem o Xitole como já o haviam feito.

Uma secção, com dois furriéis especialistas em minas e armadilhas, foram encarregados dessa tarefa. Era um final de tarde e o tempo urgia antes que escurecesse. Os furriéis montavam a armadilha enquanto o resto da secção, afastada, fazia protecção. Inesperadamente, aconteceu o desastre. Um deles, completamente destroçado, teve morte imediata. O outro ficou gravemente ferido no rosto, no tórax e quase perdeu uma mão. Eram dois jovens, dois jovens com a vida e os sonhos interrompidos. Caía uma noite muito enevoada, o que não permitiu voos para a evacuação urgente do ferido muito grave.

Foi uma noite muito difícil, em que assistimos a noite inteira, minuto a minuto, ao sofrimento e à luta pela vida de um camarada e, tendo bem ao lado, o outro que havia falecido. Enquanto aceitava impotente, a impossibilidade da evacuação que insistentemente pedi, não consegui evitar as lágrimas pelo sofrimento humano a que assistia. Sempre atentos, mantivemos os procedimentos de estabilização do ferido até à evacuação, que aconteceu logo que a luz do dia o permitiu.
O nosso camarada saiu das nossas mãos com vida e assim continuou depois de tratado em Bissau e evacuado para Lisboa. Termos consciência de que a nossa acção contribuiu para salvar uma vida, enche-nos de uma imensa alegria, quase como que um hino de louvor à Vida.

Estávamos novamente na época seca. Os tempos seguintes foram de flagelações à Ponte dos Fulas e ao Xitole, levantamentos e rebentamentos de minas, patrulhamentos e Operações de grande envergadura. Destaco, pelas especiais circunstâncias as “ARRUAÇA" 1 e 2. A Operação “Arruaça 1” foi um autêntico fracasso militar.

Na progressão para SATECUTA, o PAIGC montou uma emboscada de que resultaram ferimentos nos dois guias africanos, sendo um deles com gravidade. Avisado dos feridos, desloquei-me à frente e deparei com os dois guias prostrados no chão. Logo me apercebi de que um deles não inspirava cuidados de maior, mas o outro estava esventrado e com os intestinos pousados no chão, misturados com terra e capim.
O velho guia estava estável e lúcido. No seu aportuguesado crioulo, balbuciava que ia morrer e eu tentava transmitir-lhe serenidade e a convicção de que se salvaria, embora eu próprio não estivesse convencido disso.
Em pleno mato, sob fogo do inimigo, as condições de tratamento dum caso destes, são muito difíceis. O ferido apresentava sinais de que uma bala ou um estilhaço lhe teria “rasgado” a parede abdominal. O objecto causador só parou no velho cantil esmaltado que o ferido trazia à cintura. Felizmente nenhum órgão vital fora atingido, nem mesmo os intestinos. Foi necessário retirar destes, todos os vestígios de terra e capim e repô-los na cavidade abdominal.

Já mais sereno, o guia pediu-me que ficasse com o amuleto que trazia ao pescoço e uma bolsa em pele e os entregasse à família. Confiava, como se de um testamenteiro se tratasse, que eu cumpriria o seu pedido, o que lhe garanti. Tocou-me bem fundo este gesto, que revela o quanto a natureza humana é tão frágil em momentos limite.
E o nosso velho Guia foi evacuado a partir do mato e, apesar de longo internamento em Bissau, sobreviveu. Mas, sem guias, a Companhia não tinha possibilidades de prosseguir. Bem lá do alto do avião ligeiro DO, o Comando insistia que, guiados por ele, podíamos continuar. Não foi esse o entendimento do Comandante da Companhia que, avaliando as circunstâncias, ordenou a retirada para o Xitole apesar das dificuldades de orientação que viriam a provocar a fragmentação da Companhia.

O comandante da Operação ordenaria a repetição da mesma “ARRUAÇA 2”, três dias depois. Esta Operação correu bem e cumpriu o objectivo de destruir SATECUTA.

Sem perceber como, aquando da entrada no objectivo, eu ia integrado no pelotão de assalto. Após os primeiros minutos e não havendo sinal do inimigo, começamos a incendiar o colmo dos telhados das casas. Quando as labaredas já iam altas, rebentou um fogachal medonho. Entretidos na tarefa de pegar fogo à tabanca, eu e mais dois camaradas mal tivemos tempo de nos abrigarmos atrás de uma grande palmeira que se encontrava perto de nós. Lembram-se camaradas? Um de vós lançava dilagramas, o outro disparava a sua G3 e eu, no meio de vós de cabeça bem rente ao solo.

Quando, por momentos levantei a cabeça, assustei-me com a possibilidade de os dilagramas baterem nas grandes folhas da palmeira. O perigo cercava-nos. Foi o momento em que concentrei o pensamento e senti a necessidade de, por instantes, dedicar uma breve lembrança aos que me eram mais queridos.
Até que um de vós percebe que um líquido quente lhe escorre para o pescoço e, ao passar a mão no rosto e vendo que está suja de sangue, quase entra em pânico. Foi preciso um forte abanão para te sossegar e, estando nós ainda debaixo de fogo, aconcheguei-te a mim para fazer o que fosse possível naquelas circunstâncias. Pude verificar que um estilhaço se espetou na parede do crânio na zona da orelha e que, mesmo sangrando muito, não estavas em perigo.

Temendo provocar uma situação que poderia não controlar, optei por não mexer no estilhaço e controlar a perda de sangue. Foste o único ferido, continuaste connosco até ao fim e só foste evacuado a partir do Xitole. A vinda do providencial helicanhão pôs fim àquele inferno.

A pressão sobre a Companhia era enorme. Cerca de um mês depois realizou-se a operação “CORRIDA ENTUSIÁSTICA” para o mesmo objectivo mas por diferentes percursos.
Digno de realce, foi o momento em que um helicóptero desce numa bolanha e, de surpresa, temos perante os nossos olhos o Comandante-Chefe General Spínola. Foi gratificante e moralizador sentir a sua presença e companhia durante uma parte do percurso a caminho do objectivo.

Por esta altura, o Serviço de Saúde funcionava só com dois cabos enfermeiros. O outro camarada por castigo, foi deslocado para Nhabijões/Bambadinca e para os que ficaram, sobrou uma carga excessiva de trabalho.

Lembram-se camaradas que parti para a Guiné de relações cortadas com o meu Pai. Essa situação vinha-me castigando interiormente o que, aliado ao imenso cansaço, fez-me alimentar a ideia ir à Metrópole de férias. Pretendia tentar reatar as relações com o meu Progenitor e, na companhia da família e da namorada comemorar o meu aniversário.
Um tio materno, intercedeu junto do meu Pai e conseguiu que ele aceitasse receber-me em casa. Para minha felicidade, o meu pai esperava-me no Aeroporto de Pedras Rubras. Trocamos aquele apertado abraço que me toldou a emoção até às lágrimas. O Amor falou tão alto, quanto um grito do fundo da Alma.

(Continua)

Corubal nas proximidades do Xitole

Rápidos de Cussilinta na época seca

Hora das lavadeiras, casa do Chefe do Posto e, em primeiro plano à direita, Bar do Soldado e Capelinha

Campo de futebol e pista de aterragem
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11968: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (4): Da adaptação ao Xitole, até ao baptismo de fogo

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11982: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (5): Uma noite em Tangali com ataque ao Xitole, o quico do furriel Fevereiro e o meu baptismo de... voo em 1971

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Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > "... 58, 59 ... 70, 71...89, 90... 98... 99... 100!  Cem canhoadas em dez  minutos no ataque ao aquartelamento do Xitole".

Foto (e legenda): © David Guimarães (2005). Todos os direitos reservados


1. Texto do David Guimarães (ex-Fur Mil Guimarães, CART 2716, Xitole, 1970/72) [, foto à esquerda, Saltinho, 2011]. Continuação da série Estórias do Xitole (*),  a partir de postes da I Série do nosso blogue:

Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o [furriel] Fevereiro (**) a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela).

Bem, saímos pelo fim da pista do Xitole, com dois Unimogs 411 e lá fomos. Era mesmo chato, ir dormir para a tabanca e logo para aquela:
─ Pôça, eles até eram todos de lá!  ─ pensei eu, pouco ou nada confiante na lealdade da população local para com as NT.

Na realidade, os de Tangali [, a seguir a Cambesse, na estrada para o Saltinho] jogavam para os dois lados, conforme as conveniências... Bem, lá fomos e ao fim de 7 Km lá estávamos nós.... Nisto, diz-me o Fevereiro:
─ Porra, Guimarães, perdi o meu quico!

Entretanto, vejo e ouço toda aquela gente alarmada:
─ Furriel, furriel, manga de ronco lá para o lado do Xitole!... Muito tiro, muito tiro.
 Transmissões, liga para o quartel, pergunta o que houve ─ ordeno eu.
─ Furriel, ninguém atende, não consigo nada, porra para isto!
─ Bem, nós estamos aqui, amanhã veremos o ronco  arrematei  eu.

Nessa noite não dormimos tão descansados:
─ Porra, ronco e tiros, sei lá, vamos mas é ficar atentos...

A noite nunca mais acabava... De manhã cedo, bem formados e atentos, lá fomos estrada fora, de regresso ao Xitole e entrámos pelo fundo da pista de aviação... Bem, buracos no chão não faltavam. Diz-me o Fevereiro:
 ─ Guimarães, olha ali o meu quico!
 Boa ─ disse eu tiveste  sorte, ele apareceu.

Ele pega no quico e mesmo no local da nuca estava um furo:
 ─ Já viste ─  exclama o Fevereiro para mim  ─ se eu tinha a cabeça aqui dentro!...

Bem, lá chegámos ao aquartelamento [do Xitole]:
─ Tanto buraco!
É, pá, os gajos apontaram para aqui e até parecia que disparavam em rajada os canhões sem recuo... Vinha daquele lado do Corubal...


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Subsetor de Xitole > Carta de Xitole (1955) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Xitole, Cambesse (ou Cambéssé) e Tangali, na estrada que conduzia ao Saltinho.

Infografia: Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné (2013)

Tarefa matutinal: ver os estragos e contar as canhoadas; sim, as marcas bem visíveis e os cotos das granadas bem enterradas no chão como se fossem setas de índios:
─ Olha, esta entrou no depósito de géneros... vamos ver!

Depois de bem contados, parece que só se tinham partido 4 garrafões de vinho... Coitados dos garrafões, do mal o menos...
 ...58, 59 ... 70, 71.... porra e mais aqui ... 89, 90... 98... 99.... e esta também ... 100!!!

O ataque tinha demorado... dez minutos!
 Porra, porra!  ─ ainda dizia o Fevereiro, a olhar para o estado lastimoso em que ficou o seu quico.

Nessa altura tinha chegado ao Xitole um morteiro de calibre 107 mm  [, ou 10.7,  vd. imagem à esquerda, retirada do blogue do nosso camarada Luís Dias, CCAÇ 3491, Dulombi, 1971/74].

Para dar instrução sobre esse morteiro tinha vindo um primeiro sargento especialista de armas pesadas, ex-cabo e ex-comandante de um posto qualquer da GNR lá na Metrópole.

Experimentou-se o dez sete, assim chamávamos ao morteiro.... Poça, parecia uma arma de artilharia, boa não há dúvida, pelo menos muito barulho fazia....

De manhã, o 1º sargento costumava dar as aulas teóricas sobre o funcionamento da coisa e não é que, por ironia do destino, muitas noites e algumas seguidas éramos atacados sempre de canhão sem recuo.... A certa altura o homem do bar dizia:
─ Fui eu, ao bater a porta do frigorifico...

É que que esse barulho punha-nos todos a caminho do abrigo... Tantas vezes ele repetiram aquelas flagelações e o dez sete a funcionar... Logo de manhã, as aulas práticas e, à tarde, a teóricas...

Até que se aproximou o dia da minha licença disciplinar de 30 dias... Sim, aquilo que chamávamos férias.... Bem, mas antes teria que se ir a Satecuta [uma das bases do PAIGC, junto ao Rio Corubal, a oeste do Xitole]... Aquilo parecia uma cidade, já tinha sido visto de avioneta....

Na primeira ida, ficou a companhia de formação e comando e fiquei eu. Não relatarei o que disseram, relatarei apenas o que vi do aquartelanmento... Enfim, sem querer ser herói, percebi quanto um jogardor de futebol sofre quando está na bancada... Era o caso: a certa altura naquele dia, uma avioneta lá londe começou a andar em círculo, por baixo os jagudis na mesma em círculo, ouviam-se tiros e mais tiros, rebentamentos e mais rebentamentos. Um inferno!
─ Ai, como estarão eles, coitados, que coisa ─  dizia eu cá para mim.

A certa altura, inesperadamente a avioneta (uma DO) afasta-se e os tiros terminam. E os jagudis também desaparecem.... Por fim, todos sujos, cagados, os bravos voltam:
─ Não, não deu para entrar....

Em cada operação em que havia tiros, que coisa, vínhamos todos enfarruscados....
─ Bem, tudo muito bem, mas eles não deixaram, recebemos ordem de retirar pelo Comandante... Ninguém ficou ferido, ao menos isso... Enfim, desta vez ao menos as balas do inimigo nos acertaram.
─ Ainda bem, disse eu cá para os meus botões. Agora, Guimarães, vais até à metrópole, num voo TAP e pela agência Costa... E que tal? De avioneta até Bissau, que luxo!!!

Ai, era o meu baptismo de voo. Porreiro, o meu cu já tinha calos do Unimog...
─  Mas isto é mesmo bem bom... Adeus, Xitole, adeus,  camaradas, adeus, Fevereiro!... Até daqui a um mês!.

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Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série:

(...) Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN....

Era bem de manhã. E a certa altura, zás, ouve-se o matraquear de espingardas automáticas:
─ Que coisa!... Oh diabo, estão a enrolar. (...)


12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo

(...) Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir? (...)

(...) Até que enfim!... Acho que sim — não poderá haver tabus e ainda bem que o Zé Neto, o Zé Teixeira, o Jorge Cabral e o Luís são, afinal, os responsáveis por quebrarem o tabu... Falaram de algo que também é guerra... Foi e marcou a nossa guerra: a lavadeira, o cabaço, etc, etc... Ai, ai, ai, que começo a falar demais, ou talvez não...

Creio que nunca houve grandes abusos nesse sentido, nunca foi preciso apontar a G3 a nenhuma bajuda, já uns pesos, enfim ... Que mal fazia, se era dinheiro de guerra?!...(...)


18 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2278: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (1): A triste sorte do sapador Quaresma... morto por aquela maldita granada vermelha

(...) Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.
Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá (...).


(**) Fevereiro é pseudónimo. Lista dos sargentos da CART 2716 / BART 2917 (1970/72):

1º Sargento de Artilharia JOSÉ CARREIRA PEREIRA SANTOS 50453411
2º Sargento de Artilharia FIRMINO AUGUSTO PIRES 51106111
Furriel Mil. Alimentação JOAQUIM HORÁCIO OLIVEIRA MARQUES 01234769
Furriel Mil. Mecânico Auto ADELINO CABETE FONSECA 08792869
Furriel Mil. Enfermeiro ANTÓNIO REGO MEIRINHO 10725369
Furriel Mil. Transmissões FERNANDO SEVERO MENDES SILVA 02890068
Furriel Mil. Op. Especiais JOSÉ MARIA CARDOSO MARTINS 17221369
Furriel Mil. Atirador FRANCISCO MANUEL ESTEVES SANTOS 18613169
Furriel Mil. Atirador ELÍSIO MANUEL PINTO REI 01752169
Furriel Mil. Atirador JOSÉ TRIGUEIRO PEREIRA LEONES 08514269
Furriel Mil. Atirador JÚLIO MANUEL AUGUSTO 02131169
Furriel Mil. Atirador JOSÉ DANIEL ALVES RIBEIRO 10186669
Furriel Mil. Armas Pesadas DAVID JORGE PINTO BARROS GUIMARÃES 17345368
Furriel Mil. Atirador DIAMANTINO ENCARNAÇÃO FERREIRA 07995869
Furriel Mil. Atirador JOAQUIM MANUEL PALMA QUARESMA 03818069
Furriel Mil. Armas Pesadas JOSÉ CARLOS FIGUEIREDO HENRIQUES 03299869