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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14543: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (19): Sem nada para dizer

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 15 de Abril de 2015:

Meus caros editores:
Anexo mais um item da minha série "Cartas ...".
Ando a atrasar-me muito mas isto não está fácil embora o faça com todo o gosto e empenho. Não tenho tido é tempo para ser mais rápido. O Luís convenceu-me a continuar por mais uns tempos e umas cartas, fazendo-me acreditar um pouco mais no interesse desta tarefa.
Brevemente irá o item n.º 20.

Agradecido pelo vosso trabalho e atenção, até sábado em M. Real.
Um grande abraço
Manuel Joaquim


Cartas de Amor e Guerra

19. Sem nada para dizer

Foto 1 > Em Mansabá > “Apetece-me gritar que me deixem, todos!”
© Manuel Joaquim

Mansabá, 11/DEZ./66

Estou mesmo sem saber o que te dizer, como hei-de entrar em contacto contigo. A atmosfera um bocadinho irritante, talvez mesmo com certa dose de despeito, estúpido ou fundamentado, que tem há uns tempos rodeado as nossas relações, está na base deste empastamento de vazio, deste momento cheio de nada ter para te dizer.
E talvez fosse a melhor maneira de contactar contigo, gritar-te que nada tenho para te dizer. Porque, agora, é esta a verdade. Daqui a bocado poderá ser que não. Agora é.
Não sei porquê mas sinto-me cá dentro como que empastado, dorido, sazonado, crestado, indiferentismo doentio a bailar, plenamente consciente de que estou cheio de não vale a pena, de não te rales, de deixa correr. É um estado de espírito esquisito, algo fora do normal. Pois se até as horas que vão correndo, os dias, me não cansam na espera! Indiferente, ao ponto … (cala-te que é melhor, Manel, porque pode doer-te muito).
Escrever-te porque estás aflita sem notícias minhas, escrever-te porque te vejo aflita com o caminho que levam as nossas relações, será só isto o porquê de pegar nestas folhas, enchê-las e enviar-tas? Não, não é. Amo-te, penso eu. Está com certeza aqui a razão por que te escrevo. No “penso eu” vai o tal indiferentismo que me rodeia. Este indiferentismo crítico que me leva a julgar que se chegasse à conclusão de que te não amava ou de que me não amavas, levaria tudo com o mesmo à vontade, a mesma inconsciência com que pego num cigarro e o acendo.
Talvez te esteja a fazer sofrer com estas minhas palavras. A criar em ti a dúvida quanto aos sentimentos que te dedico. Esta vida é toda tão chata, tão pateta, tão fedorenta, tão nada! Isto é tudo tão nada, tão nada, tão nada! Quem sabe se nós não seremos mesmo nada?!?

Foto 2. © Manuel Joaquim > Mansabá, Dezembro/1966 > “ Esta vida é toda tão chata, tão pateta, tão fedorenta, tão nada!”

Apetece-me gritar que me deixem, todos! Apetece-me clamar que desejo viver sozinho, picar-me, doer-me, rir, brincar, chorar, cantar sem que incomode os outros, acamaradando com a natureza, com a inconsciência dos seres não humanos.
O meu estado psíquico não é de molde a dar-te alegria. Pelo que disse atrás tirarás a conclusão. Apesar de querer alegrar-te. Apesar de eu querer estar contigo, apesar de eu querer possuir-te, apesar de eu te querer, apesar de eu te amar.
E é mesmo, minha querida. Não vou dizer mais nada. Porque estou mesmo sem saber o que te hei-de dizer.
Calo-me e calo-te (?) com muitos e muitos beijos.
Amorosamente, sou o teu M.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (18): Férias

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (18): Férias

1. Em mensagem do dia 26 de Janeiro de 2015, o nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), depois uma longa ausência para recuperar energias, enviou-nos a sua décima oitava "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

18. Férias


Bissorã, 13/9/1966 - Fur. Milicianos Adrião Mateus e António Magalhães, da CArt 1525, e Manuel Joaquim (CCaç 1419) posam na pista de aviação enquadrados por camaradas da CArt 1525 e ansiosos por partir para férias. No fundo da foto percebe-se a imagem do DAKOTA CR-GAT que levará os três para Bissau. 

Foto: © Adrião Mateus. 

Vale de Figueira, 13/3/66

(... ... ...)
Faltam poucos meses para gozares as tuas férias. Regozijo-me com o saber que terás possibilidades disso. Mas, meu querido, tal como vivo contente, ansiando a hora de te abraçar, tremo de temor e de insegurança; receio este encontro contigo. (...).

Meu querido, sê razoável e compreensivo ao analisares o que vou dizer-te. (...). Sugiro-te que seria melhor não regressares daí sem teres terminado definitivamente a comissão estipulada.
Mais vê:

Depois de passares cá as férias, já com perfeito conhecimento e experiência do que por aí se passa, será bastante mais difícil e doloroso teres de voltar para o mesmo inferno. É que já vais com os olhos bem abertos. Não vais decerto como quando foste inicialmente, com a esperança de que isso aí é melhor do que o que por cá se conta.

Para mim também terá um sabor bastante amargo. Compreendes-me, querido? Não quero dizer, terminantemente, que não venhas. Faz o que entenderes. É apenas uma opinião minha.
(... ... ...)

Bissorã, 17/3/66
(... ... ...)
Esperemos que isto vá correndo razoavelmente e cá fico a pensar, para já, em Setembro, altura em que irei ter contigo. Mas ainda falta tanto tempo! (...). Escolhi Setembro por verificar que seria essa altura aquela em que eu mais precisaria de descansar. Além disto arranjaria alento para a arrancada final, sempre a mais difícil de suportar.

Setembro será o mês do ano! Será o mês do nosso encontro. Ah, quanto eu desejo abraçar-te, quanto desejo ouvir-te, minha querida, sentir-te feliz junto de mim!
(... ... ...)

Vale de Figueira, 23/3/66

Tenho comigo a tua última carta. Gosto muito dela, meu querido. E, perante a tua alegria e todo o teu entusiasmo pela possibilidade de uma visita próxima, peço-te desculpa se as minhas palavras, que já deves ter em teu poder, ensombram de algum modo toda essa alegria, toda essa esperança. Decerto, meu querido, que compartilho também essa alegria. Mas eu desperdiço muitas vezes possíveis momentos de felicidade, só porque o terrível pessimismo anda comigo.

Vem sim, meu amor. Eu quero-te aqui comigo. Receio esse contacto? São preocupações antecipadas que nada adiantam. É muito mais sublime e nobre encarar os problemas de frente e resolvê-los calmamente no momento oportuno. (...).

Meu M. querido, (...) parte da última carta é já sem valor. Porque eu quero que venhas. Queria mesmo que viesses hoje se tal fosse possível ... Peço muita desculpa se te indispus e quero agora significar todo o meu apoio ao teu projecto de férias. (...). Ah, Setembro! Quando apareces? (...).
(... ... ...)

Quinta de S. Lourenço, 9/4/66
(... ... ...)
Meu querido M., tenho a comunicar-te que passei um domingo de Páscoa na mais completa satisfação e alegria que me foi possível. Estive com os teus pais no Casal Novo.

E então, gostas? Sabes que tu, meu amor, estiveste sempre presente? Não sentiste? Eu sei que te alegras com a nossa alegria, que sentes a nossa tristeza, que comungas da nossa possível felicidade.
Domingo de Páscoa fizeste connosco o voto de em Setembro nos encontrarmos de novo. Saudosamente te esperamos.
(... ... ...)

Maqué, 10JUL66

Não, não mudei de terra. Estou, simplesmente a "estagiar" num "lindo sítio" (...) onde o meu grupo faz segurança a uma ponte. (...). O abrigo onde estamos instalados é uma autêntica fortificação. Ainda bem. (...). Salve-se a pele que o resto suporta-se. (...).

Em Setembro aí estarei. Não poderei faltar. (...). Anseio pelas férias. Não interessa que passem depressa ou que, ao regressar, sinta ainda maior dor do que a que senti quando vim da 1ª vez.
Preciso, em primeiro lugar, de descanso. Depois ... preciso de vos ver, a ti e a todos os elementos que mais unidos estão a este teu querido.
(... ... ...)

Vale de Figueira, 12/7/66

(... ... ...)
Estamos a poucos meses do nosso reencontro mas parece-me que agora os meses têm mais dias e os dias mais horas. É a ansiedade, a vontade de precipitar esse acontecimento (...). Aguardemos então esse dia com alegria e certeza (...).
(... ... ...)

14/9/1966 - Chegada a Lisboa

Após o entusiasmo da chegada, surgiu o problema da repartição do tempo de férias de modo a poder visitar os meus familiares e amigo(a)s mais chegado(a)s. Era previsível que, no fim, alguém se queixaria.


Lockheed L-1049G Super-Constellation: Terá sido este o avião utilizado para as minha férias. Fez a carreira Lisboa-Bissau no período de 1961-1967. 

Imagem retirada, com a devida vénia, de «restosde coleccao.blogspot.com»

Cacém, 15/9/66

Reencontrei-te! ... Nos beijos e abraços, gestos de amor e paixão, toda a diversidade de sentimentos, de estremecimentos, de sensações neles experimentei! (...) Não te reconheci, de início, no meio da multidão, meu querido. Era o nervosismo, a ansiedade de cair nos teus braços e de depor nos teus lábios ardentes e sensuais o calor dos meus beijos, (...). Lembras-te do que te disse ontem?

Custaram-me mais a aguentar os momentos de expectativa que antecederam a tua chegada, (...), do que todo o tempo que já passei afastada de ti. (...).

Beijos da tua N., extensivos à tua mãezinha.

Até sábado, meu Amor

Foi chegar e partir de novo no dia seguinte, agora a caminho de Pombal, para os braços da Mãe querida. E os dias de férias lá foram sendo geridos com base em três polos: Pombal, Leiria (ligações escolares e profissionais) e Lisboa (área de trabalho e de residência da namorada).

Logo verifiquei que o tempo era pouco para o que queria fazer. Ainda por cima tinha programado encontrar-me com algumas das minhas correspondentes. Não tendo transporte próprio, estava sujeito aos horários de comboios e de autocarros, transportes lentos e por vezes escassos.

Foi um mês de lufa-lufa, de um lado para o outro. Se houve razões de queixa da Mãe, a verdade é que nunca mas mostrou. Não aconteceu o mesmo com a namorada.

Eu queria acudir a todo o lado, actualizar-me recolhendo informações sobre o que se passava na chamada Metrópole, discutir os problemas político-sociais, esquecer-me do dia-a-dia da guerra, coisa difícil de esquecer quando estava entre os meus entes mais queridos. O tema "guerra" e o fantasma do meu regresso estavam sempre presentes, o tempo tinha outra dimensão, parecia-nos muito mais perto o dia do doloroso regresso.

Perante isto surgiram alguns desentendimentos, não com a Mãe mas com a namorada. Esta, ao invés de ter tido umas semanas felizes junto de mim, deu por si a lamentar-se pelas minhas "longas" ausências. Sabia e compreendia bem que minha mãe tivesse prioridade mas via os outros como seus "inimigos" na luta pela minha presença. Disfarçou mais ou menos bem até ao fim das férias. Mas durante o tempo de espera de embarque, no aeroporto, apareceu-me fria e distante, de pouca conversa e dispersiva nos diálogos, comportamento que atribuí às amarguras da despedida. E assim, disto convencido, regressei à Guiné a 19 de Outubro.

Logo na sua carta de 23 de Outubro me deu o toque quanto à razão da sua frieza na despedida. Poderia o caso ter ficado por aqui mas resolvi replicar a tal toque, defendendo o meu comportamento, de que resultou uma polémica que durou bastante tempo. E só então percebi que não houve só prazer e alegria no nosso encontro e quão difícil lhe foi suportar as minhas ausências, ausências que ela não imaginara virem a ser tão frequentes, principalmente as motivadas pelos encontros que tive com as minhas correspondentes.


Lockheed L-1049G Super-Constellation em Bissalanca, aeroporto "Craveiro Lopes". 

Imagem em postal ilustrado, edição «Foto Serra-Bissau».

Mansoa, Outubro-24/66

Cá estou, minha querida, respirando o calor e o "calor" deste famigerado ambiente. Um poucochinho roído de saudades, com uma vontade doida de correr para ti. Cá, a situação continua na mesma. Ainda estou em Mansoa mas talvez vá hoje para Bissorã. Se não for, melhor. Tenho de aproveitar todas as oportunidades que se me deparam para me safar da guerra. Eu quero é ir para ti (...).
(... ... ...)

Cacém, 23/Outubro/1966

Não infiras, pelo meu comportamento um pouco frio na despedida, que nele haveria sinais de desprendimento. (...). Se o sentiste, e agora doi-me sobremaneira, se o meu comportamento devido ao meu estado psíquico nesse dia te induziu a tais conclusões, quero dizer-te agora para o não levares a sério. Contrariamente a tudo isso, e abstendo-me já de pieguices e lamúrias, amo-te cada vez mais e também cada vez mais de maneira diferente, com mais conhecimentos, mais responsabilidades na arte de amar e de me fazer amar.

Com esta nova separação, corajosa e duramente enfrentada, (...), começou para mim mais uma etapa para uma nova vitória para, novamente minada pela saudade, voltar a experimentar a alegria incontrolável do reencontro. (...).

Sem dúvida, meu M. querido, a despedida terá sido bem mais dolorosa para ti. Esperam-te mais uns meses de árdua labuta. Quando actuamos porque é forçoso actuar, em prol do que nunca ousaríamos levantar um dedo, amarfanhando princípios e ideais, nada nos poderá sorrir (...).
Mais um esticão e estarás de volta, meu Amor. Reage ao desalento como sempre o tens feito e, se possível, abstém-te, torna-te estranho a todo esse ambiente de guerra e devassidão política em que estás metido. É a minha opinião, na ânsia de ajuda que te quero prestar.
(...)

Há ainda uma coisa que hoje quero referir, meu M. querido. As nossas relações neste curto período de contacto não se processaram dentro daquele quadro de harmonia que eu esperava. Não tenho de me queixar pois para tal dei contributo. Actuei, reconheço-o, umas vezes por orgulho mas verdadeiramente mais por teimosia e despeito. Nem por isso expresso o meu total arrependimento porque não seria verdadeira ao afirmá-lo.

Meu Amor, é assim a tua N. A que encontraste, modificada, mais bela mercê do teu entusiasmo e da ansiedade em a sentires real a teu lado, reflexo da felicidade e do entusiasmo que a dominavam; a que deixaste, mais melancólica mas mais gaiata, reflectindo as certezas da nossa magnífica união, a total certeza na sobrevivência do nosso Amor; e ainda a que encontrarás no teu regresso, mais bela ainda, mais mulher na reflexão da suprema ventura de nos sabermos definitivamente a respirar no mesmo ambiente, (...).

Nestas três pessoas descortinarás a tua mulher, estou certa. Essa hora soará e as páginas que escreveremos de aí em diante ofuscarão brilhantemente a fúnebre e horrenda palavra guerra, a qual agora nos aparece como prato diário. Paz queremos nós! É esta a ambição que se nos instila para seguramente virmos a alcançar essa paz, (...).

Amorosamente te beijo e abraço, meu querido.

Tua N.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11767: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (17): Jovens politicamente atentos

sábado, 27 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14086: O que é que a malta lia, nas horas vagas (29): O que é que eu lia durante a guerra? Para além de livros, lia os jornais O Eco de Pombal e A Região de Leiria e a revista Seara Nova que, mensalmente, me era enviada pela namorada. Mas não só (Manuel Joaquim)

1. Mensagem do dia 24 de Junho de 2013, do nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67):

Meus queridos camaradas e amigos:
"Quem é vivo sempre aparece", não é?
Justifico-me:
Forcei-me a uma espécie de licença sabática na minha colaboração neste blogue. Aconteceu-me o que não previa quando decidi mergulhar na leitura das cartas que suportaram a minha série "Cartas de amor e guerra". Stressei-me!
Esse mergulho começou a incomodar-me psiquicamente. Era a primeira vez que relia essas cartas, mais de 40 anos após terem sido escritas. E o incómodo sentido não era provocado pelas lembranças de guerra mas pela tomada de consciência de que muito pouco se cumpriu do que, naquela altura, eu imaginava poder vir a acontecer na vida futura deste país.
Começava a sentir-me derrotado, a ter pena do jovem que fui nos tempos de Guiné, um jovem esperançoso e lutador por um futuro mais próspero, mais culto e mais feliz para o povo português. Via a minha vida como se a maioria dos meus sacrifícios pessoais tivessem sido em vão. Era como que uma sessão de masoquismo psíquico. De cada vez que me debruçava na leitura das cartas de guerra para delas retirar o que entendesse como interessante para publicação, começava a sofrer. Mas não foi o publicado que me "stressou".
Precisei de me afastar durante uns tempos, cortando mesmo com alguns trabalhitos já iniciados para publicação no blogue. Olhem, o convívio com os camaradas da Guiné ajudou e continua a ajudar a me sentir melhor.
Retomei agora esse trabalho e o que me apareceu mais fácil e rápido de completar foi o subordinado à série sobre "o que a malta lia, nas horas vagas". Aqui vai ele. Outros se seguirão, que a vontade me não falte.
Acho que a série teria muito interesse sociológico se mais pessoas colaborassem dizendo o que liam ou se não liam (alguns de nós eram analfabetos!), mesmo que só lessem o boletim do padre da sua paróquia. Por falar nisto e pelo que vi então, não ficaria surpreendido se os boletins paroquiais tivessem sido os campeões como sujeitos de leitura
Penso que não viria a ser insignificante o que resultasse de um maior conhecimento sobre este tema. Temos de deixar sinais para os investigadores futuros. Lembro o que agora, 100 anos depois, se tem andado a publicar sobre a 1.ª Guerra Mundial.
Em anexos, vão o texto e as suas fotos.

Um abraço amigo para cada um de vós.
Manuel Joaquim


O que é que a malta lia, nas horas vagas

O que é que eu lia durante a guerra? Para além de livros, lia os jornais O Eco de Pombal e A Região de Leiria e a revista Seara Nova que, mensalmente, me era enviada pela namorada. Mas não só.

“Tudo o que vinha à rede era peixe”, fossem revistas e jornais avulsos, fossem boletins da minha paróquia natal ou de qualquer outra totalmente desconhecida, tudo estava sujeito a leitura. Até noveletas delicodoces, a que não chamo livros, feitas para "fazer chorar as pedrinhas da calçada" e/ou "partir corações apaixonados". À época, era frequente vê-las nas mãos de adolescentes (e não só), naquelas idades em que o romantismo e o sonho facilmente enfunam as asas do desejo. "Mastigava" um ou outro desses livrinhos que porventura encontrasse nas mãos de alguns camaradas. Divertia-me com o enredo, mesmo sentindo o ressoar de gargalhadas nos meus ouvidos, vindas de alguém que eu tinha "gozado" anteriormente por vê-lo consumir tal "literatura".

Apesar do meu grande gosto pela leitura, nunca esta teve prioridade na ocupação dos meus tempos livres na Guiné. As "primeiras" prioridades, seguidas por vezes a contragosto, foram a actividade escolar e a escrita. Dei aulas de instrução primária a soldados e crianças e também tive muita actividade epistolar pois, para além da regular correspondência postal com os meus entes queridos e amigos mais chegados, tinha um grupo alargado de pessoas com as quais me correspondia pontualmente. As "segundas" prioridades estavam nas petiscadas, nas “copofonias”, nos jogos de cartas, na música, nas passeatas pela tabanca e seus arredores. A leitura viria depois, sempre se arranjava algum tempo para o efeito.

Revista Seara Nova, número de Novembro/1965. 
Revista política mensal, de caráter oposicionista ao regime do Estado Novo. 

Princípios Elementares de Filosofia de Georges Politzer. 
O autor, intelectual comunista francês, foi fuzilado pelos nazis. 
 O livro ainda hoje tem grande circulação na área ideológica marxista-leninista. 

Na viagem para a Guiné foram comigo alguns livros. Lembro Os Bichos e Diário VIII de Miguel Torga, Diário de Édipo de Alberto Ferreira, A Cidade das Flores de Augusto Abelaira, Guillaume Apollinaire de George Vendrès, Poèmes de Paul Éluard, Dialogues com Maurice Duverger, La Guerre Revolucionaire de Mao Zedong, Mao Tsé Tung como então se dizia. E, como jovem muito interessado nas doutrinas marxistas, levei comigo o meu primeiro “livro de estudo” desta área, Principes élémentaires de philosophie de Georges Politzer.

Esta última obra é uma espécie de primeiro "catecismo" do marxismo-leninismo onde, numa linguagem acessível, se expõem os seus princípios básicos, filosóficos e doutrinários. E lá andei eu a tentar aplicar-me na aprendizagem do seu conteúdo, às "cabeçadas" com o materialismo dialéctico. Mas a doutrina não me cativou por muito tempo. Naquele ambiente, ela não conseguia dar-me a luz que me pudesse orientar nem a “enxada” para trabalhar a minha terra "ideológica“.

A Cidade das Flores de Augusto Abelaira. 
O seu enredo gira à volta de um grupo de jovens de Florença, em luta pelos seus ideais perante a repressão imposta pelo fascismo de Benito Mussolini. A razão da acção se passar em Itália pode ter sido um subterfúgio para escapar à comissão de censura do regime salazarista pois, da leitura do livro, percebe-se bem a denúncia das estruturas sociais e políticas do Portugal de então. 

Comprei A Cidade das Flores em Lisboa, no final de agosto/64, num intervalo da viagem de comboio para Pombal após terminar o CSM em Mafra. Não era meu hábito escrever nos livros mas aconteceu naquela altura. E, de sopetão, escrevi na 1ª página (ainda me lembro desse momento):

Na satisfação duma etapa cumprida, sacrificada, do final do meu curso de sargentos milicianos de infantaria, volto-me para a cidade das flores, imagem feliz dum meio social. Antes de ler o livro viro-me para o título e só ele já me satisfaz, tal é a frescura e liberdade que ele me faz respirar. 
A horrível vida militar não me embota, com certeza. Quero paz e não guerra. Quero a felicidade do meu povo e não a sua destruição moral e material. Não posso tolerar as doutrinas que me apregoam. Não posso ser militar.

"Não posso ser militar" mas fui-o, muito contrariado com certeza. E cerca de um ano depois estava a desembarcar na Guiné.

Chegado a Bissau, logo na minha primeira visita ao café Bento, observei um pequeno escaparate com umas dezenas de livros e fiquei com vontade de ler alguns deles. A disponibilidade monetária era pouca mas, durante os quase três meses de estada em Bissau, comprei estes (na altura anotei a data da sua compra):
Mar Morto de Jorge Amado; A Barca dos Sete Lemes de Alves Redol; Rum de Blaise Cendrars; A Noite Roxa, As Máscaras Finais, Terra Ocupada, Exílio Perturbado, os quatro de Urbano Tavares Rodrigues; Gorky por ele próprio de Nina Gourfinkel; Greco de Simon Vesiduk; Goya de Eric Porter; Pieter Bruegel de Felix Timmermans.

Foto 3.

"Terra Ocupada" de Urbano Tavares Rodrigues e cinco dos 21 "blocos" de um famosíssimo poema de Paul Éluard, "Liberté". 

No início do livro Terra Ocupada, pag. 7, o autor cita cinco dos 21 "blocos" de "Liberté", um famoso poema de Paul Éluard. Traduzindo à minha maneira:

No patamar da minha porta / nos objectos familiares / sobre as chamas do fogo bento / eu escrevi teu nome

Em toda a carne concedida / na fronte dos meus amigos / em cada mão estendida / eu escrevi teu nome
............

Nos meus refúgios destruídos / nos meus guias desconjuntados / nas paredes do meu tédio / eu escrevi teu nome

Sobre a ausência sem desejos / sobre a nua solidão / sobre os degraus da morte / eu escrevi teu nome.
............

E pelo poder duma palavra / recomeço minha vida / eu nasci para te conhecer / para te chamar Liberdade 

Entretanto, de Lisboa, a minha querida namorada começou a enviar-me um livro de vez em quando. Como neles não há referências a datas, não me lembro de todos mas estes ficaram-me na memória de os ter recebido:

"A Memória das Palavras" de José Gomes Ferreira; "Capitães da Areia" e "D. Flor e Seus Dois Maridos", de Jorge Amado; "O Passo da Serpente" de Batista Bastos; "As Boas Intenções" de Augusto Abelaira; "Malthus e os Dois Marx" de Alfred Sauvy; "Paroles" e "Histoires" de Jacques Prévert.

De referir ainda que, no meu tempo de Bissau, me veio parar às mãos um dos livros que mais me ficou na lembrança, "Trópico de Capricórnio" de Henry Miller. Li-o com muito prazer e entusiasmo. Algumas das suas páginas mais socialmente panfletárias, especialmente as de cariz erótico, chegaram a ser lidas em voz alta, o que proporcionava divertidas gargalhadas no dormitório de Sta. Luzia a que se seguia normalmente alguma discussão sobre o tema lido. Uma expressão francesa marcou um desses momentos, para mim inesquecível. O casual leitor do momento e que lia o livro em silêncio, solta em voz grossa, bem alta e firme: pourri avant d'être mûri !!! ( apodrecido antes de estar maduro).

Ainda me lembro da figura do dono daquela voz potente mas não do seu nome. Tinha chegado há alguns dias, vindo lá do sul e já bem batido no mato. Ninguém terá percebido o porquê e o sentido da frase. Nem um ou outro com conhecimentos de francês lá chegou. Apodrecido antes de estar maduro ?! Mas o "velho" furriel miliciano de Cabedu, com certeza compreendendo isso, falou mais ou menos assim:
- Rapazes, um conselho: vocês estão verdes, vê-se e vocês sabem-no. Basta ouvir-vos a falar sobre umas coisitas de merda e que tanto medo causa a alguns. Cuidado, ninguém se pode permitir estar verde e apodrecer, percebem? E muito cuidado também para não apodrecerem quando estiverem maduros! 

Não imagino quantos o "ouviram". Talvez poucos tivessem percebido a charada, que havia uma personagem-mistério no seu sintético aviso. Eu sei que havia, era a "senhora morte".

O livro foi-me emprestado por um camarada amigo, de serviço no QG, mas não estava à espera do que me aconteceu e que não me permitiu devolver-lho. Tendo saído de barco para Farim, em escolta, regressei a Bissau uns bons dias depois, já noite. Quando cheguei ao quartel recebi uma "bela" notícia, nem mais nem menos do que a saída para Bissorã logo na manhã seguinte. E, para cúmulo, durante esta viagem foi-me roubado um pequeno saco onde ia o livro junto a todos os meus documentos e outras coisas mais pessoais, de caráter afectivo. E também "voaram" as poucas notas que tinha poupado até então. Cheguei a Bissorã teso que nem um carapau!
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12927: O que é que a malta lia, nas horas vagas (28): Fotonovelas não temos, mas arranja-se Sigmund Freud (José Manuel Matos Dinis)

terça-feira, 15 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13403: Dossiê Os Libaneses, de ontem (e de hoje), na Guiné-Bissau (2): O meu Natal de 1965 em Bissorã, na casa do sr. Michel, bebendo whisky do bom... (Manuel Joaquim, ex-fur mil armas pesadas, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67)


Aerograma enviado pelo Manuel Joaquim à sua namorada: "Bissorã, 25 dez65" e onde fala sua festa de natal, oferecida à tropa,  pelo decano dos comerciante libaneses de Bissorã...

Foto: © Manuel Joaquim  (2012). Todos os direitos reservados. (Edição: L.G.)

1. Excerto de um poste do Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau,Bissorã e Mansabá, 1965/67)(*)

Na noite de Natal de 65, o decano dos comerciantes libaneses, sr. Michel (**), acho que era este o seu nome, preparou uma recepção na sua casa, para a qual convidou os comandantes das companhias alocadas em Bissorã, CART  643 e CCAÇ  1419, seus oficiais e 1.ºs sargentos e sendo o restante pessoal militar representado por um furriel e por um praça de cada uma das companhias. Posso estar enganado,  mas é a ideia que tenho.

Da CCAÇ 1419 fui eu o furriel escolhido. Não sei se “de motu proprio” ou cumprindo decisão superior, o 1º sargewnto  da companhia fez-me o convite que eu aceitei, algo contrariado, após alguma insistência.

Para a ocasião vesti o meu fato “de ir à missa” comprado na  então famosa casa de moda da baixa lisboeta, a Casa Africana, uns dias antes de embarcar. “Ótimo para usar em África”, disse-me o vendedor em resposta à minha inicial informação de que estava prestes a embarcar para a Guiné e precisava de um fato para levar.

[Imagem à direita: Cartaz publicitário da eitinta Casa Africana, uma loja emblemática da Rua Augusta, em Lisboa]

E lá fui de fatinho azul-ténue, muito leve, com risquinhas verticais pretas e muito finas. A confraternização correu bem. Houve “comes e bebes” e muita conversa, geral e particular, entre os convidados e o dono da casa.

Recordo bem a qualidade do uísque, uma maravilha, do resto tenho noção vaga duma conversa do anfitrião discorrendo sobre as suas relações com personagens conhecidas na política e na sociedade empresarial, tanto na Guiné como em Portugal (no Continente, como então se dizia).

Não sei que idade teria o sr. Michel mas para mim era um homem já idoso, um senhor culto, bem viajado, bom conversador e de óptimo trato. Penso que teria sido, antes da guerra, um grande comerciante. Em 1965 a sua actividade comercial já estava muito reduzida.

Havia música mas não havia “garotas”! A animação não foi muita mas deve ter havido alguma já que o evento durou umas boas horas. O certo é que não me lembro dela. Talvez por causa do meu estado de espírito naquela altura como se pode adivinhar pela breve referência que fiz ao assunto num aerograma enviado à namorada:

(…) “Há por aqui umas famílias de emigrantes libaneses que nos proporcionaram umas festazinhas agradáveis na quadra que passou há pouco. Mas o sofrimento cá anda roendo a alma. E para muitos de nós a bebedeira foi a fuga. O whisky aqui é barato. Assim a bebedeira fica barata também.” (…)

Uma nota final: Interessante o lembrar-me ainda hoje da qualidade do uísque do sr. Michel e não me lembrar de muitas outras coisas mais importantes. Pensando bem, compreendo. Pois para quem andava afogando mágoas, eu por exemplo, curtindo alegrias e lavando o estômago com VAT69, J. Walker red label e outros deste género, encontrar e saborear o uísque do velho libanês foi um momento inolvidável. Aquilo não era uísque, aquilo é que era whisky!

Manuel Joaquim


Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto Cristina   > Até à última gota de... uísque. Buchanan's, from Scotland, for the Portuguese Armed Forces... with love... Esta foi comprada em Bissau, em Junho de 1974, e aberta no nosso primeiro encontro, na festa de anos da filha do Jacinto, em Março passado. Na Guiné, aprendemos  a distinguir o bom "scotch whisky" do "uísque marado de Sacavém" que se bebia nas noites de Lisboa e arredores, nos anos 60/70,nos primeiros bares de alterne que apareceram...

Foto: © Luís Graça (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 em Bissorã (Manuel Joaquim)

(**)  Vd. poste de 15 de julho de  2014 > Guiné 63/74 - P13400: Dossiê Os Libaneses, de ontem (e de hoje), na Guiné-Bissau (1): Quem eram, onde viviam e trabalhavam, quando chegaram, etc. Propostas de TPC estival: factos, gentes, histórias, fotos...

sábado, 3 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13087: Em busca de... (243): Anselmo Soares Moreira, ex-sold, CCAÇ 1419 (Bissorã, 1965/67), a viver em França... Próximo convívio da companhia: 10 de Maio, Rio Tinto, Gondomar (Manuuel Joaquim)




1. Mensagem, com data de 30 de abril último, do nosso leitor (e camarada) Anselmo Soares Moreira, residente em França:

Olá, um abraço a todos!... Venho por este email se caso seja possível me informarem:

Eu, Anselmo Soares Moreira,  soldado da companhia de caçadores 1419 que estive na Guiné em 65/67 em Bissorã, gostava de  saber se este ano, 2014,  fazem convívio,  pois como me encontro em França não recebo notícias, nem sei qual o motivo porque que não me enviam  correio para cá...

Pois se algum colega me pudesse informar,  eu agradecia. Obrigado.


2. Mensagem do Manuel Joaquim, a quem pedi que respondesse ao seu camarada de companhia:

Olá, Luís, muito boa tarde.

Irei contactar o meu camarada Anselmo Moreira mas não sei se ainda há tempo para ele poder comparecer na confraternização anual da CCaç 1419, a realizar no próximo dia 10 de maio no "Choupal dos Melros", Quinta dos Choupos, Fânzeres, Rio Tinto, Gondomar. As inscrições fecharam a 30 de Abril mas este facto não impede que o camarada Moreira compareça, caso o deseje fazer. Terá de falar com o organizador, o camarada Joaquim Silva e penso que alguma coisa se há de arranjar. Anexo o anúncio do acontecimento.

Votos de óptima e rápida recuperação. Espero que não te apaixones pelas canadianas e que as mandes dar uma volta o mais depressa possível! Até lá, aproveita bem esse convívio, trata-as bem que elas bem te querem também. Abraço amigo do

Manuel Joaquim
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quarta-feira, 26 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11767: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (17): Jovens politicamente atentos

1. Mensagem do dia 24 de Junho de 2013, do nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67):

Cartas de Amor e Guerra

Nota prévia:
[A publicação de vastos excertos da minha correspondência de guerra tem, como único objectivo, o de dar a conhecer alguma coisa da vida mais pessoal de UM soldado, EU neste caso, enquanto combatente numa certa guerra e num determinado tempo histórico, com os seus amores, amizades, ideias políticas, formação cultural e religiosa, etc.
Não serve, hoje, para travar qualquer batalha, muito menos de cariz político-ideológico. Porventura, também terá algum interesse para possíveis investigadores que queiram caracterizar certo tipo de combatentes, não mais do que isso.
Actualmente, como é natural, sou uma outra pessoa, tenha conservado ou não algo da minha maneira de ser e de pensar de então. Não apago nada, antes tenho orgulho do “eu” que ressalta desta correspondência de amor e guerra, mas seria abusivo que quem me lesse me pensasse, hoje, a “figura” esparramada no conteúdo desta correspondência de há mais de 46 anos.
O mesmo digo sobre o que se passa com a parceira destas cartas, a minha querida namorada / companheira de então e até hoje.]

Manuel Joaquim


CARTAS DE AMOR E GUERRA

17. Jovens politicamente atentos

Bissorã, 1966 > Praça com monumento a Raimundo Serrão, Governador da Guiné (1949 – 1953) e Estação dos Correios. 
Foto retirada, com a devida vénia, de “Rumo a Fulacunda”, blogue de Henrique Cabral (fur mil CCaç 1420) 

Bissorã, Nov.-17-1965
Agradavelmente, minha querida, li a tua última carta mais pelo espírito de contemporização consciente que demonstras perante certos pequenos conflitos que surgem entre nós do que por qualquer outro motivo.
(… … …)
Tanto tu como eu devemos andar com os nervos à flor da pele. O mais pequenino desentendimento pode provocar uma “explosão” (…). Mas nada de grave acontecerá.
Já cá recebi os cigarros. Agradecido por não teres deixado fugir a oportunidade de me presenteares, (…).

(…), isto cá vai correndo. (…), continuo sem me ressentir fisicamente do esforço que me é exigido.
A temperatura é tolerável. Embora durante o dia faça um calor de rachar, respira-se agradavelmente logo que desaparece o sol. E as noites chegam a ser bastante frescas. Estamos na época do cacimbo. Até Maio não chove. Por mais incrível que pareça, já bati o queixo com frio por duas vezes. Mas isto só sucede em operações no mato.
Às vezes somos obrigados a estar horas seguidas na mais completa imobilidade e, se isto sucede quando estamos molhados - atravessar pântanos com água pelo pescoço é um martírio – então o friozinho aparece renitente. (…) pouco tempo depois de o sol nascer, o calor começa então a apertar numa progressão de espantar.
(… … …)
A diferença horária é, no respeitante à Metrópole, de uma hora mais cedo durante a hora de inverno de aí e de duas horas na de verão. As noites são praticamente iguais aos dias. Pelas 5.30h da manhã começa a amanhecer e anoitece pelas 17.30h. Tanto o amanhecer como o anoitecer são bastante rápidos (mais ou menos meia hora).

Já há tempos te disse que Bissorã é uma vilazinha sede de concelho. Antes de rebentar a insurreição dizem que tinha uma vida bastante movimentada. Agora está um pouco paralisada. Deve ter uns dois mil e tal habitantes. Praticamente, a população é negra como não podia deixar de o ser. Há cá alguns comerciantes brancos mas não são portugueses, são emigrantes libaneses. Estes, com alguns caboverdeanos, são a elite cá da terra. Estão aqui duas companhias aquarteladas. Os sargentos vivem em casas particulares. Aquela onde estou é bastante boa e espaçosa. Se me esquecesse de que à volta existe a floresta cheia de guerrilheiros (à volta da vila, não da casa) pensaria que estava hospedado numa boa pensão. É que até as refeições são servidas num pequeno restaurante. Não temos messe. (…).

Centro de Bissorã, nos inícios da década de 1970. A marca (O), à esquerda - baixa da foto, identifica a casa onde habitei durante um ano (Out./65 – Out./66)
Foto do cap mil Carlos Oliveira, cmdt. CCaç 13, retirada com a devida vénia do website leoesnegros.com.sapo.pt/ de Carlos Fortunato, fur mil CCaç 13.

As operações fazem-se, normalmente, de noite (…) prolongando-se pelas primeiras horas da manhã. Regressamos completamente arrasados de cansaço. É que além da tensão psíquica há sempre uma caminhada (…), pelo meio da selva e dos pântanos, a abrir caminho. Depois descansa-se.

Já tive a sorte de em 15 dias fazer uma só operação. Foi aquela sequência de dias de sorna! Levantamo-nos quando queremos, ninguém nos chateia e chegam-se a passar dias a dormir, comer, ler, ouvir música e, como não podia deixar de ser, a escrever.

Não imaginas o cansaço que se apodera de nós depois de uma operação. Para fazeres uma ideia digo-te que, uma vez, ainda na operação mas já no regresso a Bissorã, sofremos um ataque. Está claro que a primeira coisa a fazer é atirarmo-nos para o chão e procurar um abrigo qualquer. Pois, nesta altura, um soldado da minha secção, com as balas a assobiarem por cima de nós, adormeceu! Dei por isto quando senti ressonar a meu lado. Tínhamos passado toda a noite a andar!

Ao regressarmos, o chuveiro e a cama são uma obsessão. Mais nada lembra. Acontece às vezes chegar correio nesta altura. Os olhos abrem-se a custo, olha-se para a carta, põe-se em cima da mesa-de-cabeceira e dá-se meia volta para “o reino de Morfeu”.

Ainda hoje presenciei um facto destes. Um camarada chega do mato, lava-se, estira-se na cama. Chega correio da mulher. Apesar de já há alguns dias andar preocupado com a falta de carta (…), só aconteceu isto: abre o sobrescrito, tira a carta e … o envelope cai para o chão, as folhas ficam-lhe em cima do peito e o rapaz cai num profundo sono. (… … …).

(…), penso que te dei uma ideia mais exacta do que é a nossa vida por aqui. Surgem bons momentos que amenizam a dor que, lá bem no fundo, habita estes corpos lançados abruptamente numa guerra estúpida. Relembram-se peripécias passadas, contam-se anedotas, joga-se, procura-se por todos os meios esquecer, tentar esquecer a posição actual em que nos encontramos.

Bissorã, 1966 > O “restaurante” do Sr. Maximiano e da D. Maria ou a célebre tasca / messe de sargentos. Comia-se bem (pelo menos no meu tempo).
© Rumo a Fulacunda, blogue de Henrique Cabral (fur mil CCaç 1420)

E já que estou a falar dos meios de passar o tempo, lembro-te que há uma falta imensa de notícias da Metrópole. Não no aspecto pessoal mas no geral. E vou fazer-te um pedido. Talvez, de vez em quando, o possas satisfazer. Era nem mais nem menos que o envio de jornais e revistas. (…). Aqui, um jornal de há quinze dias lê-se com a mesma sofreguidão com que aí se lê o diário da tarde ao sair do prelo.

Quando estiveres disposta a fazê-lo e tiveres possibilidade, manda-me o “Diário de Lisboa” [*] ou o “República”[*] ou os dois, de dias diferentes, e a revista “Seara Nova”[*]. Se em qualquer outro jornal, ou mesmo nesses, achares um assunto que julgues interessar-me podias recortá-lo e mandar-mo numa carta.

Esse tal “Manifesto da Oposição Democrática”? Não tens possibilidades de o recortar de algum jornal? Gostava de o ler. A revista “Seara Nova” é mensal. Quanto a qualquer outra revista peço-te que não gastes dinheiro de propósito para ma enviares. (…). Que dizes? (…). Desculpa todo o trabalho que com este pedido te possa vir a dar. (…), esse teu possível gesto contribuiria para amenizar um pouco as agruras desta vida. (…).

Meu amor, por hoje fico-me por aqui (…). Uma carta diferente (…). Com ela poderás acompanhar-me melhor. E imaginarás mais facilmente o ambiente em que vou passando estes longos dias à espera de te ir cair nos braços, respirar fundo e gritar-te:
- É agora, minha querida! Estou livre! Vamos para a frente! Construamos o nosso mundo!

Ajuda-me a suportar todo este Inferno!
Todo teu, apaixonadamente, beijo-te e abraço-te. Até sempre!
M.

[*] [Os “Diário de Lisboa” e “República” (jornais diários) e a revista mensal “Seara Nova” estavam ligados à oposição política ao Governo e ao regime do Estado Novo, declaradamente os dois últimos. Em 1965, era Oliveira Salazar o chefe do Governo. Marcelo Caetano suceder-lhe-ia em Setembro de1968.]


Vale de Figueira, 24 – Nov. 1965 
(… … …). 
Satisfazendo o teu pedido, segue o Manifesto da Oposição. Deu que falar pelo país inteiro, alarmado com a liberdade da sua publicação em todos os jornais diários. O que não quer dizer que não tivesse havido prisões, originadas pela simulada liberdade de imprensa (…). Ao tomarmos conhecimento do seu conteúdo fica-se de boca aberta, apalermado. Como foi possível ter passado à célebre censura portuguesa? Mas a verdade é que passou. Mais para fazerem crer ao nosso povo que goza de completa liberdade e que o governo actual, pacífico e sempre atento às necessidades e aspirações desse mesmo povo, o escuta para depois decidir se deve atendê-lo. 
São eleições livres, como apregoam à boca cheia … e a publicação deste Manifesto não foi mais do que uma armadilha atirada ao povo. Pretexto para justificarem essa afirmação de liberdade, verídica quanto a eles, asquerosamente vergonhosa e mentirosa quanto a nós. 
Alguns dos candidatos pelo círculo de Braga (…) já lhes caíram nas garras e pagam essa liberdade nas masmorras de Caxias. Foram os únicos que levaram por diante, até onde lhes foi permitido e possível, as suas manifestações. Conservaram-se em acção, firmes nos seus propósitos até à última hora. Por fim, sem auxílio dos outros círculos que foram ficando pelo caminho, a única alternativa que lhes restava era também desistir. (…). 
E cá continuamos na mesma, senão pior ainda. A situação que se respira na metrópole é bastante difícil. (…). O descontentamento é geral. (… … …). 
Agora, ponto final nestes assuntos e vamos falar de nós. 

(…), fiquei imensamente satisfeita com a tua última carta, a que escreveste aí em 17 do corrente. Uma tranquilidade tão grande, confiança, alegria quase invulgar para os que se encontram em tais situações. Até o trabalho me corre melhor, (…). 
(… … …). 
Agora, meu amorzito, pelas tuas indicações sobre a tua situação (…), “controlo” mais acertadamente as tuas actividades. Sei que enquanto estou na minha repartição, tu tens umas horas de folguedo, de liberdade. Enquanto durmo, tu te debates, tu estás jogando a tua vida. E como todos, esse jogo é incerto. Tanto se pode ganhar como perder. (…) nós cremos que a sorte nos favorecerá e o prémio desse jogo será a tua sobrevivência, a tua saída, ileso, desse inferno. (… … …). 

Os jornais e revistas que me pedes e outras que tenho, enviar-tos-ei logo que possível. Já tinha pensado nisso. Só o que me não ocorreu é que poderia recortar os assuntos que te pudessem interessar e mandá-los por carta. Como tenciono, agora, mandar-te uma encomenda em caixote, aproveito para te mandar algumas revistas e jornais. 
(… ……). 
Recebe os mais ternos e carinhosos beijos e abraços da tua N.


Na imagem supra: 
“Manifesto à Nação" > cabeçalho de um doc. político extenso (mais de 5000 palavras), publicado no “Diário de Lisboa” de 15 de outubro de 1965.
Fonte: Fundação Mário Soares > Imprensa diária > Fundo DRR-Documentos Ruella Ramos.

Na imagem abaixo:
“Manifesto à Nação” > Excerto deste doc. onde se fala da política ultramarina então seguida pelo governo português.


[Dizem ainda os signatários deste “Manifesto à Nação” que na campanha eleitoral para as eleições legislativas teriam de aludir ao “Caso do Relatório da ONU contra Portugal”. E sobre este assunto declaram:]

"O país tomou conhecimento através de uma nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros - que diga-se de passagem ilustra bem os métodos habituais do regime para quem a opinião pública interna não conta – da existência de um relatório elaborado pelo Secretariado da ONU a pedido do Comité de Descolonização, e no qual ao que se diz, além de se citarem “tendenciosamente textos oficiais”, de “erros de facto” e de “insinuações”, se fazia “pela primeira vez” um comentário analítico de modificações na composição do governo português. 
Através da nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros não se fica a conhecer mais do que brevíssimos tópicos do Relatório da ONU e da resposta do governo português. No entanto, há um facto inacreditável que avulta sem contestação: é que o governo português exige, em nome da justiça, uma ampla divulgação do seu documento igual à que obtivera, ao que parece, o texto das Nações Unidas. Está certo: deseja-se que o mundo possa conhecer e aquilatar das razões do Governo mas, paradoxalmente, nega-se, do mesmo passo, esse direito ao Povo Português – que pareceria dever ser o primeiro dos interessados em conhecer e meditar os documentos em presença! 
Quer dizer: a uma avidez de publicidade no exterior corresponde uma cruel e desprestigiante negação da mesma publicidade no plano interno. Com a diferença: é que, segundo os jornais portugueses depois informaram, a ONU corrigiu o erro publicando a defesa do Governo enquanto o nosso Povo continua na ignorância - sem saber em que consistiu o ataque que nos foi feito e, bem assim, as razões de defesa invocadas”.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11732: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (16): Aerogramas e insuficiência das mensagens

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11732: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (16): Aerogramas e insuficiência das mensagens

1. Em mensagem do dia 6 de Junho de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima sexta "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

16. Aerogramas e insuficiência das mensagens

Na imagem > Aerogramas de 1966, com data de 7/4, 25/4 e 1/5 
© Manuel Joaquim 

[O aerograma foi um óptimo meio de comunicação mas sempre o olhei como um substituto menor da tradicional carta usada nas relações afectivas, principalmente no discurso amoroso (ou fizeram-me crer nessa menoridade). Tendo, muitas vezes por preguiça, desleixo, cansaço ou mesmo falta de tempo, recorrido ao aerograma para manter uma periodicidade regular na minha correspondência de guerra, nunca ninguém se me “queixou” do seu uso, exceto a namorada. Receber aerogramas em vez de cartas, era coisa de que ela não gostava nada. Mas lá foi disfarçando … até já não poder mais.]

Vale de Figueira, 9. Março. 66 
Pois, está claro, que gostaria de receber daí cartas volumosas. (…). Eu sei que te é difícil, muitas vezes, fazer o que queres ou o que tens planeado para este ou aquele dia. Vários factores influem agora no teu querer, eu sei. E só por isso me não desalenta muito receber missivas tão lacónicas. 
(…),sobretudo o que me interessa é que semanalmente me dês testemunho de que ainda há vida nesse corpo tão massacrado, (…). O resto, meu querido M., terá muita importância, sem dúvida que terá, pois não é nada agradável estar-se a falar para o “boneco”, para um poço sem fundo, isso é verdade. Mas também não é bem este o caso. 
Isso, na situação actual em que vivemos, é compreensível e desculpável. (…). Podes estar certo, meu amor, que um “estou bem” género telegrama é uma felicidade para mim (…), um fortificante incentivo para continuar a te esperar. 
(… … …). 
Um longo e terno beijo (…) 
D. 

Bissorã, 17MAR66 
Sem dúvida, meu amor, que compreendo inteiramente o teu desgosto por não te escrever como deveria. Deveria? Aqui não há questão de dever ou não dever. Precisamente porque o que desejo é escrever-te, escrever-te muito, (…). Não o faço muitas vezes porque me sinto cansado e sem forças para reagir (…), ao ciclo de desesperança e frustração que persistentemente me quer ocupar o espírito. 
(… … …). 
Eu sei que é preciso reagir a este estado de espírito. Seria preciso reagir para atenuar tudo isto. Mas reagir é-me praticamente impossível. Palavra que às vezes dá-me vontade de esquecer tudo, ficar em estado hibernal [hibernação] e só acordar para a vida daqui a uma dúzia e tal de meses, quando me visse livre de tudo isto. Esquecer. Esquecer tudo. Adormecer. Como se isto fosse possível!!! 
Recebo as tuas cartas, acho-as maravilhosas. (…). Ao ler as tuas palavras passo-me para junto de ti (…). A tua presença faz-me esquecer tudo o resto. Mas são momentos efémeros porque a realidade que me rodeia está bem à vista. E então absorve-me o medo de nunca mais te ver e um chorrilho de ideias tristes, algumas até absurdas, perpassa dolorosamente por mim. 
Eis a razão por que me custa escrever-te. Só em momentos excepcionais, às vezes excepcionais pela sua inautenticidade, é que te poderia escrever cartas que, de todo, te dessem alegria. Sim, porque estou a falar contigo e desde já a aborrecer-me por adivinhar que com as minhas palavras te provoco tristeza, talvez dor. (…) 
(… … …). 
Não falas para o “boneco”. Eu absorvo as tuas palavras e tenho concordado com elas. (…), quando não concordar contigo, a minha réplica surgirá. (…). (…), varre de ti a ideia de que o teu M. querido não está ligando nada (…). (…) até está muito satisfeito com essas palavras, com essas opiniões. 
(… … …) 
Saudosamente, (…). 
M. 

Foto 1 > Bissorã, 1970 > Rio Armada ao pôr-do-sol 
© Carlos Fortunato, CCaç 13 

Bissorã, 3ABRIL66 
(… … …) 
Minha querida, tens de desculpar a minha demora na correspondência. As operações, agora, no final da estação seca são mais fáceis de fazer. Talvez sejam, até, menos perigosas. Por isso andam a apertar bastante com a tropa. Trabalho estafante (…). 
Está claro que isto não é razão para deixar de te escrever. Mas o cansaço ajuda a ficar indolente, a cair no “não te rales”, no “não me maces” Estas frases não se referem a ti. As tuas cartas são sempre bem-vindas e ansiadas. Simplesmente, apetecia-me mais falar-te do que escrever-te. Às vezes esqueço-me de que não estás junto de mim, de que me não podes ouvir. O resultado está à vista, é estar bastante tempo sem te escrever uma carta, limitando-me a uns lacónicos aerogramas. Mas olha para essa espécie de telegramas com a certeza de que neles o teu M. também está presente, bem presente no amor que te dedica, no desejo de que não estejas muito tempo sem notícias. 
(… … …). 
Muitos e muitos beijos (…). Até sempre! 
M. 

Vale de Figueira, 24-4-1966 
“Amo-te”, “Sou teu”; são sem dúvida expressões sempre agradáveis que se escutam com prazer. (…). Mas não bastam, não são o essencial para que se acredite em quem as pronuncia. (…). São expressões efémeras, correntes em toda e qualquer boca, para qualquer fim. 
(… … …). 
Depois de ler cada um dos teus aerogramas que chegam, depois de pensar demoradamente no que se está passando contigo, tentando absorver das tuas poucas palavras algo de doce e de reconfortante, … desânimo! Nelas, parece-me ver esquecimento, um subterfúgio para não revelares a verdade. 
E então o “amo-te”, o “quero-te”, o “sou teu” não me dizem quase nada, meu querido. Soam-me tão longínquos! Quase amargam. 
Mesmo assim, esses aerogramas representam muito. Pelo menos na hora em que os escrevias ainda havia vida nesse corpo embora o espírito talvez estivesse morto, massacrado pela dor. Não queria que isso acontecesse, meu amorzito. Quero que reajas, que converses comigo se ainda me queres para tua companheira, tua amante, tua mulher. (…). Mas, meu amor, estes aerogramas não serão o teu refúgio, não estarás a desligar-te de mim? 
Vivo este dilema, agora. Perdoa-me se te ofendo, dizendo-te isto. Mas eu não posso perder-te! Tu não podes fugir-me, meu amor! 
Que alegria para mim são, nos primeiros instantes, esses aerogramas! Tu ainda estás comigo, é o meu primeiro pensamento. Depois, mastigando o seu conteúdo, que desilusão, que contrariedade! Nada adiantam … são todos iguais! 
Meu M. querido perdoa-me se não sou compreensiva, se estou a ser injusta, mas não estou a recriminar-te, meu amor. Decerto que há muita coisa em mim que te não agrada, podes dizê-lo. 
(…). 
(…) não escrevo mais, hoje. Talvez amanhã ou depois te escreva mais, quando esta neura tiver passado e eu sentir firmemente que continuas me querendo muito. (…) 
Tenho tantas saudades tuas, meu querido! Beijo (…). 
N. 

Foto 2 > Bissorã, 1966 > ao centro, aquartelamento das CCaç 1419 e CArt 1525; ao centro-direita, edifício-sede da Administração Civil; ao fundo, campo de futebol
© A. Silva Pinheiro, CCaç 1419 

Bissorã, 1 MAIO 66 
Cheguei ontem de Mansoa e cá encontrei a tua última carta. Palavra que, antes de a abrir, já pensava no seu possível conteúdo. Acertei (…). 
Eu sei que os meus aerogramas são insuficientes. Inclusivamente, não gosto de te enviar aerogramas. Dá-me a sensação de coisa impessoal, o que com certeza não é, minha querida. 
(…) por coincidência, há uns tempos para cá, quando estou para me dedicar inteiramente a falar contigo, surge um contratempo. 
(…). Ontem tinha intenções de te escrever uma longa carta mas não pude. Pensei muito em ti, em nós, mas foi de arma às costas “passeando” pela selva. Saímos ontem ao princípio da noite. Chegámos há pouco tempo, são 11h 30. Estou cansado, deveras cansado e cheio, cheio de sono. Só a grande vontade de que não fiques sem notícias minhas me leva a pegar na caneta. 
Espero, nota bem, espero que no próximo correio te ocupe um bocado o tempo a ler-me. Estou pronto a escrever muito.(…). 
Depois de umas horas de descanso, ficarei “au point”. 
Sei que vais ficar mais uma vez aborrecida mas tenta compreender. Eu tenho muito que fazer. Muita coisa me preocupa. Tu terás que ser vítima, um pouco, da minha situação. 
Ou não? Mas, forçosamente, tens de ser. Preciso muito das tuas cartas. 
Preciso mais delas do que tu das minhas. Continua escrevendo, sim? Não te zangues, hem? 
Do que tem esperança de ser teu – desculpa o possível cinismo que a tua carta agora me provocou. Vamos lá falar a sério: 
Muitos e muitos beijos, saudosamente, do TEU 
M.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11674: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (15): Analfabetismo, um outro combate

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11674: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (15): Analfabetismo, um outro combate

1. Em mensagem do dia 3 de Junho de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima quinta "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA 

15. Analfabetismo: um outro combate 

Bissorã, 24 fev 1966 
(… … …). 
Minha querida D., desculpa o meu silêncio. Diversas circunstâncias o provocam. Há uns tempos para cá tenho a meu inteiro cargo a instrução primária de 44 soldados, o que me ocupa todas as tardes e princípio das noites, precisamente o tempo mais propício ao descanso. Mas eu trabalho com gosto. Até porque é o meu único trabalho oficial [que acho] válido. E os alunos compreendem e acarinham-me. O que é certo é que o tempo livre voou quase todo. (…). 
Como vês, o tempo que tenho para descansar é diminuto e, além disto, ainda tenho a correspondência e a leitura. Sim, porque todos os dias leio alguma coisa. É pena não poder adquirir os livros que quero. Mas, como daqui em diante começam a ir aí à Metrópole camaradas meus, já tenho um meio de os adquirir. (… … …). 

Fotos 1 e 2 > Bissorã > Edifício da escola missionária. Fotos tiradas com cinco anos de intervalo; a 1ª, em Out./1965, na altura da minha chegada e a 2ª, em 1970 
(© de Carlos Fortunato, fur. mil. CCaç 13). 


Lisboa, 1-Março-1966 
(… … …) 
Meu querido M. peço a tua benevolência para o facto de nem sempre saber controlar-me quando, por qualquer motivo, há um período mais longo sem que me apareçam informações tuas. Também não sabia das tuas novas funções. 
Sei que essa actividade te dá bastante prazer e folgo muito com isso. Sei agora que me roubas mais umas horas (…) de convívio contigo e, a ti, um período de descanso que te seria também favorável. Mas, quando o trabalho nos enche completamente as horas, só faz bem. Por um lado, em momentos livres, não nos deixa lugar a pensamentos menos optimistas; por outro lado, dá-nos a sensação de não sermos imbecis, inúteis, de que afinal produzimos alguma coisa ou que ainda temos vontade em não nos deixarmos mergulhar no charco ou no fosso imundo que se abre aos nossos pés e para onde, (…), querem empurrar-nos. Evidentemente que a tua situação aí é um pouco diferente e, por mais trabalho que tivesses, não conseguirias alhear-te da situação ignóbil para que te atiraram. 
(… … …). 


Mansabá, 2.Jan.1967 
(… … …). 
Na minha última carta parece-me que te falei em férias que iria gozar este mês. Os planos falharam. À última hora cortaram-me as férias! Porquê? 
Precisamente para me enfiarem a ensinar uma classe de militares e uma outra de civis, de garotitas. Julgo que ganhei com a troca. Devido a este meu serviço diário, deixei de ir para o mato. (…). Esta é a primeira alegria que o benjamim [Ano Novo] me trouxe. Entrei com uma “grandecíssima” bebedeira. Não, não te atemorizes, meu amor, que não é para continuar. Não sou alcoólico, longe vá o agoiro! 
(…). Vou ter um trabalho estafante mas “quem trabalha por gosto não cansa”. (…). 
(… … …). 

Fotos 3 e 4 > Mansabá, no início de Jan/1967: “escola” na rua e à sombra de uma mangueira. 
© Manuel Joaquim 

[Aproximava-se o fim da comissão do BCaç 1857 e eu continuava a dar aulas, voluntariamente, aos soldados da minha CCaç 1419. Por directiva superior fui, então, incumbido de dinamizar a inscrição de crianças para a frequência escolar, organizando também o trabalho didáctico e pedagógico necessários ao funcionamento de uma escola já que tinha qualificação profissional para o poder fazer. Iniciou-se, em paralelo, a construção acelerada de um pequeno edifício escolar, de uma só sala, enquanto os seus futuros utentes começaram a frequentar as aulas em espaços improvisados. Para dar estas aulas formou-se uma equipa constituída por mim e pelos furriéis António Correia e Germano Passeiro (CCaç 1421) e distribuímos os alunos pelos três, eu fiquei com as meninas. Quando o edifício escolar ficou pronto, recebeu de imediato as crianças, assumindo eu todo o serviço docente e os meus camaradas as atividades de animação circum-escolar.]

Cacém, 9- Janeiro- 1967 
(… … …). 
Que feliz me sinto, também, pela oportunidade surgida que te pôs a salvo de saídas para o mato. Como é óbvio, essa felicidade é ainda mais completa quando as perspectivas de um regresso antecipado começam a avolumar-se. 
(… … …).


Mansabá, 9-1-1967 
(… … …). 
Estou bem, com saúde e muitas saudades tuas. Já quase me faço compreender pelas miuditas a quem dou aulas todos os dias. É um trabalho que me está a agradar imenso, até porque me ajuda a passar o tempo, agora que ele me parece tão difícil de passar. 
(… … …). 

Foto 5 > Mansabá, Fev/1967: alunas em recreio escolar. 
© Manuel Joaquim 

Mansabá, 23 Jan. 1967 
(… … …) 
Falar-te do meu dia a dia (…). Como já sabes, não ando no mato. Sábados de tarde e Domingos, não trabalho. Nos outros dias dou duas horas de aulas, da parte da manhã, às crianças e outras duas, da parte da tarde, aos soldados. (…). Vistas bem as coisas, comparando a minha situação actual com a anterior, é caso para andar bem satisfeito, e ando.(…). 
Penso que daqui a três meses já devo estar aí agarradinho a ti. 
(… … …). 


Mansabá, 6-Março-1967 
(… … …). 
Às vezes tenho estados de espírito estranhos, tal como o de começar a ter saudades de alguma coisa que por cá existe. Refiro-me, muito em especial, às “minhas” pequenitas que, todos os dias, eu no caminho da escola, disputam em corrida qual delas chega primeiro para me agarrar e dizer “bom dia!”. Então, quando acaba a aula, é uma “chatice”. Elas ainda mal falam o português mas já sabem dizer “adeus, amor di mim”, “adeus, querido di mim” e outras frases similares. Na sua ingenuidade repetem o que ouvem dizer lá por casa às irmãs mais velhas, namoriscando com soldado branco. 

Foto 6 > Mansabá, Março/1967: professor “Amor di mim” com quase todas as suas alunas. 
© Manuel Joaquim 

(…). Enfim, são uns tempos muito bem passados, estes em que lido com as crianças. Cá na terra toda a gente me conhece pelo nome. Passo pelas ruas e às vezes até chateia a frequência com que dizem “M.el Joaquim”. Não dizem muitas vezes mais nada, só esperam que me volte e sorria. (…). 
Alegra-me saber que fiz algo de bom por aqui. E é, sim, com um pouco de saudade que vou deixar esta gente. (… … …) 

Foto 7 > Mansabá, Março/1967: uma aluna apresenta a sua linda maninha. 
© Manuel Joaquim 

Cacém, 14.3.1967 
“Adeus amor de mim” 
Enterneceram-me sobremaneira estas palavras proferidas com pura ingenuidade por essas grandes e dedicadas amigas – almas jovens reconhecidas que, atendendo ao carinho e vontade com que lhes ensinas o ABC, o entusiasmo e compreensão com que as deves escutar, (…), te oferecem essas palavras como única mas valiosa recompensa. 
Oh meu amor, (…), deves orgulhar-te disso e aceitá-las como recompensa por tantos sacrifícios inúteis, como lenitivo para não sentires que a tua estadia aí foi de todo estéril. Mas não foi mesmo, querido. A prova está aí, sai da boca dessas miuditas que te encantam. (…). 
Eu sei, (…), quando regressares à Metrópole não faltarão momentos em que recordarás saudosamente alguma coisa de ti que por aí vai ficar. E, simultaneamente, talvez com saudades serás recordado nessas terras (…). 
Mas vem, (…), vem depressa (…) porque, por aqui, as saudades começam a abrir ferida (…). A espera é dolorosa e eu começo a sofrer os seus efeitos.(…). 
(…) a data do regresso pode ser protelada mas a mesma força e o mesmo entusiasmo abrirão caminho para efusivamente nos abraçarmos (…). 
Não vamos agora desesperar (…) quando estamos quase a transpor a porta do nosso céu. (…) 
Muitos e muitos beijos (…). Adeus, meu amor. N.


Mansabá, 10-Abril-1967 
(… … …). 
Toda esta semana, passei-a a fazer exames [4ª classe do ensino primário]. (…) para que muitos soldados venham a ter o diploma nas mãos. Reconheceram-no e ontem à noite organizaram uma festinha muito simples e comovente, em minha honra. Senti-me confundido com a sua atitude, o seu reconhecimento por tudo o que fiz por eles (…), foi alguma coisa sem outro qualquer intuito que não fosse o de instruí-los. A festinha terminou com razoáveis bebedeiras e por pouco que não apanhei também uma “perua”. Senti-me feliz, deveras satisfeito. 
(… … …). 


Bissau, 25-Abril-1967 
(… … …). 
(…) vai aqui um excerto do Diário da Guiné. (…). Na fotografia, a minha presença vai assinalada com uma seta. (…). Consola-me ver que a minha actividade [docente] não passou despercebida. Até fui abraçado pelo general. A exibição coral foi, na verdade, um sucesso. Palavra que me chegaram as lágrimas aos olhos, eu à frente das crianças, quando a exibição coral passou muito para além do que eu pensava. Dois dias depois ouvi a sua transmissão pela rádio e fiquei visivelmente orgulhoso (…). 
Saí de Mansabá com as lágrimas nos olhos pois não consegui conter-me perante a despedida afectiva daquelas crianças. Ver criancinhas negras com lágrimas na face, abraçadas a mim, foi demais. Nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. Foi qualquer coisa de inolvidável, minha N. 
(… … …) 
Meu amor, calma, muita calma na espera. Eu já quase estou aí. Pouco falta. São só uns dias. 
Adoro-te e é nesta adoração que me despeço. 
Sou o teu, muito teu M.

Foto 8 > Mansabá, Jan/1967 : e à sombra da mangueira se começou a aprender o “ABC”
© Manuel Joaquim 

Foto 9 > Mansabá, Abril/1967: cerimónia da inauguração da escola pelo Governador e Com.Chefe, general A. Schultz. 
Foto da respectiva reportagem publicada no Diário da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11650: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (14): Ciúmes

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11614: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (13): Religiosidade

1. Em mensagem do dia 19 de Maio de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima terceira "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

13 - RELIGIOSIDADE


Vale de Figueira, 11- Janeiro-1966 
(… … …) 
Eu creio sinceramente no teu regresso. Sou católica, como sabes. E a minha fé na protecção divina é grande. Deus ouvirá a minha prece. Fervorosamente, eu peço-lhe que nos aproxime, que te traga de novo ao seio da tua família. E já muitas preces foram atendidas, mesmo no que a ti respeita. Não permitiu que ficasses a meu lado nesta época mas, mesmo assim, não desespero. 
(… … …) 
Não queria causar-te aborrecimentos tocando-te em assuntos religiosos. Desculpa-me, pois, se te enfado mas tenho de te dizer o que sinto, o que é a minha opinião. 
Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural? 
Essa tua fé nos bons resultados da tua actuação, a tua confiança na sorte, não serão indícios da tua credulidade em algo de divino mas de que, confuso que se te apresenta, ainda te não apercebeste? 
Pelo estudo avançado de filosofia que fizeste e ao procurar explicar tudo à luz da razão, cais em contradição ao negares a existência de Deus. A meu ver só se pode negar qualquer coisa que sabemos que existe pois, se não existe, é utópico negá-la. Se negas a existência desse Deus, mesmo sem o perceberes afirmas que existe e apenas não queres reconhecê-lo. 
Talvez agora estejas sentindo essa necessidade de te protegeres, de te pores à guarda de um ser divino, dum ser supremo. Talvez que na aproximação do perigo estejas também tu voltando ao caminho de católico ou de cristão que és. 
(… … …) 
Apetecia-me doidamente abraçar-te, beijar-te muito, muito, (…). 
Meu amor querido, seja na Guiné ou em qualquer lugar recôndito da Terra por onde vagueemos, há problemas, há situações angustiantes. A cada um compete resolvê-las. Sorri um poucochito mais, meu querido … 
(… … …) 
Pondo em acção toda a nossa vitalidade, toda a nossa energia de jovens, não deixemos que as derrocadas diárias nos marquem ao desabarem. Deste modo venceremos, decerto. Combinado, minha jóia querida? (… … …). Confiemos então na tal “sorte”, na tão ambicionada sorte que há-de ser a tua mais fiel companheira enquanto a minha presença pessoal junto de ti nos for vedada. 

(…) beijos apaixonados da sempre tua N. 
Adeus meu querido. 


Bissorã, 18 Jan 66 

Muito obrigado pela tua carta, minha querida. Valerá a pena elogiar-te? Com certeza. Tu merece-lo. 
(…… …) 
Nota, no entanto, minha N. Apesar destes meus indicativos de satisfação, não quero que estagnes. Essa tua vontade de progredir que não pare, que não feneça. (…). Muito há ainda para descobrir. 
(… … …) 
E eu confio, tenho a certeza na tua capacidade de ascensão intelectual. Vais no bom caminho. Estás OK, minha querida! 

Quero-te dizer agora uma coisa: - sê coerente contigo própria, (…). Se és católica, se és religiosa, frequenta a Igreja, professa calmamente a sua doutrina mas sem te fanatizares, com o sentido crítico, razoável, que deve ser o de alguém consciente. 
(…). 
Custa-me dizer-te mas, no aspecto religioso, (…), não sinto possibilidades de poder acompanhar-te. Eu não nego a existência de Deus, nota bem. Simplesmente, eu sou agnóstico. Não nego a existência de Deus mas também não há nada que ma possa provar. Nada, percebes? 

Todos os argumentos que me possam indicar são, para mim, sem bases, refutáveis. Podes crer, minha querida, que em todos os momentos de aflição por que tenho passado, nunca, NUNCA, nota bem, um leve chamamento por algo sobrenatural me envolveu o espírito. (… … …). O que sinto, em todos esses momentos críticos, é ódio, um ódio extravasante. Não pelos chamados terroristas que provocam a aflição. Não tenho nada contra eles. Mas sim contra esta orgânica e seus mantenedores. Isto aqui é mesmo um inferno. (…). De um momento para o outro tudo pode acontecer. E a Guiné ficará na história de Portugal como o cadafalso de centenas de jovens, inglória e criminosamente sujeitos a megalomaníacos que não há meio de serem destruídos. Reza, minha querida, se tens fé. Agradeço-te as tuas boas intenções. 

Desculpa, mas ri-me de um período da tua última carta no que respeita à negação da existência de Deus. Aquela parte que se referia à filosofia. Tudo aquilo que expuseste são trocadilhos de ideias que não levam a nada e que muita gente usa para confundir os espíritos. Eu, como já te disse atrás, não nego a existência de Deus mas também nada há que me faça acreditar nele. 
(… … …) 
Acho que só quem tem fé pode acreditar em Deus. Não tenho fé. Já a tive. Mas sinto-me bem assim. Não preciso de pôr à minha frente o mito de um ser superior que nos vigia, vela por nós, castiga ou salva. Se Deus significa o caminho da salvação ou da perfeição, o meu Deus é o bem, o belo, a paz, a alegria, o amor, a liberdade, a vida. É um Deus mais íntimo, que eu mais acarinho pois sou eu também um daqueles que o ajudam a viver. 
(… … … ). 
Sei, para terminar, que posso afirmar convictamente: 
- A existência ou a não existência de Deus não é problema para mim. Sinto-me bem à margem, desinteressado do problema. Já sofri muito por causa disto. Agora sinto-me perfeitamente satisfeito com o meu agnosticismo. (… … …). 
Minha querida, AMO-TE. (…). 
M. 

******

 [Cerca de um mês depois de ter recebido a carta de D. (11.01.1965), onde se lê “Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural?” passei por um momento único em que me senti totalmente nas mãos do inimigo. Referi-lhe este facto, a tempo, numa das cartas mas não tocando na questão religiosa ou, melhor, indirectamente dizia que, num clima de aflição, não tinha pedido apoio sobrenatural. É que, numa emboscada e durante uns segundos intermináveis, tinha entrado no domínio do despojo absoluto (“acabou, tudo está consumado”) à espera de ser fuzilado. Mais que num grito abafado, saiu-me num murmúrio angustiante um “Ai, minha mãezinha!”. E não era aquela comum e muito vulgar expressão de aflição, era mesmo um pedido inconsciente de socorro de quem estava consciente da sua situação de total fragilidade e em que, qual bebé, “só” a sua Mãe o poderia salvar.]


Bissorã, 17 Março 66
(… … …)
Olha lá, não ouviste aí falar, na rádio ou nos jornais, numa grande operação realizada aqui, em que tivemos um êxito enorme? Foi na noite de 19 para 20 de Fevereiro. O teu M. lá andou. Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha Mãezinha e por ti. Não te rias, é verdade! Um “sacana” estava mesmo a atirar-me para cima. As balas picavam o chão à minha volta e só estava à espera de sentir uma pelo corpo dentro. Mas saí incólume. Éramos perto de 250 homens e só tivemos quatro feridos [ligeiros]. Capturámos muitíssimo material de guerra. (…). As fotografias do material capturado deveriam ter circulado pelos jornais e pela TV. Não viste? [*]
(… … …).

Foto 1

Foto 2
 Fotos 1 e 2 > Referências na imprensa (não identificada) à op. Castor.

Foto 3

Foto 4
 Foto 4: Fotos 3 e 4 > Imagens de material capturado, em espera para ser carregado no heli. 

Foto 5

Foto 6
Fotos 5 e 6 > Imagens de algum do mais importante material de guerra capturado e reunido no Olossato. 

 [*] [ “Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha mãezinha e por ti”:
 Referência à “Operação Castor” (20/02/1966) que consistiu num bem sucedido golpe de mão a um depósito de material de guerra do IN na sua grande base de Morés. Correu tudo de tal modo que o IN só reagiu bastante tempo depois, interrompendo o serviço dos helicópteros que já tinham recolhido e transportado para o Olossato a maior parte do material (cerca de três toneladas), tendo o restante de ser levado às costas pelo pessoal participante na acção (CCaç 816, CCaç 1419 e Pel Milicias). Nesta retirada, no caminho para o Olossato, sofremos uma forte emboscada. Na preocupação de coordenar os “meus” homens, aconteceu ver-me no meio da “estrada” e ter de me deitar aí, ficando a descoberto, de bruços, com a cabeça a tentar “esconder-se” atrás de um saco de carregadores vazios que antes levava aos ombros. Dei por um levantar de poeira provocado por uma rajada com as balas a picar o chão à minha frente, a centímetros da cabeça. Comecei a sentir-me alvo de alguém que tentava acertar-me. Sem hipóteses de me levantar e de mudar de lugar fiquei, imóvel, colado ao chão, à espera de ser “costurado”. Ainda hoje, quando penso nisto, sinto um calafrio a percorrer-me a coluna, desde o “buraco” ao fundo das costas até à nuca. E é verdade, “juro”, que nesta aflição me não ocorreu qualquer ideia e/ou expressão de índole religiosa. Se “gritei” pela namorada, já me não lembro. Mas o “Ai, minha mãezinha!” continua fortemente a ecoar na minha mente quando recordo o acontecimento.

Sobre esta operação militar, “Condor”, ver neste blogue o P3806 de 27/01/2009, do camarada Rui Silva da CCaç 816, de onde foram recolhidas as imagens acima publicadas. Neste “post” do nosso estimado “tabanqueiro” há dois erros a merecer correção:

(i) não foi a CCaç 1418 quem acompanhou a CCaç 816, mas sim a CCaç 1419, a que pertenci, deslocada de Bissorã para Olossato precisamente para esta operação.

(ii) também a CCaç 1481 não foi a outra companhia que atuou “à distância” pois estava em Moçambique (BCaç 1873). Julgo que na identificação houve troca dos algarismos 1 e 8 e, por isso, creio ter sido, aqui sim, a CCaç 1418 a atuar.]
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11413: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (12): A morte se fez visita estrondosa