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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15763: Blogoterapia (275): Paisagens que dão tanta beleza à vida, abulia e esquecimento (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Fevereiro de 2016:


PAISAGENS QUE DÃO TANTA BELEZA À VIDA, ABULIA E ESQUECIMENTO

Para combater o excesso de peso, e a ferrugem dos músculos e articulações, males provocados pela idade e  pelos excessos alimentares, muitas vezes na companhia de amigos e camaradas, faço muitos passeios sozinho, em marcha forçada, no Parque da Cidade que fica perto da minha casa. Habituado desde muito jovem na minha aldeia, às longas caminhadas que me levavam a todos os sítios da sua área agrícola e florestal, ultimamente  comecei a sentir saudades desses espaços mais  amplos e diversificados, com outra lonjura dos caminhos do Parque, que consigo percorrer numa hora.

Pelo prazer das caminhadas, dos espaços amplos e das paisagens que entram pelo olhar e dão tanta beleza à nossa vida, recordo-me também dos anos da Guiné e das caminhadas que fiz por lá, com melhores pernas do que actualmente.

Porto - Vista do Parque da Cidade

Nos primeiros meses em Buba, fiz grandes caminhadas com o pelotão, que já mostrava alguns sinais de cansaço para acompanhar o periquito, que eu era, pois eles já tinham sete meses de mato.
Sem nunca sair para fora da área que estava atribuída à companhia eu achava que devia ter conhecimento do terreno, para maior segurança psicológica, pela utilidade que poderia ter nalguma emergência, por outro lado era também levado pela curiosidade em explorar as paisagens de floresta e bolanha que me rodeavam. Nesses  longos "passeios" tivemos a sorte de nunca nos cruzarmos com o inimigo, e confesso que como amante da vida ao ar livre e da natureza, foi das melhores experiências que tive na Guiné.

Problemas e azares, de que já falei, houve depois, nos últimos meses da comissão, para lá dos ataques mensais ao aquartelamento, que o Nino Vieira parecia fazer para cumprir calendário, que nos assustavam mas  nunca magoavam ninguém. A norte da bolanha dos Passarinhos, que tínhamos que cruzar na estrada de terra batida, que nos ligava a Nhala, para fazer protecção às frequentes colunas de reabastecimento, havia  uma enorme bolanha, que já não recordo se seria a sua continuação ou outra. Nesta grande área de bolanha só estive uma vez, com toda a companhia e terá sido das poucas vezes que o capitão saiu. Gostei muito de conhecer esse enorme descampado pouco arborizado e rodeado de floresta, talvez por alguma nostalgia da parte planáltica da minha aldeia, onde se cultivava o trigo e o centeio.
A nossa imaginação transporta para toda a parte as cópias das gentes e das paisagens onde nascemos e fomos criados e gostamos de as encontrar projectadas noutros ambientes. Fui algumas vezes na direcção de Fulacunda, que sendo bastante distante de Buba, parecia-me que havia entre as duas tabancas, muita terra de ninguém que poderia ser controlada pelo PAIGC. Fulacunda que talvez por ter um nome sonante e quase mágico e pela vizinhança confinante com Buba ainda que um pouco distante, sempre foi para mim um mistério a  despertar a minha curiosidade.

O José Teixeira, que fez tropa em Buba, antes de mim, e é um grande andarilho, que já voltou algumas vezes à Guiné, falou-me duma povoação nessa direcção, não muito longe de Buba, controlada pelo inimigo, segundo testemunho que recolheu junto de habitantes dela. Nunca soube ou não me apercebi da existência dessa tabanca. Saindo de Buba, próximo da pista de aviação, havia um troço de estrada abandonado, onde já crescia algum mato, que segundo parece não levava a parte nenhuma, que eu nunca percorri em toda a sua extensão até por ser um caminho muito exposto. Terá sido uma tentativa frustrada de abrir uma estrada, no tempo de companhias anteriores, na direcção de Aldeia Formosa.
Na direcção de Empada, a sudoeste, só me recordo de ter ido duas vezes com dois pelotões, numa espécie de patrulhamento sem outro objectivo definido, que não fosse observar se haveria vestígios da passagem ou actividade do inimigo, que por vezes nos atacava dessa zona, ainda perto do quartel, do outro lado do Rio Grande Buba.

Paisagem da Guiné - Pôr-do-sol no Pelundo

Depois de Buba, rumei para Mansabá, recomendado, por erro de casting, como bom combatente, como me chegou a dar a entender o Capitão Abreu, Comandante do COP, e para aborrecimento do capitão miliciano da companhia, que chegou uns dias depois de mim, Economista na vida civil e que tinha tanto jeito como eu para a vida militar.  Bom homem esse capitão, pois se ele fosse rigoroso na aplicação do RDM, eu provavelmente teria cumprido mais alguns meses de Guiné.
Mal recordo a actividade operacional. Lembro-me de fazermos uma operação, no sentido contrário à mata do Morés, não recordo qual o objectivo. Sei que andei muito tempo a pé por uma mata bastante densa e não me recordo porque motivo cheguei a andar de helicóptero, talvez para ver a paisagem.
Foi nessa ou noutra operação, que de manhã cedo a companhia estava toda formada na parada à minha espera, e o capitão danado pela minha demora, e eu a chegar  impassível e abstracto a olhar para ele.
Já escrevi algures no blogue que por muita pena minha nunca pude entrar na mata do Morés, por proibição conjunta do PAIGC e das autoridades militares, já que nessas operações somente eram utilizadas tropas especiais. Mas eu gostaria tanto de conhecer essa grande extensão de floresta, de preferência sem tiros nem bombas.

Pelo prazer que sempre tive em conhecer os campos e florestas da Guiné, se revelam as minhas origens camponesas. Se pudesse tinha dado a volta a toda a Guiné a pé.

Por causas várias que talvez não consiga analisar objectivamente, ou porque isso não me agrade agora, reconheço que nos meses passados em Mansabà, já estava um pouco "apanhado pelo clima" e o meu comportamento reflectiu bastante isso, confirmado recentemente pela minha irmã, mais próxima da minha idade, que há dias me falou do meu regresso a casa.

As nossas irmãs, essas jovens que desde cedo desenvolviam em relação a nós, uma mistura de sentimentos fraternais e maternais e alguma admiração e curiosidade pelas  nossas diferenças físicas e psicológicas.
As nossas irmãs, que nesses anos de aflição das famílias, acrescentavam tanto carinho e afectividade à que nos era dedicada pelos pais e que, segundo ela, eu tratei com tanta indiferença quando regressei. Nunca demos muito realce ao amor e sofrimento dessas jovens como se elas fossem obrigadas a isso por dever familiar. Tantos anos passaram e só agora esta irmã me fez esta "queixa", que surgiu somente, por acaso, no decorrer de uma conversa sobre o passado comum.

Outros factos que não sabia e outros que esqueci, por exemplo que a minha mãe chorava muito porque eu não dava notícias, e ela culpava as filhas por me escreverem pouco quando isso até não seria verdade. Note-se que a nossa mãe tinha a quarta classe mas bastante ocupada nas múltiplas tarefas que tinha que fazer no lar, cozinhar, costurar, chulear, tecer e outras, entre as quais ir na burra à horta, uma grande paixão para além dos filhos, encher as alforjes com as diferentes qualidades de hortaliça, atribuía a responsabilidade da escrita dos aerogramas às filhas.

Talvez esse estado de espírito, de que falei, em que se misturava abulia e esquecimento tenha varrido da minha memória muito do que se passou e vivi em Mansabá. Algumas recordações conservo e já aqui falei delas, sobretudo a cordialidade e camaradagem que senti da parte de todos.

Durante muitos anos, como muitos camaradas, voltei as costas à Guiné, quis esquecê-la e riscar da minha vida os dois anos que por lá passei. Há três anos, com a descoberta do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e com a premência causada pelos dias intermináveis dos primeiros meses da reforma e o avançar da idade, comecei a sentir mais a necessidade de fazer um balanço da minha vida pelo que tentei explicar e integrar esses dois anos na corrente e sucessão dos outros de forma a reconciliar-me com a memória dos tempos de brasa da juventude.

Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)

domingo, 20 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15517: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (7): Os nossos Natais (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Dezembro de 2015:

Estamos perto do Solstício de Inverno quando o Sol começa a despertar a Terra da sonolência dos dias para um novo ciclo de vida e de renovação.
Os persas nesta quadra faziam grandes festas ao Deus Mitra; os Romanos festejavam as Saturnálias em honra de Saturno e nós filhos de cristãos festejamos desde há séculos um Deus-Menino que significa igualmente o renascer da vida.

Na realidade quase todos os povos antigos que viviam numa comunhão mais próxima com a Natureza e o Universo festejavam este renascer e este despertar. Nós crentes duma religião, de um Deus que se fez Homem, somos também herdeiros de muitos mitos e religiões criadas por muitos povos que nos antecederam. Somos filhos de passados longínquos que nos deixaram marcas que muitos cientistas, historiadores, antropólogos e outros especialistas procuram decifrar.


Com o Natal recomeçam as festas em que se celebra a vida e o despertar da natureza, depois virá o Carnaval a única grande festa pagã que a Igreja Católica não conseguiu substituir ou apagar da memória dos povos, depois virá a Páscoa essa grande festa Cristã em que a primavera começa a cobrir os campos e florestas de verde e a água escorre cristalina e com abundância por regatos, ribeiros e rios.

Sendo o Natal uma época de mudança é também uma época de reviver, de recordar os bons e maus momentos do passado, é um tempo de sentir as ausências dos familiares e amigos que já partiram e por contraste de fazer a festa da vida com os amigos e familiares que nos restam.
Quis o destino que fôssemos jovens num tempo em que Portugal governado por um velho ditador apelava a um passado de glórias de descobrimentos e conquistas passadas na defesa das nossas colónias, em resistência aos ventos da história que assolavam a África e iam desmantelando o mapa desse continente negro de colónias europeias, em países independentes à velocidade de um tufão.

Dispostos ou não a cumprir essa ordem de combate, instituída em dever pátrio, fomos embarcados quase à força, muitos em porões de grandes barcos em condições semelhantes às dos escravos da Guiné, que os barcos negreiros levaram para o Brasil, em séculos anteriores. Muitos passamos por lá dois anos, não a ferro e fogo, mas numa guerra com meses de paz, alternados com dias de emboscadas, minas e bombardeamentos que nos mantinham sempre num estado de alerta e ansiedade.
Muitos vimos camaradas morrerem ou ficarem gravemente feridos e as marcas desses casos tristes ficaram para sempre gravadas nas nossas almas e ainda por vezes nos magoam como cicatrizes que teimam em não fechar totalmente.

Privados do amor dos pais, irmãos, noivas, mulheres, parentes e amigos da infância fomos criando laços de amizade com camaradas e com eles formamos essa grande família que só a camaradagem dos soldados consegue criar. Camaradagem que aprendemos a estender a todos os militares aquartelados nas tabancas próximos pois muitas vezes ouvíamos o rebentamento das bombas quando eram atacados e íamos também sabendo as desgraças que lhes iam acontecendo.
E porque a Guiné era um território pequeno com muitos combatentes, com a guerra disseminada por toda ela, acabamos por estender essa solidariedade e camaradagem a todos os que lá foram parar.

Fomos também fazendo amizade com os homens grandes, as mulheres, as bajudas, gente pobre e em sofrimento, mas sempre amável e gentil . E os meninos da Guiné mal trajados, mal nutridos mas sempre com aquele olhar doce e sorridente.
Sentimos o cheiro forte e quente dessa terra tropical. Ficamos encantados com a beleza dos seus rios, bolanhas, florestas, árvores centenárias, maravilhados com aqueles pores-do-sol magníficos em que o céu ganhava miríades de tonalidades vermelhas e cor-de-rosa que nos deixavam extasiados em contemplação, a pensar se o paraíso bíblico seria aquele.

Para além dos desgostos provocados pelas granadas e pelo matraquear das metralhadoras ficou-nos sempre uma saudade imensa desse cheiros tropicais, das secas, das chuvas imensas, da beleza das paisagens, da bondade das suas gentes e da amizade forjada entre camaradas em dias de tédio e de tristeza por outras ausências.
A Guiné marcou-nos a todos por todas estas razões. A Guiné foi para nós essa Xerazade islâmica, essa lendária rainha persa que nos continua a contar estórias de encantamento, beleza e de pesadelo também.
Os ex-combatentes da Guiné todos o sabem, todos o sentem, são diferentes de todos, pelas razões já apontadas. De Cacine no sul a Susana no norte, a Buruntuma no leste, o clima, as vivências, o calor, a chuva, o troar das bombas ou os trovões das tempestades tropicais, eram idênticos, debaixo do mesmo céu, a mesma vida, ora triste, ora alegre, resignada, atribulada, com bons e maus sonhos

Para compensar os dias de Natal da tristeza, pela ausência da família, passados na Guiné, onde a maior parte das vezes comíamos o rancho de todos os dias, pois não havia bacalhau, polvo, couves ou rabanadas, hoje festeja-se o Natal em casa com a família e fora de casa com essa família alargada que fizemos na Guiné, nas várias Tabancas espalhadas de norte a sul por todo o Portugal.

A todos os ex-combatentes da Guiné, quero desejar bons e alegres almoços ou ceias de Natal, com paz, amizade, fraternidade e camaradagem.
Perto ou longe nunca vos esquecerei, como não se esquecem os bons encontros que a vida nos proporciona.

Um Bom Natal Camaradas!

A todos um grande abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Poste anterior da série de 20 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15516: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (6): Com os gaiteiros da Freiria na Lourinhã...Teríamos ganho a batalha de Alcácer Quibir, em 1580, se em vez de guitarras tivéssemos levado gaitas-de-fole(s)... (Luís Graça)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15325: Inquérito "on line" (14): Spínola sendo muito popular entre a tropa em geral, era impiedoso perante chefes militares seus subordinados que ousassem discordar dele e que não demonstrassem submissão perante o Chefe (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 30 de Outubro de 2015, dando a sua opinião sobre a incontornável figura que foi o General Spínola:

O General Spínola foi sempre o Com-Chefe nos dois anos em que estive na Guiné. Confesso que não gostava do estilo emproado dele, de monóculo e bengalim, não sei se copiado dum antigo general inglês ou alemão.

Sobre as suas capacidades de comandante militar, não se pode negar que não desse apoio aos soldados com as suas palavras e a sua presença nas visitas frequentes aos quartéis espalhados pelo território ou mesmo às tropas em algumas operações no mato.

Uma guerra de guerrilha, a história recente do século XX, têm-nos ensinado que não se consegue vencer militarmente. Só se poderá vencer se forem criadas condições sociais e políticas que possam retirar argumentos aos defensores dessa via armada e, acrescento eu, às potencias que apoiam essa solução. Sobre a condução da guerra, do que vi e ouvi, não achei que fosse um grande estratega. A grande operação "Mar Verde" realizada sob o seu comando, planeada e comandada pessoalmente pelo Comandante Alpoim Calvão, já muito debatida no blogue, foi um enorme fiasco. Dos vários objectivos militares e políticos somente se conseguiu realizar com êxito, a libertação dos nossos camaradas presos em Conakry. Já se falou muito nela, havendo opiniões diversas e nem sempre coincidentes. A minha opinião baseia-se no testemunho que ouvi ao Tenente dos Fuzileiros Lucas, natural de Coimbra, infelizmente já falecido.
Depois dessa operação o destacamento de fuzileiros africanos que ele enquadrava, regressou a Buba, donde tinha saído, talvez um mês ou dois antes. O Lucas, um grande camarada, sempre alegre e bem disposto, o maior cómico do quartel, veio triste, cabisbaixo e horrorizado com cenas de saque e selvajaria que presenciou. Já li no blogue descrições bastante pormenorizadas que se assemelhavam muito à descrição feita por ele, pelo que me abstenho de a reproduzir.

Tenho também presente uma grande operação, planeada em Bissau, como todas as grandes operações, realizada perto de Mansabá, que duas companhias de comandos africanos fizeram largadas de helis no Morés, depois da aviação e da artilharia terem bombardeado dois dias antes a zona. A aviação com todos os aviões de guerra disponíveis e a artilharia com obuses de longo alcance transportados para o destacamento de Cutia . Após esse bombardeamento intenso, ao terceiro dia, manhã cedo, foram largadas de helis duas companhias de comandos africanos. Um major, que comandava o COP 6, em Mansabá, no rescaldo da operação foi lá de helicóptero e disse-me, no regresso ao quartel, que não viu guerrilheiros e disse-me ainda que não gostou do que viu. Não lhe fiz perguntas pois pareceu-me entender o que ele disse. Pedimos cada um o seu whisky e a conversa ficou por aí.

 General Spínola

A política de Spínola em relação à população "Por uma Guiné melhor" foi inteligente, mas nada tem de original já que os manuais de contra-guerrilha, há muito tempo, ensinavam isso. Terá agradado a alguns naturais da Guiné mas não a tantos que conseguisse retirar o apoio popular suficiente que a guerrilha precisava para prosseguir o seu esforço de guerra. Também não sei se o Caco Baldé conseguia agradar à população controlada pelo inimigo. Sendo muito popular entre a tropa em geral, era impiedoso perante chefes militares seus subordinados que ousassem discordar dele e que não demonstrassem submissão perante o Chefe. Já se falou aqui do caso do Tenente-Coronel Agostinho Ferreira, um homem recto, vertical, valente e sem medo de acompanhar tropas no mato, que foi Comandante do BCAÇ 2898, a que pertenci, depois de, por castigo, lhe ter sido retirado o comando doutro batalhão. Como o caso deste tenente-coronel houve outros com ou sem motivos justificáveis.

Spínola na Guiné tinha uma corte de fiéis que o adulava e era sobretudo a esses que ele apreciava. Sendo muito popular entre os mais humildes, isto é a população indígena e os soldados, penso que era uma atitude que sendo humana seria também bastante política. O General terá pensado no poder e com o livro "Portugal e o Futuro" vai inspirar o 25 de Abril e procurar abrir espaço para impor o seu ideário político ao país e que em relação às colónias, todos o sabem, preconizava não a independência, mas uma autonomia gradual. A ideia não seria má, só me parece que a guerrilha e muitos países que os apoiavam, alguns descaradamente e outros pela calada, já não estavam para esperar mais. Era uma experiência que a marcha da história já não consentia.

O levantamento das Caldas da Rainha planeado pelos oficiais spinolistas, provavelmente os mesmos que no Quartel General em Bissau planeavam as operações, e rapidamente abortado pelas forças do regime, foi o princípio do fim do General. Tal como a operação "Mar Verde", foi uma operação falhada. Não posso deixar de ressalvar que nessa operação se conseguiu um grande objectivo, o único, a libertação dos nossos camaradas presos.

Os operacionais que fizeram o 25 de Abril deram-lhe a Presidência da República mas não lhe garantiram todo o poder que ele ambicionava. Nesse tempo o país vivia agitado por uma democracia nascente em que os partidos, em guerra verbal, procuravam atrair ou manipular os cidadãos a apoiarem as suas teses e agitavam nas ruas, sobretudo os de esquerda, multidões ruidosas que condicionavam os governos da nação.

Spínola, com um projecto de poder muito pessoal, face à confusão institucionalizada, faz um apelo dramático ao "bom povo português" que não encontra o eco que esperava, e porque a maioria dos militares também não o apoiavam, retira-se para não mais voltar à ribalta da política.
Voluntarioso tal como o General Humberto Delgado, décadas atrás, ainda procura no estrangeiro congregar forças políticas e militares, mas mesmo, o bom povo português , em que ele tinha confiado, já tinha deixado de acreditar nele. A ser o Presidente da nação que ele ambicionava, eu compará-lo-ia ao Major Sidónio Pais por um certo pendor autoritário e por alguma demagogia popular (bom povo português!) . Dada a diferença de idades entre um e o outro, faltou-lhe o élan e o carisma entusiástico da juventude do Major Sidónio Pais ou até do General Humberto Delgado.

Este texto, que procura corresponder a uma ideia lançada pelo grande camarada Luís Graça, escrevi-o também para "calar" dois amigos nossos, o José Dinis, mais conhecido por JD, e o Carlos Vinhal, quando nos encontrámos há cerca de quinze dias, na companhia dum primo do J.D. e da esposa, ambos muito simpáticos, num café em Leça da Palmeira, não para resolver a situação complicada do país, mas para beber umas águas e cavaquear um pouco.

Um abraço a todos.
Francisco Baptista
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 Nota do editor

 Último poste da série de 30 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15305: Inquérito "on line" (13): Os três Comandantes da Guiné (Mário Vitorino Gaspar)

domingo, 25 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15289: Meu pai, meu velho, meu camarada (47): A minha mãe terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 21 de Outubro de 2015:

No quarto dos meus pais, lembro-me desde criança, da fotografia deste jovem soldado. A minha mãe por não ter outra fotografia dos bons tempos de namorados, em que ambos trocavam olhares com promessas de beijos e palavras cheias de significado e de futuro, tirou esta fotografia da caderneta militar deste soldado garboso e colocou-a num lugar de destaque no quarto do casal.

Nesses tempos antigos do século XX, até à década de cinquenta, em que todos os militares tinham direito a uma farda número um, com dólman e quepe, semelhante aos dos oficiais superiores, em lugar do quico e do blusão verde dos nossos tempos, a minha mãe, costureira e esteta amadora, terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância que já lhe reconhecia, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador.

Emídio Baptista, meu pai

A fotografia dos últimos trinta anos ou talvez mais, já não será a original, pois a minha irmã mais nova, que sempre gostou de recordações da família, mandou fazer uma cópia e guardou para si uma delas.

À minha mãe, esse retrato de militar, devia trazer à memória recordações gratas da sua juventude e do seu namorado, tão discreto mas que sabia tão bem dizer-lhe as palavras apropriadas, que acompanhadas por um sorriso afável, lhe adoçavam os dias, a faziam sonhar e lhe prometiam um futuro radiante.

Apesar de todas as contrariedades e dissabores próprios do casamento, a minha mãe continuou a confiar para sempre nesse homem, que ela conheceu menino, adolescente e jovem.

Ele morava tão perto da sua casa, a menos de 100 metros. Aos 19 anos, por morte do pai dele, por ser o mais velho de 4 irmãos, teve que tomar conta da casa de lavoura e de dar todo o apoio possível à sua mãe viúva. Nesses anos e em anos anteriores teve tempo e oportunidade de avaliar esse vizinho, da idade dela, que passava à sua porta com as vacas e vitelos, com o carro puxado pelas vacas, vazio, para trazer cortiça, trigo, ou lenha, ou outros produtos agrícolas, ou com as charruas e os arados para lavrar as hortas, as oliveiras ou os campos de trigo e centeio. Muitas vezes se terão cumprimentado conforme os usos e costumes da terra: Bom dia Maria! Bom dia Emídio! E pela urgência das lides quotidianas ou pela timidez de um ou do outro, a troca de palavras terá ficado por aí.

Afinal, apesar do silêncio, da reserva e da dureza da vida após o casamento, o seu homem não era pior do que todos, mesmo irmãos ou cunhados. O seu homem era trabalhador e responsável e nunca faltaria com o indispensável às necessidades da família que ia aumentando ano após ano. Nessa sociedade patriarcal todos tinham essa máscara ou marca de rudeza, que tinham herdado dos pais e avós que lhe dava autoridade, até demasiada, mas que lhe iria também exigir muitas responsabilidades. O sustento da mulher de dos filhos ficaria para sempre a seu cargo, bem como todos os trabalhos agrícolas. A mulher teria o encargo de criar os filhos e de ajudar em alguns trabalhos agrícolas menores, se possível, como por exemplo alguma ajuda no tratamento da horta.

A minha mãe, uma mulher inteligente, acreditava na escolha da sua vida, pelo conhecimento e enamoramento que terá crescido dentro dela desde criança, ao longo dos anos, pela forma gentil com lhe terá dito que gostava dela e pelo seu sorriso simpático de garoto brincalhão ou trocista. Na fotografia desse soldado, a melhor representação do seu amor juvenil, que imaginou para a vida inteira, a minha mãe apostou todo o seu projecto de vida.

Apesar dos seus silêncios, do seu feitio reservado que não lhe conhecia bem dos tempos de namorado, os filhos iam nascendo para alegria dela, cada qual o mais belo (os filhos são sempre tão lindos), para compensar desgostos passageiros. Ao seu marido autoritário ela sabia que o sabia vergar e moldar aos seus gostos quando fosse necessário. Recordo-me bem quando plantávamos a horta, com feijões, tomates, cebolas, batatas, pepinos, melões, etc., as guerras que a minha mãe tinha com o meu pai, por ele não lhe querer garantir um bom lote de terreno para plantar as suas flores: os crisântemos, as sécias e as zínias. A nossa mãe ganhava sempre.

Quando os filhos começaram a crescer, depois de fazerem a escola primária, a minha mãe lutou como uma leoa para que a todos fosse garantida toda a continuação da educação escolar possível.

O nosso pai já a pensar que com a ajuda dos quatro filhos varões podia aumentar bastante a riqueza da família teve que se curvar perante as exigências da mulher, que não sendo autoritária, se sabia impor em defesa das suas flores e dos seus filhos, os bens que mais amava.

A vida deste militar, garboso e aprumado, com o mesmo porte que conservaria para o resto da sua vida civil, continua a ser para mim um enigma, já que ele nunca falava do seu passado, civil ou militar, nem das suas recordações da meninice ou da juventude. Sei somente algumas coisas que a minha mãe ou outros contaram.

Consta-se que era da arma de Cavalaria e que terá tido uma repreensão por um dia ter vergastado um cavalo mais rebelde. Terá passado por Mafra em 1939, por onde eu passei 30 anos mais tarde. Sei que escrevia cartas muito meigas à namorada que a minha irmã mais nova, já depois da sua morte, morreu cedo, aos 59 nos, encontrou numa arca de madeira. no meio de lençóis de linho.

Cartas que tinham sempre no cabeçalho duas palavras: Minha Maria. A minha irmã, sempre a mais nova, teve tempo de ler duas cartas porque entretanto foi encontrada pela nossa mãe, nesse delito de inconfidência, as cartas, com os segredos desses namorados, terão sido queimadas ou bem escondidas, o que se sabe é que não mais foram encontradas.

Esta é a minha homenagem singela, que se me permitem os meus camaradas, presto a estes dois guerreiros que lutaram até ao limite das suas forças, pelo futuro dos filhos, e que a todos deixaram uma herança tão grande em valores humanos: honra, honestidade verticalidade, companheirismo, dedicação e solidariedade .

Um abraço.
Francisco Baptista
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OBS: 
- Foto editada por CV
- Título do poste da responsabilidade do editor 
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14648: Meu pai, meu velho, meu camarada (46): O meu avô, cruz de guerra de 1ª classe, esteve na I Grande Grande, nas margens do rio Rovuma, norte de Moçambique.... Quando regressou, trouxe com ele um "filho da guerra", que seria mais tarde o meu pai, que eu sempre adorei e adoro (Jaime Machado, ex-alf mil cav, Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70; membro do Lions Clube Lusofonia)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15219: Notas de leitura (764): "O Quarteto de Alexandria", escrito por Lawrence Durrell, edição D. Quixote 2012 (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 4 de Outubro de 2015:

O tédio dos dias longos da reforma, que para muitos de nós se pode assemelhar a uma longa espera, de braços cruzados, dum fim inevitável que a todos nos aguarda, na sucessão dos dias e na curva dos anos, essa tristeza de horas vazias, que se pode transformar numa depressão melancólica e ligeira ou até numa depressão mais aguda, segundo os especialistas, pode ser combatida por várias formas.

Uma boa forma de o combater, aconselham eles, são as viagens. Viagens que até podem não ser muito longínquas mas que representam sempre, para quem as faz, uma mudança de rotina, uma mudança do cenário quotidiano, em que o espírito desperta e se reanima por estímulos novos, que podem ser cidades com outras ruas avenidas, pontes, rios, monumentos, outras gentes e outras paisagens.

Dado que ninguém pode andar sempre em viagem e sobretudo os reformados portugueses, a toda a hora assaltados pelos rapazes da política de mãos dadas com os banqueiros, temos que encontrar outras alternativas para nos ocuparmos nos longos meses que ainda sobram depois das viagens possíveis.

Alternativas possíveis há muitas: tratar dos netos, plantar uma horta, escrever um livro, ajudar a melhorar a vida dos presos, dos doentes, dos sem-abrigo, dos refugiados. Estas e outras actividades são uma boa terapia para as nossas horas de enfado e solidão.

Para os que preferem o aconchego do lar, podem sempre navegar na internete, o que se pode tornar um pouco cansativo depois de algumas breves horas. Navegar na internete ou ver televisão duma forma passiva, pode tornar-se pouco estimulante na medida em que o nosso trabalho cerebral é diminuto.

Para esses recomendo uma leitura de um livro ao seu gosto. Há tantos e tão variados; sobre saúde, psicologia, filosofia. sociologia, política, história, poesia, romances para todos os gostos, policiais, sentimentais, históricos, de viagens.

Nos livros, o nosso espírito encontra o alimento essencial para rejuvenescer, e todo o nosso ser viaja com eles pelos domínios do conhecimento e pela arte literária, essa arte onde as palavras nas suas diversas combinações fonéticas, sintácticas e figuras de estilo nos embriagam, pelos quadros de beleza que o escritor vai compondo.

Gostava de dormir, sobre ele, uma noite calma e feliz e que o meu cérebro conseguisse absorver toda a arte narrativa e literária deste livro denso e imenso, "O Quarteto de Alexandria" escrito por Lawrence Durrell.

Sem ser crítico literário, nem pretender ter conhecimentos e qualidades para tal, somente me atrevo a falar deste livro pela surpresa e espanto que senti quando o descobri e comecei a ler. Foi a segunda vez que eu repeti a leitura dum livro. A primeira vez li-o um pouco apressadamente, dei-me conta da sua beleza, mas não o li pausadamente para puder apreciar todos os seus contornos, pensamentos, quadros humanos e naturais. Procuro entendê-lo melhor nesta segunda leitura.

Este livro é uma sinfonia de melodias, de ritmos de cor, de palavras que nas variadas combinações que formam entre si adquirem outra vida, outro colorido. Este livro sente-se, vê-se, ouve-se, este livro pode declamar-se como um poema sem rima. Nas suas novecentas páginas é sólido como um tijolo e talvez mais perigoso como arma de arremesso. É um grande livro, para durar enquanto os homens lerem livros, um dos maiores romances do século XX.

O pano de fundo do romance é a cidade de Alexandria, essa cidade mítica, cultural, monumental, que o general grego Alexandre o Grande construiu à beira do Mediterrâneo, no cruzamento das antigas civilizações, egípcia, grega, romana, judaica e outras levantinas. Durante séculos, praticamente até à nossa era, Alexandria tornou-se um pólo de atracção de sonhadores e artistas da Europa e do Mundo.

Ao longo dos quatro livros que compõem o quarteto, o narrador vai falando da cidade, ruas e bairros, os habitantes, árabes, judeus, gregos e europeus, porto de mar, lago Mareotis, Mar Mediterrâneo, a cidade transforma-se também numa personagem importante da obra.

Nesse cruzamento de povos e de culturas, das mais avançadas de três continentes, os viajantes parecem procurar o esplendor antigo da cidade:
Quando o Farol de Alexandria iluminava o mar Medirerrâneo e assombrava pela sua grandeza e monumentalidade.
Quando a Biblioteca de Alexandria pela sua beleza e pelos seus muitos milhares de livros convidava todos os intelectuais, sábios, filósofos e outros amantes da sabedoria a fazer-lhe uma visita demorada.

Farol de Alexandria, construído por volta de 280 a.C. pelo arquitecto grego Sóstrato de Cnido
Foto com a devida vénia ao site por acaso

O trama do quarteto gira à volta das quatro personagens que dão nome a cada livro, tendo um lugar de destaque Justine, casada com Nessim, que desperta amizades e paixões eróticas destes e doutros protagonistas a que ela por vezes corresponde. Justine pela atração que provoca, pela sua sabedoria religiosa da Cabala e filosófica, pelas línguas que domina fluentemente faz ainda lembrar Cleópatra aquela alexandrina famosa do inicio da nossa era.

Duas mulheres muito belas e muito cultas mas bastante diferentes, Cleópatra foi uma rainha egípcia por sangue, da dinastia dos Ptolomeus, uma mulher ambiciosa e que pelo poder aceitou casar-se com os irmãos, como era hábito nessa e noutras dinastias egípcias e pelo poder rejeitou essas ligações e tornou-se amante ou mulher de dois generais e cônsules romanos. Justine é uma judia que teve uma vida difícil antes de casar com Nessim, um banqueiro egípcio de religião cristã copta, com quem tem também um grande entendimento filosófico, cuja ambição é conhecer com a ajuda dos outros o conhecimento necessário para conseguir o seu equilíbrio interior através duma teoria religiosa e filosófica satisfatória. Uma mulher frágil que atrai os outros pela sua beleza e pela força espiritual que parece emanar dela.

Nesse círculo de intelectuais e afins, respira-se uma atmosfera libertária no campo dos costumes e das ideias, são aceites tanto os místicos como os agnósticos ou ateus, os homossexuais ou os outros, é conhecido, sob algum sigilo, o caso de incesto de um escritor, infidelidade conjugal, sem escândalo, não só o de Justine..

Abro o livro à toa e transcrevo uma pequena passagem:

"Este gesto recordou-me aquela mulher grávida que me abordou certa noite e que, como eu procurasse afastar-me, me pegou na mão comprimindo-a contra o enorme ventre ou simplesmente talvez para dar uma ideia antecipada do prazer que me oferecia (ou simplesmente para exprimir a que ponto estava necessitada de dinheiro".

Confesso que esta passagem recolhida ao acaso até nem é das mais expressivas. Transcrevi-a pelo acaso e pela verosimilhança que lhe encontrei com uma passagem da minha vida, quando embarcado no navio Alfredo da Silva, a caminho da Guiné, passamos um dia na cidade da Praia em Cabo Verde.
O Alfredo da Silva era um navio, de porte médio, de carga e passageiros, propriedade da antiga CUF que fazia regularmente transportes para Cabo Verde e a Guiné. Militares íamos muito poucos, talvez uma dúzia, dos quais três eram topógrafos que ficaram em Cabo Verde, os restantes seguimos viagem para a Guiné, mobilizados em rendição individual.

À noite fomos a um baile popular, onde ao som dos ritmos africanos e cabo-verdianos toda a gente dançava, homens e mulheres, sobretudo mulheres velhas e novas. Quando saímos, na rua fui abordado por uma jovem grávida, já com uma grande barriga que me pediu com muita insistência para ir com ela. Nos meus 21 anos, senti-me embaraçado pela sua grande barriga, pela sua insistência com modos tão doces, e pelos seus olhos belos e tão meigos que, pensei para mim, traduziam mais a necessidade de dinheiro que lhe faltava, do que a simpatia ou encanto que poderia ter por mim.
E ela teimava em me agarrar a mão e o braço como um naufrago agarrado a uma tábua de salvação.
Por uma mistura de sentimentos onde havia além do embaraço de que falei, alguma compaixão e alguma ternura, tirei 50 pesos da carteira dei-lhos e despedi-me dela.

Cidade da Praia
Com a devida vénia a polemikos

Antes tínhamos ido comer lagostas a um café, mal descongeladas, que me terão provocado uma digestão difícil, ou isso, ou o mar agitado, sei que tive tantas náuseas, vómitos e mal-estar que o resto da viagem entre Cabo Verde e a Guiné passei-o deitado no quarto, tendo recebido a visita do médico de bordo, que me receitou duas injecções.

Já restabelecido desembarquei em Bissau e senti aquele sufoco de calor tropical que já tinha experimentado nas ilhas de Cabo Verde, já que o navio tinha feito escala em duas, para deixar mercadorias e emigrantes cabo-verdianos, que regressavam talvez de férias à terra, vindos do norte da Europa, sobretudo da Bélgica e Holanda, se bem me lembro.

Fujo do tema do grande livro que descobri e propago junto dos meus amigos e perco-me nessa viagem épica que todos fizemos com desembarque em Bissau. Enfim todos nós, guineenses por dois anos, enviados quase como prisioneiros, a combater, para essa terra de homens grandes, mulheres grandes e bajudas, voltámos vencidos pela afabilidade e simpatia dos nossos irmãos africanos e com essa mágoa sem remédio dos nossos camaradas que por lá caíram.

Só os outros, os que não experimentaram os nossos gostos e desgostos, é que não compreendem a nossa necessidade em evocarmos essa terra e esses tempos.

Um abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15203: Notas de leitura (763): “Memória e Império, Comemorações em Portugal (1880-1960)”, por Maria Isabel João, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2002 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15015: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (21): Esta Europa vai definhar por anemia, implosão e autofagia (Francisco Baptista)

1. No seu bate-estradas do dia 9 de Agosto de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos da nossa velha Europa.

A minha mulher pediu-me para fazer algumas compras num super-mercado próximo. Antes de ir lá decidi passar pela minha amiga Lurdinhas, dona da tasca Badalhoca, a comprar dois tocos de presunto que podem ser bons para cozer e descarnar o bom presunto que têm, como para comer cru. O presunto junto do osso é o mais seco e o melhor.

Depois duma conversa amigável e apimentada, pois a Lurdinhas conforme o tom da conversa tanto pode chamar-me meu grande amigo como outros nomes que na gíria do Porto antigo e popular serão aceitáveis ou não, para isso tem que se pedir aos clientes que tenham olhos e ouvidos sensíveis, pois para além da audição conta muito expressão.

Depois fui ao banco onde uma funcionária simpática me disse que as minhas fracas poupanças depois de terem acabado o depósito a prazo só poderiam ter um juro de 1 por cento ao ano. Chegámos a tal ponto que para termos bancos como os países ricos, vamos ter que pagar a essa corja de ladrões, banqueiros, políticos e associados, que vão à falência mas quem fica na miséria somos nós.

Saí do banco, pouco confortado, mas sem vontade de descarregar a minha raiva sobre uma simples funcionária, a quem não podia imputar responsabilidades e para mais uma senhora, entre os 30 e 40 anos tão simpática e que nem será muito bem paga.

Depois fui ao supermercado fazer as compras. Dirigi-me a uma caixa. À minha frente estava somente uma cliente com bastante compras, na caixa ao lado estava uma jovem senhora africana, de aspecto urbano e delicado, com cerca de vinte cinco anos, que empurrava uma bebé num carrinho. O jovem de serviço da caixa contabilizou os artigos da senhora que somavam 24 euros e pouco. A cliente meteu um cartão multibanco que me pareceu tanto a mim como ao jovem da caixa ela não sabia utilizar muito bem. Depois de algumas tentativas e ensinamentos o "caixa" chegou à conclusão que o cartão não teria dinheiro de saldo. A jovem senhora em face disto, puxou da carteira e deu vinte euros, procurou outros trocos que não encontrou. Como tal começou a retirar artigos, talvez os menos necessários, o primeiro não recordo, sei que o segundo era massa italiana, o terceiro que o rapaz da caixa ia retirar-lhe do saco, não sei se eram batatas, ela não deixou, protege-o até como se do pão da vida se tratasse.

Logo atrás dela estavam três cavalheiros, com cerca de sessenta e tal, setenta anos. O que estava mais próximo começou a olhar para a senhora e para a menina no carrinho, com algum mal-estar patente na sua expressão facial. De repente vi-o tirar uma nota de dez euros da carteira que deu à senhora e dizer ao caixa: Por favor volte a meter tudo no saco. A jovem, muito agradecida, pagou e devolveu-lhe os 5 euros e tal do troco, apesar da insistência dele para que que ficasse com eles.

A seguir reparei que este homem depois de fazer essa dádiva, como quem se liberta de um pesadelo, ficou mais calmo. Reparando melhor eu reconheci o homem como sendo um camarada, ex-furriel que me disse uma tarde escura, sem sol, sem pássaros, com chuva, que tinha estado no norte de Moçambique. Era o camarada que encontrei, no Inverno, à saída de uma churrasqueira onde fui lanchar com três amigos para alegrar um pouco esse dia. Esse camarada com a pele já bastante curtida e engelhada pelo vento, pelo tabaco ou pelas agruras da vida, que me pareceu mais velho do que os anos que contava. Era o mesmo camarada que me tinha dito com tristeza que tinha conhecido e sentido a guerra em Moçambique, enquanto fumava um cigarro à porta do restaurante.

Muitas vezes, aos que por lá andámos, com pouca ou muita guerra, sobra-nos guerra para toda a vida. Uns digerem melhor do que outros as situações fáceis ou difíceis. Uns falam muito dela, outros não dizem nada, outros falam dela mas evitam falar das situações mais dolorosas. Alguns procuram guiar-se através duma memória muitos anos adormecida para trazer à tona essa realidade esquecida e só recordada em pesadelos.

Recordo-me dum cadete em Mafra que na carreira de tiro quando chegava a vez dele não conseguia disparar e punha-se a chorar, porque dizia ele que no alvo via um homem. Não é difícil entendê-lo, não há qualquer premonição nessa visão, afinal nas guerras os homens matam-se uns aos outros. Em Mafra como em tantos quartéis de Portugal estávamos a ser treinados para matar. Muitos perderam a guerra antes de chegarem à Guiné, uns por não acreditarem na vitória, outros por não acreditarem nas razões da luta. Entre eles estavam sobretudo oficiais e sargentos que por serem mais instruídos, tinham mais capacidade e informação, para pôr em dúvida a politica ultramarina do governo da ditadura.

Em Buba dei-me conta que a maioria dos militares do meu pelotão não punham em causa a defesa das colónias e a politica ultramarina do governo. Nesse tempo o atraso politico cultural e educacional em sentido lato era muito grande. Não minto se disser que pelo menos metade dos soldados do meu pelotão fizeram a quarta classe em Buba. Poucas fotografias trouxe da Guiné, na aldeia do interior norte do país onde me criei, os meninos e garotos como eu não tinham direito a fotografias, não havia máquinas nem fotógrafos, já na juventude não lhe senti a falta, não faziam parte da minha cultura que se alimentava mais da palavra escrita, a literatura sempre me fez sentir uma grande emoção estética. Só mais tarde me apercebi que a fotografia pode contar grandes histórias humanas, sociais e naturais.

Eis o meu pelotão da CCac 2616, desarmado, confesso que com armas se sabiam bater como leões, a opção da fotografia sem armas terá sido minha. 

Esta fotografia foi-me amavelmente remetida pelo António Granja, soldado do pelotão. Tenho pena de não ter uma foto semelhante do pelotão da CArt 2732, de Mansabá, onde estive sete meses. Tanto num pelotão como noutro conheci homens solidários e corajosos, a maioria deles, quase todos. Os nossos soldados eram os descendentes iletrados dos nossos marinheiros dos séculos quinze e dezasseis, que guardavam ainda a autenticidade e a bravura dos antigos lusitanos. Nas suas veias corria ainda o sangue duma Pátria milenar e vibravam ainda com a glória duma bandeira desfraldada orgulhosamente por todos os mares e continentes da Terra. A ditadura que lhes garantiu uma existência esfomeada deu-lhes também uma educação escassa, perseverando-os de ambições materiais para lá da alimentação necessária à vida. No seu espírito, imune às diferentes ideologias dum século em conflito, desprovido de ideais, cultivou com êxito o patriotismo e os valores da tradição gloriosa da Pátria.

Por vezes penso que atendendo ao espírito de sacrifício e à coragem dos nossos soldados, se eles tivessem comandantes que os motivassem e os soubessem orientar na arte da guerra, venderiam bem cara a derrota ou o abandono dos territórios ultramarinos, que dadas as circunstâncias adversas da politica internacional, com a conjugação do bloco comunista e capitalista, apostados na descolonização, tornaria muito difícil ou impossível a vitória.

Quando saí do super mercado, vi que a jovem africana tinha outra filha, que tinha ficado a brincar fora, com 5 ou 6 anos e a quem falou em francês. Deduzi, não sei se apressadamente, que seriam naturais do Senegal, da Guiné Conakri ou de outro país francófono africano. A sociedade de consumo é uma sociedade canibal já que tem sempre que andar à procura de recursos e matérias primas que irão empobrecer e matar povos menos desenvolvidos politica, social e tecnologicamente. Quando se fala nos pedidos de perdão dos grandes erros do passado, da Inquisição por parte da Igreja, de alguns povos pelos morticínios que fizeram noutros, era já tempo da Europa inteira indemnizar toda a África pela exploração dos recursos humanos e naturais que fez nos últimos séculos e que continua a fazer através de muitos políticos africanos corruptos, que tal como tantos ocidentais, somente vêem o bem deles, esquecendo o bem comum.

Li ontem um poste, P14985, muito elucidativo, de um nosso camarada que lutou em África, trabalhou em África, percorreu parte dela. Passo a citar um parágrafo dele: "A Europa vai pagar tudo com juros suportando as reclamações dos jovens africanos, pois é apenas a reclamar, aquilo que os africanos estão a fazer em Calais e no Mediterrâneo e em Ceuta. António Rosinha".

A velha Europa que se cuide pois os africanos já provaram tanto no Novo Mundo, como no Mundo Antigo que sabem resistir a todas as guerras e calamidades. Pelos seus conhecimentos, pelas suas vivências, pela sua seriedade, pela sua lucidez, o António Rosinha para mim é, o africanista, o analista político deste blogue, que melhor sabe interpretar a desgraça desses pobres do mundo que vindos do sul tentam atravessar o mar Mediterrâneo, onde muitos encontram a sepultura, quando tentam entrar na Europa, essa terra de promessas e ilusões. Por todas as regiões da Terra para onde se deslocaram ou para onde foram vendidos como escravos, os africanos estão em crescimento. Não se deixaram abater por doenças ou por guerras e morticínios como milhões de índios da América do Sul e do Norte. Os africanos continuam em expansão e os povos guardam por séculos a memória do bem ou do mal que lhes fizerem.

O meu pensamento dispara e divaga pela história antiga e pelo futuro que não é história e a mim parece-me que a Europa será submergida por vagas e vagas de povos africanos e orientais. Os povos demograficamente mais produtivos e menos decadentes, tomarão conta da Europa, tal como os Vândalos, Suevos, Visigodos, Francos, os Iberos e Celtiberos, os Germânicos e outros, tomaram conta do Império Romano do Ocidente no século quinto da nossa era. A Europa de tantas guerras, entre dois povos ou entre várias povos em aliança, uns contra outros, no último milénio foram guerras sem fim, guerras intermináveis, até houve uma guerra dos 100 anos, guerras cruéis e execráveis, piores em selvajaria e desumanidade do que as piores guerras de qualquer continente. Esta Europa que já não pode fazer a guerra, (as bombas nucleares só intimidam, não são para utilizar) para resolver ódios antigos e conflitos nunca resolvidos e para se revitalizar, vai definhar por anemia, implosão, autofagia.

A todos até breve.
Nove de Agosto de 2015, num dia de calor, aqui neste ponto do extremo ocidental da Europa.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14999: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (20): Recordações "non gratas" da guerra da Guiné Operação Tridente (José Colaço)

domingo, 19 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14899: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (9): Viagens (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. No seu bate-estradas do dia 14 de Julho de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos de viagens.


VIAGENS

As viagens dão o prazer dos momentos agradáveis em que são realizadas e deixam na mente do viajante todas as impressões sensoriais e cognitivas que os sentidos recolhem. O viajante que regressa já não é o mesmo que partiu.

As nossas vidas são marcadas pelo movimento. Nos primeiros meses de vida é quase nulo, mas à medida que os meses passam os nossos membros vão ganhando músculo e nós vamos ganhando autonomia para nos deslocarmos, primeiro de rastos ou de gatas e na fase seguinte começamos a dar os primeiros passos. Não tarda, com poucos anos de vida vamos correr e saltar como cabritos endiabrados.

As viagens das nossas vidas estarão prestes a começar. Na minha meninice e juventude conheci muitos homens em Brunhoso que andaram milhares e milhares de quilómetros a maior parte a pé, outros a cavalo, dentro da área de 20 quilómetros quadrados que tinha o termo da aldeia.
Os trabalhos agrícolas sem recurso a máquinas e as várias colheitas, ao serviço deles ou de uns e outros a isso os obrigavam. O mar era uma miragem de que ouviam falar mas onde não tinham pernas para chegar.

Antes dos anos sessenta somente alguns tropas tinham a possibilidade de fazer essa longa viagem até ao litoral, da qual se iriam vangloriar para toda a vida. Tinham visto o mar imenso!
As únicas viagens de lazer que se permitiam fazer, era irem a pé ou a cavalo das "bestas" de quando em quando às feiras de Mogadouro ver sobretudo a feira dos animais, bois, vacas, cavalos, burros, mulas. Nesse tempo a feira do gado, em Mogadouro, estendia-se por vários hectares e era considerada uma das maiores feiras, senão a maior, do Norte, de gado bovino.
Iam também por vezes às romarias das terras próximas, onde muitas vezes tinham parentes. As minhas viagens fora da povoação começo a fazê-las com a Alice, uma jovem, "criada" dos meus avós maternos, que tinha o namorado a fazer a tropa na Índia. Com ele estava outro vizinho meu.

Para Brunhoso as viagens de ida e volta deles foram viagens épicas. O sentimento das gentes seria um pouco comparado ao que sentiam os portugueses dos séculos dos descobrimentos quando os seus jovens, comandados pelos grandes navegadores, arriscavam as vidas nessas viagens longínquas. A minha memória de menino transmite-me a impressão que a aldeia festejou o regresso dos dois heróis, que não foram à Lua, pois a Lua em algumas noites parecia tão grande e tão perto da aldeia, só iluminada por ela. Os heróis da terra vinham das Índias, dessas terras do fim do Mundo, depois duma longa viagem de dois meses e depois de uma ausência de três anos. Eram, da terra, mas vinham diferentes, tinham visto os mares imensos, terras longínquas, homens e mulheres doutras raças, cores e credos. As pessoas olhavam-nos nos olhos a tentar decifrar toda a sabedoria que os viajantes trazem das longas viagens por mundos desconhecidos.

As minhas viagens com a Alice, muito próximas da aldeia, eram para mim, nos meus quatro ou cinco anos de idade, para levar os cordeiros e as ovelhas paridas para um pasto melhor, viagens muito importantes e reveladoras. Nunca mais as esqueci. Através dos nossos anos, dos meus e da Alice, ficámos sempre amigos, gosto sempre de a encontrar, de ver o brilho dos olhos dela e o tratamento carinhoso que me dá, quase igual ao de antigamente. Pouco tempo depois passei a ir com o meu padrinho, que era também meu tio-avô com as vacas e os vitelos para os lameiros. Era solteiro, um bom homem, trazia sempre castanhas piladas nos bolsos que me dava de vez em quando. Éramos ambos um pouco distraídos de tal forma que por vezes chegávamos a casa sem as vacas pois elas tinham-se perdido de nós ou nós delas.

Um pouco mais tarde, não muito, passei a ir sozinho com as vacas e os vitelos para os lameiros, contava as horas não pelo relógio, que não tinha, mas pela altura do sol. Para entreter as horas desses dias longos e parados, quando não havia outros vaqueiros por perto, sonhava. Um dia sonhei que todo o lameiro estava coberto de moedas para eu comprar rebuçados e balões. Sonhos de garoto, de garoto guloso.

Com nove anos, antes da escola primária, às 9 horas da manhã, passei a ter que ir todos os dias a Remondes, quer chovesse, quer nevasse, aldeia a cerca de 3 quilómetros buscar leite de vaca, pois em Brunhoso não havia vacas leiteiras e a minha mãe tinha tido uma doença nos peitos e não podia alimentar um menino que tinha nascido. Nessas viagens antes da escola terei andado dois anos ou mais, pois um ano depois desse irmão nasceu uma irmã. Eram seis quilómetros divertidos de caminhada, antes da escola, que fazia na companhia de duas primas e um primo que também tinham irmãos pequenos a precisar desse leite. Tantas viagens, tantas caminhadas que fiz pelos campos e florestas de Brunhoso, à azeitona, à cortiça, a lavrar as terras, a buscar o trigo, a tratar das hortas. Muitas vezes aborrecido e já cansado, farto dessas actividades monótonas e repetitivas.

Hoje reflectindo, olhando para trás, penso que se continuasse nessa vida e não tivesse a tentação dos livros e do conhecimento talvez fosse mais feliz. Os livros nunca nos dão respostas satisfatórias, quando nos respondem a uma interrogação, criam logo duas ou três. Pela curiosidade intelectual nunca atingimos a paz ou o nirvana, pois por esse método, umas respostas conduzem-nos sempre a outras perguntas. Será que Fernando Pessoa, através do seu heterónomo Alberto Caeiro, o poeta do Guardador de Rebanhos, atingiu a paz que dá a vida simples e dura dos campos. Talvez, no breve tempo em que se identificou com esse heterónimo, pois Fernando Pessoa era um espírito inquieto e irrequieto.

Dele e de Camões, os maiores génios da poesia portuguesa, ficou-nos, de Camões, entre outras obras "Os Lusíadas", esse grande hino a esses bravos marinheiros, que fizeram os descobrimentos, e a todo o povo português e, de Pessoa, entre outras "A Mensagem" esse canto sublime com que saudou esses heróis planetários que o levou a sonhar, tal como o Padre António Vieira e outros na realização do Quinto Império de Portugal.

Em termos históricos, depois da Idade Média, já na Idade Moderna, somos o povo que pela coragem e pelos conhecimentos náuticos adquiridos mais contribuiu para alargar o mundo através das viagens pelos mares imensos para além do "mare nostrum" dos romanos, dos gregos, dos fenícios, dos cartagineses e doutros povos das margens do Mediterrâneo. Nós portugueses mostrámos a este pequeno mundo europeu e mediterrânico, que a terra era grande e os Oceanos navegáveis eram imensos. Os nossos navegadores, em condições precárias, aventuraram-se pelo Atlântico, pelo Índico e pelo Pacífico, nessas frágeis caravelas. Até hoje chegam-nos sobretudo a fama dos vencedores, os que foram atingindo objectivos, faltam-nos muitas vezes os que morreram ao tentar atingi-los. A história dos descobrimentos, é uma história de naufrágios, guerras, derrotas, tentativas e sucessos. É a História Trágico-Marítima, da coragem dum povo que abriu as rotas dos mares a toda a humanidade, é a história de um pequeno povo que para viver e se impor perante as nações teve sempre a coragem de enfrentar a morte. Povo que sempre soube levantar a sua bandeira bem alto para se defender de todos os domínios das potências estrangeiras e dos vendilhões da Pátria. Povo que elegeu como seus grandes heróis os grandes poetas Luís de Camões e Fernando Pessoa, pois sabe que a sua grandeza está na alma das suas gentes e a alma dos poetas é que sabe interpretar o seu sentir colectivo.

A caravela foi uma embarcação criada pelos portugueses e usada durante a época dos descobrimentos nos séculos XV e XVI. Era uma embarcação rápida, de fácil manobra, capaz de bolinar e que, em caso de necessidade, podia ser movida a remos. Com cerca de 25 m de comprimento, 7 m de boca e 3 m de calado deslocava cerca de 50 toneladas, tinha 2 ou 3 mastros, convés único e popa sobrelevada. As velas latinas (triangulares) permitiam-lhe bolinar (navegar em ziguezague contra o vento).
Com a devida vénia a Os Descobrimentos Portugueses

Não podemos esquecer Fernão Mendes Pinto, o autor dum grande livro muito lido em toda a Europa, nos séculos dezoito e dezanove, "A Peregrinação". O autor faz uma descrição de todas as suas aventuras pelo Oriente e no final tal como o Velho do Restelo dos Lusíadas, prevê a derrocada do Império por corrupção, abusos e vícios vários.
Ontem como hoje tantos pecados que ninguém sabe corrigir. Esse homem, marinheiro, guerreiro, viajante incansável do mundo quase desconhecido do Oriente, frade, escritor foi um português como tantos, espalhados pelas cinco parte do Mundo, com o gosto das viagens, da aventura, do desconhecido. Para quem ainda não está de todo contaminado pela música comercial anglo-americana, recomendo o álbum de música portuguesa do Fausto Bordalo Dias "Por Este Rio Acima" inspirado na "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, que canta tão bem as suas aventuras e desventuras. Todo o álbum tem letras e músicas que a mim me encantam. Fausto além de ser um grande cantor e músico, também é um grande poeta. Gosto particularmente da canção "Quando às vezes ponho diante dos olhos" em que o aventureiro, já depois do regresso, parece relembrar, em resumo, toda a sua vida agitada, por esses mares e terras do fim mundo, ao serviço de muitos senhores, de muitas causas e à procura dalgum significado para a sua vida.
Há uma grande nostalgia nesse balanço do passado que ataca muito os homens quando se aproxima o fim da vida.

De 1961 a 1974 voltou a ser tempo de muitas viagens para a África do Ocidente e do Oriente. Tantos navios partiram dos cais de Lisboa carregados com tantos homens que poderiam produzir tanta riqueza nos campos ou nas fábricas, isto falando como um economista ou um tecnocrata que nunca fui.
Nesses cais de partidas, cais dos lenços brancos de despedidas, uns diziam adeus à terra, outros diziam adeus à juventude e aos seus ideais. Alguns com medo, outros com curiosidade de descobrir essa África quente e misteriosa, todos iriam saber que existe a palavra saudade e que é bem portuguesa. A grande maioria voltou, alguns inválidos, outros menos feridos, mas quase todos a lembrar o cheiro da pólvora, o troar das bombas e com a triste lembrança de alguns camaradas que por lá caíram, em combate ou em acidentes.

Embarque de militares para África. Lisboa - Cais da Rocha Conde Óbidos - 18 de Agosto de 1965> Embarque, no T/T Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné.
© Foto: Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.

Falando em viagens, não posso deixar de falar nas minhas poucas viagens, mas tão agradáveis, familiares, turísticas e afectivas.
Foi no ano de 2000, estive com a família mais próxima em Nova Yorque, à porta das Torres Gémeas, a pensar se devíamos subir lá ao alto ou não. O preço pareceu-nos caro e para nosso desgosto e para a maior parte da humanidade as Torres foram derrubadas por terroristas assassinos, cerca de um ano depois.

As Torres Gémeas do World Trade Center
Com a devida vénia à Wikipédia

Nos quinze dias que estivemos na América, alguns em Richmond, essa antiga capital aristocrática da Virgínia, que foi também capital americana dos Estados Confederados. É uma cidade histórica, dividida por uma ponte sobre um rio que delimita a parte velha e comercial, histórica e mais pobre, e a parte rica das grandes mansões com jardins e relvados enormes a contorná-las. Nessa zona enorme de ricaços brancos, existem inclusive grandes moradias senhoriais que foram compradas na Europa e reconstruídas lá.

Tivemos uma boa guia que morava em Richmond e que teve a amabilidade de nos guiar também por outras terras. O litoral da Virgínia, Washington, Baltimore, Newark e Nova Iorque. Washington, a capital dos palácios enormes de granito com muitos arcos, colunas e ogivas, que os americanos construíram para imitar a antiga Roma Imperial. Uma cidade grandiosa mas que achei uma cópia demasiado pomposa dessa Roma antiga e a denunciar os mesmos propósitos imperiais.

 Richmond
Com a devida vénia a iScrap App

Nova Iorque seduziu-me, tão bela, mais bela do que os filmes, e são tantos que a retratam. Em Nova Iorque senti-me dentro de um desses filmes. Para mim essa grande cidade pelas suas longas avenidas, pelos edifícios a rivalizar em altura e elegância, foi a revelação de um segredo que eu não suspeitava. A moderna arquitectura dos arranha-céus fazem de N. Y. uma cidade moderna e ao mesmo tempo histórica pela beleza e harmonia das suas construções, que muitas cidades têm tentado imitar neste e no século passado. Nova Iorque pareceu-me a capital do Mundo, uma torre de Babel moderna, onde todos os povos se cruzam com simpatia cada qual com o seu linguajar próprio.

Paris, outro destino turístico e familiar, tem a beleza das grandes capitais medievais e modernas da velha Europa. Um dia conduzidos a pé (grande caminhada!) pela nossa guia, que tinha mudado de país, visitámos uma grande parte dos seus monumentos, pois eles estão situados, não longe do Sena, sobretudo na margem esquerda. Outros mais afastados ou de visita mais demorada, como o Louvre, Notre Dame de Paris, Versailles e outros ficaram para outros dias. Paris pela sua monumentalidade, pela sua história e pelo lugar central que ocupa, é para mim a capital da Europa, e pela cultura francesa e latina em que fui criado, continua a ser, para mim, a capital espiritual e cultural do Mundo.

De Munique que visitamos muitas vezes em viagens afectivas e donde voltamos sempre enriquecidos com mais conhecimentos de toda a Baviera e até da Áustria, de Munique, cidade, gosto imenso de Marianplatz, a sala de visitas da cidade, sempre com muita gente, bávaros ou turistas de muitas origens. Gosto do rio Isar e das suas margens calmas onde por vezes gosto de fazer umas caminhadas, gosto do English Garten, um parque verde e muito arborizado, enorme, onde corre um ramal de água, desviado do Isar, com um grande caudal. Gosto muito de um restaurante num 5.º andar, em frente a Marienplatz onde já fomos por vezes levados pela nossa simpática guia.
Há ainda outros restaurantes bons, onde fomos todos, de que não recordo os nomes. Sei que um era indiano. Perto de Munique, a poucos quilómetros, sessenta talvez, começam os Alpes Bávaros, com alguns lagos de águas claras e límpidas na sua base. É sempre agradável seja Verão ou Inverno visitar esses lagos de águas azuis e tranquilas, esses montes com escarpas que apontam o céu, com mais ou menos neve, conforme as estações do ano, com tanta beleza que se estende a todos eles quer em Passau, quer em Salzburg, já na Áustria, como a outras localidades.

Salzburg, a terra de Mozart esse grande compositor, é uma cidade tão bem construída e enquadrada nessa paisagem alpina de picos escarpados, com neve a tentar esconder-lhe a dureza das arestas afiadas da pedra. Para a impressão no viajante atingir o máximo só faltam os acordes de uma Sinfonia de Mozart a sobrevoar os montes e a entrarem suavemente nos seus ouvidos à medida que pelos olhos vai sentindo o encantamento causado pela paisagem.

Salzburg, a terra de Mozart
Com a devida vénia a Tripadvisor

Passau, na Baviera, a cidade dos três rios, é diferente de Zalzburgo, mas não lhe fica atrás em graça e beleza. A cidade forma uma pequena península comprimida pelos rios Danúbio dum lado e o Rio Inn do outro, tanto um como o outro rios de grande caudal. Rios que se vão encontrar e misturar as águas na parte final da cidade. Por sua vez o rio Ilz, um rio com menos caudal, vai lançar as suas águas no Danúbio, à vista da cidade, muito pouco antes dos dois maiores rios se encontrarem.
Com tantos espelhos de água e com os Alpes carregados de neve a refulgirem e a reflectirem-se também nessas águas imensas, Passau vai deixar sempre marcas que não se apagam na alma de ninguém.

Regensburg uma cidade média com arquitectura mais antiga e moderna, bem combinada é também banhada pelo grande Danúbio que lá corre com grande caudal, Nuremberg com um centro antigo, medieval e bem conservado, fomos lá num dia muito frio, bebi lá vinho quente com rum que me aqueceu cá dentro o corpo e a alma. Era o tempo das Feiras do Natal.

Este é um resumo possível, que já vai muito longo, de algumas viagens que fiz com a família, mais ou menos alargada, conforme os dias livres de cada um.
A última viagem que fizemos nos arredores de Munique foi ao castelo de Neuschwanstein, esse castelo erguido em cima de penhascos dos Alpes Bávaros por Luís II da Baviera, esse rei poeta ou louco e megalómano. Construção grande em comprimento e altura do edifício e sobretudo das suas torres. Destaca-se pela beleza arquitectónica bem enquadrada na natureza que o rodeia.

Castelo de Neuschwanstein
Com a devida vénia a Wikipédia

Hoje olhamos para esse castelo de lenda e ficamos a pensar nas feiticeiras e fadas, nas bruxas más, nas princesas e belas adormecidas dos nossos contos de meninos, e quase somos levados a acreditar que elas vivem nesse Castelo e que Luís II da Baviera, esse rei que teria tanto de louco como de menino, continua a viver lá com elas.

Boas viagens para todos!

Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14898: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (8): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho de 2015: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista - Parte I: Com o nosso 1º cabo Eduardo Jorge Ferreira, promovido a sargentos por feitos heroicos em campanha...

domingo, 12 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14868: Memória dos lugares (304): Rio Grande de Buba, calmo e soberbo, de água salgada, que nasce no mar ao largo de Bolama e acaba em Buba (Francisco Baptista)

Rio Grande de Buba
Com a devida vénia a Biodiversity

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 1 de Julho de 2015:

O Rio Grande Buba é um rio largo, calmo soberbo. Este grande rio de água salgada nasce no mar, ao largo de Bolama e acaba em Buba.

Só alguns dias depois de estar em Buba me apercebi da estranheza desse rio que de manhã estava cheio quase até ao limite do cais e à noite recuava as suas águas como quem vai dormir para longe, essa situação ia-se alterando, conforme as marés.

Sobretudo na maré-cheia, o Rio Grande de Buba, formava um grande espelho de água em toda a extensão que eu conseguia visionar em que se reflectiam as margens de Buba e as margens da floresta próxima ao longo de todo o rio.

Adorava ver os por-do-sois magníficos da Guiné, que pintavam todo o horizonte em redor, de tons vermelhos e cor-de-rosa, reflectidos nas águas calmas do Grande Buba.

Parece que o sol, o rio e as florestas da Guiné se erguiam num quadro enorme e maravilhoso para nos seduzir. Tenho saudades de tanta beleza. Gostava de ser poeta para a cantar, gostava de ser pintor para captar todos os tons que não sei descrever.


Tendo ido para Buba em rendição individual, nunca tive oportunidade de percorrer o rio de LDG. Porém um dia estava em Buba uma LDP, pedi ao capitão e fui nela até Bolama. Fui eu e a tripulação que eram 4 ou 5 marinheiros. A viagem demorou algumas horas, talvez cinco, verifiquei que o rio sendo largo em toda a sua extensão, tem ainda muitos braços, tal como um deus indiano. Tem alguns braços tão largos como o principal braço de mar a que se chama rio.

Empada, que tinha uma companhia, pertencente nesse tempo, tal como a minha companhia, ao comando de Aldeia Formosa, talvez a duas horas ou pouco mais de Buba, por rio, situava-se num desses braços, não muito longe do curso principal. Um dia, porque a avioneta que me transportava para Buba, vinda de Bissau, começou a perder óleo, o piloto aterrou em Empada por precaução. Por rádio expliquei a situação ao meu capitão e ele pediu aos fuzileiros do destacamento de Buba que patrulhavam o rio que me dessem boleia.

Sei que partimos já quase noite e não longe de Empada encontramos dois africanos num barquito, e por uma curta conversa eles deduziram que andariam à pesca. Prosseguimos viagem, com a noite a ficar muito escura e chuvosa tão escura que os fuzileiros perderam-se e foram dar a um braço largo do rio, onde tivemos que esperar pela manhã para reencontrarmos o caminho certo. Se foi assim ou se o sonhei, já passaram mais de 40 anos, nada garanto, se estou enganado peço desculpa aos fuzos, onde tive grandes amigos.

Na viagem que antes me tinha levado a Bissau, já tinha tido uma visão aérea de todo o rio, pois o piloto aviador, Pombo, que era um grande piloto, famoso em Buba e noutras terras, pela sua destreza na pilotagem, encaminhou a avioneta em voo baixo pelo curso do rio Grande Buba. À distancia de todos estes anos agradeço-lhe esta atenção que eu não me lembro de lhe ter pedido. Na verdade o rio percorrido de cima a pouca altitude ainda se torna mais belo do que a navegar, pois vê-se melhor a paisagem envolvente, e os seus braços.

O comandante Pombo diz-me o meu amigo Zamith Passos, que já morreu. Paz à sua alma, oxalá tenha voado mais alto.

No rio Grande Buba tivemos dois acidentes graves. Num deles morreu um camarada nosso e ficaram dois bastante feridos. No outro ficou ferido outro camarada também com bastante gravidade. Sobre estes acidentes já falei noutros postes pelo que não me vou repetir.

Éramos novos, culpas nossas, das armas e do meio e os rios tão belos nas suas margens e nos seus caudais, mas sempre à procura dos jovens incautos, como os deuses antigos que saciavam a sua ânsia de poder ou a sua loucura com o sacrifício de jovens.

Rio Grande Buba que não é tão falado, neste blogue, como outros rios da Guiné talvez porque nas suas margens só existia o quartel de Buba e um pouco afastado, já num dos seus ramais, o de Empada.

Rio Buba, Rio Grande de Buba, Rio Grande de Bolola , ou Rio Grande, como lhe chamaram os portugueses dos descobrimentos (nomes retirados da internete).

Ironia do destino, hoje, antes de remeter este texto ao amigo e camarada Carlos Vinhal, fui com uns amigos almoçar a casa dum produtor de vinho amigo, da margem norte do rio Douro. Da colina sobranceira ao rio onde estávamos, avistávamos um troço esplêndido do caudal do rio e das margens escarpadas e trabalhadas em socalcos sobre tudo do lado norte. Do lado sul sobressaía sobretudo a serra das Meadas, perto de Lamego, onde muitos dos nossos camaradas dos rangeres e dos comandos tiveram instrução.

Assamos carapaus frescos, comprados na praia de Angeiras, e febras de porco com bom vinho da casa e passamos uma tarde divertida em cantorias, com uma concertina do amigo da casa e canções um pouco brejeiras do Rui, um grande cantador.

Cada qual, de acordo com os gostos e a sensibilidade, deliciou-se, com a paisagem do Douro, a cintilar ao sol, no vale, e a paisagem de vinhas em socalco ou de monte de ambos os lados.

O rio Grande de Buba que eu conheci , não era como o Douro. Fiz tantas viagens de comboio pela linha do Douro. Conheço tão bem as suas curvas, as suas margens, os seus afluentes, os seus montes, o seu clima, as gentes que viajavam nos comboios da sua linha na minha adolescência.

O Rio da minha terra não é o Rio Grande Buba, não é o Rio Douro, o rio da minha terra é o Rio Sabor.

Rio Sabor
Com a devida vénia a Miguel Elói

Rios diferentes, de acordo com o seu caudal, as margens que os comprimem ou libertam e as gentes que os condicionam

Gosto muito do Rio Sabor e do Rio Douro mas a minha alma africana que marcou a minha vida para sempre, pelo calor e pelo cheiro da terra da Guiné, recordar-me-á sempre o meu amor e a minha saudade por esse Rio Grande de Buba.

Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14843: Memória dos lugares (301): Regulado, rio e tabanca de Caboiana (ou Coboiana ?) no Cacheu, em outubro de 1964 ( António Bastos, ex-1.º cabo do Pel Caç Ind 953, Cacheu, Farim, Canjambari, Jumbembem, 1964/66)

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14714: Brunhoso há 50 anos (5): Uma sociedade paternalista (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 31 de Maio de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos mais uma vez da sua terra natal de há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

5 - Uma sociedade paternalista

Nesses tempos primitivos da minha meninice, que eu por vezes chego a comparar com os tempos bíblicos pela pobreza, pela simplicidade e despojamento nas relações entre pessoas e nas suas relações com a natureza e com os animais, íamos vivendo de acordo com as leis seculares dos nossos antepassados.

O episódio representado pelo presépio, segundo a história ou a lenda, com o Deus menino, Maria, José, o burro e a vaca, era um quadro que podia ser considerado natural, em Brunhoso, talvez também por isso as pessoas adoravam esse Deus humilde, filho de pais pobres como eles, que conviviam tal como eles com as vacas tão pacientes e trabalhadoras e com os burros tão calmos e sempre afáveis para suportar o peso dos donos ou outras cargas. As pessoas amavam-se e respeitavam-se, sem manifestações excessivas, dentro de códigos que tinham recebido dos seus antepassados.

Eram felizes ou não dentro desses condicionalismos tão estreitos e antiquados que remontavam já a tantos séculos. As mulheres tinham tantos filhos, como a natureza lhes impunha, que criavam com amor, beijos, com o leite materno e a alimentação possível, os homens trabalhavam nos campos de sol a sol para garantir pão para todos. As mulheres falavam do seu homem, os homens falavam da "minha" (todos os outros a conheciam) geralmente com respeito de parte a parte.

Na taberna, ("venda", dizia o meu avó Francisco) um local de convívio, onde os homens da aldeia, por vezes se juntavam para alegrar a vida com uns copos de vinho, ou no Balcão, a praça principal, onde também se juntavam, fosse inverno ou verão, para trocar ideias e conhecimentos acerca da terra, dos animais e das culturas, sempre vi homens, que embora mantendo um aspecto calmo e sério, não deixavam de sorrir pelas larachas de uns e outros. Não há dúvida que a actividade física faz bem ao corpo e ao espírito. 

 Além disso eles eram os chefes da batalha que dia a dia travavam com os elementos vindos do céu, da terra, da água,. do vento e das trovoadas, que condicionavam as boas ou más colheitas. Santa Bárbara, essa santa protectora dos lavradores a quem faziam uma festa tão grande e uma procissão tamanha a que por vezes associavam juntas de bois e vacas, nem sempre os libertava das secas e das grandes trovoadas.

Era uma sociedade paternalista, uma sociedade governada por homens. Eles, a par da autoridade e governo da casa, tinham que garantir o sustento da família. As mulheres pariam muitos filhos, cuidavam deles, do arranjo da casa e doutras tarefas domésticas. Ao tempo havia em Portugal sociedades matriarcais, onde o poder pertencia sobretudo às mulheres que eram também as principais responsáveis pelos meios de sustento da família.

Bem perto de Brunhoso, no planalto mirandês, a sociedade era matriarcal, eram elas que lavravam a terra e tratavam dos campos, a par doutras tarefas domésticas. No Minho também eram as mulheres que geralmente lavravam a terra, pelo que dá a impressão que quem mandava tinha que saber cuidar dos campos para lá doutras actividades. Sei também que nesse tempo as raparigas minhotas geralmente casavam com rapazes mais novos do que elas pelo menos dois ou três anos. Seria uma forma de garantir a continuidade do matriarcado?

Miguel Torga, no livro "Portugal", transcreve a seguinte quadra popular do Minho:

Da minha saia amarela
Fiz as calças do meu home;
Com a alegria das calças
Há três dias que não come

Nesse tempo esta quadra não poderia ser recitada ou cantada em sociedades paternalistas, Torga diz que a atrevida podia levar um tiro, que eu acho exagerado, talvez uma bofetada.

A sociedade de Brunhoso, moldada por esse poder paternalista, era contida nas palavras e gestos afectivos, impróprios de machos dominadores pois era assim que os homens eram educados. Será exagerado escrever isto, pois no silêncio das noites e no recato e aconchego possível dos casais, poderia também haver lugar para momentos de afecto e ternura para lá das relações sexuais, mais ou menos instintivas.

As mulheres tinham os seus momentos de relaxe e diversão. apesar do trabalho, quando se juntavam nos ribeiros ou nos tanques a lavar as roupas da casa.

A propósito, um tio meu que já partiu, leis da vida, contou-me uma pequena história passada numa aldeia da Beira Alta:
- Chico, disse-me ele, num dia de Inverno, eu ia com a tua tia de mula a apanhar o comboio para Lisboa, a Celorico da Beira, para ela consultar um médico. Ao passarmos por uma aldeia estavam aí cerca de 20 mulheres, num tanque, a lavar a roupa, com as pernas metidas na água. Eu perguntei-lhes se não teriam frio. A mais faladora, respondeu-me que não, que tinham o forno quente. Então disse-lhes que tinha as mãos muito frias, se não mas deixavam aquecer no forno delas. A mesma mulher respondeu que nesse momento não podiam porque estavam a assar castanhas.

Este diálogo verídico, não sei se um pouco fantasiado, também transmite um pouco do humor dessas mulheres apesar da dureza dos campos, dos homens e da vida.

Nunca irei esquecer o dia em que, ainda adolescente, tive que fugir de um bando de mulheres que obedecendo à palavra de ordem de uma mais divertida disse para as outras: "vamos cantar os galos ao patrão". Andavam a mondar as ervas daninhas dum terra de trigo nossa, e o meu pai tinha-me mandado ir com elas. Não passou de uma ameaça em tom de brincadeira, pois essa prática de "cantar os galos", depois de lhe baixarem as calças, aos rapazes, da iniciativa das mulheres, como calculam, não era nada agradável.

Os sentimentos estavam calibrados em vivências de dureza que não admitiam príncipes, nem sonhos impossíveis. O ajustamento dos casais era feito dentro dos teres e haveres de cada um e um ajustamento psicológico que eles e elas pela idade dos vinte anos iam fazendo em conversas e em namoricos ligeiros.

Recordo-me que eu sendo da terra, mas sendo também um observador estranho, porque da minha idade era o único rapaz que estudava fora da terra, talvez a partir dos 17 anos, os rapazes da minha idade começaram por namorar e passado um ano ou nem tanto, praticamente todos tinham trocado de namoradas entre eles. Para que se entenda bem, realmente não havia troca, havia sim um acabar e recomeçar de novo para uma melhor combinação de personalidades.

Nesse tempo os homens e mulheres da minha aldeia, no casamento arriscavam todo o projecto de uma vida futura, que consciente ou inconscientemente era planeado para garantir o futuro dos filhos; pelo trabalho apenas limitado pelo descanso necessário para recomeçar de novo; pelo sexo que devia sobretudo garantir o nascimentos de filhos saudáveis.

Desde o amor platónico, ao amor cortês, ao amor romântico mais carnal ou idílico, há mais formas de amar do que formas de cozinhar bacalhau. O amor intelectualizado em parte como a filosofia, nasce da contemplação e do ócio. Casanova foi um intelectual e escritor, Dante Petrarca e Camões foram grandes poetas. Muitos filósofos escreveram ensaios sobre o amor.

O amor entre os meus conterrâneos seria pouco complicado, seria um amor que se confundia com o amor à família, o amor à terra, aos campos de trigo, às hortas, às oliveiras, aos animais domésticos. Era um amor que não admitia desvios porque era também um compromisso pela palavra dada perante o padre e outras testemunhas e cujo cumprimento seria vigiado por toda a comunidade. As relações sexuais, entre eles, satisfatórias ou não, era um segredo que não revelavam. Entre eles não se falava em amor, essa palavra era demasiado delicada para se coadunar com a sua condição de pequenos ou médios lavradores ou filhos sem terra, de terras que tinham que trabalhar para outros. Falar de sentimentos entre os casais, ou ter manifestações públicas sentimentais eram actos considerados impróprios e impúdicos. Os sentimentos entre os dois sexos estavam contaminados pela atração sexual que era um tabu religioso e social.

Por vezes, raramente, ouvia-se uma estória picante real ou um pouco inventada como a de um lavrador, conheci-o ainda, que ao regressar do trabalho quando metia as vacas na loja, que ficava debaixo da casa, ouviu a mulher, por cima, a gemer com dores em trabalhos de parto. Ele que era um brincalhão impenitente pôs-se a imitar os gemidos da mulher. Ela apercebeu-se e prometeu-lhe que nunca mais iria poder brincar com o seu sofrimento daquela forma.
O que se passou depois ninguém sabe, o que se sabe é que eles só tiveram aquela filha, por sinal alegre e simpática, como o pai. Apesar das vozes do povo, esse lavrador que nunca parava, ele e as vacas, foi um homem sempre alegre e divertido pelas piadas que ia distribuindo a uns e outros. Enfim há pessoas que nasceram para serem felizes seja quais forem as contrariedades com que se deparem.

Este homem bondoso e galhofeiro que tinha sempre uma palavra para todos, fossem jovens ou velhos, faz parte da minha galeria dos notáveis de Brunhoso. Como diziam os antigos "que Deus o guarde!"
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14426: Brunhoso há 50 anos (4): A Páscoa (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)