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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17896: Notas de leitura (1007): Memórias boas da minha guerra, volume II, por José Ferreira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Deste batedor de sete léguas, um andarilho que descobre em qualquer lugar convivas e antigos combatentes, já lhe fiz o retrato quando saudei o seu primeiro volume: "Regista os desenrascanços na cozinha, os apetites sexuais, as risotas sobre o linguajar do Norte, pena é que um leitor impreparado no jargão não conheça o significado de morcão, isto é não sabe se estamos a falar num atrasado ou num javardo. José Ferreira faz desfilar jovens que percorreram quartéis e partiram a descobrir mundo". Alguém também já o saudou pelo humor, pelo sarcasmo e pelos condimentos da solidariedade, é um narrador de mil e uma histórias onde cabem manhosos, espevitados, personagens de Camilo Castelo Branco.
Não esteve na operação Bola de Fogo, um dos eventos mais trágicos da guerra da Guiné, o levantamento de um quartel chamado Gandembel, mas tem fibra para homenagear aqueles mártires.
Que mais memórias não te faltem, José Ferreira, um abraço do
Mário


Memórias boas da minha guerra, volume II, por José Ferreira

Beja Santos

Entende-se por literatura da guerra colonial o subgénero literário onde se agrupam romances, contos, novelas, poesias, peças de teatro, ensaios históricos, antologias, biografias, registos fotográficos, memórias, diários, e algo mais, escritos de 1961 à atualidade e cujo tema nuclear tem como palco um dos três teatros onde essa guerra aconteceu. Não é novidade para ninguém que começa a haver uma zona de fricção entre esta literatura e uma outra que tem a ver com escritos elaborados por quem regressou de África ou seus descendentes. A guerra e o combatente dão a placa giratória e daí, mesmo nos livros de caráter memorial, o autor poder falar da sua infância e origens, a preparação, a viagem, episódios da comissão e acontecimentos do regresso. É importante registar que no mercado livreiro proliferam obras com saudades de África enquanto a literatura da guerra gira cada vez à volta das memórias. Talvez se perceba porquê. O combatente caminha para os setenta ou é já um septuagenário consolidado. Tem disponibilidade para juntar peças, já não guarda rancores, constitui amizades, encontra-se regularmente em tertúlias com quem combateu a seu lado, aliás é nesses espaços de convívio que cada um conta o que pensa que aconteceu. Depois, há salas de conversa, como os blogues ou as digressões pelo Facebook, Twitter e Instagram, redes sociais de boa ou belicosa convivência, vêm mais elementos à tona em dado momento organiza-se uma trama e temos um leque de memórias e muita vontade em publicá-las.

“Memórias Boas da Minha Guerra” é o segundo volume de alguém que fez parte de uma companhia de intervenção que atuou em mais de metade de todo o território da Guiné, regressou, manteve-se convivente e lendo os seus escritos fica-se com a ideia que o furriel Silva ou José Ferreira da Silva ou o escritor José Ferreira tem uma enorme sede de camaradagem, conserva um rol de episódios pícaros, burlescos, misturados com estúrdia e passagens por casas de gente mal-afamada. E sempre que vai ao passado sentimos, como num espelho estilhaçado, que ele nos dá uma imagem de gente da nossa geração que cresceu na guerra, foi alvo de endurecimentos vários e em encontros casuais ou programados, os retratos compõem-se e o leitor atento fica com mais imagens desse Portugal de 1950 e 1960, nomeadamente na região Norte. Tenho para mim que é deste modo que ganha a leitura deste segundo volume das memórias de José Ferreira, recentemente publicadas pela Chiado Editora.

Tem muita ironia, em lugares de amenidade como Dunane pode gerar-se uma situação crítica, a memória salta até ao Porto e visita-se uma zona de meretrício na Rua Escura, começa-se a falar no morcon e depois temos uma galeria de retratos, com o Geninho à cabeça:  
“Parecia um miúdo da escola primária. Tinha 1,37 m de altura. A espingarda Mauser, pousada, com a coronha no chão, à sua frente dava pelos olhos. O curioso é que ele era um jovem socialmente bastante desenvolvido e de trato muito agradável. Quando o mandaram embora, ele lamentava-se dizendo: 
- Vou triste, porque até gosto disto e gostaria imenso de servir a minha Pátria”.
Há os molengões, os ronceiros, gente com uma perna mais curta dois dedos do que a outra, gente que sonhava alto, dando um espetáculo que atraía a caserna por inteiro…

E há o amontoado de situações inesquecíveis como os bolos de bacalhau à moda de Catió, o Chico de Alcântara, o cabo Felgueiras, aquele dia 26 que se festejava com um casamento, imagine-se, num quartel em plena guerra, um a fazer de padrinho, outro de irmão da noiva, os noivos em toda a sua alvura e pujança, o sacristão, o moço da água benta e até o fotógrafo.

Ficamos a conhecer histórias de gente que passou uma infância na miséria e até se abre o pano para um palco de amores camilianos, caso do Diogo de Carvalho que se ofereceu para a tropa, havia a história do comportamento do pai que depois de viúvo engravidou uma jovem casada que trabalhava lá em casa, o Diogo adorava a Guidinha, filha de boas famílias, chegaram a brincar ao sexo sem consequências, depois a Guidinha desapareceu, nem às festas da Senhora da Mó veio, anos mais tarde Silva e Diogo encontram-se, Diogo licenciara-se em Coimbra, seguira a carreira da magistratura e depois falou-lhe da Guidinha:
“Lembras-te daquela história da minha paixão? A miúda sempre seguiu para freira. Chegou a diretora de colégio. Recentemente, quando faleceu o tio padre Benjamim houve um funeral especial, que teve muito impacto aqui na região. Por curiosidade quis ver a Guidinha durante o velório”.

Como as memórias são como as cerejas, José Ferreira leva-nos a Crestuma junto a rio Douro, apresenta-nos a terra onde vive, vemos a velha fundição de Arcos de Ferro e Verguinha, fundada em 1793. Mais tarde (e até hoje) Companhia de Fiação de Crestuma, e isto para dizer que após independência da Guiné veio uma equipa de guineenses para aprenderem a trabalhar com teares e outras máquinas, havia a promessa de construir uma fábrica em Bolama. O projeto caiu na água. E após mais umas histórias entremeadas de estúrdia e de que de se guardam boas recordações até ao presente, chegamos à operação Bola de Fogo, a construção de Gandembel onde a CART 1689, a que José Ferreira pertenceu, teve papel primordial na fase de arranque. Ele estava de férias nessa altura mas homenageia os seus camaradas cozendo várias histórias.

Em Abril de 1968 foi lançada esta operação para a implantação de um aquartelamento no corredor de Guileje, na região entre Gandembel e Ponte Balana, intervieram para além da CART 1689 duas companhias de comandos e outras unidades com destaque para a CCAÇ 2317, a quem coube o fel mais amargo. É uma sequência trágica de tiros de obuses, minas, fornilhos, abertura de um quartel dentro da natureza bravia, sem réstia de população, houve que fazer limpezas com motosserra e passar a ser atacado a qualquer hora do dia, são esses os relatos pungentes que José Ferreira organiza, ressalto o sofrimento físico, a violência das mortandades, não faltam cenas horríveis com pedaços de carne humana e lembra-se o alferes Monteiro que já tinha concluído a sua comissão e que se ofereceu para este último serviço:
“No início desta reta, à terceira cratera, do lado direito, e junto à estrada, via-se um tufo de três palmeiras. Numa delas estava uma perna de calças de camuflado, com uma bota amarrada e pendurada da copa da palmeira. No tronco da palmeira central, estava a tampa do crânio de uma cabeça com cabelo louro à altura de um metro e quarenta do chão. O resto do tronco até ao chão era uma massa de carne e sangue, impregnada na casca da palmeira. Deduzimos que eram os restos mortais do alferes Monteiro. Ele era o único branco e louro do pelotão”.

É este o remate trágico de um livro inconfundível de memórias que começa em aldeias remotas, em jovens cheios de sonhos que aprenderam a crescer na picada e nos quartéis do fim do mundo e hoje contam à lareira aos netos histórias inacreditáveis que a voracidade mediática e velocidade do nosso tempo reduziram a narrativas do fantástico, uma espécie de contos de fadas dentro de guerras cujo sentido escapa às novas gerações.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17887: Notas de leitura (1006): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (5) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17840: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (45): Questões de sangue

Vista a partir da Serra do Pilar
Foto: © Dina Vinhal

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 29 de Setembro de 2017:

Caros amigos,
Junto nova história verídica que poderá ser incluída na série de "Memórias boas da minha guerra".
Informo que os nomes de pessoas e lugares tiveram que ser alterados devido à exigência do personagem principal.

Abraço
José Ferreira Silva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra

45 - Questões de sangue

No início de Janeiro de 1967, vindos de todo o país e em especial da zona norte, chegavam ao RAP 2 - Serra do Pilar, os seiscentos e tal militares, tidos como preparados para seguirem para a Guerra do Ultramar. Vinham formar o BART 1913 - Batalhão de Artilharia 1913 - que se destinava a cumprir uma Comissão de Serviço Militar na guerra, no CTI da Guiné.

Não fora o facto de ter acabado de frequentar o curso de “Rangers” em Lamego - o que me ligou logo à mobilização - e eu poderia sentir-me satisfeito por continuar a cumprir o serviço militar no norte (depois do GACA 3, de Espinho). Efectivamente, depois de uma razoável classificação no Curso de Vendas Novas (o primeiro sobre guerra subversiva), fui atendido nessas “minhas preferências” então registadas: Espinho, Gaia ou Porto. O que eu não sonhava era que esse pretenso percurso me levaria até à Guiné.

Ao contrário das outras chegadas a novo quartel, desta vez eram evidentes os rostos mudos, carregados de tristeza, apatia e resignação. Entravam cabisbaixos, fixando o chão cinzento-escuro dos gastos paralelos de granito enquanto deambulavam por toda a calçada, na subida até ao pavilhão central onde funcionava a recepção Assumiam, assim, o doloroso papel de “condenados”.
Foi ali que, partindo do zero, nos fomos agrupando em Secções, Pelotões, Companhias, formando o Batalhão. Assim, apareceram as respectivas formaturas, dando início à última e decisiva preparação para a guerra. Claro que reencontrámos alguns camaradas já conhecidos em quartéis anteriores, mas muito poucos a seguirem o mesmo percurso. Uma coisa era certa: iríamos todos para a Guiné.

Da Serra do Pilar, desfrutávamos de vistas deslumbrantes em redor, em especial sobre a cidade do Porto e, planando o olhar, sobre o Rio Douro e sua foz. Agora, nos tempos livres, saíamos dali na esperança de saborearmos mais de perto os encantos daquela lindíssima e secular região portuense. Talvez por isso, era notória a movimentação dos militares a aproveitarem a sua passagem por ali. Em poucos minutos, eles afastavam-se, ansiosos, para contactos novos, pontuais ou não, parecendo quererem absorver conhecimentos, divertimento e os prazeres tripeiros.
Ao fim de uns dias, já havia verdadeiros apaixonados pelo “Puârto”, carago! As paisagens, os petiscos, a linguagem, a franca maneira de ser dos tripeiros, as “gajas” sérias e as outras - as “donzelas” - e, até, os “gajos” porreiros, eram razões mais que suficientes para encantar aquela saudável juventude. Embora eu passasse muitas noites fora dali, uma vez que me deslocava para casa (em Fiães, da Feira) a cerca de 20 quilómetros, tive a oportunidade de conhecer peripécias interessantes e de testemunhar algumas lindas histórias de amor.

Nas minhas histórias acerca desta malta, já destaquei a história do rapaz que casou com a prima empregada nos Caldeireiros (O rapaz do “sorriso parvo”) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2016/07/guine-6374-p16268-memorias-boas-da.html, referi o caso do Mirandela que se apaixonou pela “donzela” que trabalhava junto ao largo da Cadeia (“Deixem-nos trabalhar”) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/09/guine-6374-p12031-memorias-boas-da.html, os engates do Miranda, de Amarante, junto do Café Mucaba e o namoro do Silva “a calcantes” desde a Ponte D. Luís até Gervide, (Cegueira e religião) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/09/guine-6374-p6951-memorias-boas-da-minha.html.
Todavia, terei que contar ainda a história do Armindo Baptista, um alentejano de nascença e coração, mas um nortenho de sangue e de grande ligação. Seus pais, funcionários públicos, oriundos do Minho, acabaram por assentar em Beja, onde ainda residem, perto dos dois filhos e seus quatro netos.
Desde miúdo, apercebeu-se de que o sotaque de seus pais diferia do dos seus vizinhos. A par disso, notava também que eles se ligavam facilmente com toda a gente e que se predispunham muito no âmbito social e religioso. E ouvia os vizinhos dizerem:
- Eles são de sangue nortenho. São mais activos.

O Armindo cresceu, estudou e fez-se um rapagão, rodeado de alentejanos, com quem cimentou grandes amizades. Mas, sempre que ia ao norte visitar os avós, trazia o seu ego reforçado pelo que via, ouvia e sentia. Ele até aprofundava ali os seus conhecimentos históricos e sentia-se cada vez mais integrado no mundo dos nossos heróis, especialmente dos que nasceram e viveram no mesmo espaço que os seus parentes mais chegados. Sentia um orgulho enorme nessa ligação nortenha e estava sempre atento a tudo que ouvia desses lados, incluindo as notícias dos sucessos do F. C. do Porto.
Apesar de sentir a aproximação das miúdas mais lindas do Alentejo, parecia que via sempre nelas uma pequena sombra de sua mãe, a mostrar-lhe a energia que lhe sobrava e que não vislumbrava nessas belas alentejanas. Chegou à tropa sem compromisso amoroso e, agora, com 23 anos, na hora da partida para a Guiné, nem endereço levava para fazer uma madrinha de guerra.
Esteve na recruta das Caldas da Rainha e rumou para Tavira, para tirar a especialidade. Seguiu para Tancos, onde tirou o Curso de Minas e Armadilhas. Com esta última formação, ficou mobilizado e foi chamado para o RAP 2 - Gaia, para integrar a CART 1687, do nosso BART 1913, acima referido.

À saída da Porta de Armas do RAP 2, surgia logo de frente na Rua dos Polacos, um tasco/mercearia típico (o “Faca Afiada”), gerido pela família Moreira. Penso que todos os tropas que passaram pela Serra do Pilar visitaram esse tasco. Lá existia um grande balcão, interrompido por uma divisória, provocando uma zona mais reservada, onde se serviam alguns petiscos, se bebia e se faziam algumas ”jogatanas”. Passei por lá várias vezes, para tomar o último “reforço vitamínico”, antes de passar a Porta de Armas. E sempre encontrava lá o Armindo, conversando com os derradeiros clientes, nos intervalos de um quase contínuo assédio à moreninha que tanto ajudava os pais.

Logo nos primeiros dias de RAP 2, testemunhámos a presença de dois militares, regressados de rendição individual, que vinham fazer o espólio. Passavam o tempo todo no tasco “Faca afiada”. Um, o Jorge Ribatejano, era Furriel dos Comandos e exorbitava as suas façanhas guerreiras, fazendo relatos medonhos que nos assustavam. Exibia o seu corpanzil de pegador de touros, assumindo a sua superioridade e valentia, bem aproveitadas na preparação especial de Comando e nos seus relatos de heroicidade. O outro, o Furriel Carlos Barroso, negro, também estivera em Angola, onde não se encontraram e preparava-se para regressar à sua terra natal - a Guiné.

Não se sabia quem bebia mais. Mas notava-se que o álcool “atacava” mais o Comando. Este, farto de se exibir na sua aludida “matança de turras”, entrava agora no campo da provocação ao negro da Guiné:
- Os pretos são uns cobardes. Não valem um caralho!
O Barroso respondeu-lhe:
- Somos todos iguais. Somos todos portugueses e temos todos o sangue igual.
Irritado, o Jorge, eleva a voz:
- O caralho, é que é igual.

Pega no copo do brandy, bebe tudo de um gole, trinca as bordas do copo, estende o braço esquerdo de manga arregaçada e com o copo estalado e agarrado ao contrário pela mão direita, esfrega-o longitudinalmente pelo braço, provocando lanhos na carne, que já sangrava e grita:
- Estás a ver o que é o sangue e a coragem de um branco?
O Barroso, ferido no seu orgulho, tira-lhe o copo da mão e faz o mesmo no seu braço:
- Estás a ver, seu caralho? Onde está a diferença?

Quando cheguei ao tasco, já eles estavam quase apáticos, sentados e encostados à parede, com os braços feridos, encobertos por um pano meio ensanguentado. Por sua vez, o Armindo, aproveitava para assumir um papel de moralizador, muito do agrado do Senhor Moreira e da sua filha moreninha, a quem ele queria impressionar.
Pois, o Armindo ficou preso à Leonor, logo que a viu pela primeira vez. Passava ali todo o tempo disponível, enquanto estivemos aquartelados no RAP 2. Em pouco tempo, todos os militares ficaram a saber que a Leonor do “Faca Afiada” estava inacessível e presa a um Cabo Miliciano que não saía de lá.

Saímos da Serra do Pilar em direcção a Viana do Castelo, de onde seguiríamos para a Guiné, em finais de Abril. Com este afastamento, acentuou-se o amor do Armindo e da Leonor, provocando uma inesperada paixão que os fazia sofrer diariamente. Contra toda a lógica e expectativas, resolveram casar a escassos dias da partida dele para a guerra. Creio que poucos acreditavam no sucesso dessa ligação, com alguns prenúncios de loucura e fatalidade.

Pouco convivemos na Guiné. A minha companhia saiu do barco Uíge, fundeado ao largo de Bissau, seguindo directamente em barcaça para Bambadinca, enquanto o Batalhão ficou sediado em Catió. O Armindo pertencia à Cart 1687, que se fixou em Cufar, após uma passagem pelo Cachil. Quando estivemos em Catió, vindos do norte, fizemos várias operações militares com passagem por Cufar. Ali convivemos pontualmente e recordámos algumas ligações anteriores. Porém, era evidente que o Armindo acusava um estado bastante sorumbático e cansado. Parece que passou grande parte do tempo afastado das operações, justificando-se com doença e deslocações a Bissau. Sempre pensei que esta relação se iria desvanecer. Com tristeza minha, porque nutri bastante simpatia pelo casal, especialmente pelo Armindo.

Alguns amigos bem conhecidos no nosso Batalhão

No dia 29 de Abril de 2017, participei no Convívio do 50.º aniversário da partida do nosso Batalhão para a Guiné. Teria que ser o mesmo local - a lindíssima e simpática cidade de Viana do Castelo. Quando estávamos dentro do quartel, do Castelo, precisamente no largo onde fora a Parada das tropas, vejo o Francisco Machado (O Chico d’Alcantara) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/02/guine-6374-p7710-memorias-boas-da-minha.html, a “puxar “ um casal, ao mesmo tempo que dizia:
- Ó Silva, olha aqui o Armindo.
- Qual Armindo? - perguntei.
A Senhora avançou:
- O Armindo que casou com a moreninha do “Faca Afiada”?

Que surpresa agradável! E mais agradável se tornou, à medida que eles iam contando a sua vida deste meio século e aparentando uma felicidade imensa.

Quando me afastei do Convívio, aproveitei para dar uma última olhadela ao baile onde o Armindo e a Leonor dançavam sem cessar.

Nota: - Das conversas que trocámos nesse dia, fiquei a saber que o Armindo perdera o rasto do Comando que trincava o copo de brandy, mas mantivera uma boa relação com o Carlos Barroso, que veio, muito mais tarde, a desempenhar um alto cargo na estrutura do Estado da Guiné-Bissau.
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Nota do editor CV:

Último poste da série de 13 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17462: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (44): O Zé Manel dos Cabritos e a mula transexual

terça-feira, 13 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17462: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (44): O Zé Manel dos Cabritos e a mula transexual




1. Em mensagem do dia 10 de Junho de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos uma história, no mínimo, estranha. Não é que nós até conhecemos os intervenientes?

Caros amigos
Tal como na anterior história sobre o Zé Manel dos Cabritos, existem várias coincidências que podem induzir em interpretações precipitadas. Quero-vos garantir que esta é mais uma história de ficção que quase nada tem a ver com os amigos, acontecimentos e lugares que nos rodeiam.

Grande abraço do
JFSilva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra

44 - O Zé Manel dos Cabritos e a mula transexual

O Zé Manel dos Cabritos é sobejamente conhecido entre os ex-combatentes em geral e muito em particular com os que lutaram na guerra da Guiné. Entre estes, acentuou a fama de açambarcador de cabritos, ao ponto de ser acusado da sua exterminação numa importante zona dessa região africana.
Por outro lado, o facto de ter sido um emigrante de sucesso, parece ter despertado algum sentimento de inveja, por parte desses “amigos mais chegados”.

Ultimamente tenho tido um relacionamento mais próximo do amigo Zé Manel. Ele, que é sistematicamente acusado de “açambarcador mafioso” no controlo e no proveito dos cabritos no leste da Guiné, esconde, naquele fundo de guloso e de espertalhão, muita bondade e muita ânsia de sã camaradagem. Por isso, ele tem desabafado comigo sobre essas acusações infames e de outras coisas que ele não quer que se saiba. Porém, há uma a que não posso resistir.

Perguntei-lhe se tinha emigrado logo que veio da Guiné e ele respondeu:
- Não. Voltei ao Antero, para me dedicar aos trabalhos na pedra. Já andava lá há uns meses, mas como eu era muito desenvolvido no trabalho de série e rápido noutros serviços, o patrão não me dava oportunidades para me desenvolver na arte de esculpir figuras. E foi num dia de verão que decidi que aquele seria o meu último serviço em Portugal.
O patrão pediu-me para eu ir perto de Bragança levar a escultura de um macho, para ser colocada sobre uma fonte que iria ser inaugurada no Domingo seguinte. Carregaram a escultura numa carrinha Datsun, de caixa aberta, bem amarrada e bem protegida. Levei a carrinha para casa, a fim de seguir, directamente, no Sábado, para Trás-os-Montes. Ainda em casa, pus-me a mirar a obra em toda a volta do carro e cheguei à conclusão de que o “badalo” do burro estava demasiado grande e torto. Peguei no cinzel e fui dar-lhe uns retoques. Só que, não sei porquê, o “badalo” caiu e partiu-se em vários bocados. Fiquei aflito e não sabia como havia de o recolocar no macho. Pensei, pensei e, quando já estava mais calmo, voltei a retocar a zona sexual do animal, destruindo-lhe os tomates e o resto que ficara do badalo. Perdi um tempão naquelas operações delicadas mas, no final, convenci-me de que conseguira travesti-lo numa bela mula.
Faltava, agora, convencer o cliente, que estava a aguardar o macho há várias horas. Ribeira da Raia ficava para lá de Bragança, perto da fronteira, por onde passavam os emigrantes clandestinos. Passei por uma placa que dizia FRANÇA, onde, vim a saber depois, era onde os passadores mais vigaristas, largavam alguns clientes como etapa final desse “salto” clandestino. Fui andando e acabei por parar junto a um rio, onde me apercebi de algum barulho em redor de uma fogueira.

Passava das duas e meia da madrugada. Ouvi alguém dizer:
- Deve ser o gajo que vem trazer o matcho.
- Ó diatcho, agora não vem nada a calhar. Ali o Tono já está a dormir co’ a borratcheira, tuJaquim, estás meio fodido e eu, sozinho não aguento.
- Deixa-te estar Alfredo, que tu estás melhor.

Aproximei-me, passaram-me a caneca colectiva e indicaram-me o local exposto do presunto, salpicão, alheiras, queijo, chouriço, pão etc. etc.
- Olhe, o que o safou é que o Regedor trouxe para aqui material, para esperarmos por si até de manhã. Foi-se deitar e disse que você pode ficar cá, mas que convinha, antes, colocar o matcho, para lhe cimentarmos as patas. Mas estou a ver que isto vai ser difícil.

Pensei logo em desenrascar-me o mais depressa possível. Acompanhei-os nos comes e bebes e ajudei-os a alegrar-se. Acordámos o Tono e fomos descarregar o macho.

Logo que desamarramos a escultura, ali junto à fonte e sob um poste de luz eléctrica, o Tono exclamou:
- Olhem, o matcho não tem margalho!
- É porque vem capado – disse o Jaquim.
- Ó amigo, isto parece mais uma mula. Não me parece que seja o que o Regedor encomendou. – disse o Alfredo.

Olhei para ele, abeirei-me e, lamuriento, exclamei:
- Vocês têm razão. Estou aqui desesperado porque me aconteceu isto, assim, assim… e assim.

Perante o silêncio prolongado, o Tono arrebitou e ordenou:
- Vamos descarregar a puta da mula e colocá-la no sítio do matcho. Afinal sempre gostamos mais de fêmeas e o rapaz, coitado, tem de ir à sua vida. E querem saber uma coisa? A mula vai chamar-se Lola, em homenagem ao nosso amigo Betinho da Rosita, que era unha com carne com o Regedor, e que num dia de Benfica-Porto foi para Lisboa com o Tininho de Bragança e nunca mais voltaram. Parece que o jogo foi em 1963 ou 1964 e empataram a 2-2.

O Alfredo, que não se mostrou muito de acordo, foi avisando:
- Vocês sabem que o Regedor não vai gostar dessa brincadeira, até porque dizem que ele ficou solteiro, à espera desse Betinho.

O Jaquim acrescentou:
- Não sei se sabem que o Betinho fez uma operação, cortou a piroca, abriram-lhe um buraco e que agora se chama Lola e que é um bom pedaço de mulher. O Tono já a viu, não é verdade?
- Sim, é verdade. – disse o Tono, que continuou:
- Um dia em que fomos a Lisboa procurá-la numa boite, perguntámos-lhe pelo Betinho mas ela não nos passou cartão. O Regedor ficou pior que estragado. Até lhe chamou paneleiro. Ela respondeu-nos que não se lembrava desse nome, que era transexual e que se chamava Lola. Quando vínhamos embora, o Regedor confirmou-me que, quando comprara à D. Rosinha, o campo das hortas, fora para pagar a tal operação.

O Jaquim ainda lembrou os tempos de infância do Betinho, dizendo que ele “tinha a mania de tocar ao bicho dos colegas”.

De repente colocaram a mula lá em cima, foram buscar a caneca e brindaram:
- À nossa Lola, a primeira mula transexual de Portugal! 

Nota:
Acredito nesta história do Zé Manel dos Cabritos porque, por volta de finais dos anos 70, eu costumava ir pescar nessa zona raiana e lembro-me de ver o carinho e a admiração que essa gente local prestava às mulas. Também vi a estátua sobre uma fonte. E, enquanto bebíamos uma cerveja no Bar de uma Associação Recreativa e Cultural, contaram-nos que por altura do 25 de Abril, tinham retirado a Lola, “porque era ofensiva à honra das nossas mulas e, ao mesmo tempo, se identificava com o único panasca transmontano”.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17438: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (43): O Zé Manel dos Cabritos e os amigos invejosos

terça-feira, 6 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17438: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (43): O Zé Manel dos Cabritos e os amigos invejosos



1. Em mensagem do dia 29 de Maio de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos uma história, no mínimo, estranha. Não é que nós até conhecemos os intervenientes?

Caros amigos,
Esta história pode, até, parecer verdadeira. É que há nela muitas coincidências com nomes de pessoas e com moradas que nos podem levar a essa conclusão. No entanto, quero desde já declarar que tudo é pura ficção.

Um abraço do
JF Silva


Memórias boas da minha guerra

43 - O Zé Manel dos Cabritos e os amigos invejosos

Nasceu nos arredores de Penafiel, mais precisamente na zona descendente ao Rio Tâmega, ali à esquerda de quem vai para Entre-os-Rios. Desde miúdo, ajudou os pais no amanho das terras e no pastorício do gado. Gostava muito de animais e, se possível, de os domesticar. Para além das vacas e ovelhas, ele perdia-se com cães, gatos, pegas, melros etc., etc. Mas o que ele mais gostava era de “dominar” os cabritos. Mais as cabras, porque se afeiçoavam a ele facilmente. De tal forma se dedicava a eles que os seus amigos de infância o baptizaram por Zé Manel dos Cabritos.

Pouco se sabe dele nessa época de juventude. Deve ter decorrido normalmente, para um jovem do campo, de aspecto feliz e brincalhão. Apenas se lhe destaca essa paixão desmedida pelos cabritos. A tal ponto que sua mãe, ao contrário de seu pai que o que mais queria era o rendimento que o rapaz lhe proporcionava com essa dedicação, enquanto ela, preocupada, ia dizendo:
- Ó home, bê se tiras o teu filho de trás das cabras, porque o pobo inté lhe arranja alguma fama feia.

Ele ria-se, ria-se, sem se preocupar de nada. Até que a mãe, D. Ana, tomou a decisão de arranjar uma ocupação para o rapaz numa fábrica de trabalhar a pedra. Porém, ele não assentava, com as saudades da vida do campo e foi despedido mais que uma vez, por estragar o granito tentando esculpir imagens dos animais da sua estimação. O pai até achou piada quando o empresário Antero lhe disse:
- Ó Manel, olha que o teu filho pode vir a ser um grande artista. Manda-o para as Belas Artes, antes que se perca por aqui a fazer estragos. Eu, é que já não o posso aguentar mais porque dá me muito prejuízo. Ainda lhe expliquei que se fizesse crucifixos, alminhas, pias para água-benta ou pias para porcos, talvez se safasse, mas ele é teimoso e só pensa em figuras de animais.

Curioso que, quando veio da Guiné, voltou a ir trabalhar para o Antero e, desta vez, foi ele que se despediu. Foi para a Bélgica. A mãe foi ter com o Antero culpabilizando-o de o filho ter emigrado. O Antero meio desanimado, justificou-se junto da amiga Ana e disse-lhe:
- Eu gostava dele. Era trabalhador mas fazia muitas maluqueiras. Parece que ainda veio pior da Guiné. O último prejuízo que me deu foi quando, armado em escultor, fodeu-me uma estátua, já pronta, que valia um dinheirão. Ó rapariga deixa-o ir que só lhe vai fazer bem. E vai safar-se a fazer qualquer coisa, ainda que seja a encher pneus.

Tudo estaria bem e tudo seria esquecido se não fossem os “amigos” que ele arranjou na tropa. Com a alcunha que já trazia da terra e mais as histórias que se foram contando lá pela Guiné, ele ficou marcado para sempre. E tudo por causa dos cabritos. O que lhe vale é a excelente mulher (muito linda, por sinal) que teve a sorte de arranjar e que o compreende e o acarinha como ninguém.
Eu, que o conheci em convívios de ex-combatentes, chego a ter pena dele, só pelas supostas infâmias que ouço, acerca dele. Coitado, ri-se muito (dizem que sai ao pai) e, também, tem muita dificuldade em defender-se do veneno de alguns desses “amigos”. Não imaginam o que eles dizem a seu respeito.
O Neca da Régua, nunca mais lhe perdoou as privações que passou na Guiné por causa dele. Quantas vezes ele percorreu as tabancas de Mampatá e arredores, à procura de cabritos, e sempre lá ouvia:
- Cabrito cá tem. Zé Manel fodéo-o todos.

Segundo este conceituado poeta duriense, o Zé Manel organizou uma pequena mafia que açambarcava os cabritos, provocava a sua procura e especulava os preços de venda. Tinha o esquema tão bem montado, que ninguém o poderia atacar. Diz que veio a descobrir que o Zé Manel se infiltrara nas tabancas, negociando com cipaios, gilas, lavadeiras e, até, com feiticeiros. Por outro lado, tinha o Capitão, o seu Alferes, o Primeiro Sargento, o Enfermeiro, o Vagomestre e o grupinho da sueca, caladinhos como ratos, porque também “mamavam” à grande.
Conta também que, um dia, tentou sensibilizá-lo, explorando o facto de serem ambos do norte, quase vizinhos e que, se calhar, até seriam do mesmo clube.- “Quando eu lhe disse que era do Benfica, então é que fodi tudo. Nunca mais nos entendemos”.

Ainda hoje, quando estamos por perto (nos convívios), vemos que vai um para cada lado, por forma a não estragarem o ambiente com tanta provocação.
Outro que também lhe guarda rancor é o Augusto Carvalho, o ilustre Mayor de Meladas City, que foi veterinário no tratamento de carne para canhão, e se especializou também em tratar de gazelas e cabritos para o tacho, peixinhos da bolanha em escabeche e nhecas com piri-piri. Também era conhecido por alguns excessos como aquele de aconselhar a utilização de preservativos usados, desde que virados do avesso. Dizem que em campanha eleitoral, lá na terra, chegou a referir o mau exemplo da oposição, açambarcadora e insaciável, que lhe “fazia lembrar uma certa pessoa de Penafiel que conhecera na Guiné e que roubava os cabritos aos pretinhos, para se banquetear apenas com os seus capangas mais chegados”.

Todos sabemos que os Enfermeiros (também chamados de Veterinários) gozavam de um estatuto especial; partilhavam mezinhas e recebiam chorudas compensações. Pois o Carvalho viu-se fracassado no exercício das suas nobres funções. E como os indígenas já não lhe podiam trazer galinhas ou cabritos, talvez por vingança, passou a cortar-lhes nos medicamentos. O Zé Manel diz que ele chegou ao ponto de colar os comprimidos na testa dos doentes para que não os gastassem. Também o acusa de comilão insaciável, que apanhou a bicha-solitária lá na Guiné e que nunca mais a largou. E ainda acrescenta:
- Agora até lhe dá muito jeito porque anda sempre em comezainas, a mamar à custa do povo e dos amigos. Cuidado, porque com ele só interessam contas à moda do Porto. Vá comer ao caralho!!!

O Carlos Rocha, sabia de tudo. Como era vizinho do Zé Manel, este bonacheirão também era amante de cabritos… no forno (e não só), cedo se comprometeu numa relação de franca amizade, selada pelo apadrinhamento de um descendente e pela sua união em festas tradicionais e patuscadas intermináveis, ou periódicas, como se fossem telenovelas brasileiras.
Porém, já o ouvi lamentar-se que um dia ficou envergonhado. Foi pelas festas de Rio de Moinhos, quando passeava na companhia do Zé Manel, e se viu observado por um grupo de alunos seus que estavam a cochichar e lhe perguntaram:
- Ó Sô Pro’ssor, veio ver se consegue algum cabritinho? Olhe que a Festa do Cordeirinho já passou. Vai ver que desta vez não leva nada.


A festa do Cordeirinho realiza-se na véspera da Quinta-feira do Corpo de Deus. De acordo com a tradição lá na terra, os miúdos das escolas desfilam com oferendas ao seu professor. Todos levam o cordeiro ainda vivo, acompanhado de salpicão, chouriço, queijos, batatas, cebolas etc., etc.
Conta o Rocha que um dia teve que chumbar um aluno pela terceira vez consecutiva. Dizia:
- É que ele não aprendia mesmo nada!


Quando chegou ao dia da festa do cordeirinho verificou que o cordeiro melhor era o do rapaz que chumbara. Ficou meio encaralhado, sem saber como reagir. E quando se ia a esquivar da tribuna dos professores e das outras entidades, apareceu-lhe o pai do rapaz que o quis abraçar:
- Obrigado, Sôr Pro’ssor, não imagina o favor que me fez. A minha, mulher que é ainda mais burra que o filho, passava-me o tempo a teimar que o rapaz tinha esperteza para chegar a presidente. E eu, o inteligente, que me fodesse a amanhar as terras, sozinho.


Quando o Zé Manel emigrou para a Bélgica, ganhou umas coroas e reformou-se cedo e bem. Juntou ainda a reforma de escultor e a de militar. Mexeu os cordelinhos de tal maneira que nem o Presidente Cavaco ganha tanto como ele. Ora, isto dá azo a que os seus “amigos”, invejosos, passem grande parte do tempo comum, acusando-o de se andar a aproveitar da bagunça que tem reinado em Portugal.
E o que é mais flagrante é que o Zé Manel, que não consegue gastar o que ganha, vive à grande e à francesa, consolado de gargalhadas contínuas, contagiando o ambiente que o rodeia.


Ainda muito recentemente, vimos fotos dele, parecendo assediar cabritos em Mampatá, numa das várias viagens que tem feito à Guiné. O Neca da Régua sabe que aquilo é uma provocação. Sempre afirmou que devido àquela revoltante razia, estes cabritos, que agora são tratados como animais sagrados, tipo vacas na Índia, são descendentes de uma cabrita prenha que conseguiu escapar ao bando do famoso Zé Manel dos Cabritos.
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Nota do editor

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quarta-feira, 10 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17341: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (42): O Arturinho do Bonjardim, a relojoaria, o negócio das carnes, os vários circuitos e destinos, até ao reagrupamento do… Bando

O Bando


1. Em mensagem do dia 26 de Abril de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos mais esta história para a sua série...


Memórias boas da minha guerra

42 - O Arturinho do Bonjardim, a relojoaria, o negócio das carnes, os vários circuitos e destinos, até ao reagrupamento do… Bando

O Alferes Artur Bastos está ligado a algumas das histórias que venho relatando aqui no blogue. Já o referi em “A honra não tem preço” (P16511) e em “O galã de Nhacra” (P15836). Porém, dada a sua ligação e importância da sua convivência com vários companheiros, desde a escola até à guerra da Guiné (e posterior tempo de convívios de ex-Combatentes), julguei oportuno registar com mais pormenor algumas passagens da sua vida.

“…Nos primeiros anos da década de 1920, terminada a Grande Guerra, a instabilidade cresceu: para além dos governos se sucederem a um ritmo alucinante (foram 23 os ministérios entre 1920 e 1926), os atentados bombistas e a forte actividade anarco-sindicalista criavam no país um clima pré-insurreccional que fazia adivinhar um fim próximo para o regime….” 
(in Wikipédia – Revolução de 28 de Maio de 1926). 

Gomes da Costa e suas tropas desfilam vitoriosos em Lisboa (6 de Junho de 1926) 

Foi por essa altura que a Emília do Campo casou com o Zé da Serra. Ela, uma mulheraça carregada de vida, bonita e bastante desejada e ele, um rapagão, capaz de satisfazer o mais exigente patrão madeireiro e qualquer mulher. O desejo de se unirem era mais forte do que a instabilidade política e social reinante. Todavia, esse golpe de 28 de Maio parece ter provocado alguma esperança entre os portugueses (já bastante cépticos quanto à governação republicana).

Em poucos anos, a Emília dera à luz uma meia-dúzia de filhos. Todos saudáveis e robustos como os pais. Porém, mesmo com as medidas rígidas de poupança e restrições, impostas pela crise e pelo novo regime político, a sua sobrevivência tornara-se um grande problema. Foram tempos muito difíceis. Tempos de fome. Tempos em que muitas vezes o trabalho era pago com uma frugal refeição. Desde crianças, muitas das raparigas eram distribuídas na serventia das famílias mais abastadas e muitos dos rapazes eram aproveitados para ajudar nas fábricas e na construção civil. A escola era luxo difícil de conseguir.

Das três filhas assim distribuídas, uma delas foi para o Porto. Foi a Rosita, a tal que sempre se entusiasmava quando a tia Candidinha vinha de visita à terra, por altura da Páscoa, Natal e de outras festas familiares.

A Candidinha foi uma rapariga de sucesso numa casa de putas, na zona do Bonjardim. Dizia-se que ela se havia especializado em Lisboa, junto dos meios republicanos, então muito voltados para a rebeldia e estrangeirismos, modernices ou libertinagem. Era muito disputada pelos frequentadores mais exigentes nesse “negócio de carnes”. Foi tal o sucesso que a Candidinha passou de protegida da Madrinha do Lar para a amiga/amante do senhorio desse Lar das Donzelas. Uns anos atrás, o Senhor Lopes fora abandonado pela sua mulher que o deixara só e que, após algumas tentativas de gravidez falhadas, mudou de homem, talvez na convicção de que o “defeito” era dele. Mais tarde, ela quis regressar mas o Lopes sentia-se muito bem servido com a Madame Candidinha.

A Rosita, embora auxiliasse a tia nos serviços domésticos, teve a oportunidade de frequentar a Escola Primária da Fontinha. Nas visitas à aldeia, a Rosita mostrava algumas saudades dos irmãos e do calor do ambiente familiar. Como as dificuldades continuavam, o pai Zé da Serra, viu que seria oportuna e desejável a entrada de mais uma féria na família. A Rosita lá ficou para trabalhar numa fábrica de cortiça, em Lourosa. Inicialmente não lhe desagradou a mudança mas, cedo se apercebeu de que agora, o futuro que esperava deveria ser diferente. Cresceu e amadureceu naquele ambiente de fábrica, cerimónias de Igreja, festas pagãs e de santos. Em poucos anos, deitou corpo de mulher. Agora, com 16 anos, já se via cortejada pelos rapazes da terra.

Subitamente, a Rosita foi de novo para o Porto. A tia Candidinha adoecera e passava a maior parte do tempo na cama. Pediu para que a Rosita a fosse ajudar, com a promessa aos pais de que, agora, os compensaria monetariamente.

A Rosita apareceu grávida. Há quem diga que isso fora o resultado de um namorico, iniciado com um colega de fábrica, lá de Lourosa. Porém, a Rosinha não queria comprometer o rapaz. Mas, como ela era menor, o pai não aceitava que o assunto ficasse assim. Valeu-lhe a ajuda da tia Candidinha, que a protegeu e lhe assegurou o apoio, até ao nascimento do Arturinho.

O Arturinho foi muito bem recebido pelo Lopes e pela Candidinha. E a Rosita foi ficando por ali, pelo Bonjardim, sem vontade de ir à aldeia mostrar o filho.
Porém, a Emília do Campo veio a ter um problema de saúde e insistiu que deveria ser a filha Rosita a ir ajudá-la. A tia Dina concordou e até gostou de ficar com o Arturinho.

Nos dias que se seguiram, a Rosita encontrou-se com o Eduardo Valente, o tal rapaz com quem ela já havia namorado. O Eduardo mostrou-se interessado em reatar o namoro com a Rosita. Desta vez, ele apareceu bastante credenciado pelo suporte social da pequena empresa corticeira que o seu pai havia criado. A empatia que os ligava veio ao de cima e, em pouco tempo, assumiram apaixonadamente a desejada relação amorosa e amadurecida.

O casamento foi muito bonito. O Arturinho levou as alianças e a tia Candidinha e o Senhor Lopes foram os padrinhos. Até teve vários automóveis. Tínhamos que parar o jogo da bola no largo, para que eles passassem. Eu teria já os meus 7 anos.

A reforçada paixão dos noivos foi tal que nem se preocuparam com a tutela do Arturinho. Embora o Eduardo estivesse convencido de que teria de assumir a paternidade do miúdo, a Rosita conseguiu libertá-lo dessa pressão, facilitando a sua permanência no Porto junto da tia Candidinha. Digamos, de passagem, que o Arturinho, graças ao mimo que o envolvia, sentia-se um principezinho no Bonjardim.

O Artur frequentou a escola primária perto de casa, na Fontinha. Na escola era conhecido por filho do Lopes da Relojoaria e da Dona Nandinha, apesar da idade já um pouco avançada que aparentavam. Não era mau aluno, mas um bocado preguiçoso. Porém, a Mãe Dina sabia impor-lhe a disciplina necessária. Por outro lado, o Pai Lopes era um bolas, entretido com o trabalho da relojoaria e com algumas tardes de pesca, junto à Ponte D. Maria.

Quando o Arturinho passou a frequentar a Escola do Infante Dom Henrique apanhou alguns colegas novos, oriundos de várias zonas típicas do Porto e de outras fora da cidade. Foi desta forma que começou a tomar maior contacto com gentes e costumes portuenses.
Por sua vez, o Arturinho cedo ficou referenciado como o puto vizinho das Donzelas do Bonjardim. É que ele, sem se aperceber, dava o seu endereço que era próximo de uma casa de putas, precisamente por cima de uma loja de relojoaria e jóias. A relojoaria do Pai Lopes era onde, segundo a especificação do Teixeira de Salgueiros, se vendiam os “broches” que eram fabricados ali mesmo por cima. E o Arturinho, muito fascinado nas jóias e relógios do Pai Lopes não fazia ideia dessa actividade “artística”, fora de Gondomar.

Efectivamente, o Arturinho sempre manteve uma ligação privilegiada com as vizinhas do prédio da relojoaria do Pai Lopes. Ainda criança e já sentia o carinho das vizinhas que o beijocavam quando se cruzavam, lá no Bonjardim. E muitas das vezes via lá a Mãe Dina a conversar com a Dona Laidinha (a Madrinha do Lar), aparentando sempre uma boa relação. E sempre recebia alguma carícia doce, acompanhada pelo cumprimento especial:
- O Arturinho está a ficar um homem!

Um dia, podia tê-las ouvido cochichar:
- Olha que ele já deve andar a tocar ao bicho. Qualquer dia temos que o levar lá para cima.
- Já notei isso e confesso-te que ando preocupada. Tenho medo que se meta com as badalhocas, sem controlo sanitário, e lhe peguem alguma doença. E tu sabes bem o que isso é.
- Fica descansada que vou preparar um bom petisco para ele. Vais ver que ele nunca mais vai esquecer as Donzelas do Bonjardim! Quando entenderes que é oportuno, manda-o ir lá acima levar-me um recado, para se ir ambientando.


Ele já sabia qual o verdadeiro ramo de actividade do Lar das Donzelas. E a malta da Escola espicaçou-o de tal forma que ele já passava grande parte das horas livres junto do Pai Lopes. Creio que ele ainda não teria feito os catorze anos. A Mãe Dina mandou-o levar um pequeno embrulho à Dona Laidinha. Ele, surpreendido, fitou-a de tal forma que ela o esclareceu:

- Ó rapaz, não tenhas medo, que elas não te fazem mal nenhum. São mulheres como as outras.

Propositadamente, a Dona Laidinha fê-lo esperar, enquanto lhe mandou servir um refrigerante. Algumas Donzelas estavam em serviço de quarto mas outras vieram cumprimentar o rapaz com reforçados carinhos. Quando vinha a descer as escadas, a Dona Mariota acompanhou-o, para lhe segredar:
- Leva o meu relógio para arranjar. Quando estiver pronto, vem-mo trazer.

Quando o Arturinho chegou à relojoaria junto do Pai Lopes já tinha pensado num esquema:
- Pai Lopes, podias arranjar este relógio de um amigo meu, lá da escola.


A Dona Mariota era já entradota na idade para aquele métier. Era a última das colegas da Madrinha Laidinha e da Madame Candidinha. Mantinha-se ainda ao serviço, graças às suas renovadas capacidades. De cara, já acusa os seus 50 e tal anos mas, do resto, conserva o aspecto de “bambolona”, tão do agrado dos olhares masculinos de quase todas as idades.

Logo que o Arturinho apanhou o relógio arranjado, aproveitou o período da sesta daquele dia primaveril e subiu ao Lar das Donzelas. Entrou e encontrou tudo muito calmo e não se via ninguém. De uma porta entreaberta viu surgir a Dona Mariota que lhe fez sinal para entrar. Recebeu o relógio com manifesta simpatia, puxou-o e abraçou-o agradecida. De seguida, disse-lhe para se sentar na cama e ficar à vontade. Fechou a porta, abriu a camisa e enquanto abanava a saia ligeiramente levantada na frente, dizia:
- Ui que calor!

Mostrou que lhe queria pagar o concerto do relógio mas ele recusou qualquer valor monetário. Cada vez mais grata, ia-lhe manifestando simpatia. Seguidamente, enquanto se coçava sobre a anca direita, voltou-se de costas e pediu-lhe:
- Ó Arturinho, por favor vê se encontras aí alguma coisa. Sinto comichão.

Com a saia levantada, ele regalava os olhos para o seu avantajado traseiro. E como ele dizia que não encontrava nada, ela mandou-o apalpar, mas com cuidado. De repente, virou-se de frente, de forma a aparecer-lhe com a “entreperna” diante dos olhos, e desafiou-o:
- E agora, vês?

Ele sorriu, enquanto ela lhe agarrou numa mão e pousou-a sobre o seu farto e escuro ninho.
- Não tenhas medo. Isto ferra mas não magoa.

Fê-lo levantar, e ao apalpa-lo entre as pernas, exclamou:
- Carago, tens aqui um pedaço de categoria, deixa-me ver.

Sentou-se de pernas abertas, enquanto lhe desapertava a portinhola, para soltar o leão. Desceu-lhe calças e cuecas e pôs-se a fazer-lhe caricias eróticas. Chegou a beijar-lhe o animal. Como ela sentiu que o rapaz já estava bastante excitado e antes que ele ejaculasse precocemente, abriu mais as pernas e encaminhou-o para a desejada penetração. O Arturinho andava nas nuvens; já fora ao pito, já era um homem. Agora parecia ver o mundo de uma forma diferente. E não olhava mulher alguma sem a imaginar de pernas abertas e acessível como a Dona Mariota.

Entretanto, o tempo ia passando mas sempre que se olhava ao espelho, sentia alguma preocupação com a escassez de barba e com o excesso de borbulhas. Na Escola do Infante, onde passava despercebido, agora sentia-se mais homem que os outros. Já discutia sexo com outros colegas mais velhos. E, até, acabou por entusiasmar alguns, que levou ao Lar das Donzelas.

Um dia a Dona Mariota, que lhe andava a dar umas “borlas” às escondidas, disse-lhe que podia marcar com os seus colegas de Escola uns “servicinhos” mais acessíveis e em segredo, mas fora do Lar.

Quando sussurrou essa proposta a alguns colegas, foi surpreendido com o entusiasmo do Marinho da Sé. Inicialmente, imaginou-o demasiado amaricado e um tanto identificado pela popularidade do vizinho Carlinhos da Sé. Depois, ficou bem esclarecido quanto às suas capacidades e experiência no “negócio das carnes”. Não fora a “escola” recebida do tio Júlio, e ninguém lhe imaginaria tais capacidades.

Quando o Arturinho perguntou ao Marinho a confirmação da sessão colectiva, foi logo esclarecido:
- Não te preocupes, já seleccionei a malta que vai, leva a gaja para o sítio combinado, que está tudo organizado.

Quando a Mariota entrou naquela casa abandonada, manifestou logo a sua discordância. Porém, o Marinho acalmou-a e adiantou-lhe uma verba jeitosa, fazendo-a hesitar quanto a uma possível desistência.
O Arturinho foi aguentando mas quando se apercebeu da real situação, tentou reagir. Logo foi ameaçado, especialmente pelos mais velhos, que agora estavam em maior número. O Marinho havia arranjado os clientes, recebera o dinheiro e controlava a situação. A Mariota, que já fora ameaçada e agredida, agora, via-se amarrada sobre uma improvisada cama: o tampo de uma mesa antiga.

À saída, o Marinho estendeu a mão ao Arturinho com algum dinheiro:
- Pega lá e vai buscar a gaja lá dentro.

O Arturinho esquivou-se e respondeu:
- Fica com o dinheiro todo e não me apareças mais.

Revoltado, o Arturinho abandonou a Escola do Infante. Ainda pensou ir para o Liceu Alexandre Herculano mas teve receio de encontrar dificuldades de adaptação às Letras e, também, aos meninos queques, mais frequentes nessa escola. Acabou por se decidir pela Escola Oliveira Martins, onde se veio a sentir muito bem.
Entretanto, sentia-se inibido em voltar ao Lar das Donzelas. Foi precisa a intervenção da Madrinha Laidinha. Ela nada soube do que se passara, mas estranhou o seu afastamento do Lar. Todavia, tinha conhecimento de que ele andara a desenrascar-se minimamente com a Mariota. Pois, a Madrinha esmerou-se em agradar e prender aquele jovem, tido como filho da casa.

Arranjou-lhe um serão espectacular. Meteu-o num quarto onde estava escondida uma jovem menor, acompanhada de uma amiga mais madura. Agarraram-se a ele e atiraram-no para cima da cama. Ele limitou-se a deixá-las despi-lo e descalçá-lo. O resto, foi um mundo de meiguices, de loucura e de prazer. Deram-lhe tudo. Até de comer. Foi nessa fartura que se apercebeu da fama do Bonjardim, onde se comiam os 3 pratos.

O Arturinho adaptou-se facilmente à nova escola. Foi ali que ficou esclarecido sobre os “Chulos da Sé”, os Carteiristas da Costa Cabral e Areosa e dos Pipis da Foz, tidos como ricos. Porém, estes também tinham a fama dos Manteigueiros, devido à pobreza de outros Fozeiros (os da parte velha, mais do lado da Cantareira), sem dinheiro para os cremes protectores solares. Também ficou a saber que os gajos da Ribeira eram tidos como Rufias, os do Marquês e Paranhos tinham a mania de ser Dândis e Cinéfilos, enquanto que os de Campanhã eram famosos pela boa vida, bons passeios e muitas festas. Ah!... e os das Antas eram os Andrades.
Foi com estes que mais conviveu e mais cresceu. E foi com alguns destes amigos que “percorreu” o Porto, desde a Ribeira ao Amial ou do Castelo do Queijo até Campanhã. Também foi com eles que rompeu panos de bilhares e fundilhos das calças nos cafés Embaixador, Palladium, Imperial, Guarani, etc. E com um grupo mais restrito, “passou” para fora do Bonjardim, conhecendo muito do mundo nocturno portuense, do Marquês à Ribeira ou dos Caldeireiros à Trindade ou Santos Pousada.

De tempos a tempos, iam enfiar umas cervejolas na “CUF”, na “Sá Reis” ou no “Pereira”, uns petiscos no “Buraquinho”, “Flor dos Congregados”, na “Mãe Preta” e no “Olho” e umas francesinhas na “casa mãe”, Restaurante Regaleira, precisamente onde foi criada essa famosíssima especialidade da culinária portuense.

A autoria desta criação pode não ser tão debatida como a da Ilíada, mas aqui o Homero é Daniel David Silva, um ex-emigrante que pegou na tradição da tosta francesa (ou croque-monsieur), adicionando-lhe molho, e criando uma iguaria que rapidamente ganhou fama. Corria o ano de 1953 e um dos actuais sócios, Augusto Marinho, era então seu ajudante. Hoje, guarda consigo o segredo do molho (que é bem picante), e mantém a tradição de usar carne assada entre fatias de pão de bijou, o que lhe permite dizer que a sua francesinha é "única". Como os juízos de valor são complicados, só podemos garantir que, por ser tão purista, se trata de uma versão diferente. Augusto Marinho ironiza: "Se tivesse registado a patente, agora éramos donos do mundo."

Enquanto a maioria dos amigos já andava na tropa e na guerra, o Arturinho, que ficara adiado para acabar o curso, ia mantendo a tradição de alimentar alguns dos seus hábitos de vida nocturna. Entretanto, acabara por conhecer a vizinha Lenita, a tal especialista em sexo oral, cuja bicha de clientes, por vezes, se estendia pela estreita escadaria de madeira, desde a entrada até à pequena sala de estar do 1º andar. Curiosa a fama desta “artista” que não admitia que lhe tocassem no corpo, o qual escondia até ao pescoço, enquanto, de mangas arregaçadas, exercia os serviços de criteriosa limpeza das mãos, da boca e do instrumento do cliente.

Também frequentava os bares de streap. Foi no Gata Preta que se perdeu um pouco mais. A Joaninha, a jovem menor que conhecera no Lar das Donzelas, actuava ali em grande estilo. De tal forma que ganhava umas boas coroas. Entusiasmada com o seu relacionamento com o Arturinho, pagava todas as despesas. Ela preocupava-se com o seu aspecto e até insistia que ele deveria puxar o cabelo para trás e assapá-lo com fixador e brilhantina. Um dia levou-o a Sta. Catarina, para lhe oferecer um fato ao seu gosto, um fato escuro de listas largas, inspirado nos personagens do filme “O Padrinho”.


Quando chegou o tempo de tropa já o grupo se havia desfeito. Haviam seguido um para cada lado. O Teixeira tinha ido para as Artes Reunidas, o João fez-se Professor, o Jorge entrou na área Comercial de componentes de Escritório, o Manel seguiu Mecânica, o Jotex foi para Delegado de Propaganda Médica, o Carvalho entrou na Petrogal, o Monteiro andava no Instituto de Contabilidade, o Arturinho em Eng. Civil e o Francisco em Eng. Electromecânica. Com o desaparecimento da malta, foi crescendo a curiosidade de se saber por onde andavam.

Quase por instinto, a malta quando estava livre, passava à tarde pelo Café Progresso, na esperança de encontrar alguém que desse notícias dos outros. E foi assim que se soube que seguiram uns poucos para a recruta nas Caldas da Rainha e para a especialidade em Vendas Novas. E que a estes se juntaram outros, vindos de Santarém e Mafra, os quais se foram misturando por Espinho, Gaia e… Guiné. Por vezes juntos, mas com tempos de serviço diferentes. Desta forma, o Café Progresso foi servindo cada vez mais, como ponto de encontro da malta, cujo percurso muito coincidira em importantes momentos da sua vida.

Dessa malta, lembro bem o Egas e o Rio Tinto, em Santarém, o Delfim no GACA 3 e nos Rangers, o Teixeira, em Catió e o Gonçalves em Vendas Novas e Cufar. Eu conhecia o Arturinho pelas suas origens lá da terra, pela sua família e pelas suas regulares e pontuais visitas. Nunca consegui encontrá-lo durante o serviço militar. Porém, mais tarde, vim a contactar bastante com ele, quando era engenheiro na construção da Barragem de Crestuma. Foi nessa altura que também me contou que o Pai Lopes o declarara único herdeiro, pouco antes de falecer. E que a mãe lhe segredara recentemente, que o Pai Lopes era o seu pai verdadeiro.

Passada a fase da Guerra do Ultramar, cada um fez-se à vida, constituiu família, andou por casa do carago e amadureceu. As visitas ao Café Progresso foram rareando e reduzidas aos mais vizinhos. Até que o Teixeira (Portojo), recentemente falecido, e o Jotex se lembraram de “determinar” que, pelo menos uma vez por mês, se efectuasse um Almoço Convívio, para se perpetuarem a camaradagem e as amizades conquistadas. E até lhe deu um nome: “Bando do Café Progresso - das Caldas à Guiné“.

Com a chegada do Facebook, acentuaram-se os contactos e alargaram-se as relações. Actualmente, o Bando agrupa ex-combatentes com percursos guerreiros diferentes mas de sensibilidades coincidentes.

Agora, para além do bom convívio mensal, onde diversificamos o local, o programa e a componente gastronómica, por vários pontos de interesse do norte de Portugal, mantemo-nos diariamente em contacto, o que tem contribuído imenso para uma boa camaradagem entre todos.

Por outro lado, tem sido maravilhoso poder ouvir, reviver e registar histórias que perdurarão e que vincarão o nosso envolvimento na Guerra do Ultramar.

Nota: - Mais tarde, o Arturinho passou a loja de Relojoaria e Jóias e criou uma Casa de Alterne. Porém (estranhamente!) essa sua iniciativa empresarial viria a tornar-se desastrosa, o que o obrigou a dedicar-se definitivamente aos trabalhos de engenharia. 
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17095: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (41): Dimensões guerreiras

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17263: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): Gostaria de lhe chamar pai, autoriza?

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 7 de Abril de 2017 enviou-nos, desta feita, uma memória bem recente para integrar as suas outras memórias da guerra.


Outras memórias da minha guerra

27 - Gostaria de lhe chamar pai. Autoriza?

Há uns meses fui contactado por uma senhora, através de mensagem no Facebook:
- O Senhor Ferreira esteve na guerra do Ultramar?
- Sim, nos anos de 67 a 69. Estive na Guiné - respondi.
- Desculpe, eu procuro o senhor A. Ferreira que esteve em Machava, Moçambique, como Chefe de Cozinha da Marinha, nos anos de 66 a 68. Por acaso, não o conheceu?
- Não. Tive e tenho poucos contactos com malta da Marinha.
- Gostaria tanto de o encontrar. Por favor, veja se consegue ajudar-me a localizá-lo. Eu sei que é muito difícil, mas ficaria muito agradecida.

Fez-se minha amiga virtual, através do Facebook, por onde fomos dando sinais de vida. Aconselhei-a a insistir na procura, junto das entidades oficiais. Pensei que ela haveria de conseguir. Mas, por outro lado, fiquei com a ideia de que ela poderia estar a tentar fazer esse contacto apenas para alimentar alguma ligação saudosista à presença portuguesa em África. Porém, mais tarde, noutro contacto, por altura do seu aniversário, em que ela me pareceu um pouco incrédula, acabei por lhe prometer que brevemente a iria contactar, para a ajudar. Nessa altura, já eu estava a pensar que talvez conseguisse uma ampla divulgação do assunto, através dos vários grupos de ex-Combatentes que proliferam no Facebook.

O tempo correu rapidamente, enquanto eu esperava arranjar maneira de a ajudar (de verdade!), partindo do princípio de que o assunto ainda não estava suficientemente explorado pelo lado dos ex-Combatentes.

Recentemente, pelo meu aniversário, recebi dela uma mensagem:
- Muitas Felicidades para o Avô e Pai que nunca tive.

Agradeci normalmente, tal como o fizera a várias centenas de mensagens.

Passados uns dias, após algumas tentativas infrutíferas de novo contacto, li esta mensagem:
- Gostaria de lhe chamar pai. Autoriza?

Não agradeci nem respondi. Fiquei preocupado. É que eu tenho a certeza de que não deixei descendência em África. E acredito que a minha família também tenha essa certeza. (Ora, já viram o que seria quando “topassem” que alguém estranho me chamava pai?).

Propositadamente, deixei de responder a qualquer trivial cumprimento, apesar de várias tentativas. Até que hoje, pelas 17H00, fiz questão em atender, pela primeira vez, a voz da Maria do Carmo.
E ela logo perguntou:
- A sua saúde, está melhor?
- Sim. Obrigado. De onde está a falar?
- Eu sou de Moçambique, mas vivo na África do Sul.

Sem mais rodeios, acrescentei:
- Estou em falta consigo, porque prometi ajudá-la e ainda nada fiz.

E continuei:
- Por favor diga-me o que quer verdadeiramente.

Ela respondeu pausadamente e de forma bem explícita:
- Chamo-me Maria do Carmo Ferreira e procuro o meu pai A. Ferreira, que foi Chefe dos cozinheiros na Capitania Rádio Azul da Machava, Moçambique, nos anos de 66 a 68. Deve ter ido em finais de Dezembro de 1968. Nasci dois meses antes de ele regressar a Portugal. A minha mãe, Maria Teresa, dizia que ele queria que eu tivesse o nome de sua mãe, M. do C. Ferreira. Também dizia que ele me queria perfilhar e levar-me para Portugal. Ela chegou a esconder-me porque teve medo que eu fosse raptada. Minha mãe faleceu quando eu tinha 13 anos. Sempre quis conhecer a minha família de Portugal. Já procurei em vários organismos oficiais e sempre esbarro no facto de não ter documentos. Também me disseram que ele não consta como militar, que devia ser civil. Estou casada e tenho quatro filhos e dois netos. Nós seremos sempre de sangue português.

Sem ser interrompida, continuou:
- Não quero pedir outro tipo de ajuda. Vivo sem carências de maior. Mas assim nunca poderei ser feliz. Tenho 48 anos e vivo com esta amargura permanente de nunca ter conhecido o meu pai nem a minha família de Portugal.

Maria do Carmo Ferreira

Um dos filhos da Maria do Carmo

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Nota final:
O texto que acabaram de ler, embora pareça, não pretende fazer humor nem minimizar o estado de espírito da senhora que me contactou, até porque, agora, é o próprio filho (engenheiro químico) que me contacta também para os ajudar a localizar pai e avô.
Se algum de vós puder dar alguma informação que possa levar a esse camarada que prestou serviço em Moçambique, coloque-a em comentário a este post ou contacte os editores deste blogue.
O autor teve o azar (melhor, a sorte!) de se chamar “Ferreira”…
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17146: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Controlo sanitário

quinta-feira, 16 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17146: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Controlo sanitário



1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 5 de Março de 2017 enviou-nos mais uma das suas outras memórias da guerra. Esta bem divertida.


Outras memórias da minha guerra

26 - Controlo sanitário

Todos os rapazes do meu tempo sabem bem do perigo que se corria quando se procurava uma relação sexual com uma das “badalhocas” que proliferavam nos arrabaldes do Porto e de Gaia. Dizia-se, até, que as prostitutas “mais limpas” eram as “meninas” da baixa do Porto, porque eram submetidas a um rigoroso controlo sanitário, uma “modernice” imposta pelo regime de Salazar.
É claro que as relações amorosas surgiam por todo o lado. Não havia santa terrinha que não exibisse (ou ocultasse) enredos dignos da pena de um Camilo Castelo Branco. Ora, os resultados apareciam como cogumelos no pinhal, umas vezes com as gravidezes involuntárias e outras com os inesperados “esquentamentos”. Tudo fruta da época. Enfim, tudo normal. Porém, por vezes, surgiam alguns rumores de que o Senhor Fulano de Tal, também andava “esquentado”, devido a descuidos da sua bela e fidelíssima amante. Mas isso era abafado e rapidamente esquecido, por falta de testemunhos credíveis e por alguns receios de represália. Quando muito, e para se salvaguardar situação social tão melindrosa, fazia-se a alusão aos lugares públicos, onde possivelmente se sentara, sem a protecção do lencinho estendido debaixo do rabo.

Esta juventude foi mobilizada para defender patrioticamente as nossas Províncias Ultramarinas. Influenciada pelos princípios patrióticos incutidos desde a instrução primária, ela aparece, assim, repentinamente, relacionada com os nativos. Os “turras”, no interior, que, em termos de guerra subversiva, dominavam as populações, levavam as jovens e deixavam as crianças e as velhas para as proteger. Raramente ficava alguma mulher adulta para apoio a essas pessoas mais fragilizadas. As mulheres que mais se viam, eram as da tropa Milícia, que combatia ao nosso lado.

Isto quer dizer simplesmente que a actividade de prostituição, fora de Bissau, era quase nula, apesar dos apetites sexuais de tanta e tão potente clientela.

Pergunta-se:
- E como é que a malta se “safava”?

Joan Collins [n. 1933]

Os portugueses sempre foram conhecidos pelo seu primor no desenrascanço. Aqui, como manda a sua educação católica, cada um teria que se confessar dos seus pecados contra a castidade e de um ou outro caso de relação furtiva, por vezes não muito correcta. Estou a lembrar-me do caso do Fafe que apareceu na enfermaria “à rasca da piça”, porque uma jovem adolescente o havia masturbado, não tendo lavado as mãos, que estavam impregnadas de piripiri.


Raquel Welch [n. 1940]


Por altura dos princípios dos anos 70, com a evolução da guerra, foram aumentados os contingentes militares, a par de outras consequentes movimentações. Uma delas, foi o aparecimento de prostitutas brancas, na cidade de Bissau. No bar Mon Ami já “trabalhavam” regularmente. Tal como no Texas, nos tempos da corrida ao ouro, essas profissionais carregadas de ambição, tudo arriscavam pelo dinheiro fácil obtido no “negócio das carnes”. Agora, na procura de clientes do interior, deslocavam-se de táxi e de outros meios de transporte (até onde as novas e poucas estradas alcatroadas o permitiam), saindo, assim, de Bissau, rumo a norte… com regressos rápidos e seguros.

Fora de Bissau, elas passavam por controlos militares. Na zona de Nhacra, esse movimento era cada vez mais notório. Perante essa situação, os militares locais viam-nas passar, a caminho da satisfação dos outros camaradas, deixando-os chateados porque também queriam usufruir desse “serviço”. Foi então que o Maia, mais o Seixas,  assumiram a liderança reivindicativa dos “justos direitos”e foram interpelar o comandante do destacamento, o Alferes Bastos:
- Meu Alferes, nós também queremos foder. Estamos a deixá-las passar e …ficamos “a ver navios”. E quando lhes dizemos qualquer coisa, elas mandam-nos ir a Bissau, que é perto. Aqui o Seixas, há dias, ainda conseguiu, disfarçadamente, dar-lhes umas apalpadelas, com o pretexto de ter que fazer “controlo de armas”, mas uma mulata quis “assapar-lhe” o pelo.

O Alferes, que também já se apercebera dessa movimentação, e que até já fora mimoseado por reconhecimento dessa sua autoridade local, em visita ao Mon Ami, acalmou-os e disse que ia pensar no assunto.

À noite, com os Furriéis, enquanto bebiam umas cervejas, a conversa versava o assunto da prostituição versus “necessidades fisiológicas” da nossa tropa. O Furriel Moura aproveitou para demonstrar os seus conhecimentos nessa matéria, dando como exemplo o que se se passava no Vietname. Falou do grande número de prostitutas que quase chegava a rivalizar com os 500 mil militares. Ao contrário da nossa situação na Guiné, aos americanos “não faltava onde despejar os tomates”. Mesmo assim, lembrou o facto de grandes artistas americanos visitarem periodicamente as tropas, moralizando-as e mantendo-as racionalmente ligadas ao seu mundo de origem. Lembrou a Raquel Welch e a Joan Collins (*). Esta, que sendo capa da Playboy, foi pessoalmente entregar exemplares da tiragem dos 7 milhões dessa edição recorde. A Playboy subira de tiragem desmesuradamente, graças à sua procura no seio das forças armadas.

Por sua vez, o Alferes Bastos referiu um facto curioso, também relacionado com o Vietname. Dizia que numa determinada zona, ocupada por cerca de 20.000 militares, se haviam desenvolvido doenças venéreas com tal gravidade que, por precaução sanitária, os militares foram impedidos de se deslocarem à cidade mais próxima, o que provocou nocivos reflexos psicológicos, sociológicos e económicos. Então, o chefe dessa região teve uma ideia brilhante. Em parceria com as autoridades militares, fundou um enorme bordel, conhecido por “Disneyland Oriental”, que consistia essencialmente numa zona de 10 hectares, devidamente cercada, implantada com 40 quartos/casa dispersos, para satisfação sexual dos visitantes. E, em simultâneo, foram admitidas, identificadas e controladas as prostitutas, bem como o desenvolvimento de condições de tratamento aos infectados, tudo integrado num adequado serviço de controlo e apoio sanitário.

Porém, é sabido que, apesar do grande esforço médico, apoiado em carradas de “Penicilina” e “Penisulfadê”, o drama causado pelas doenças venéreas foi dos piores inimigos enfrentados pelos militares. Fala-se muito de suicídios de militares, incapacitados sexualmente, na hora do regresso do Vietname,  mas, nós sabemos que isso também acontecia entre os nossos combatentes da Guiné. E muitos dos afectados optaram por ficar por lá.

Da conversa, voltou-se à análise da nossa situação e à nossa real dimensão. Momentaneamente, o que mais preocupava estes graduados era o aproveitamento do movimento “putéfio” para resolver a satisfação sexual da tropa do seu destacamento. E foi assim que com mais cerveja ou menos conversa, o Alferes determinou democraticamente, sem qualquer votação, contestação ou parecer superior,  que ali também seria criado um serviço contínuo de Controlo Sanitário. A partir de agora, todas as mulheres, supostamente prostitutas, que ali passassem para exercício do seu métier em outras zonas, teriam que ser submetidas a exame prévio. Desta forma, se daria a oportunidade dos nossos militares, agora habilitados ao uso de bata branca,  poderem, alternadamente, usufruir de (e cobrar)  contactos seguramente mais agradáveis.

Uns dias depois, perante as novas valências do Controlo Militar e o enorme entusiasmo criado, o Alferes Bastos foi obrigado a aprovar uma rigorosa escala de serviço na Enfermaria, por via do Controlo Sanitário de mulheres, em trânsito, a caminho do norte.

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(*) Nota: - Apenas para referir que a única artista que eu avistei na Guiné, foi a Sara Montiel [1928-2013]  Sim, a Sarita,  do filme “La Violetera” [1958].  Foi durante uma exibição cinéfila, ao ar livre, acompanhado pelas fervorosas melgas da Guiné.

Destaco ainda o entusiasmo da tropa, sempre que o Operador da projecção parava a imagem, pondo em evidência os lábios carnudos e sensuais da artista, enquanto cantava:

Besame, besame mucho
Como si fuera esta noche
La ultima vez

Besame, besame mucho
Que tengo miedo a perderte
Perderte después

Quierote verte muy cerca
Mirarme en tus ojos
Verte junto a mi
Piensa que talvez mañana
Yo ya estaré lejo
Muy lejo de aquí

Besame, besame mucho
Como si…

(https://www.youtube.com/watch?v=xyOMyXTI3O0)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17069: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Sonhos em perigo

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17069: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Sonhos em perigo

Furriéis da CART 1689 na Av. de Bissau, no final da comissão. Silva, Campos, Valente, Carvalho, Lopes, Miranda, Cepa, Borges e Faria.


1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 17 de Fevereiro de 2017 enviou-nos mais uma das suas outras memórias da guerra.


Outras memórias da minha guerra

25 - Sonhos em perigo

Aqueles pesadelos que nos atormentavam as noites, durante os primeiros meses, foram-se diluindo e amenizando à medida que o tempo ia passando. Pelo caminho, ficavam os intermináveis dias de sofrimento, carregados de angústia, de tristeza e de medo. Por melhores que fossem os camaradas e por maiores que fossem as bebedeiras, nada nos fazia esquecer os dias mais marcantes das nossas vidas.

Com a aproximação do fim da comissão acentuavam-se os anseios pela concretização dos nossos principais sonhos. Não havia dia nem hora em que não nos imaginássemos num outro mundo cheiinho de projectos, onde a felicidade é obrigatória. As habituais manifestações de lamento e de revolta deram lugar à vontade de cada um falar dos seus próximos projectos. Tudo coisas bem pensadas e aparentemente de fácil resolução. Paralelamente, íamos antegozando a alegria do regresso, recuperando, desta forma, a alegria de viver que nos fora roubada.

Foi a 3 de Dezembro de 1968 que a nossa CART 1689 iniciou o seu percurso do ansiado regresso. Ficámos em Bambadinca e no dia 5 dali seguiram para Bissau mais de 2/3 dos nossos camaradas. Eu e os restantes, ficámos ali à espera de novo transporte fluvial até ao dia 9.


Militares da CART 1689 na barcaça de transporte de Bambadinca para Bissau.

Embora o ambiente fosse de paz e de relaxamento, nós, os que ficámos em terra, sentimos algum refreamento na alegria que vínhamos vivendo e muita angústia nos dias seguintes. E, tal como acontecera nos dias anteriores a 1 de Maio de 1967, quando outros militares esperavam no cais pela chegada do “seu” barco, lá estávamos nós na situação invertida, olhando de manhã à noite, para o horizonte do Rio Geba, a reclamar, ansiosamente, pela chegada do “nosso”.

Depois do jantar, não apetecia ir para a cama, nem havia sono que chegasse. Eram horas de espera em que a “sede” se acentuava.

Precisamente na véspera (dia 8), fui chamado por um Furriel (de serviço) da tropa local, para ajudar a resolver uma situação anormal, com possibilidade de consequências dramáticas. Sussurrou-se no bar que na casa do Comando, haviam visto uma senhora branca, curiosidade difícil de admitir pelos nossos militares, porque não as viam (mulheres brancas) há cerca de 20 meses.

O Areosa, já com um copito, exteriorizando um exagerado à vontade, não acatou o conselho/ordem/advertência do Furriel e, armado em conquistador, parou por ali e continuava a lançar piropos, à moda do norte e em voz alta. Fiquei preocupado com o seu comportamento, agravado com a desobediência e desrespeito ao Furriel. Puxei o Areosa e empurrei-o para que saísse dali. Claro que me devo ter excedido em linguagem para com o Areosa, mas teria que o libertar de uma provável participação do Furriel. Por outro lado, desta forma, assumi a responsabilidade da condenação de tal comportamento.

O Areosa, possivelmente ferido no seu orgulho, acabou por acelerar o passo e adiantar-se de mim. Ia a praguejar e, de repente, correu na direcção onde os nossos militares estavam acantonados com os seus haveres. Pegou numa G3, veio para o meio da rua, virou-se na minha direcção. Nunca esquecerei aquela imagem, iluminada pelo luar, mais parecendo uma cena de um duelo de “cowboys”, no Texas. Apontou-me a arma, em posição de tiro instintivo e gritou:
- Vou-te matar! Vais com o caralho!

Como não parei, ele repetiu o grito, ao mesmo tempo que puxou o gatilho. Não houve disparo porque não havia bala na câmara. Porém, quando ouvi o estalido, fiquei fora de controlo e avancei sobre ele, a murro e a pontapé. Valeu-lhe a malta que se envolveu a afastar-me.

Foi uma noite muito mal dormida, a última vivida no interior da Guiné. Massacravam-me a cabeça um montão de coisas. Podia ter sido atingido por um soldado do meu próprio grupo. Nós, que tivemos em comum tantas lutas contra o IN. E eu que estava convencido de que o Areosa era um dos militares mais dedicados.

Logo de manhã, apercebi-me da excitação dos militares. A barcaça já se avistava ao longe e ninguém parava naquele alegre frenesim. Apenas o Areosa estava parado. Estava à minha espera e, cabisbaixo, abeirou-se mais de mim:
- Ó Silva, estou aqui sem dormir. Quero pedir-lhe perdão pelo meu comportamento de ontem. Sabe que nunca tive nada contra si. Tem de me perdoar.

Eu não sabia que dizer, nem o que cobrar.
E ele continuou:
- Eu estava “alegre”, comecei a cantar e veio o caralho do Furriel gozar comigo. Fiquei ainda mais fodido quando chamou por si. Pensava que o Silva me ia defender e ainda ajudou à missa. Eu estava tão marado que nem vi que você me estava a safar. Sempre que bebo um copo a mais, faço merda.

Este dia 9 de Dezembro também foi muito marcante. As fortes emoções parecem ter sido abençoadas pela brisa refrescante que nos acariciava, cada vez mais, à medida que nos aproximávamos de Bissau. Até deu para relaxar e descansar na viagem.

Chegados a Bissau, foi o reencontro de toda a família da CART 1689. Parecia que já estávamos salvos. Foi, possivelmente, o dia mais alegre que lá sentimos. E eu fiquei duplamente feliz e grato porque o grupo dos Furriéis estava à minha espera para exteriorizar tanta alegria. Foi uma noite de arromba. Quase não se dormiu naquele quarto do Quartel-General, onde se meteram 8 camas (!), para ficarmos juntos até ao ansiado regresso. Um tanto contra a corrente de alegria, o nosso Primeiro Viscoso, com o seu permanente aspecto trombudo, continuava a procurar ensombrar a alegria dos outros, especialmente a dos Furriéis.

Logo de manhã, fomos convocados para uma reunião com o 2.º Comandante do Quartel-General. Fomos perdoados e compreendidos pelos excessos, mas avisados de que teríamos que respeitar o silêncio a partir da meia-noite. Foi o Viscoso quem fez a queixa. Havia-se aproveitado da ausência do Capitão da nossa CART e, ultrapassando os nossos Alferes, foi-se “armar” junto do Comando do QG.

Entre os serviços e as folgas, o tempo passava-se da melhor forma. Porém, o Primeiro Viscoso continuava atento e pronto para destilar o seu ódio aos milicianos, especialmente aos que não lhe falavam (que era o meu caso).

Faltavam menos de 15 dias para o regresso. Estava eu de serviço no QG e as orientações superiores eram que, numa Companhia de 150 militares, apenas um terço estava autorizada a sair do Quartel. Ordens são ordens, mas nem sempre se levavam à risca, especialmente em quartel de maior acalmia.

Ora, os soldados, mesmo sem dispensa, procuravam “desenfiar-se”. Por norma e lealdade, antes do “desenfianço”, cada um perguntava se podia sair. E eu só lhes dizia: Se acontecer alguma coisa, avisem logo, porque tenho que fazer o relatório das anomalias antes das 8H00 horas (hora do render da guarda). Era arriscado, mas, como estávamos nos últimos dias, sentia-me bem com a satisfação da “malta”.

- Aquele que vai ali não é o Tripeiro? - perguntava o 1.º Sargento ao Sargento que o acompanhava, ambos a passear na avenida do Pilão.
- É mesmo, respondeu-lhe.
- Ouve lá, ó Tripeiro, anda cá - chamou - Como é que andas cá fora, se estás detido, e sem qualquer dispensa?
- Sabe, é o Furriel Silva que está de serviço e com ele não há problema. É um gajo porreiro – confiou o Tripeiro.
- Ah, sim? Então quando é o Furriel Silva, é tudo à balda? – questionava de, fala amolecida, o Viscoso, que, para melhor tirar dele, aproveitou para lhe pagar uma cerveja no Bar Jagudi.

Era caso de admiração, porque o somítico, para não gastar um tostão, só bebia água del cano. Cerveja só se alguém lhe pagasse. E assim, estando no Bar a beber, também se mostrava à nossa tropa, a confraternizar!

- Silva, acorda que estás fodido. O detido, o Tripeiro, foi visto pelo Primeiro perto do Pilão – alertou-me, bastante aflito, o Campos.

Virei-me para o outro lado e, meio a dormir e meio acordado, devo ter-lhe respondido mais ou menos:
- Caga nisso, que eu cago no Primeiro.

Seriam cerca de 8h30 quando entraram no meu quarto o Machado e o Faria, e em tom muito sério, dispararam:
- Olha que o Primeiro esteve à espera para ver se apresentavas faltas até ao render da guarda. Agora está a fazer uma participação contra ti, por o Tripeiro andar a passear em Bissau. Já mandou chamar o Tripeiro para depor. E aquele gajo, que gosta tanto de ti, vai-te foder. Mexe-te rapidamente.

Vi num relance a gravidade da situação. Mas, que hei-de fazer? (questionava-me repetidamente). Tantas vezes debaixo de fogo, estava, afinal, numa outra situação perigosa. Tudo de mau me vinha à cabeça e por momentos fiquei paralisado. Qualquer processo naquela altura iria obrigar-me a ficar na Guiné, como tantos outros condenados, e precisamente no momento mais ansiado e carregado de projectos. Havia de aparecer aquele filho da mãe a lançar, mais uma vez, a peçonha, a sua inveja e a gozar com o sofrimento alheio.

Assaltou-me uma ideia. Dirigi-me rápido à caserna e vi que os soldados pareciam já estar à minha espera, adivinhando o que me ia na mente. Logo ali, à entrada, perguntei em voz alta:
- Atenção malta, Vocês viram ou não viram o Tripeiro, ontem, no recolher obrigatório?

A resposta surgiu unânime e categórica:
- Vimos! - Por acaso ele até estava mesmo à minha beira – respondeu logo em voz alta e firme o Cabo Felgueiras.
- Ok, era só isso. E afastei-me. (Por sinal o Cabo Felgueiras não tinha estado na formatura do recolher.)

Assim, o Viscoso não conseguiu testemunhas para promover o processo. E o próprio Tripeiro, chamado a depor, também negou tudo, incluindo a cerveja que tanto havia custado a esse nosso querido Primeiro-Sargento.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16374: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): Relatório de Operações do último almoço-convívio da CART 1689