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segunda-feira, 16 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18528: O Cancioneiro da Nossa Guerra (6): "Os Homens não Morrem" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)


Batalha > Fetal > 26 de setembro de 2015 > Convívio da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/69) >  Em primeiro plano, à esquerda, o ex-cap mil inf, hoje advogado, Manuel Francisco Fernandes de Mansilha... No final do almoço, leu as quadras que abaixo se reproduzem, e que lhe foram enviadas por um "Zorba", em 2011 pelo Natal. Segundo o Mário Gaspar, o autor dos versos é António Luís Faria Mendes, ex-1.º Cabo Operador Cripto.


Brasão da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68). Lema: "Os Homens Não Morrem".

Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Os Homens Não Morrem

por António Luís Faria Mendes,
ex-1.º Cabo Operador Cripto

Bem certo que o tempo passa,
Já nos vai pesando o pé, 
Mas não há nada que faça
Esquecermos a Guiné!

Alguns em Gadamael,
Os outros em Ganturé.
Fulas, mandingas, papel,
Sobe o rio com a maré.

Tempos difíceis, claro.
Sei que se foi cimentando
A amizade, um dom raro,
Que estamos comemorando.

Caro Mendes, Cabo Cripto,
Que que decifravas a mensagem,
Magro como um eucalipto,
Sempre com fé e coragem.

Vale a pena acreditar
Que há mar e os rios correm.
O que nos fez regressar?
Foi porque “Os Homens Não Morrem”!

Versos da autoria de António Luís Faria Mendes ex-1.º Cabo Operador Cripto. Data: c. 2011. Recolha de Mário Gaspar (ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (*). Transcrição, revisão e fixação de texto: MG / LG (**)
_________


Vd,. postes anteriores:

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O cancioneiro da nossa guerra (4): "o tango dos periquitos" ou o hino da revolta da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (Silvino Oliveira / José Colaço)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18259: O cancioneiro da nossa guerra (3): mais quatro letras, ao gosto popular alentejano, do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)

8 de novembro de 2017> Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha

30 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17811: O cancioneiro da nossa guerra (1): "Asssim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude"... 4 dezenas de quadras populares, do açoriano Eduardo Manuel Simas, ex-sold at inf, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18248: Efemérides (268): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte II



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967

Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Passaram 51 Anos: Chegada ao Largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967 - Parte II (*)

por Mário Vitorino Gaspar



“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos
Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967
(continuação)

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro

(...) Árvores de alguma altura abundavam, a população civil aproximava­‑se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um alferes se apre­sentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, que também ficaria connosco, aproximou­‑se de mim:
– Meu furriel,  quer comer uns borrachos fritos?

Olhei­‑o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
– Onde estão eles?
– Ó furriel, venha comigo!

Olhei por cima dos meus ombros e vi as divisas camufladas. Retirei­ as mesmas e coloquei-as no bolso do camuflado. Enquanto reparava que aquele 1.º cabo que se tornara meu amigo,  não vestia nenhuma roupa do exército. Estava com uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritou os borrachos e umas batatas, Iniciei a minha primeira refeição em terras de África. Que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim. Admirado para o tamanho das cervejas. Ouvi da sua boca:
– Essas são de seis decilitros.

O 1.º cabo confortava­‑me:
– Os borrachos não che­gavam para todos.

Estavam a tratar de fazer o jantar: – bacalhau com grão. Fora um milagre, uma bênção. Após a fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar­‑nos e o alferes miliciano que ficara connosco – era de rendição individual – ia esclarecendo-nos. Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

O furriel miliciano que eu substituía,  deixara ficar dois isqueiros Zipp  avariados com a inscrição “Movimento Nacional Feminino”. Nenhum dos isqueiros funcionava. Abri a mala e coloquei sobre o caixote que serviria de mesa-de-cabeceira, quatro livros:

“Os Cavalos Também se Abatem”, de Horace McCoy;
“Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes;
“A Fanga”, de Alves Redol; e
"Zorba o Grego”, de Nikos Kazantzákis.

Este último tinha muito a ver com a sigla da CART 1659: “ZORBA” – “Os Homens não Morrem”.

Começava a sentir cada vez mais o calor naquele clima doentio. Mesmo os atletas, não o eram. Não se respirava. Também era verdade que o fumo dos cigarros fumados tinha criado um autêntico nevoeiro naquele que era o meu quarto. O alferes Póvoa, o sargento Dores, eu e os furriéis miilicianos Jorge e Alves tínhamos ficado espalhados pelo aquartelamento, cada um com determinada missão defensiva.

Dei uma volta ao pequeno aquartelamento depois de despir o camu­flado e vestir uns calções, fiquei em tronco nu. Comido o bacalhau, prato do dia, fomos até ao bar, se é que aquilo era algum bar. Bebi e conversei com todos aqueles soldados­‑amigos­‑irmãos.

A população civil, por não nos conhecer, estava talvez indecisa, o que era normal, olhando-nos com um ponto de interrogação estampado no rosto. Tive o primeiro sorriso da bajuda que passava. O Alferes Miliciano Santarém ia-nos informando. Estávamos portanto no Setor S2, ficando a CART 1659 ligada para efeitos operacionais ao BCAÇ 1821, com sede em Buba.

Há uma via norte-sul ligando Aldeia Formosa com Cacine. Depois do Cruzamento de Ganturé – na mesma via – estão os aquartelamentos de Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo-se Cacine. No chamado Cruzamento de Guileje, há uma bifurcação para Mejo e Guileje. O terreno é plano, com cursos de água, sendo alguns deles de grande caudal.

A população insta­lada nas tabancas de Gadamael Porto, cerca de 400.  e em Ganturé (sede do Regulado), cerca de 200 indivíduos são beafadas. Existem ainda fulas, tandas, mandingas, landumas, bagas, nalús, sossos etc. Dedicam-se principalmente ao cultivo do amendoim, arroz e à caça e pesca principalmente para o abastecimento da tropa. As Praças “U” [, recrutamento local], pertencentes à Companhia, eram 31, existindo ainda 45 Caçadores Nativos.

Ficámos portanto junto da fronteira com a República da Guiné, Guiné ex-Francesa. Não estávamos preparados para aquele clima e éramos desconhecedores da cultura e língua daquelas gentes. Repetia-se a situação, era raríssimo ouvir­mos uma frase em português. Palavrões, sim.

Enquanto todos jantávamos, o dito bacalhau, ouviu-se o arrancar do motor e acenderam-se as luzes. Estávamos já instalados, e de serviço a tempo inteiro – 24 horas por dia – em terras da Guiné. A partir daquele momento tínhamos que estar preparados para tudo, até para termos que ouvir alguém gritar:
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda!

Era bem verdade que a grande casa guiada por Salazar queria e ordenava.

Cansados, dormimos, os que não foram destacados para os primeiros serviços. De manhã seria um outro dia. Logo tivemos o primeiro grande problema: – não tínhamos um Padeiro na Companhia. Fui eu que solucionei essa enorme falha. Era filho e neto de Padeiro, tinha trabalhado desde muito pequeno, depois de deixar de estudar fora Padeiro, tinha inclusive a Carteira Profissional de Ajudante de Padeiro. Acompanhei o fabrico do primeiro pão de Gadamael Porto e Ganturé. Não era complicado fazer bom pão, a farinha era de boa qualidade e oriunda de França. Aliás toda a população civil fazia propaganda diária da moagem francesa, muita da roupa que vestiam era feita do pano de sacas de farinha.

Começámos a conhecer os hábitos daquelas gentes, acordando diariamente com o troar do pilão que desfazia miolos e as ideias. Verdade que, por vezes, escutasse o toque do clarim, mas por pouco tempo. Fiquei cativo, o único pensamento, mesmo cativo. Agrilhoado. Tinha de libertar dessa ideia.

Iniciou-se uma nova fase das nossas vidas depois de todos instalados. Ficaria connosco o alferes miliciano que deixara de fazer parte da Companhia que havíamos rendido, e que esperava nova colocação. Continuavam as desigualdades. Uma Messe com 2 alferes mili­cianos (o tal que entretanto esperava colocação,  o alferes Póvoa, comandante das tropas destacadas), 1 sargento e 3 furriéis milicianos.

Começam a surgir inúmeros boatos, postos a circular pelo PAIGC, focando ataques e destruições nas nossas tropas, criando-nos não só a nós como às populações uma certa insegurança. Queria acreditar que sofrer seria natural, as bonitas flores também sofrem. O meu grande problema era não gostar de arroz.

Como se tinham refugiado na República da Guiné muita população desde 1963, a nossa Companhia começou a exercer, quando estes visitavam a família, ações tendentes a persuadi-los a regressarem a Ganturé e Gadamael Porto, iniciando-se logo um aumento da população. A diminuta população existente dedicava-se ao cultivo de mancarra e à caça e pesca. O peixe denominado por nós da bolanha servia para o abastecimento próprio e para venda à nossa tropa. Portanto íamos começando a conhecer aquelas gentes, adaptámo-nos, melhorando progressivamente o espaço, que seria a nossa terra.

Na Messe tínhamos um gira-discos, que ali ficara e somente um disco. Este era – «Sony and Cher» – “I got you Babe”. Parecia mais estarmos nos "rangers", em Lamego, massacrados com as músicas “O sambinha chato” e “Et maitenant”.

Havia um refeitório para as praças, com mesas feitas de caixotes de munições e bancos improvisados.  As primeiras avionetas começaram a aterrar em Gadamael Porto, visto em Ganturé não existir uma pista, e a ansiedade do correio começou por ser natural. Tínhamos que ir à sede da Companhia buscar o correio: a carta e o aerograma com a notícia da família. Também o contacto com a namorada, noiva e madrinha de guerra. Quando avistávamos a avioneta, inventávamos desculpas para ir buscar o correio.

Como especialista de minas e armadilhas, após ordens do capitão que nos visitou [,em Ganturé,] comecei a rebentar, com petardos de trotil, aqueles monumentos enormes, construídos pelas formigas, chamados de bagabagas, que eu nunca tinha visto. As formigas construtoras de betão armado eram o exemplo vivo da unidade, a mesma união que pretendíamos no futuro para nós militares. Eram potenciais abrigos para o PAIGC em futuros ataques ao aquar­telamento, não muito longe da fronteira.

Mais tarde concluímos que não era bem verdade esta opinião, porque os bagabagas serviam também para nossa defesa. Começava a ambientar-me, e o trotil que inicialmente utilizara, depois de umas tantas mordidelas das formigas que assistiam não pacifi­camente à invasão das suas casas, foi substituído pelas granadas, colocadas nas fendas, e com uma corda não esticada, puxava junto da paliçada.

Esse trabalho, depois de milhares de mordidelas daquelas formigas que depois de arrancadas à pele, e amputadas das cabeças, continuavam a morder, foi a primeira grande experiência. Começara já a fazer o estrangulamento do cordão lento com o detonador, com os dentes (em lugar de utilizar o alicate estrangulador), como era ensinado no Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, em Tancos. Havia aprendido a fazer o estrangulamento, nome dado ao acto de ligar o detonador ao cordão lento, na direção das costas. Isto para não sermos atingidos no rosto, e principalmente nos olhos.

Lembrei as pragas bíblicas: – As águas convertidas em sangue; as rãs; os mosquitos; as moscas venenosas; a peste nos animais; as úlceras; o granizo; os gafanhotos; as trevas e o anúncio da 10.ª praga. Eram as primeiríssimas pragas que anunciavam outras. Cortou-se o capim (capinar) em toda a zona entre a paliçada construída com chapas de bidões e terra batida no meio, e o arame farpado. Começámos por limpar a zona mais à frente, cortando a vegetação e queimando-a. Já tínhamos uma visão mais ampla de toda a zona circundante do aquartelamento.

Os abrigos foram melhorados, consoante aquilo que os militares consideravam ser mais cómodo, e aqui e acolá iam surgindo uns pequenos luxos para o local. Tudo obra executada nos intervalos das primeiras patrulhas, estas bem perto dos aquartelamentos. Existiam furriéis milicianos em Guileje e Mejo, que tinham estado comigo noutras unidades na metrópole. Quando se abasteciam em Gadamael, passavam por Ganturé. Sempre que os encontrava bebíamos umas cervejolas. A cerveja era também camarada.

Todos os dias eram nomeadas equipas para trazerem água, sempre necessária, havia de ser transportada para o aquartelamento, puxada com um motor para bidões. Era utilizada para alimentação e a higiene de cada um. Não havendo casas de banho apropriadas, o banho era com um púcaro improvisado, feito de uma qualquer lata com uma asa de arame, que derra­mava aquele líquido precioso sobre o corpo. Outra equipa ia à lenha.

Os copos eram feitos de garrafas partidas com óleo queimado com um ferro em brasa. Depois de golpes na boca, concluímos ser importante raspar as arestas nas pedras ferrosas, visto a zona ser rica em minério de ferro. A água para beber  tinha que ser tratada com pastilhas e, mesmo assim,  sabia mal. Ao fim de poucos dias em terras da Guiné fizemos uma patrulha até à fronteira da República da Guiné, num dia de altíssimas temperaturas. Não estando preparados, após termos bebido toda a água, enchemos de novo os cantis num charco existente e colocámos pastilhas. A sede era demais e bebemos este líquido sem que as pastilhas fizessem efeito.

Logo de seguida Tropas “U” e Caçadores Nativos mijavam para o charco. Perdi o controlo, senti vontade de esmurrá-los. Bebera mijo, ou para ser mais claro, todos bebemos mijo. Prometi nunca mais beber água na Guiné, nem a filtrada. Esta experiência ajudou-me a saber como lidar com aquelas gentes.

Ouvíamos constantemente os rebentamentos na área, e nos intervalos o matraquear do pilão vivia também ali e depressa ficou a fazer parte das nossas vidas. Enquanto a grande parte das mulheres com as mamas escor­rendo até à cintura batiam com o pilão com um toque cadenciado a quem se juntavam as bajudas, algumas com a mama firme, nós aproximávamo-nos sorrateiramente destas últimas, procurando uma pequena oportunidade para lhes tocar no corpo. Éramos jovens.
– Mim cá nega! – respondiam após o primeiro toque nos corpos nus.

Habituámo-nos a respeitar esta vontade, que por vezes não era a delas. Visto Ganturé ser a Sede do Regulado, onde o Abibo Injassó era o régulo, também rei, que não permitia que as mulheres e bajudas tives­sem qualquer tipo de relações sexuais com os militares, muito embora se tentasse sempre que existisse uma oportunidade, principalmente com as lavadeiras. As operações sucediam-se, principalmente as patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá, o abastecimento era descarregado em Gadamael Porto.

O régulo era o elo de ligação entre a nossa unidade e os informadores. Criou-se uma rede de Informação. O informador era um pau de dois bicos, para nós positi­vamente, muito embora algumas vezes se colocasse em causa a informação. Tínhamos assim conhecimento da movimentação do PAIGC na zona. O informa­dor era pago pela informação, e se ela fosse verdadeira, recebiam mais.

A nossa tropa ajudava a população civil, facultando por exemplo a utilização das viaturas para o transporte de cargas pesadas. Também existia algum emprego para os naturais, nomeadamente nas obras dos aquartelamentos e com o contributo das lavadeiras na lavagem da roupa. Fomentou-se o cultivo do arroz, mandioca, batata-doce, milho, árvores de fruto.

De Gadamael tivemos conhecimento que os reabastecimentos para a zona far-se-iam pelo dito cais do aquartelamento, que continuava a ser uma caixa de uma GMC. Tarefa ingrata essa visto que corria a CART 1659, o risco de passar a comissão a descarregar toneladas e toneladas de mercadoria, que caiam na água e se enterrava no lodo. Cada barco para descarregar era um problema, e a nossa tropa tinha que inventar para não se afundar na lama com um saco às costas ou uma caixa de cerveja. Muitas caixas ficavam perdidas no rio. Íamos a Gadamael Porto, principalmente para falarmos com os amigos. Tirávamos fotografias, algumas demonstrativas das más condições que possuíamos. De várias viaturas conseguíamos montar uma.

Fizemos a primeira Operação ao famoso “Corredor da Morte”, também denominado “Corredor de Guileje”.

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16815: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (2): As más notícias de Amílcar Cabral, no início de 1969: o caso das baixas do PAIGC no ataque a Ganturé, no dia 6 de janeiro

1. O nosso Camarada Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494, (Xime-Mansambo, 1972/1974), enviou-nos a seguinte mensagem. 

(D)O OUTRO LADO DO COMBATE
AS MÁS NOTÍCIAS DE AMÍLCAR CABRAL NO INÍCIO DE 1969
- O CASO DAS BAIXAS DO PAIGC NO ATAQUE A GANTURÉ -


1. – INTRODUÇÃO

Quando em narrativa anterior [P16662], a propósito do terceiro fragmento da entrevista ao médico-cirurgião Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), fiz referência às notas manuscritas por Amílcar Cabral (1924-1973) classificadas por si de «más notícias», e comunicadas, como conteúdo para reflexão, a todos os dirigentes do PAIGC durante o mês de Janeiro de 1969, prometi voltar a elas, em novo enquadramento historiográfico, pois havia excluído o seu primeiro ponto por não ter, então, qualquer pertinência temática.

Relembro que nesse memorando, escrito pelo punho do secretário-geral, estavam em destaque duas “más notícias”; a primeira relacionada com o número de baixas contabilizadas pelos seus guerrilheiros no ataque a Ganturé, em 6 de janeiro de 1969, a segunda lamentando a inacreditável fuga do Daniel Alves, desertor do exército português, ocorrida em Dacar em finais de 1968 [o ponto abordado anteriormente].


2. – AS MÁS NOTÍCIAS DE AMÍLCAR CABRAL NO INÍCIO DE 1969

Em conformidade com a questão de partida, resgato agora a primeira “má notícia”, transcrevendo na íntegra a primeira página desse memorando.

“Depois de sair daí [passagem de ano de 1968], tive más notícias que são as seguintes:

No ataque do dia 6 [de janeiro de 1969] contra Ganturé [CART 2410], o qual corria muito bem, porque os camaradas atingiram o paiol [?], houve erro da nossa parte face aos aviões que intervieram. Tendo repelido a 1.ª vaga de aviões, os camaradas não se retiraram nem tomaram medidas de segurança, pelo que, duas horas depois, nova vaga de aviões os atacou quando estavam concentrados elementos de artilharia e de antiaérea. Perdemos 16 camaradas e 1 companheiro cubano [Pedro Casimiro], tendo mais 12 camaradas sido feridos. Um desastre devido a erro imperdoável, mas a guerra.

Estive na fronteira [Sul] com os camaradas, o moral não está mau e há que continuar a luta, tanto mais que o inimigo está mal. Mas há necessidade urgente de canhoneiros e morteiristas além de gente para AA [artilharia antiaérea]. Por isso tenho de vos pedir para mandarem urgente 9 dos canhoneiros formados na URSS e incluídos no Corpo de Artilharia. Devem também fazer vir urgente 6 dos morteiristas que eu disse para irem esperar em Madina [do Boé], porque não estavam incluídos no Corpo de Artilharia”.



Citação:
(s.d.), Sem título, CasaComum.org, Disponível http:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34366 (2016-11-8), (com a devida vénia).
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07197.166.017

Assunto: Perda de 16 combatentes do PAIGC e 1 cubano (Pedro Casimiro) na resposta aérea ao ataque desencadeado pela artilharia do PAIGC a Ganturé. Instruções para o destacamento de canhoneiros e morteiristas, entre outros.

Remetente: Amílcar Cabral
Destinatário: [Responsáveis do PAIGC]
Data: s.d.
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral.
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondência.


No centro das “más notícias” para o PAIGC, que Amílcar Cabral diz ter recebido, pois não presenciou nenhuma das duas ocorrências, emerge a pergunta sobre o modo como e quando delas teve conhecimento, uma vez que omite a respectiva fonte? Por outro lado, como funcionavam as comunicações em contexto de ataques, pois não tenho memória de alguma vez se ter referido a captura desse equipamento específico?

Admitindo a probabilidade de terem-se verificado alguns ruídos semânticos, entre o emissor e o receptor, na comunicação dos factos significantes relacionados com a primeira notícia [ataque a Ganturé], procedemos à triangulação de outros elementos obtidos em informantes privilegiados, nomeadamente nos arquivos da Fundação Mário Soares, nos depoimentos de alguns dos actores das NT envolvidos naquela missão [Força Aérea e Exército] publicados em blogues e na literatura consultada, tendentes a encontrar pontos convergentes vs divergentes relacionados com este caso. 


2.1 – O que diz a literatura [La Historia Cubana en África]

“No primeiro dia de janeiro de 1969 haviam começado as acções na Frente Sul contra o quartel de Tite. No dia 6 foi atacado por forças de infantaria e artilharia do PAIGC o quartel de Ganturé. Nesta acção participaram três cubanos. Nesse dia a aviação portuguesa entrou em combate e surpreendeu os guerrilheiros, destruindo-lhes vários equipamentos de artilharia e causando-lhes elevadas baixas: dezasseis guerrilheiros mortos e vários feridos.

Nessas baixas estavam os três cubanos que haviam participado na acção. O primeiro-tenente Pedro Casimiro Llopis, de 29 anos (1940-1969), morreu ao ser atingido pelo fogo da aviação, enquanto o primeiro-tenente Marcelino Araújo Pina e o soldado Plácido Veja Ramirez ficaram feridos durante o bombardeamento”. 

[In: Ramón Pérez Cabrera, “La historia cubana en África: 1963-1991: pilares del socialismo en Cuba” (edição de 2005), pp. 154/155, tradução do castelhano. [Consult em 25/11/2016. Disponível em


2.2 – Relato dos acontecimentos - Depoimentos da Força Aérea

A poucos dias de completar quarenta e oito anos, eis uma síntese [análise de conteúdo] sobre o ataque a Ganturé, elaborada a partir da narrativa intitulada «Um ataque com “olhos azuis”», da autoria do Tenente-General PilAv José Francisco Fernando Nico [José Nico], hoje na situação de reforma, publicada no blogue da “Tabanca Grande” [P15035-I Parte + P15038-II Parte] e no blogue “Operacional”, em www.operacional.pt.



Guiné - Imagem inserida no texto referente a um Fiat G-91 descolando de Bissalanca nos finais dos anos 60. “Em breve estará sobre o inimigo. «… O carrocel de ataque estava em marcha e com reacção ou sem reacção antiaérea tinha era que acertar com as bombas no alvo, o maior de todos os alvos que atacou durante toda a comissão. Não falhou como não falharam os outros…»”.



De referir que o Tenente-General José Nico foi piloto de aviões de caça, e entre 1967 e 1970 cumpriu uma comissão de serviço na Guiné. Neste âmbito, afirma que das muitas missões que desempenhou na Força Aérea Portuguesa, “a comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida”.Como introdução recorda que, mesmo não tendo tomado parte directa na acção de apoio às NT, por estar envolvido noutras missões, aquele dia 6 de janeiro de 1969 nunca o esqueceu, pelo muito que se comentou na Base [BA12] e pelos resultados obtidos, acabando por dar lugar à elaboração desta sua narrativa historiográfica.

Naquele dia 6 de janeiro de 1969, por volta das oito horas da manhã, a guerra no CTIG continuava bem viva com o PAIGC a ter a iniciativa de atacar, uma vez mais com os seus canhões Zis-2 AC 57 mm, o Aquartelamento de Gadamael Porto, sede da Companhia de Artilharia 2410 [CART 2410].

Da sede da Unidade é solicitado apoio aéreo a Bissau, com o comando-chefe a encaminhá-lo para a Base Aérea n.º 12 [Bissalanca] a fim de procederem em conformidade. Os dois pilotos da parelha de alerta [Fiat G-91], que naquele momento estavam a tomar o pequeno-almoço, logo apanharam o equipamento e meteram-se no jeep de apoio em direcção da linha da frente.

Os dois Fiat’s estavam prontos e configurados com tanques de combustível externo, 8 foguetes 2,75” e 4 metralhadoras 12,7 mm, sendo o ex-tenente Balacó Moreira um dos pilotos, o qual está na base de muita da informação obtida nesta missão. Esta teve início por volta das nove horas, uma hora após o início da flagelação, tendo constatado, depois, que o ataque visava objectivamente Ganturé, situado a curta distância de Gadamael Porto, onde se encontrava destacado o 4.º Gr Comb da CART 2410, para além de um pequeno núcleo populacional.

Numa primeira fase os rebentamentos estavam a ser espaçados e compridos, com as NT a responderem com morteiro 81 mm, operado pelo ex-furriel Luís Guerreiro [imagem ao lado]. A frequência/intensidade dos disparos do PAIGC ia aumentando com o correr do tempo mas sem consequências, pois as granadas passavam sobre Ganturé explodindo no contacto com o arvoredo existente muto para além da área do quartel.

Entretanto, a parelha de alerta que se encontrava em rota solicita mais informações do solo tentando sinalizar o local. Ao seguirem em direcção a Bricama, a cerca de dois km a SW de Gadamael Porto, qual não foi o espanto dos pilotos quando avistaram, no perímetro do antigo aquartelamento de Sangonhá, abandonado pelas NT em 29 de julho de 1968, num espaço completamente aberto e sem qualquer espécie de camuflagem, um numeroso grupo de indivíduos, que só poderiam ser os guerrilheiros responsáveis pelo ataque que se estava a verificar contra Ganturé.

Lá do alto era possível identificar a presença de três armas com rodado, sendo uma delas, colocada entre o perímetro do aquartelamento e a antiga pista, uma antiaérea ZPU-4 [tubos com quatro bocas] que, de imediato, abriu fogo contra os aviões [G-91] obrigando os pilotos a entrarem num circuito alargado para manter uma distância de segurança. No interior do perímetro do aquartelamento, no meio dos destroços das antigas instalações, estavam duas peças de artilharia com um cano relativamente comprido e na picada que saindo de Sangonhá se dirigia à Guiné-Conacri [talvez na direcção da base de Sansalé], viam-se algumas viaturas incluindo uma ambulância.

Esta situação levou o ex-tenente Balacó Moreira a confessar que da sua experiência em operações quase diárias no teatro de operações da Guiné nunca tinha dado de caras com o inimigo numa situação tão vulnerável. Porque os aviões da parelha de alerta não estavam equipados para intervir naquele cenário atípico, cujo sucesso impunha disparos a uma distância mais curta do alvo, o Cmdt da parelha decidiu abandonar a área e regressar de imediato à BA12 para que a situação fosse ponderada e tomada uma decisão adequada às circunstâncias. Tinham decorrido trinta minutos.


Citação:
(1963-1973), "Combatentes do PAIGC deslocando uma peça de artilharia anticarro", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43454 (2016-12-2) (com a devida vénia). (Será que está relacionado com este ataque?).


Ao decidir regressar à BA12, o Cmdt da parelha [capitão Amílcar Barbosa?] entrou em contacto com o CCOA [Centro Conjunto de Operações Aéreas] dando conta do que vira e que o ataque continuava a partir da pista de Sangonhá. Era necessário decidir o que fazer no menor espaço de tempo, uma vez que ao serem detectados, a guerrilha poderia desmobilizar e desaparecer rapidamente. […] 

Da reunião entre o tenente-coronel Costa Gomes, Cmdt do Grupo, e o Cmdt da Zona Aérea, coronel PilAv Diogo Neto, visando encontrar a melhor solução para o problema que tinham em mãos, as hipóteses encontradas de modo a dar sequência à missão ficaram reduzidas aos G-91 e a quatro pilotos: os dois da parelha de alerta e os dois comandantes, o do Grupo Operacional e o da Zona Aérea, respectivamente tenente-coronel Costa Gomes e o coronel Diogo Neto.

Entretanto, o comandante-chefe do CTIG já tinha sido informado do que se estava a passar e quis falar com o coronel Diogo Neto. Este de imediato deslocou-se ao Forte da Amura onde explicou ao brigadeiro Spínola o que lhe parecia ser o mais razoável e eficaz. Este tinha preferência para o emprego dos “páras”, mas depois de ouvir as explicações da Força Aérea deu o seu aval ao “plano de acção” apresentado. […] 

Depois dos mecânicos e do pessoal de armamento se terem esforçado para aprontarem os quatro aviões o mais rápido possível, eis que estes descolam por volta das onze horas, ou seja, duas horas após a primeira missão ou três horas em relação ao início do ataque a Ganturé.

Cumpridas as instruções técnicas dos ataques aéreos, escolhida a rota mais aconselhada no caso em presença e após passarem sobre o rio junto à povoação de Cacine, é que foi possível perceber alguma coisa do que se passava no solo. O tenente Balacó Moreira recorda-se que a quantidade de pessoas que avistou na zona do antigo aquartelamento de Sangonhá era muito menor do que da primeira vez (duas horas antes) e que havia viaturas em movimento. Contudo, “era impossível falhar um alvo daquele tamanho”.

Na sequência do carrocel de ataque e dos bombardeamentos efectuados por cada um dos pilotos, os quatro aviões reencontram-se à vertical do objectivo, circulando à altitude de ataque. Em baixo, Sangonhá ficara obscurecida pelo fumo e pelos detritos projectados pelas explosões dando a impressão, lá do alto, que tudo tinha sido arrasado, pois nada parecia mexer.

Porque nenhum dos aviões tinha sobreposto o tiro ao dos outros e as dezasseis bombas tinham produzido uma cobertura relativamente densa, não era possível determinar se o ataque tinha sido eficaz em termos de baixas ao inimigo. Depois de ficarem sem armamento nada mais havia a fazer e o Cmdt da formação deu ordem para abandonar a área e regressar à BA12.


2.3 – O reconhecimento a Sangonhá – CART 2410

A 9 de janeiro de 1969, três dias após o ataque a Ganturé, um efectivo da CART 2410 constituída por cerca de cem elementos, entre militares, milícias e caçadores nativos, executou um reconhecimento a Sangonhá, comandado pelo ex-Alf. Mil. Albino Rodrigues, Cmdt do 1.º Gr. Comb., a qual contou com apoio aéreo em determinados momentos da sua marcha apeada.

Ao longo do percurso até Sangonhá não foram detectados trilhos novos, nem foram encontrados os habituais invólucros de granadas de morteiro ou de canhão s/r que os guerrilheiros deixavam espalhados no terreno após as flagelações. Após terem passado o vau do rio Queruane/Axe, a uns duzentos/trezentos metros à frente, numa pequena elevação do terreno, foram encontrados os restos de uma fogueira, feita durante a noite, junto a uma árvore alta com vestígios de ter sido utilizada como posto de observação. 

Três ou quatro metros depois encontraram fio telefónico que foi seguido até ao respectivo carretel vazio. Por isso se concluiu que naquela árvore teria estado um observador avançado munido de linha telefónica para orientar o tiro dos canhões AC estacionados em Sangonhá.

Em determinado momento da sua progressão, que consideraram como um sinal de estarem próximos do objectivo foi dado pela grande quantidade de abutres, uns pousados nas árvores, outros voando em círculos. A este sinal, um outro se adicionou transmitido pelo cheiro nauseabundo de corpos em decomposição. A partir daquele momento o avanço foi feito com muitas cautelas até que descobriram algo que nunca pensaram encontrar.

Sobre esse macabro achado, o ex-Alf. Mil. José Barros Rocha, Cmdt do 2.º Gr Comb., e membro da nossa Tabanca Grande,  refere o que viu e sentiu da seguinte forma: “na antiga pista de Sangonhá, armas destruídas e pedaços de corpos de negros e brancos e treze sepulturas. Uns dias depois tivemos a informação de trinta e seis mortos confirmados e muitos feridos. (…) O aspecto do local era medonho! A terra, cuja cor natural é avermelhada, tinha a cor cinza! O intenso cheiro a putrefação! (…) Recolhemos três carretéis carregados de fio telefónico e um vazio, uma mina A/P, uma ferramenta de aperto de rodas, invólucros de granada de canhão AC 57 mm, meia pistola, munições intactas da AA de calibre 14,5 mm, bonés, chapéus tipo colonial, uma bandeira, uma caixa de ferramenta, e algumas bugigangas…”.

Depois de ter permanecido em Sangonhá cerda de duas horas, a força chegou a Gadamael por volta das três horas da tarde, sem mais ocorrências.


3. – CONCLUSÕES

Em primeiro lugar, aproveito para vos confidenciar de que desconhecia, em absoluto, esta história (como desconheço, seguramente, outras que ocorreram antes, durante e depois da minha presença no CTIG). Não podemos ter a pretensão de, alguma vez, ficarmos ao corrente de tudo o que aconteceu naquele território durante os treze anos do conflito. Daí a partilha de memórias que todos os dias se dão a conhecer neste espaço plural.

Quanto ao que nos propusemos analisar, são convergentes os relatos das NT e o escrito por Amílcar Cabral, com relevância para a referência às duas missões efectuadas pela Força Aérea [G-91] e os intervalos entre cada uma delas [duas horas].

Sobre o número de baixas, um assunto sempre difícil de abordar ou quantificar, constata-se uma dupla situação. Os referidos por Amílcar Cabral são convergentes com os publicados no livro de Ramón Cabrera. Estes, quando comparados com o depoimento resultante do reconhecimento a Sangonhá [CART 2410], existem diferenças, uma vez que foi referida a existência de treze sepulturas [recentes ou antigas?] e ainda pedaços de corpos de negros e brancos espalhados no solo. Mais tarde, por informação exterior, foram confirmadas trinta e cinco mortes.

No que concerne a baixas entre o contingente cubano, são referidas três, a totalidade dos elementos envolvidos no ataque, ainda que no texto se indique, também, tratar-se de um morto e dois feridos [mas que seriam muito graves, vindo a falecer].

Neste sentido, e por curiosidade, apresentamos um quadro das baixas contabilizadas no contingente cubano, entre 3 de junho de 1967 e 6 de janeiro de 1969 [18 meses]. Estes números foram escrutinados a partir do livro acima citado. 

Quadro estatístico de JA

Fonte: Adapt de Ramón Pérez Cabrera, op.cit.

Por último, resta-me levantar a seguinte hipótese:

Será que o pedido de nove canhoneiros e seis morteiristas “requisitados” no memorando, num total de quinze elementos, destinavam-se a substituir aqueles que tombaram neste ataque a Ganturé? 

Com um forte abraço e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

25 de novembro de 2016. > Guiné 63/74 - P16758: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (1): Amílcar Cabral e os desertores portugueses: os casos dos 1ºs cabos Armando Correia Ribeiro e José Augusto Teixeira Mourão

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16721: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XII: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [III]: o encontro, em Boké,com o médico português Mário Pádua (Jorge Araújo)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > "Guerrilheiro recebendo assistência médica" (Reprodução com a devida vénia...)

Citação:
(1963-1973), "Guerrilheiro recebendo assistência médica", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43678 (2016-11-8)









Guiné-Conacri > Boké > 1968 > Aspetos da  assistência médico-cirúgica no hospital do PAIGC por onde passaram médicos cubanos como  o dr. Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), mas também o português dr. Mário Pádua (que não era cirurgião mas patologista clínico)


Fotogramas do filme "Madina Boe" (Cuba, 1968, 38'), do realizador José Massip (1926-2014), obtidas a partir da função "print screening" do teclado do PC e da visualização de um resumo, em vídeo (28' 22'') , disponibilizado no You Tube, na conta "José Massip Isalgué". O documentário foi carregado no You Tube no dia da morte do cineasta (ocorrida em Havana, em 9/2/2014). O documentário chama-se "Amílcar Cabral" (e pode ser aqui visualizado) (Imagens reproduzidas com a devida vénia).



Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona.


1. INTRODUÇÃO

Depois de na narrativa anterior [P16662]  termos efectuado uma análise histórica superficial (entre o real e a ficção) ao modo como Amílcar Cabral [1924-1973] abordou /utilizou a morte em combate do cmdt Domingos Ramos, um quadro superior da estrutura militar do PAIGC e que fizera a sua formação inicial no exército português, ao concluir o 1.º Curso de Sargentos Milicianos, realizado em Bissau no ano de 1959, retomamos a publicação do nosso projecto de investigação tendo por título «d(o) outro lado do combate». (*)

Este tem a sua génese na divulgação de algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969.

Com efeito, o presente texto corresponde ao terceiro fragmento do diálogo estabelecido com o médico militar Virgílio Camacho Duverger [1934-2003], sendo a terceira e última entrevista no alinhamento do livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch. Trata-se de uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação.
[Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em:
http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf ]

Uma vez que estamos perante uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurámos respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendemos não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço histórico ao que foi transmitido, com recurso ao vasto espólio disponível no nosso blogue e a outras referências retiradas da Net, em particular da Casa Comum, Fundação Mário Soares.

Por outro lado, e tendo em consideração as questões formuladas pelo entrevistador, estas permitiram-nos fazer a ligação com outros aspectos intrínsecos ao conflito, de que são exemplos concretos a falta de recursos básicos e as deserções militares.


2. O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [III]

Virgílio Camacho Duverger, cujo nome de guerra era “Vítor Córdoba Duque”, nasceu a 29 de novembro de 1934, em Guantánamo, chegando à Guiné-Conacri nos primeiros dias de junho de 1966, a seis meses de completar trinta e dois anos e sete anos após ter ingressado no Exército Rebelde como técnico de saúde.

Depois de ter assistido à morte do cmdt da Frente Leste, Domingos Ramos, ocorrida em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, faz agora cinquenta anos, o dr. Virgílio Duverger é transferido com destino à Frente Sul, por troca com o dr. Rómulo Soler Vaillant, que entretanto adoecera. Porém, durante essa permuta, é nomeado chefe do Hospital Militar de Boké, aonde se manteve durante dois meses.

Seguem-se mais alguns desenvolvimentos revelados durante a entrevista dada pelo cirurgião cubano Virgílio Camacho Duverger.

- Entrevista com 22 questões [Parte 3 > da 13.ª à 15.ª] - “Testemunhos antes da morte”

[A nota introdutória é da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificando, pelo desenlace à posteriori, o titulo dado à entrevista: «testemunhos antes da morte»].

O diálogo com o médico Virgílio Camacho Duverger [1934-2003] foi realizado pelo jornalista e historiador cubano Hedelberto Blanch numa tarde de janeiro de 2003, num pequeno gabinete do Hospital [Clínico Quirúrgico] Hermanos Ameijeiras, aonde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras.

Viria a falecer dez meses depois vítima de enfarte do miocárdio.


(xiii) Como era o trabalho em Boké?

Em Boké [em junho de 1967] já existia uma base hospitalar com quinze camas, com uma pequena sala de operações. Depois chegou o dr. Raúl Currás [Regalado] (morreu num acidente em Angola). Ele era médico interno e tinha de fazer em certas ocasiões de anestesista. Eu tinha que administrar todos os medicamentos e material de cirurgia aos dois hospitais [de mato] da Frente Sul, no interior da Guiné-Bissau. Nestes lugares começou-se a atender a população civil e os casos mais frequentes eram as hérnias.

Chegou o momento em que houve que limitar a entrega de materiais, sobretudo de cirurgia, pois corria-se o risco de poderem fazer falta para os combatentes feridos, por se terem esgotado. Recordo dois casos que operámos e tivemos que os coser com linha doméstica. Para as operações cirúrgicas utilizávamos a técnica intravenosa Pentotal sódico na veia quando era necessário, e se não, usava-se anestesia local.


(xiv) Permaneceu muito tempo em Boké?

Cerca de dois meses e depois passei a um dos hospitais [no mato] na Frente Sul, aonde as acções de combate eram em maior número dos que as na Frente Leste devido à quantidade de aquartelamentos portugueses. 

Desde o local aonde ocorriam os combates até ao hospital, às vezes demorava-se três ou quatro dias para se transportar os feridos e estes chegavam em muito más condições. Decidiu-se, então, organizar uma pequena enfermaria aonde se podiam fazer algumas operações, embora tivéssemos muito pouco material como fio cirúrgico e soros.


(xv) Recorda algum caso interessante?

A escassez era muita e por isso tínhamos de inventar. Em certa ocasião, recordo-me que a um paciente com uma ferida no abdómen,  tive de lhe fazer uma pequena ressecção abdominal, e a recuperação foi com água de coco, pois não tínhamos soro para fazer venóclise [método para infundir líquidos dentro das veias], e plasma muito menos. Todos os casos evoluíram perfeitamente porque os africanos são virgens não só em relação aos antibióticos como também aos restantes medicamentos.

Outro caso que recordo e que tinha lido nos livros, foi um paciente que chegou com uma ferida torácica perto da região axilar [de axila]. Aí suspeitámos sobre o que havíamos lido, pois a explosão podia ter causado dano em algum vaso importante e estivemos vigilantes na crosta, produto da lesão produzida pela explosão do projéctil, pois se caísse poderia dar lugar a um sangramento agudo. Assim aconteceu, mas como estávamos atentos, o acudimos a tempo. Não tínhamos os instrumentos necessários, nem sangue nem plasma. Foi um dos momentos mais angustiantes por que passei, pois com a mão esquerda tinha o vaso agarrado, comprimindo-o, ou seja, eu tinha, praticamente, numa mão a vida desse combatente, e na outra o instrumental, que não era o adequado, tentando controlar a hemorragia.

Parei e depois esperei, pois o que estava descrito na literatura de consulta era que deveria esperar e observar por onde poderia gangrenar [morte local dos tecidos], uma vez que foi na artéria axilar que leva a nutrição fundamental ao membro superior.

Naquele caso, teve-se que amputar ao paciente, nada mais que uma parte da mão. Coisa rara, pois na maioria dos casos há que amputar o braço ou o antebraço. Era guineense, e fiz-lhe uma necrose distal da mão, ou seja, era uma evolução satisfatória naquele sentido.

Continua…


3. Nota de Jorge Araújo sobre o médico português Mário Pádua

Entretanto, este pequeno grupo de médicos cubanos, em Boké, recebe, também nesta data, em julho de 1967, um reforço inesperado para a sua equipa multidisciplinar com a chegada, agora, de um português - o dr. Mário Moutinho de Pádua – que seis anos antes, em 1961, ano zero da que se convencionou chamar de «Guerra Colonial» ou «Guerra do Ultramar», decidira desertar da sua unidade militar [, BCaç 88] em Angola, optando por aderir aos objectivos dos movimentos africanos de oposição e resistência às colónias europeias, onde o PAIGC acabaria por contar com a sua colaboração.

Dos diferentes itinerários e das muitas experiências vividas ao longo de cada um deles, o dr. Mário Moutinho de Pádua decidiu publicar em livro as suas memórias a que deu o título de «No Percurso de Guerras Coloniais, 1961-1969», Edições Avante, 2011. Trata-se de um tema já abordado no Blogue da iniciativa do camarada Beja Santos que nos presenteou com as suas esclarecedoras «Notas de Leitura» [P10184].

Deste trabalho divulgado no poste supra, tomámos a liberdade de citar, com a devida vénia, alguns fragmentos, com destaque para os elementos sócio históricos que considerámos relevantes, justamente para enquadramento da presente narrativa.

Em primeiro lugar, é de referir que este cidadão português, natural de Coimbra, filho de um conhecido e respeitado advogado e notário com escritórios em Luanda nos anos cinquenta/sessenta do século passado, ficará na história da Guerra Colonial/Ultramar como sendo o primeiro oficial do exército português [alferes miliciano] a desertar em Angola, em outubro de 1961 [portanto, seis meses após o início do conflito], na companhia do [1.º] Cabo Alberto Pinto, para se juntar [em?] [não conseguimos confirmar a opção deste segundo militar] aos movimentos de libertação. [http://recordacoescasamarela.blogspot.pt/2012/07/o-passado-presente-agora-novo-jornal.html].

Para melhor entendimento do percurso narrado pelo autor sobre as suas experiências, eis uma Sinopse [https://www.wook.pt/livro/no-percurso-das-guerras-coloniais-1961-1969-mario-moutinho-de-padua/11518509]:

“O autor foi o primeiro oficial português a desertar em Angola, em 1961. Neste livro narra a sua impressionante experiência a seguir à deserção, nomeadamente as prisões e torturas de que foi alvo no Congo, a sua passagem pela [ex] Checoslováquia e o seu desencanto com vários aspectos do “socialismo real”, a sua participação na construção de uma Argélia recém-libertada do colonialismo, e por fim a sua contribuição como médico na luta travada pelo PAIGC na Guiné”.

Quanto à sua colaboração com o PAIGC, ela inicia-se com a sua chegada em 1967 a Conacri [um ano depois de ter ocorrido semelhante situação com o primeiro contingente de “internacionalistas” cubanos, do qual faziam parte nove médicos]. As suas primeiras actividades clínicas acontecem no Lar do Combatente, em Conacri, onde trata os guerrilheiros feridos e doentes.

Decorrido algum tempo [pouco] sente a necessidade de realizar outras tarefas mais consentâneas com as suas habilitações académicas, vindo a concretizar esse objectivo poucas semanas depois com a sua transferência para o Hospital de Boké [julho de 1967]. Aí trabalha em cooperação com a equipa de médicos e enfermeiros cubanos, aonde os recursos clínicos eram muito limitados.

Essas lacunas estavam já identificadas há algum tempo como prova o telegrama abaixo dirigido, em 11 de abril de 1967, ao «Comité de Solidariedade Afro-asiático Thallmann Platz, em Berlim», por Amílcar Cabral.

Com tradução do francês, eis a sua transcrição na íntegra:

Telegrama ao Comité de Solidariedade Afro-asiático Thallmann Platz 8/9 Berlim

“Face situação muito grave motivo falta total medicamentos colocando perigo vida vários combatentes feridos e elementos população vítimas bombardeamentos lançamos premente apelo envio urgente quantidades medicamentos possíveis nomeadamente álcool, mercurocromo, curativos, algodão, antibióticos, antipalúdicos (antimaláricos), antidiarreico, soro, leite STOP Confiante vossa solidariedade esperamos confirmação expedição endereço PAIGC BP [caixa postal] 298 Conacri STOP Fraternais agradecimentos

Amílcar Cabral
Secretário-geral do PAIGC
BP 298 Conacri, 11 abril 1967"




Citação: (1967), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34963 (2016-11-8)

No âmbito da sua missão, [certo dia?] o dr. Mário Pádua desloca-se a uma base guerrilheira no interior do território guineense [Frente Sul], aonde tem contacto com a enfermaria aí existente. Era uma base com uma dezena de cabanas enquadradas e camufladas pelas copas de grandes árvores, e aonde havia uma sala de operações. Ao observar o seu interior ficou surpreso com a extraordinária limpeza do solo, para além de existir uma enfermeira afugentando as moscas durante as intervenções cirúrgicas.

Passadas algumas semanas abandona Boké [agosto de 1967], sendo transferido para Ziguinchor, no Senegal, e colocado no Lar do Combatente, que havia sido criado há pouco tempo.

Os meios postos à disposição do PAIGC, como já foi referido anteriormente, eram rudimentares, onde nas suas bases os guerrilheiros passavam toda a casta de provações e muitas vezes subalimentados, e onde os combatentes feridos estavam em primeiro lugar. Refere que estes logo que desembarcavam assistia-se ao espectáculo de feridas enormes, abertas, que já não se podiam suturar, dado o intervalo de tempo que decorrera após a lesão [alguns dias].

(...) "Eu [Mário Pádua] e os enfermeiros guineenses, meus colaboradores, limpávamos os tecidos infectados com água oxigenada, cortávamos os tecidos mortos e terminada a limpeza cirúrgica tentávamos aproximar os bordos esticando a pele com adesivo. Sucedeu, em feridas fundas e com pequeno orifício de entrada, que quando retirava a sonda exploratória, me vinha ao nariz o cheiro inconfundível da gangrena gasosa.

"Um dia comecei a tratar um soldado que tinha o braço direito muito destroçado embora não sangrasse. Estas limpezas cirúrgicas em geral demoravam horas. Este doente não se queixava de dores. Quando terminei, pele, músculos, vasos e nervos de um dos membros superiores tinham praticamente desaparecido. Apenas restavam os ossos completamente descarnados. Nestas circunstâncias só restava a amputação." (...)


Refere ainda que os guerrilheiros passavam literalmente fome, para além de serem anémicos. No Lar de Ziguinchor momentos houve em que a alimentação estava reduzida a arroz. Por isso valoriza o excessivo sofrimento dos combatentes.

Acrescenta que “quando os feridos demoravam dias para chegar a Ziguinchor, as larvas fervilhavam nos tecidos expostos. O que fazia parte da rotina da guerra e me deixava estupefacto era o transporte dos feridos e doentes por zonas flageladas, vinham em macas fabricadas com troncos. O esforço físico exigido dificilmente se pode conceber”.

Entretanto, durante a sua presença em Ziguinchor, o dr. Mário Pádua contabiliza duas experiências únicas, estas relacionadas com dois militares portugueses que, quis o destino, ali foram parar, por motivos diferentes: um por deserção, estratégia, improvidência, fuga voluntária para a prisão ou outra razão difícil de provar [que só o próprio saberá qual foi], o outro para sobreviver aos ferimentos em combate depois de ter sido capturado por grupo de guerrilheiros, o que veio a verificar-se… e ainda bem!

Capa do livro "Desertor ou patriota"
O primeiro, de nome David Ferreira de Jesus Costa [David Costa], soldado da CART 1660 (1967/1968), que um dia [17 de maio de 1967] decidiu, consciente ou inconscientemente, pôr a sua vida em risco ao abandonar, pela calada da noite, o quartel de Mansoa, vindo a ser localizado na mata por elementos do PAIGC, que o convidaram a acompanhá-los depois de ele lhes ter dito de que tinha fugido do exército português. Dirigiu-se ao Morés, seguindo-se outras bases, talvez Maqué, Naga e Sambuia, até chegar a Ziguinchor, provavelmente algumas semanas depois.

Esta história foi contada pelo próprio e publicada em livro com o título «Desertor ou Patriota», Editora Ausência, 2004, e que constava já do espólio de memórias do Blogue, por iniciativa do camarada Virgínio Briote [P3371, de 2008], do camarada Beja Santos na sua tradicional e importante coluna «Notas de Leitura» [P6776, de 2010] e do camarada Jorge Lobo, companheiro do David Costa na CART 1660 [P7351, de 2010].

Este episódio, ao ser recentemente resgatado como tema em debate da nossa tertúlia “desertores” [P16686], originando novos comentários com diferentes perspectivas, levou-me a adiar a conclusão desta narrativa, alterando-a, inclusivamente, para não ser repetitivo.

Da investigação realizada na Casa Comum, Fundação Mário Soares, encontrei umas notas de Amílcar Cabral, escritas nos primeiros dias de janeiro de 1969, onde refere:

“Depois de sair daí [passagem de ano de 1968 na Frente Sul], tive más notícias que são as seguintes:

A priemrias  relatuva a baixas do PAIGC, na sequência do ataque a Gantur+é, em 6/1/1969… [a desenvolver em próxima narrativa].

“A segunda má notícia é que o Daniel Alves [será que era o nome de guerra de Daniel Costa, ou estaremos perante outro desertor com o mesmo nome próprio?] conseguiu enganar a malta e fugiu em Dakar. É um facto banal numa luta (deserção ou traição), mas pode complicar-nos muito a vida em relação aos amigos. Vamos ver como é que as coisas se passarão, mas é pena que nos tenhamos deixado enganar dessa maneira, tanto mais que sempre desconfiámos do Daniel [?] que a estas horas já deve estar com os tugas. […] Quanto ao Daniel [?] até pode-nos servir de propaganda, mas o diabo são os amigos que têm medo de tudo”. […]



Arquivo Amílcar Cabral > Documento, s/d, de Amílcar Cabral,  em que dá a notícia do desaparecimento, em Dacar, do  desertor português Daniel Costa...

Citação:
(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34366 (2016-11-8)

O segundo, de nome Manuel Fragata Francisco [ou Manuel Fragata], soldado da CART 1690 [1967/1969], sediada em Geba, ao participar na “Op Invisível”, realizada a 19 de dezembro de 1967, na mata do Óio, é gravemente ferido, sendo aprisionado e levado para a base de Sinchã Jobel. Desta base seguiu depois, certamente, por Sará, Morés, Maqué, Naga e Sambuia, em direcção ao Hospital de Ziguinchor, onde foi recebido e tratado pelo dr. Mário Pádua.

Sobre esta ocorrência, o camarada A. Lopes Marques refere nos [P45 + P15202} que o cmdt do PAIGC, Agostinho Cabral de Almada, com nome de guerra “Gazela”, lhe contou que o soldado Fragata foi atingido pelos estilhaços de uma granada de RPG2, tendo ficado “furado” e, por consequência, impossibilitado de caminhar. Ficou prisioneiro, e levado de maca [talvez de troncos onde, certamente, a sua dor e o sofrimento seriam constantes em cada batimento cardíaco] desde a mata do Óio até ao Hospital de Ziguinchor, em Casamansa, Senegal [aonde terá chegado muito perto do Natal de 1967].


Mapa da Guiné-Bissau > Indicam-se os prováveis itinerários utilizados pelo David Costa (a vermelho) e o Manuel Fragata (a azul) até Ziguinchor.

Aí permaneceu cerca de dois meses e meio em recuperação, sob os cuidados do dr. Mário Pádua, até que em 15 de março de 1968 foi entregue à Cruz Vermelha do Senegal e repatriado, por via aérea, para Portugal, onde ficou internado no anexo do Hospital Militar Principal, na Rua Artilharia Um, em Lisboa.


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > 15 de março de 1968 > Entrega de prisioneiros portugueses à Cruz Vermelha do Senegal (Reprodução com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44075 (2016-11-8)


Instituição:
Fundação Mário Soares

Pasta: 05224.000.038Título: Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal

Assunto: Osvaldo Lopes da Silva durante a entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal, em Dakar [Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco].

Data: Sexta, 15 de Março de 1968
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias
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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16437: Memória dos lugares (343): A CART 494, que eu tive a honra de comandar, foi a primeira unidade de quadrícula em Gadamael (de 17/12/63 a 28/5/65) e em Ganturé (de 21/2/64 a 28/5/65)... Fomos também nós quem construiu o primeiro aquartelamento de Ganjola, para onde fomos destacados, de 17/9 a 15/12/63 (Coutinho e Lima, cor art ref)



Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 494 (de 17/12/1963 a 28/5/1965) > A equipa de futebol... Em 21/2/1964, o 3º Gr Com instalou-se em Ganturé em 21/2/1964.


Guiné > Região de Tombali > Setor de Catió > Ganjola  > CART 494 (de 17/9/1963 a 15/12/1963) >  O primeiro aquartelamento


Fotos (e legendas): © Alexandre Coutinho e Lima  (2013). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem do nosso camarada [Alexandre] Coutinho e Lima, cor art ref, ex-cap art cmdt da CART 494, Gadamael e Ganturé, 1963/65; adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné, 1968/70;  e ex-major art, cmdt  do COP 5, Guileje, 1972/73), 



Data: 29 de agosto de 2016 às 19:20
Assunto: P 7186 - 28 OUT 2010 - Memória dos lugares (105): Gadamael e as suas unidades de quadrícula


Caro Luis

Antes de mais um grande abraço, pois há bastante tempo que não temos tido contacto.

Aproveitando este magnífico tempo, aqui no Norte, tenho navegado no nosso blogue. revendo alguns aspectos relativos a Guileje e Gadamael. Hoje "esbarrei" no poste  P7186 do já longínquo ano de 2010.(*)

Nele é referido, com alguma incerteza, que a CART 1659 (67/68), poderá ter sido a 1ª. Companhia de quadrícula em Gadamael. Ora isso não corresponde à verdade. Com efeito, a primeira Companhia, naquela localidade, foi a CART 494, que eu tive a honra de comandar.

A Companhia chegou a Bissau em 22 de julho de 1963 e desde 17 de setembro até 15 de dezembro de 1963  esteve a passar umas "férias" em Ganjola (Norte de Catió, onde estava a sede do BCAÇ 356). O PAIGC ficou "tão contente", com a nossa chegada, que nos proporcionou, no próprio dia da chegada uma sessão de fogo de artifício diurno, que começou pelas 16h30; como certamente
pensaram que nós não tínhamos ficado totalmente satisfeitos, repetiram com uma sessão nocturna, por volta da 22g30.

A CART 494 foi a primeira tropa em Ganjola, onde construíu o primeiro aquartelamento, partindo do nada.

Transportada em 2 batelões (um motor) civis da Casa Gouveia (CUF) e no navio motor BOR da Armada, a Companhia fez a viagem de Ganjola para Gadamel, nos dias 15 e 16 de dezembro de 1963, tendo desembarcado em Gadamael Porto em 17.

Em 21 de fevereiro de 1964 o 3ª Grupo de Combate da Companhia ocupou a localidade de
Ganturé,  ficando assim a Companhia responsável pelos dois aquartelamentos, os quais construiu, de raiz.

Em Gadamael, construiu também a pista de aviação,apenas com pá e picareta e algumas cargas de trotil para desfazer os inúmeros morros de baga baga.

A CART 494 foi rendida em Gadamael / Ganturé, em 28 de maio de 1965, pela CCAÇ 798.(**)

No historial das Unidades que estiveram em Gadamel, falta preencher o período de 65 a 67.

Um abraço amigo,

Coutinho e Lima

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7186: Memória dos lugares (105): Gadamael e as suas unidades de quadrícula (Luís Graça / Daniel Matos)


(**) Último poste da série > 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16376: Memória dos lugares (342): Galomaro e as suas lavadeiras (António Tavares, ex-Fur Mil SAM do BCAÇ 2912)