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sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3266: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (46): Chegou o meu periquito


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Operação Macaréu à Vista - II Parte

Episódio XLVI > CHEGOU O MEU PERIQUITO!

por Beja Santos

A última visita a Mansambo e ao Xitole

Pela primeira vez ao longo destes dois últimos anos, fomos destacados para fazer a segurança de um aquartelamento, neste caso o de Mansambo, a nova Companhia vai partir para uma operação, ficamos aqui de atalaia. Serão dois dias suaves, não se ouvirá nenhum ruído da guerra, quem foi e quem regressará não terá contacto nem verá vestígios do inimigo. Como se sabe, Mansambo é um quartel feito de raiz, não tem quaisquer ligações com tabancas locais, para nós é curioso, todas as semanas vamos até Samba Juli ou Sinchã Mamajã ou até Sare Adè, no regulado de Badora, por razões de recenseamento de armas, transporte de doentes ou armas ou comida. Ir para Mansambo a partir de Samba Juli ainda é um estirão acima de 15 quilómetros, um Grupo de Combate montou segurança do lado do Corubal e nós, a partir de Samba Juli, picámos até ao pontão do rio Quêuol. Mal sabíamos, quando regressámos naquela tarde a Bambadinca que na manhã seguinte iríamos numa coluna ao Xitole, desta vez não houve poeira só terrenos alagadiços, viaturas empanadas, chuvas inclementes. Ainda não sei, foram as últimas viagens à região do Corubal.

De resto, estamos entregues à rotina, a tarefa predominante é a segurança na estrada Xime-Bambadinca, mas não estão excluídas as emboscadas nocturnas no Bambadincazinho, noites na ponte de Udunduma e os patrulhamentos nos Nhabijões. Dividimos as nossas tarefas com os grupos de combate da CCaç 12, o relacionamento com a gentes do BArt 2917 é amistoso, mas a vadiagem que levamos impede as aproximações. Desse tempo encontro um estranho registo no meu caderninho viajante que não resisto a transcrever, com leves adaptações: “O novo batalhão tem capelão, chama-se Arsénio Puim. Pedi-lhe para me confessar, pôs-me a mão no ombro e disse-me com voz branda que Deus me perdoava todos os meus pecados, a mourejar como nós mourejávamos, Deus Pai fazia o seu chamamento directo e automático a partir do inferno em que nos encontrávamos. Ou ele é um santo ou encontra em mim um halo de santidade o que é que mudou na misericórdia de Deus?”.

Algumas notas sobre uma Guiné desconhecida ou exótica

D. Violete impõem-me um ritmo avassalador para desencontradas leituras, tudo a pretexto que os livros emprestados têm que ser rapidamente devolvidos, quem os empresta exige-os prontamente de volta, são papéis raros ou até únicos. Felizmente, estão ultrapassadas as advertências de não os manchar com dedadas de gordura ou saliva. Um dos seus alunos procurou-me enquanto preparávamos a coluna para o Xitole dizendo: “A professora está a ver o que lhe estou a dizer. Leia o que tem a ler que ela lhe emprestou e encontre-se com ela rapidamente”. Dito isto, virou-me as costas e fugiu. Procedimentos como estes nada têm de extraordinário. Mamadu Soncó, menino a caminho da adolescência, dorme no nosso quarto, tem umas mantas ao pé da minha cama e todos os dias me pergunta quando é que vai estudar para Portugal, se vamos de avião ou de barco, desisti de explicações. Quando estou a ler ou a escrever senta-se ao meu lado e procura repetir o que eu faço ou então faz perguntas: “Porque é que lês livros tão velhos?”. Ele tem razão, estou a ler o panfleto “Acudam à Guiné” datado de 1908 e dirigido a Sua Majestade El-Rei, aos Deputados da Nação, ao Povo Português. O governador Muzanty está debaixo de fogo, de vez em quando paro em frente à sua estátua, em Bafatá, foi esculpido como homem enérgico e olhar impoluto, mas o panfleto desanca-o: “Que o governador Muzanty iniciou a sua administração entregando, sem concurso público, todos os fornecimentos do Estado ao cunhado do célebre Corte-Real Pires, secretário-comerciante, que inventou um estado de sítio em Badora com o único fito de expulsar os negociantes de Bambadinca, testemunhas incómodas das suas ambições (...) que em Bambadinca, com a crueldade de Nero, mandou matar e mesmo trucidar gente pacífica, chegando a crueldade a ponto de separar um homem em duas metades, que colocava homens amarrados às arvores e lhes faziam apontaria a um e um no meio de gargalhadas, isto a dois passos de Bambadinca no lugar de matança denominado Xime Pequeno em combinação com o bandido Adulai (...), que autorizou o administrador a cobrar para si emolumentos sobre a cobrança de dívidas para exercer as maiores prepotências sobre os que hesitavam em pagar”. Resta saber qual o nível de verdade e mentira sobre o comportamento deste Muzanty que derrotou e humilhou Infali Soncó.






Estes jagudis a devorar o resto de uma gazela... como nos recordamos, o jagudi é abominável, vem ao sangue, quando tínhamos ataques em Missirá sabíamos dos mortos e feridos do lado PAIGC quando os víamos a pairar nas redondezas. O desenho foi publicado em «O Mundo Português», 1936. Era uma revista de cultura e propaganda, de arte e literatura coloniais, editada pela Agência Geral das Colónias e pelo Secretariado de Propaganda Nacional.


Outra leitura foi “Babel Negra, etnografia, arte e cultura dos indígenas na Guiné”, de Álvaro Landerset Simões, obra de 1935, uma narrativa só possível no tempo em que o africano era exibido como bicho exótico O general Norton de Matos escreve no prefácio: “O autor deste livro é um colonial. Classifico-o de colonial porque revela no seu trabalho as qualidades essenciais: a vocação que o levou a África, a maneira como se deixou envolver pelo meio estranho em que quis penetrar, sem se deixar dominar por ele, sem perder as qualidades de colono portador e iniciador de uma civilização superior àquela que foi encontrar”. É um livro bonito, escrito em toada quase jornalística, pinceladas sem rigor, mas abonitando com exotismo as diferentes descrições sobre os povos da Guiné. Oiçamo-lo a falar dos fulas: “Variadíssimos cruzamentos que sofreu originaram certa diversidade de tipo, desde o de cor preta, nariz achato e carapinha, ao de cor clara, nariz aquilino e cabelo corredio... A mulher de feições correctas e formas perfeitas pode ter-se pela mais bela de quantas possui a Guiné. Adorna-se graciosamente com interessantes peças de ourivesaria mandinga. Rapa o cabelo por cima da testa; e da nuca fá-lo convergir, em finíssimas tranças, ao alto da cabeça onde amarra amuletos, depois de enfeitado com moedas de prata, contas doiradas e fitas de pano azul”. É na verdade muito kitch mas é muito melódico e, para sermos francos, até corresponde à verdade, fui devolver estas obras à D. Violete, ela promete mais, depois de regressar de Sonaco.







Veio na última encomenda que recebi de Ruy Cinatti, em Julho de 1970. A capa é dele, trata-se do pórtico da sala de Xerxes, representação vertical de uma audiência. Cinatti publicara aqui a sua reportagem sobre Persópolis, uma viagem que o deslumbrara ao antigo Império Persa.. Pode ler-se: «De Chiraz a Persépolis, atravessando a porta de Isfahan, dura uma hora por estrada alcatroada que rodeia colinas nuas, segue uma linha recta por extensas planuras e ladeia escarpas que anunciam montanhas ao tempo coroadas de neve (...) De Persépolis a Chiraz percorrem-se cerca de 60 km. A paisagem é a mesma, talvez menos nítida porque o diálogo visual se calou...»


Entregam-me o correio, abro uma encomenda do Ruy Cinatti. Vem lá a revista Geographica, é um número de Outubro de 1965, na capa aparece o pórtico da sala de Xerxes em Persépolis, fotografia de Cinatti, no interior vem o relato da sua viagem às ruínas desta sumptuosa cidade do poderoso império persa. Tudo bem ilustrado por ele, delicio-me com a prosa “De Chiraz a Persépolis, atrevessada a porta de Isfahan, dura uma hora por estrada alcatroada que rodeia colinas nuas, segue em linha recta por extensas planuras e ladeia escarpas que anunciam montanhas ao tempo coroadas de neve... De Persépolis a Chiraz percorrem-se cerca de 60 quilómetros. A paisagem é a mesma, talvez menos nítida porque o diálogo visual se calou. Só, de vez em quando, o vento levanta de rajadas turbilhões que passam e se perdem nos plainos desérticos. Mas tanto basta para que o espírito acorde, quando os olhos se fecham, e a poeira se levante, não por golpe do vento inesperado, mas pelos cascos de cavalaria de Alexandre, o conquistador de Persépolis”. É quase poesia, apetecia-me reler tudo mas estou desvairado com fome, a seguir parto para o Xime, a chuva não pára.






O Ruy Cinatti fotografava metodicamrnte tudo, de acordo com a sua curiosidade. Da última carta que me enviou para Bambadinca refere que estava a preparar um trabalho sobre escultura, seguia imagem para que eu me convencesse que todos os povos têm grande arte escultórica, não é só a Guiné, tal a minha presunção... Depreendi que era de Timor, a sua paixão. A fotografia é uma preciosidade, é tempo da entregar no Museu de Etnologia. Cinatti usava uma Hasslblad fantástica, as coisas, os objectos, ganhavam uma outra vida, uma outra dimensão.






Chegou finalmente o meu substituto!

Regressamos tarde, empapados em lama, cientes que esta chuva que não abranda será nossa companheira nos próximos patrulhamentos, amanhã, depois de amanhã e a seguir. Ainda por cima, vamos dormir ao Bambadincazinho, uma surpresa comunicada pouco antes de partirmos para o Xime. Estranho o ar esfuziante de quem me aponta para o meu quarto e me pisca o olho. Abro a porta e está deitado a ler, na cama vaga, um alferes irrepreensivelmente fardado, só lhe falta a bóina na cabeça. Cumprimento-o e ele apresenta-se: “Sou o novo alferes do 52, por favor vê lá se me evitas as praxes brutas, ouvi dizer que me vais obrigar a atravessar o Geba a nado. Sou de Cabo Verde mas tenho medo destas águas com crocodilos”. Não sei que responder, primeiro é o sentimento de que a guerra está a acabar, depois sereno, caio em mim e questiono se houve algum cuidado em escolher um cabo-verdiano para comandar fulas e mandingas. Nelson Wahnon Reis é o meu periquito. Jovem de modos cuidados, atento e correcto. Estou encharcado e sujo, vou tomar um duche mas tenho à porta um soldado, Fali, que me anuncia que o pelotão pretende falar-me com urgência. Sim, dentro de um quarto de hora, respondo. Fali é incisivo: “É um assunto grave, não queremos falar consigo aqui ao pé, estamos em formatura por detrás da igreja dos cristãos”. Não tenho ilusões do que me espera, já deve constar que chegou um alferes cabo-verdiano para me render, posso imaginar as coisas que vou ouvir. Compareço à reunião, há cólera ou aturdimento em todos os olhares. Não estão presentes nem furriéis nem cabos, mas estão ali Jobo Baldé, Jalique Baldé, Fodé Sani, Tunca Baldé, Sila Sabali, Serifo Candé, entre tantos outros. É Mamadu Djau, a gaguejar de irritação quem apresenta o protesto magoado de todos: “Merecíamos melhor sorte. Fomos sempre leais contigo, vais-te embora, ficamos entregues a este cabo-verdiano. Pensa bem no que vais fazer. Eu vou arrumar a farda”. Mamadu Camará falou a seguir, senti um surdo motim por detrás do que me disse: “Para ti é fácil, vais-te embora, deixas-nos na vergonha. Queremos que transmitas ao comandante o que pensamos. Nós somos soldados de valor. Se o comandante nos obriga a ficar com este homem, na primeira operação vai haver um acidente, um tiro há-de acabar com ele”. Procurei acalmá-los, prometi ir falar com o comandante, mas naquele momento exigia de todos contenção, qualquer sinal de maus modos seria recebido como uma bofetada em mim, o alferes Reis não devia ser insultado, ele não era responsável pelo que se estava a passar. E parti dalí para o gabinete do major Anjos de Carvalho a quem expus a situação, pedindo-lhe que comunicasse a Bissau que se devia rever uma nomeação marcadamente hostil, incómoda, à revelia de um ódio que nos ultrapassava.

Regressei ao meu quarto e convidei o Nelson a ir passear até à hora do jantar. Ele era delicado, foi sempre muito delicado comigo, mas verifiquei que não era ingénuo. Descíamos a rampa de Bambadinca, queria mostrar-lhe o cais quando ele me disse: “Ouve, sei que vou comandar tropa africana e pressinto que não é a melhor coisa. O que não tem remédio remediado está, mas aceito as tuas sugestões”. Fiquei aliviado com a sua abertura, garanti-lhe que no dia seguinte ele iria conhecer alguns dos melhores soldados do mundo e que podia contar com a sua obediência. Bebemos um uísque no balcão do estanco do Rendeiro e desejei-lhe as melhores felicidades. Correspondemo-nos durante meses, escreveu-me de Fá e depois de Missirá, seguiu-se o silêncio mútuo, eu não queria voltar às recordações da guerra, ele provavelmente não me queria confessar como toda aquela guerra e aquela relação com África o incomodava profundamente. Enquanto brindava com aquele uísque eu via na minha frente um jovem bom atirado para Bambadinca pelas boladas do destino. Este jovem nada tinha a ver com o engenheiro exterminador com quem almoçara há pouco tempo e via praticamente todos os dias.

Telefonei ao Queta para saber da relação do Nelson com o pelotão e vice-versa: “Nosso alfero, saí do pelotão em Fá, em Março de 1971. O alferes Reis era bem educado, muito silencioso e cumpridor. Quando queria saber coisas da guerra, nós só falávamos de si e do Zagalo. Ele ouvia tudo mas percebia-se que pouco tinha a ver connosco. Afinal, não foi tão duro como pensámos ver chegar um alferes cabo-verdiano”.

Erich Maria Remarque e Mickey Spillane ao mais alto nível

Li “A Oeste nada de novo”, de Erich Maria Remarque, é certamente depois de “Kaputt”, de Curzio Malaparte, o melhor livro inspirado no flagelo da guerra. É o depoimento de um jovem alemão Paul Baümer junto da frente ocidental, nas trincheiras cheias de corpos esventrados, piolhos, ratos, cemitérios com as ossadas espalhadas, meninos de vinte anos que deixaram de sonhar com o futuro. É um relato com cabos abrutados, fala-se muito da comida, há hospitais com gente a agonizar, soldados que suspiram por ficar com as botas dos mortos, há ataques e contra-ataques, mata-se à baioneta, entra-se nas trincheiras do inimigo e traz-se comes e bebes, fica-se à espera de uma nova ofensiva. Há um momento em que ele nos confessa: “Sou novo, tenho 20 anos, mas só conheço da vida o desespero, a angústia, a morte e a prisão é um abismo de sofrimento da mais superficial e da mais insensata existência. Vejo que os povos são atirados uns contra os outros e se matam sem nada dizer, sem nada saberem, loucamente, docilmente, inocentemente. Vejo que os cérebros mais inteligentes do universo inventam palavras e armas para que isto se passe de uma maneira ainda mais requintada e dure ainda mais tempo. E todos os homens da minha idade, aqui e no outro lado, no mundo inteiro, vêem como eu; é essa a vida da minha geração, como é a minha. Que farão os nossos pais se um dia nos levantarmos e nos apresentarmos diante deles pedindo-lhes contas?” É um relato pungente, tão mais pungente quanto Remarque tudo escreve com serenidade, como se a resignação fosse a norma. E esta obra-prima absoluta termina assim: “Caiu em Outubro de 1918, num dia em que a frente estava tão tranquila que o comunicado se limitou a assinalar nada a ver de novo a oeste. Caiu com a cabeça para diante, estendido por terra, como se dormisse. A cara estava calma e exprimia uma espécie de contentamento por tudo ter assim acabado.







Depois de «Kaputt», de Curzio Malaparte, foi a minha 2.ª grande leitura sobre guerra, na Guiné. Impressionou-me a singeleza dos relatos, metendo corpos esventrados, gaseamentos, brutalidades de cabos sádicos, ataque na frente, o viver misturado com ratos e piolhos. Tradução de Mário C. Pires, capa de Figueiredo Sobral, Publicações Europa-América, Lda., 1964. Livro odiado por todos os belicistas, com os nazis à cabeça. Tem a forma de um diário,e termina assim: «Caiu em Outubro de 1918, num dia em que a frente estava tão tranquila que o comunicado se limitou a assinalar nada haver de novo a oeste.» Obra-prima absoluta.


Dos dois Mickey Spillane que comprei em Bafatá já li a longa espera. Jonny McBride volta a Lyncastle cinco anos depois de aqui ter fugido, sob a suspeita de um homicídio de um magistrado incorrupto. Vem sedento de vingança, pronto a abater facínoras e uma namorada que o traiu. Um gang inquieto procura cercá-lo e abatê-lo. A força da justiça impõe-se, pistoleiros e cérebros do crime vão sendo abatidos e o reencontro com a namorada é uma verdadeira revelação para este justiceiro solitário saído da hábil pena de um dos mais talentosos romancistas da literatura policial.





N.º 134 da Colecção Vampiro, tradução de Almeida Campos, belíssima capa de Lima de Freitas. Johnny McBride volta a Lynscastle, 5 anos depois do assassinato do Procurador Distrital Robert Minnow, que perseguia traficantes e canalhas de várias influências. McBride, para a polícia, é o principal suspeito. McBride parece amnésico, não identifica as situações do passado, vem vingar-se de quem lhe preparou uma ratoeira, a começar pela sua namorada, que ele pensa que o traíu. É uma volta ao passado, McBride é alvejado, torturado, aqui e acolá, uma poderosa quadrilha será desmantelada e um criminoso sem escrúpulos abatido, McBride é mais um anjo vingador iventado por Spillane. No final, McBride reencontra a namorada, fora uma longa espera, ambos se vingaram e viram o castigo dos vilões. Um Spillane magistral, a provar que a literatura policial houve e há autores que podem rivalizar com os escritores de maior gabarito.


Durante a semana que vem, de Julho para Agosto, vou quebrando o gelo dos soldados, o meu substituto vai percorrendo as diferentes áreas da nossa intervenção. Um dia destes, virão uns deputados da Assembleia Nacional a Bambadinca, vou conversar com José Pedro Pinto Leite, que morrerá dois dias depois, no rio Mansoa. A rotina prossegue. Saem na ordem de serviço do batalhão louvores a Benjamim Lopes da Costa, Domingos da Silva, Queta Baldé, Manuel da Costa Victória, Quebá Sissé, Cibo Indjai, António da Silva Queirós, alguns deles virão ser dados por oficiais generais. Uma noite, serei surpreendido com um pequeno cerimonial após o jantar, será lido um louvor e não consigo reter as lágrimas. Nos dias seguintes, percorro os regulados de Cossé e Badora, confirmo as nossas cargas de material com o Nelson e o Pires, na manhã seguinte o Pel Caç Nat 52 irrepreensivelmente fardado e com a bandeira portuguesa hasteada por Mamadu Camará deixam-me no Xime com algumas caixas e duas malas. Antes de embarcar eu olho para aqueles homens sem fala, emocionalmente despedaçado. Para mim, a guerra tinha acabado. Começara uma saudade inextinguível.
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Comentário de CV

(1) - Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2008 Guiné 63/74 - P3242: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (45): Um almoço tardio com um engenheiro exterminador

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3242: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (45): Um almoço tardio com um engenheiro exterminador


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.




Operação Macaréu à vista

Episódio XLV

UM ALMOÇO TARDIO COM UM ENGENHEIRO EXTERMINADOR
Beja Santos

Fotografias amorosas no Bambadincazinho e outras estórias


A Guiné está alagada, todos os cursos de água que passam pela região de Bambadinca transformam-se em lama, recordam-nos o dilúvio permanente, água no solo, nos rios, ribeiras, bolanhas, estradões, picadas, valas. Passámos a noite na missão do sono, assim começou o mês de Julho. Ao nascer do dia, procurei desentorpecer o corpo com um duche, dormitei e a seguir fui buscar Malaquia, a linda noiva de Fodé Dahaba, à tabanca de Bambadinca para tirarmos fotografias destinadas ao seu amor em Lisboa. Fodé Dahaba ainda está no Hospital Militar Principal, adapta-se a uma prótese, ainda cambaleia, pede notícias, quer que eu venha depressa, garante não querer regressar à Guiné sem me ver em Lisboa. Em Bambadinca converso com Jará, a mãe de Malaquia, apareceu engalanada, traz um vestido de cores ciclâmicas, a menina aparece também em indumentária festiva, lá vamos de jeep com o avô Quebá, imponente em traje muçulmano com sabadora azul debruada a ouro. No Bambadincazinho, de onde parti há escassas horas, aguardo um primozinho Dahaba que é almani, tias, sobrinhos, a mãe daquele e daqueloutro, tudo em tons garridos, seguem-se dois rolos de fotografias com grandes poses, há risadas mas também a grande apreensão por esse Fodé ausente há mais de um ano e meio. A todos procuro consolar, prometo a Malaquia escrever ainda hoje a Fodé garantindo que o homem mais bonito do mundo é noivo da bajuda mais linda da Guiné, da Gâmbia, da África Ocidental, de todos os continentes.

Rua de Bambadinca em dias de chuva

No regresso, vou procurar pôr o correio em dia. O mandinga Sana Mané, milícia de Missirá, pede ajuda pecuniária e comunica que houve um ataque de foguetões em Farim. Entra o Pires para informar que vão mais quatro soldados para os Nhabijões conjuntamente com gente da CCS, temos um pelotão reduzido a vinte homens. Não me dá tempo para eu refilar, esta noite voltaremos para a emboscada nocturna, amanhã estaremos na ponte de Udunduma, seguir-se-á uma coluna ao Xitole e pergunta-me em que dia é que passaremos a fazer patrulhas diárias na estrada Xime-Bambadinca. Pelas informações que disponho, seremos vigilantes da Tecnil a partir de 6 e muito provavelmente até ao fim do mês, isto independentemente dos reforços de urgência, as colunas ao Cossé e a Badora, os patrulhamentos nos Nhabijões, a secção que vai a Bafatá buscar correio e os frescos, e o mais que se sabe.

Escrevo à Cristina comunicando que o Queirós já vai a caminho de Lisboa, é prémio governador da Guiné, peço desculpa pelas lembranças pobrezinhas, sou um marido casado de fresco com falta de dinheiro. Nesse aerograma apresento assim o Queirós: “É um Teixeira mais pequeno, é um leal amigo, é destemido, tivesse estudado seria um oficial exemplar”. Refiro que estou a ler uma colectânea de contos sobre vampiros organizada por Roger Vadim, procuro acabar “A Erva Canta” de Doris Lessing, que houve cinema na tabanca, “O Aventureiro de Cincinnati”, com Steve McQueen, Edward G. Robinson e Ann-Margret, um drama à volta do jogo do poker, uma interessante realização de Norman Jewison, que continuam os assaltos nos Nhabijões, para nós é uma situação incompreensível, só de manhã é que a população se vem queixar, não se ouvem gritos, não há tiros nem desacatos, é uma estranhíssima conspiração do silêncio. Termino dizendo que ainda ninguém sabe da minha substituição, vaticina-se que o substituto possa demorar mais um mês ou mesmo dois. Neste aerograma, para não a afligir mais, escondo-lhe que o furriel Ocante vai ser evacuado, que o sargento Cascalheira vai ser operado em Bissau e que o furriel Pires dá sinais de esgotamento. Penso para os meus botões que a situação ideal para esta altura era sermos desterrados para os Nhabijões e aqui ficarmos esquecidos.

Continuadas surpresas com a literatura emprestada por D. Violete

Os nossos encontros lembram os dos espiões. Saio da messe de oficiais com uma resma de papéis debaixo do braço, atravesso placidamente a estrada, avanço para a escola, viro à direita, bato à porta da casa da professora, quando de lá saio trago à mesma porções de papéis, é preciso estar atento para saber que é uma resma de outras preciosidades. Curiosamente, desta feita, venho com papéis magros, jornais amarelecidos, folhas desirmanadas. Tudo me serve para me sentir ocupado neste tempo de marasmo, de desconsolo, os meus vínculos não passam por esta nova unidade mas sim pelos meus soldados e pelo que quero aprender da Guiné. Com o caderninho viajante aberto, escrevo o que me parece útil com a esferográfica Bic.

D. Violete passou-me uma revista chamada Ocidente, lembrou-me a revista Ilustração Portuguesa, fotografias e textos curtos. O número é de 30 de Novembro de 1907 e fala de uma rebelião na Guiné Portuguesa. O autor, depois de insistir na falta de auxílio da metrópole, escreve: “Bissau, batido em 1904, sendo o governador o actual general sr. Vasconcellos e Sá, depois de ali termos sofrido um grande desastre em 1891, não se pensou nunca em o ocupar; depois de tantos sacrifícios e abnegações, ficámos com o domínio efectivo somente na fortaleza”. E mais adiante: “Os indígenas na região de Geba foram sempre considerados os mais submissos e nossos amigos; foram nossos auxiliares na campanha contra o Oio. Foi a região escolhida pelo o governador Biker para implantar o imposto, cobrado pela primeira vez em 1902, sob a designação por imposto de capitação, e no ano seguinte transformado no imposto de palhota actual”. Começo a perceber que esta prosa obedece a uma orientação crítica, sabe-se lá quem pretende insinuar torpezas sobre o governante de Bolama, pondo-se praticamente ao lado de Infali Soncó e denegrindo o régulo do Xime: “Diz-se que o régulo Infali Soncó estava descontente por lhe terem sido tiradas umas armas pertencentes ao Estado, e que aproveitou o pretexto de umas bofetadas aplicadas a um súbdito. Cremos que ele não sentiria menos as bofetadas do que o desgosto de lhe tirarem as armas, porquanto o esbofeteado não foi um súbdito qualquer foi um dos seus judeus, tocador de marimbas. As armas que lhe foram agora tiradas, tinham sido emprestadas por um governador para ele se defender contra as incursões e roubos dos balantas de Enxalé, que confina com o seu território. Ele, autorizado pelo governador, fazia guerra a seu modo, de represálias, queimava povoações, apreendia mulheres, gado, etc, àqueles povos que não queriam saber do nosso domínio nem nos pagam imposto (...). A má vontade da maior parte dos régulos fulas a Abdulai do Xime é já antiga. Desde que Abdulai é régulo do Xime nunca os fulas quiseram reconhecer a sua autoridade e abandonaram o território, tendo pedido desde então um régulo da sua raça. O Xime está despovoado. Tem sido uma teimosia querer impor pela força aos fulas um régulo originário de território francês. Com esta nova guerra vamos levantar inimizades com chefes que sempre têm sido nossos amigos porque se muitos hão-de ser por nós, alguns hão-de ser contra nós...”. Fica-se mesmo a perceber que há uma opinião pública descontente, a crítica publicada no Ocidente é, sem margem para dúvidas, uma chamada de atenção para o Terreiro do Paço. Suspendo as leituras por aqui, tenho ainda outra crítica ao governador Muzanty para examinar e depois quero ler um livro com belas ilustrações, Babel Negra. Fica para depois das emboscadas nocturnas, das colunas e dos patrulhamentos. Talvez amanhã, talvez depois.

O livro de Landerset Simões propõe-se abordar a etnografia, a arte e a cultura da Guiné. Em tudo fica pela rama, mas não deixa de ser curioso. É uma imagem muito própria dos anos 30, com destaque para o exotismo, numa atitude colonial de revelação do indígena com hipóteses de vir a ser civilizado. Aliás, o general Norton de Matos escreve na apresentação: «O autor deste livro é um colonial. Classifico-o de colonial, porque revela no seu trabalho as qualidades essenciais. A vocação que o levou a África, a maneira como se deixou envolver pelo meio estranho em que quis penetrar, sem se deixar dominar por ele, sem perder as qualidades de colono portador e iniciador de uma civilização superior àquela que já encontrara.»
Esta fotografia é de uma impressionante beleza.


O alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca

São aproximadamente nove quilómetros a distância que separa o aquartelamento do Xime do destacamento-povoação de Amedalai. Os primeiros dois quilómetros às portas do Xime estão concluídos, desmatou-se amplamente à volta, é um território com extensas bolanhas, o perigo de emboscada é quase improvável (disseram-me mesmo que nunca houve aqui emboscadas). Os construtores da estrada lembraram-se mesmo que vivemos uma guerra, a maquinaria está permanentemente exposta a actos destruidores, tem por isso que recolher a porto seguro, todos os dias. De Amedalai até Ponta Coli há alguns perigos, desmatou-se tudo à volta da estrada, já se prepararam os primeiros dois quilómetros, pelo menos o macadame está pronto a receber o tapete de alcatrão. Os trabalhadores da Tecnil partem ao amanhecer seja do quartel do Xime seja do destacamento de Amedalai. Nós preparamos a segurança, a partir das cinco e meia da manhã, com os primeiros alvores do dia. À frente, um grupo de cinco picadores, depois dois Unimog 404 pejados de trabalhadores, depois as máquinas, das mais potentes às mais ligeiras, nós flanqueamos, as viaturas seguem lentamente, a maquinaria faz-se ouvir, esmagando o saibro da estrada. Nisto levamos uma hora. Só que estamos na época das chuvas, o amanhecer faz-se com alguma neblina, redobram-se as cautelas, depois o dia aquece mesmo sufocando as gargantas e as narinas, é um tempo de estufa, o suor empapa-se às fardas, não pode evaporar. Os desacertos à programação dos trabalhos são pois inesperados, um caudal de chuva atormenta os corpos, o ritmo de trabalho reduz-se, e por vezes é impraticável quando os trabalhadores lançam o cascalho, ele escorre para as bermas e atola as valas abertas a enxada. Quem patrulha procura descortinar o horizonte, felizmente que não tem havido flagelações, levamos à cautela o morteiro 81, os guerrilheiros não se anunciam, isto quando estamos fartos de saber que nunca houve tanta pilhagem como agora nos Nhabijões.

Aquela manhã surgira com sol, direi mesmo que foi uma manhã quente, os operários estiveram em permanente azáfama, as máquinas resfolegaram, o engenheiro e os capatazes circulavam em todas as direcções. Era um engenheiro de trato afável, com mais de trinta anos, um cabo-verdiano com o cabelo quase escorrido, visivelmente bem educado e de bom trato, impunha-se certamente pela sua competência, era visível que não precisava de gritar nem muito menos se impunha a insultar. Aparecia à hora certa, seguia habitualmente a pé, confirmava o que se fizera na véspera, dava instruções aos capatazes durante o percurso, circulava, rectificava, ninguém o contestava. À distância, com um olho no fundo das bolanhas e com o outro a vasculhar quaisquer sinais de intrusão nocturna, sempre obcecado com as minas anti-pessoais, não perdia este espectáculo de autoridade natural.

Ao fim da manhã, parávamos, a comida surgia dos bornais ou dos potes da bianda, que alguém entretanto preparara, quer para militares quer para civis. Nesses instantes, e só nesses instantes, conversava amenamente com o engenheiro Semedo (vamos supor que era esse o seu nome). Viera da Brava até Lisboa, fizera o Técnico com altas classificações, aceitara este contrato com a Tecnil, previa que depois dos bons resultados deste empreendimento o lançassem numa obra de maior envergadura.

Mas naquele dia não tirámos a comida dos bornais. O tempo arrefeceu, o céu começou por se iluminar em tons exagerados de estúdio cinematográfico, e até temi que se estivesse a formar um tornado, mas o que aconteceu é que chegou uma semi-escuridão e depois o ribombar que anunciava o dilúvio. Ele chegou, ensopou em minutos a roupa, era chuva espessa, o saibro fugia, escorria pelas valetas. O engenheiro Semedo avançou para mim, disse-me sem hesitação ou resignação: “Sr. alferes, não podemos continuar, vamos regressar a Amedalai, amanhã também é dia”. Retirámos com a maquinaria, havia Unimogs em Amedalai e sugeri ao engenheiro Semedo: “Proponho que hoje não se coma do bornal, convido-o, vamos até à messe de Bambadinca, tomamos um banho e mudamos de roupa, fazem-se uns bifes ou uns ovos, o vinho fica por minha conta”. O engenheiro Semedo aceitou e regressámos sem que o dilúvio abrandasse. Pelas 15h, tínhamos bife com ovo a cavalo e eu abri uma garrafa de Dão tinto Porta dos Cavaleiros.

Uma insólita proposta de exterminação de inimigos

Comíamos e bebíamos com satisfação, tudo indicava que seríamos novos amigos. Falámos de cineclubes, revelei-lhe que tinha sido sócio de quatro (Imagem, ABC, Universitário e Católico), falámos de ciclos de filmes, como a comédia britânica dos anos 50, Sacha Guitry, Hitchcock, Visconti e De Sica. Depois falámos de livros, houve um momento em que senti que tínhamos mudado de ambiente, eu estava a viver a fundo as minhas saudades. É nisto que se inicia a mais inesperada das conversas sobre a guerra e as soluções que se equacionam, qualquer coisa deste género:

- Sr. alferes, tem consciência que esta guerra ainda não está resolvida por interesses obscuros?

Foi como se tivesse engolido muitos cubos de gelo em segundos, fiquei hirto, quase incapaz de raciocinar. Depois investi, delicadamente.

- Sr. engenheiro, vai perdoar-me mas nós militares não conversamos sobre essas coisas com civis. A guerrilha tem as suas regras, a guerra tem os seus segredos. Desculpe recusar responder-lhe.

- Vamos lá, não se acanhe, estamos a falar sem quaisquer testemunhas, podemos dizer o que nos apetece, aqui nada nos compromete. O que eu estou a dizer-lhe é que há uma solução militar para pôr termo a este conflito com os terroristas. Eles aproveitam-se da vossa incapacidade em lutar com as mesmas armas.

Sentia-me siderado com a evolução da conversa, agora o engenheiro passava-nos um atestado de incapacidade.

- Sr. engenheiro, creio que exagera, lutamos com todos os meios, já deve ter visto que estas obras de construção, o reordenamento, as políticas de saúde e de educação, servem o desenvolvimento, as populações estão a viver melhor.

- Às vezes, penso que as tropas metropolitanas têm medo de avançar, acobardaram-se, querem estar aqui uns meses e irem-se embora. É assim que o terrorismo tem crescido, vocês revelam-se incapazes de ganhar a guerra.

Levantei-me lívido, amaldiçoando aquele convite e aquele Dão Porta dos Cavaleiros saído do meu bolso. O engenheiro revelara-se um grosseiro, uma besta incapaz de perceber que estava em minha casa.

- Se me permite, a conversa foi longe de mais.

- Não foi, o Sr. alferes recusa discutir as soluções militares, elas existem, não volte a cara às realidades.

- Sr. engenheiro, como é que quer resolver uma guerrilha num território destes, com amplas fronteiras de dois Estados que nos são hostis, com populações que vivem no mato e que não querem regressar?

- Sr. alferes, bastavam seis companhias de cabo-verdianos, em meses tínhamos acabado com esta peste.

- Sr. engenheiro, espero que saiba o que é o efectivo de seis companhias, como é que esses seus conterrâneos resolviam a guerra?

- Nós, ao contrário de vocês, matávamos sem hesitar esses pretos de m... Entrávamos nessas barracas onde eles vivem e matávamos tudo, acredite, velhos e crianças ninguém escapava. Só se resolve o terror com um terror ainda mais violento. Há séculos que vimos de Cabo Verde para aqui, eles são indígenas e não passam disso. Portugal tem que saber escolher.

Invadido pela náusea, pretextei afazeres, o almoço acabou em silêncio. Continuei a ver o engenheiro Semedo todos os dias, ele fez bem em não ter voltado a falar-me dos seus planos de extermínio. Mas naquele dia perdi definitivamente a inocência: havia um conflito racial mal dissimulado, tão ou mais explosivo que aquele que separava os que se acobertavam com a bandeira portuguesa e os que dela se queriam libertar.

As últimas ilusões sobre o conflito racial vou perdê-las em breve, quando chegar o meu “periquito”.

Uma semana a ler Mauriac e Agatha Christie

Há muito tempo que não lia François Mauriac e fopi muito bom ler “O Fim da Noite”. Teresa Desqueyroux é uma mulher que veio da província onde terá cometido uma tentativa de assassínio do marido, instalou-se em Paris, tem saúde débil, vive numa quase completo isolamento. O estilo de Mauriac apoia-se nas análises, nos monólogos, nas sensações e mas imagens. Teresa vai receber a visita de filha e durante algum tempo ela fica liberta das suas amargas recordações. Maria, no entanto, vem pedir ajuda à mãe, não está segura dos sentimentos do seu noivo, Jorge. Teresa interfere, o noivo da filha declara-se à mãe. Teresa envolve-se em novas lutas e novas renúncias, arquitecta estratégias para a reconciliação entre Maria e Jorge. Chega a voltar à província, reencontra o marido e procura selar o casamento da filha. Teresa está cansada de tudo, anseia pela o fim, a noite é o fim da vida. Percebo agora porque é que dizem que Mauriac é um génio, como é que as suas narrativas são insuperáveis na ordem da escrita.





Tradução de Cabral do Nascimento, capa de Fernando de Azevedo, Editorial Estúdios Cor, 1957. É uma das obras-primas François Mauriac. No prefácio, ele escreve: "Não quis fazer de O Fim da Noite a continuação de Teresa Desqueyroux, mas sim o retrato de uma mulher no declínio e que eu já descrevera no tempo da sua mocidade criminosa". Esta Teresa é uma mulher neuraesténica, isolada, muito doente, que revê a filha que a vai visitar a Paris, pedir-lhe conselho sobre a sua relação amorosa. Esta visita vai detonar a retoma de relações com a família da província, incluíndo o marido, Bernardo. Mas as personagens princípais são de facto Teresa, a filha Maria e Jorge, o seu namorado. Jorge pensa ter-se apaixonado por Teresa, nem tudo vai acabar bem, excepto para a precipitação do fim da noite de Teresa. A arquitectura literária de Mauriac é sublime, eu ainda não sabia que ele estava fadado a passar ao nível dos clássicos da literatura francesa, e mesmo mundial.

“Os Crimes do ABC”, de Agatha Christie, é um outro pequeno clássico do seu génio. O capitão Hastings, velho amigo de Hercule Poirot, está de volta e acompanha o talentoso investigador belga num dos seus casos mais surpreendentes. Alguém manda cartas a Poirot indicando local e dia de um acontecimento misterioso que a polícia não desvendará, assinando ABC. Haverá vários crimes, todos eles insolúveis, não se encontra razão de ser para aqueles crimes, até que um pobre alienado se entrega à polícia, confessando-se culpado. Poirot revela a maquinação que está por detrás, é um dos mais surpreendentes grandes finais de Agatha Christie, uma hábil utilização da árvore que se oculta na floresta.






N.º 167 da Colecção Vampiro, tradução de Mascarenhas Barreto, belíssima capa de Lima de Freitas. É obra de referência obrigatória, quando se fala na criadora de Hercule Poirot. Estamos em 1935, o capitão Hastings voltou da América do Sul, descobre que Poirot pinta o cabelo e bigode. Começam a chegar as mensagens assinadas por ABC, em Andover haverá o primeiro crime (Alice Ascher), outros ocorrerão. Irá aparecer o Inspector Japp, velho companheiro de Poirot em investigações criminais. Crimes insolúveis, parece. Até que um dia Alexander Bonaparte Cust se entrega à polícia. Então, Poirot desvenda uma maquinação surpreendente do cérebro diabolicamente inteligente que empurrava ABC para a pesquisa dos polícias. Livro imperdível, pelo menos para os aficionados do policial.


Em breve, vai chegar Nelson Wahnon Reis. Mal sabe o meu substituto o drama que o acompanha, a angústia que me veio trazer. Iremos percorrer juntos toda a zona de intervenção, irei partir para Bissau em grande desassossego. E um dia parto no Carvalho Araújo, será uma viagem de doze dias, passando por Cabo Verde e São Miguel. Com algumas peripécias dignas de uma comissão onde elas estiveram sempre presentes.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 19 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3218: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (44): Em Bissau, no julgamento de Quebá Sissé

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3218: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (44): Em Bissau, no julgamento de Quebá Sissé


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Operação Macaréu à vista

Episódio XLIV

EM BISSAU, NO JULGAMENTO DE QUEBÁ SISSÉ
Beja Santos

As pequenas coisas da vida militar na época das chuvas


O Pel Caç Nat 52 de hoje pouco tem a ver com aquele que eu recebi em 4 de Agosto de 1968. Despedimo-nos comovidamente de Domingos Silva, regressa a Bissau, está ainda indeciso se irá trabalhar no comércio ou como professor. Não sei como é que hei-de agradecer-lhe toda a sua colaboração, a sua bravura, ao longo de todo este tempo. Recebemos mais uma ordem de transferência de praças, chegarão três soldados do Saltinho e saem outros três para o Depósito de Material em Brá. Um deles é Quebá Sissé, que dentro de dias será julgado no Tribunal Militar em Bissau, por homicídio involuntário. Sairão também Mamadu Silá e Adulai Djaló. Cherno já me avisou que se irá inscrever nos Comandos quando eu me for embora. Cibo Indjai voltou para Missirá, fez troca com um soldado do Pel Caç Nat 53, a sua paixão pela caça não tem limites. Acabo de receber uma carta de Jolá Indjai, foi considerado curado da sua tuberculose, está em convalescença, foi visitar a família a Farim, promete dar mais notícias em breve. A nota macabra é o pedido de transferência de Uam Sambu, falecido há cerca de seis meses, apeteceu-me não responder, mas era indispensável esclarecer e pugnar por um substituto. O furriel Pires, Bacari Soncó e Queta Baldé foram louvados pelo o Comandante Militar.

Tinha acabado de jantar quando chegou Amadu Só, fula do Cossé, estatura média, cara cheia de cicatrizes, linda pronúncia de português, riso aberto, aprumo incomum. Fez-me continência com um grande estalar de calcanhares, pediu-me para o ajudar com uma viatura, tinha a mulher e bagagem no cais, seguiu depois para uma das moranças alugadas pelo Rendeiro, junto da rampa para o quartel. Conversámos, esteve em Gandembel, um quartel já abandonado pelas nossas tropas, considerado como posição insustentável. Bambadinca está sob invernia, as bolanhas alagadas, as noites a esfriar e as manhãs de calor sufocante. Albino Amadu Baldé, o Príncipe Samba, prontificou-se a dar aulas aos mais atrasados, coxeia, é impossível voltar à vida operacional. Quanto a furriéis, estou neste momento sozinho: o Cascalheira seguiu para Bissau, o Pires está na CCS, o Ocante jaz na cama cheio de vermes, palúdico. Tenho, pois, o pelotão transfigurado mas sempre em actividade. De manhã passámos três horas na lama enquanto Spínola visitava os Nhabijões acompanhado por uma equipa da TV, ouvimo-lo três horas encharcados, debaixo de chuva, a fazer promessas ao megafone, recorrendo a intérpretes balantas e mandingas.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadincazinha (D), a sudoeste de Bambadinca, a escassas centenas de metros do centro (A)....Em primeiro plano, a estrada nova (C) para o Xime (posteriormente alcatroada) e, mais acima, a antiga estrada (B), paralela à pista de aviação.... Atravessando a tabanca de Bambadincazinho (D), seguia-se em estrada (picada...) até aos aquartelamentos de Mansambo, Xitole e Saltinho (E). Vê-se ao fundo a bolanha de Bambadinca... Era em Bambadincazinho que ficava a antiga Missão do Sono, em cujas instalações ficava, todas as secções, um Grupod e Combate para velar pelo bom sono dos seus senhores ofciais superiores do batalhão que dormim no quartel, a menos de um quilómetro...

Fotos: ©
Humberto Reis (2006)


O novo comando do BArt 2917 procura averiguar como trabalhamos. Ontem à noite apareceram dois majores no Bambadincazinho, de supetão, para saber se estávamos a cumprir a emboscada, chovia torrencialmente, estiveram pouco tempo, não percebi exactamente o que esperavam encontrar. É o ramerrão da época das chuvas, tudo alagado, temporais inusitados, a natureza desolada, mas o meio dia sempre com calor sufocante. O jovem Mamadu Soncó, filho do picador Quebá, anunciou-me por carta que quer vir estudar para Lisboa e pediu-me a morada de todos os meus familiares. Entrou-me no quarto, estavam lá o Abel Rodrigues e o Moreira que o ouviram atónitos: Mamadu Soncó recusa-se a voltar a Missirá, quer dormir aos pés da minha cama para ter a certeza que o levo para Lisboa, trouxe mantas e um saco com roupa... Arranjei uma questiúncula com o ajudante do capelão que me apanhou a roubar um pacote de velas na igreja, estamos com poucos petromaxes na ponte de Udunduma, gosto de adormecer a ler umas páginas. Esta é a época das chuvas em que leio aos bochechos “Vermelho e Preto”, de Stendhal, tempo de encontros e desencontros, ao amanhecer vamos picar a estrada até Amedalai, há uma coluna de vacas que parte para o Xime e daqui para Bissau, numa LDM chegará um novo contingente militar, irei conhecer um alferes de Ponta Delgada que andava no liceu quando lá fiz uma palestra. Passaram três anos, estamos certamente irreconhecíveis. A vida continua, até consegui que Serifo Candé e Ussumane Baldé vão passar férias a Bolama. Insistentemente, vou perguntando à Cristina se já conseguiu alugar casa, encontrou uma na Avenida do Brasil, três divisões a um preço módico, gostou, pede-me a opinião.

As descobertas surpreendentes de D. Violete

Estou a chegar do Xime quando recebo uma mensagem de D. Violete para ir à escola. Deixa as crianças a gralhar, avançamos para a varanda da sua casa, D. Ema sorri e anuncia que vai fazer um chá. D. Violete tem o entusiasmo estampado no rosto, sabe que me vai maravilhar, esclarece que os oincas aproveitaram a destituição de Abdul Indjai como régulo de Oio e do Cuor para ocuparem este regulado. Mostra-me o “Anuário Colonial” de 1916, retiro uma citação do antigo governador da Guiné, Carlos Pereira: “No regulado do Cuor, situado na margem direita do Geba, defronte de Bambadinca, habitavam até 1908, beafadas cujo chefe era Infali Soncó, destituído nesse ano. Depois de ter sido destituído, os beafadas abandonaram o Cuor, indo uns para o Oio e outros para Quínara. O governador dessa época investiu como régulo do Cuor o indígena Serua Abdul Indjai. Este chefe vinha de um grupo étnico diferente, não pôde conseguir povoar o Cuor com gente do seu grupo étnico. E como o território é pobre, foi abandonado por Abdul e ocupado imediatamente pelos oincas”. Não deixei de manifestar a minha estranheza com a presença destes oincas, seguramente que eles passaram a povoar o regulado na região ocidental, entre Madina e Gambiel. Tinha mais perguntas a fazer quando me encontrasse com Malã Soncó. Mas as novidades não ficavam por aqui, D. Violete encontrara elementos sobre a habitação dos mandingas num livro de 1948, uma projecto dirigido pelo comandante Teixeira da Mota. Levei para o meu quarto e passei para o meu caderninho viajante:

“Os mandingas constroem nas imediações das bolanhas usando como materiais o bambu, palha, madeira, corda e barro, aproveitando também a casca do ramo da palmeira e tiras de junco.

Constroem da seguinte maneira. Fazem uma circunferência que delimita o interior da habitação. Segue-se uma cerimónia que consiste em deitar uma pequena porção de água na extremidade superior do pau que serve de eixo ao desenho da casa. Nas extremidades abrem buracos e fixam-se prumos de bambu que vão formar um entrançado circular. Em seguida, arma-se o telhado constituído por bambus inteiros ligados entre si por anéis de tiras do mesmo material. A estrutura do telhado é armada entre quatro forquilhas. Sobre o telhado aplica-se a palha. Só então é que se procede ao revestimento da parede com lama amassada no próprio local”.

Amanhã devolvo este livro e os apontamentos inéditos sobre a Guiné da autoria do general Henrique Dias de Carvalho, que prestou relevantes serviços em Angola. Em, 1898, este oficial general foi convidado pelo Marquês de Liveri a organizar com Vítor Cordon a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné. Viveu aqui cerca de dois anos, reuniu muitos dados científicos e estava a organizá-los quando faleceu. Não encontrei muitas novidades, mas fiquei surpreendido com alguns dados da navegação do princípio do século. Segundo ele, nas estatísticas de 1901 a 1904 figuram os vapores mercantes alemães, ingleses, franceses, portugueses e belgas servindo o comércio de Bissau a Bolama. Os números impressionam: alemães, 116; portugueses, 74; ingleses, 47; franceses, 11; belgas, 1. Começo a perceber o plano expansionista alemão, em directa rivalidade com franceses e ingleses na África Ocidental, no princípio do século XX. Tenho mais perguntas a fazer ao comandante Teixeira da Mota.


Guiné <> Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > "O mais controverso cozinheiro do mundo, Quebá Sissé, o Doutor (fotografia de Luis Casanova).


O julgamento de um homicida involuntário

“Doutor”, o mais amável dos cozinheiros, olha fixamente o juiz, tem o olhar líquido, os braços pendem, desajeitados, vem com a farda n.º 2, imaculada. Escondeu à pressa o seu cachimbo num dos bolsos das calças. Compreendo a tensão do “Doutor”, tudo isto é bizarro, ele recebe este julgamento com a maior das incompreensões. Pela segunda vez, venho depor a este tribunal.

Voltei ao Tribunal Militar de Bissau, cheguei ontem ao princípio da tarde, a maior parte dos amigos e conhecidos já cá não estão, cumpri o ritual da ida às compras, uns escassos livros, mais um disco, satisfiz a lista de encomendas dos soldados, abracei o Emílio Rosa no BEng 447, vou hoje jantar lá a casa, espero ainda ter tempo de ir até ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Nos CTT, tive êxito nas chamadas para a Cristina, a minha Mãe e o Ruy Cinatti. Este último perguntou-me se eu já estava em Lisboa. Quando partes, quando regressas, quanto mais tempo dura essa comissão? A todos procuro serenar, prometo ligar novamente à Cristina e à minha Mãe.

Bilhete Postal > Guiné Portuguesa > 118 – Vista aérea de Bissau. Fotografia verdadeira – Reprodução proibida. Edição Foto Serra. C.P. 239 – Bissau… Impresso em Portugal. Sem data.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Ao fim da tarde de ontem, tal como combinado, encontrei-me com o “Doutor” numa cervejaria ruidosa, ali para os lados do Comando Naval, o Mário. Seguimos pelo cais fora, procurei, de uma forma pausada, convencer Quebá Sissé que era indispensável explicar ao juiz que a G3 que vitimara Uam Sambu estava com a patilha na segurança, fora um puríssimo acidente a arma ter-se destravado quando ele subira para o burrinho, naquele malfadado amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. Informei-o que tinha três louvores, o último dos quais realçava as suas qualidades humanas, o seu brio militar, a sua compostura e dedicação às tarefas que lhe foram incumbidas, ao longo de mais de quatro anos, era matéria a seu favor. O “Doutor” tudo ouvia, parecia que estava a interiorizar a sequência do interrogatório na sala do tribunal, em vez de um julgamento seria uma operação com perguntas e respostas. Convidei-o para jantar, fomos ao Solar dos 10, insisti que desse respostas directas e completas ao juíz, que fosse firme em invocar a sua total inocência e o seu arrependimento. Quebá Sissé estava tão desamparado, as linhas do rosto tão acentuadas, a tristeza tão à flor da pele desde que despejara quatro tiros na tábua do peito de Uam Sambu, que me senti na obrigação de o acompanhar até para os lados do Bairro da Tchada, onde ele pernoitou. E lá fui para o Vaticano III, ajoujado com os sacos das compras.

Estava uma manhã típica da época das chuvas quando entrei pelos corredores do tribunal onde se ajuntavam vários arguidos e testemunhas. Houve tempo para recapitular os possíveis quesitos, depois a chamada vociferante do meirinho separou arguidos e testemunhas, Quebá Sissé despediu-se súplice, por ele tínhamos entrado na sala de audiências de braço dado, ele ter-me-ia dado luz verde para aguentar o interrogatório pelos os dois. A atmosfera era sufocante e quando fui chamado estoirou um relâmpago sobre Bissau, ocorreu-me que acabara de subir ao palco como numa peça de teatro. Não exagero, tinha dormido bem, estava absolutamente convicto que o “Doutor” sairia ilibado, resolvi exceder-me no meu testemunho perante um juiz macambúzio e distraído. Sim, o comportamento cívico e militar de Quebá Sissé era inexcedível, amigo das crianças, a quem oferecia todas as sobras das nossas refeições, estóico na cozinha, a aguentar todas as críticas, voluntário para os serviços mais duros, largava a panela da sopa e seguia para os reforços ou para as colunas, sempre na vanguarda, com um sorriso, ninguém lhe conhecia acidez ou amargura. Sim, era amicíssimo de Uam Sambu, uma amizade comprovada, ninguém conhecia entre os dois mais do que amizade e só amizade. Sim, a nota de assentos espelhava os primores de carácter deste destemido e abnegado soldado, há muito que devia ser apontado pelos seus serviços distintos, a distracção era minha. Sim, dera ordens e confirmara que todas as armas estavam em segurança, fora um acaso brutal e fortuito que aquela patilha tivesse passado para a posição de fogo na altura em que Quebá Sissé subia para o burrinho. Sim, podia comprovar a consternação sentida por todos, Quebá Sissé e Uam Sambu eram a camaradagem personificada. A sentença só a conheci mais tarde, foram uns brandos dias de prisão, todas as atenuantes tinham sido tomadas em consideração, com aquela nota de assentos e com um comportamento tão irrepreensível pena mais suave não era possível. À porta do tribunal recebo o sol o cru na face, só penso em fugir. Tenho uma viagem no Dakota na manhã seguinte, Quebá Sissé segue para o seu quartel, o Depósito de Adidos, em Brá, despedimo-nos, dou-lhe garantias de que a sua vida militar não sofrerá mais castigos, já bastou o sofrimento daquela descarga de tiros no camarada, situação mais azarada não pode haver.

Abraço-o, nunca mais o voltarei a ver, ficará para todo o sempre a lembrança do seu sorriso meigo e inocente, dos meninos a quem ele saciava o apetite, do seu andar cambaleante como se estivesse permanentemente em risco de cair para o lado. Subitamente, cai chuva torrencial, em minutos o Bissau Velho ressuma de humidade, entro no Café Central para uma refeição ligeira, quero passar umas horas a ver papéis ao lado do Museu de Bissau, no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

Descubro a figura grandiosa do alferes Geraldes

Não sei, claro que não posso saber, mas nunca mais lerei um texto tão épico acerca de um oficial destacado no Geba, ou onde quer que seja. Com a ajuda daquele diligente, prestável e silencioso funcionário do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, manuseio despachos oficiais, documentação enviada para a metrópole e referente às mais desvairadas situações. É no meio desta papelada, numa atmosfera de sufocante humidade, com as janelas a gotejar e a reflectir todas as luzes acesas da sala, que leio a carta do governador Pedro Ignacio de Gouveia para o Ministro da Marinha e Ultramar, com data de 4 de Maio de 1883:

“Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,

Em princípios de Março, os fulas pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica, que faziam algum comércio com os poucos recursos de que dispunham.

Os fulas pretos, capitaneados por Deusá, queimaram as cubatas, levando prisioneiros, dez homens e duas mulheres, todos cristãos.

Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do Governo Português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba, o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.

Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lhe e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica a pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gâmbia e dois dias proximamente ao NE de Selho.

Aqueles mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo Dembel, potentado por entre os fulas pretos e pai do agressor Deusá.

Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, dizendo ignorar que São Belchior pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres.

Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior.

Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância 35$000 reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.

Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excepcionais, sem cómodos, sem força, levando consigo a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs. Chegado à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual era o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia o obviar a algumas dificuldades de ocasião.

Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajecto sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia.

Expôs ao régulo Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que tem havido entre o Governo Português e os da sua raça; que não poderia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que obrigava o Governo Português a usar de represálias, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.

O régulo ouvi-o no mais profundo silêncio a peroração do oficial e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com o seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que o seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas populações importantes; que também ia mandar cavaleiros buscar seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele.

Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.

Apareceu o filho Deusá e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40$560 réis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.

O oficial saiu do Indornal sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança.

Causou espanto no Indornal a aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco.

Ex.º Sr., Um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu amandar para a junta da fazenda a despesa feita.

Deus guarde a V. Ex.ª Palácio do Governo em Bolama, 4 de Maio de 1983. Pedro Ignacio de Gouveia, governador.”

Leio e releio, é impossível encontrar prosa mais bela para um gesto tão sincero. Devo estar emocionalmente a esgotar-me, não consigo reprimir as lágrimas, encontrei um alferes de Geba que não rouba, não intriga, não maltrata, arrisca tudo para ir buscar quem estava à sua guarda. O alferes Geraldes fez 54 léguas e cumpriu, entrou no mato onde nenhum branco fora. Anoiteceu e quando aquele diligente, prestável e silencioso funcionário me informou que estava na ordem de encerrar o serviço deve ter pensado que eu tinha recebido uma má notícia e disse-me: “Não se preocupe, trate de si, eu espero um bocadinho até se sentir melhor.

Sempre a pensar no alferes Geraldes e na sua viagem ao Indornal fui até à Sé de Bissau e depois segui para casa da Elzira e do Emílio Rosa.

Duas belas leituras entre Bissau e Bambadinca

Li “A Ásia a caminho da Europa”, de Franz Altheim. É um trabalho do pós-guerra, um ensaio sobre as especificidades deste dos continentes, no exacto momento em que as fronteiras asiáticas avançaram até ao Danúbio, já não estão nos Urais. O historiador reflecte sobre a grande China e como esta empurrou diferentes povos em direcção à Europa, no tempo em que o Império Romano do Ocidente colapsava. Fala dos hunos e de outros bárbaros e da fragilidade destes curtos impérios que irão desaparecer com as invasões árabes e Carlos Magno. Numa outra vertente do ensaio, fala do reino iraniano dos Sassânidas, quais as suas afinidades com a cultura ocidental, quais as suas diferenças no seu modelo feudal. As sucessivas deslocações da Ásia para a Europa foram fugazes, encontraram a resistência na concepção do Estado, a religião separou tudo radicalmente depois. Um belo ensaio para se perceber como a cultura não se rende aos caprichos do instante nem da conjuntura.



É um livro fascinante, foi um prazer revê-lo, 40 anos depois, com os reforços culturais entretanto chegados, fica-se até a perceber melhor o distingue Europa e Ásia, como viajam as ideias nestes continentes. Foi editado na prestigiada Enciclopédia LBL (Livros do Brasil Limitada), tradução de Aníbal Garcia Perira, s/data. Frantz Altheim escreve este admirável ensaio logo a seguir à derrota da Alemanha, em que tudo indicava uma redução territorial da Europa. A estrada da seda foi sempre o elo de ligação entre continentes, depois a China expandiu-se, deslocando povos em direcção ao Bósforo e ao Danúbio. Os Hunos estiveram prestes a conquistar o moribundo Império Romano do Ocidente, vieram depois as invasões bárbaras que permitiram ao cristianismo um desempenho religioso e temporal. Com o exemplo dos Sassânidas, ficamos a perceber como as grandes potèncias asiáticas, até aos árabes, tiveram um projecto que incluía pensamento europeu mas nada tinha a ver com a religião e a cultura que vieram a definir a Europa. Um grande ensaio sobre a especificidade dos dois continentes.





Leitura surpreendente foi também “O Tio prodigioso”, de Fredric Brown, um grande escritor de ficção científica que por vezes investe na literatura policial. Neste género, ele é bastante singular. Numa artéria do proletariado de Chicago, o linotipista Wallance Hunter aparece assassinado e roubado. O seu filho, adolescente e também trabalhador, vai pedir ajuda ao tio Ambrósio que trabalha num circo. O homicídio é um mero expediente para deambularmos em atmosferas verdadeiramente neo-realistas, gente de carne e osso, relações afectivas esquivas e sofredoras, dramas passionais e a sordidez do crime para usufruir os benefícios de um seguro de vida. Ambrósio e o seu sobrinho Eddie, que não se viam há um ror de tempo, afeiçoam-se. Eddie larga o seu trabalho e vai para uma banda do circo, feliz por tocar no seu trombone de profissional. Um policial muito diferente de tudo quanto tenho lido até agora.




N.º 56 da Colecção Vampiro, capa de Cândido Costa Pinto, tradução de Mário Quintana revista por Lima de Freitas. Hoje não seria classificado como romance policial e memo na época denota as preocupações sociais como as obras de John Dos Passos ou John Steinbeck. Em meio proletário, em Chicago, Wallace Hunter, é assassinado num beco. Ed, o filho, pede ajuda ao tio Ambrósio que trabalha num parque de diversões. Os dois vão procurar, em paralelo com a ionvestigação policial, descobriri o criminoso. O móbil é um seguro de vida envolvendo a madrasta de Ed e um amigo de Wallace. A estrutura do romance é muito simples, viva e directa. Houve um crime que aproximou tio e sobrinho, Ed abandona tudo e todos e vai trabalhar com o tio Ambrósio no parque de diversões, este oferece-lhe um trombone de profissional. Um bom Fredric Brown, um grande escritor eclético, ainda hoje uma referência na ficção científica.




Em Bambadinca fico a saber que o mês de Julho, à porta, vai ser passado entre a ponte de Udunduma, curtas estadias nos Nhabijões e muita segurança diária nos trabalhos do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Vou conhecer o engenheiro Semedo e uma face terrífica do ódio racial. O melhor é contar já a seguir.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 12 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3195: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (43): Um grande ataque a Demba Taco

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3195: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (43): Um grande ataque a Demba Taco


Texto de Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Operação Macaréu à vista

Episódio XLIII

UM GRANDE ATAQUE A DEMBA TACO
Beja Santos

Dois fantasmas, o regresso de um amigo, a última visita a Missirá


Deitado na minha cama, no quartel de Bambadinca, leio e releio o aerograma de Manuel Maria Pimentel Bastos, o primeiro comandante do BCaç 2852, o inesquecível Pimbas. Tem uma actividade modesta numa repartição do Exército, ali para as Escadinhas do Marquês de Ponte de Lima, junto do Martim Moniz. Está contente com o horário, é só a parte da tarde, voltou a praticar violoncelo, tem ainda recordações em carne viva, parece que ainda está a beber o vitríolo de todas as suas humilhações que o tornaram num militar sem futuro. Faz perguntas genéricas e no final despede-se com cumprimentos e agradece-me a lição de “Os Pastores da Noite”. Pareceu-me um agradecimento enigmático. À noite, enquanto passeava junto à porta de armas que abre para as estradas de Xime e Mansambo, subitamente a recordação reavivou-se, percebi a mensagem em código.



A Livraria Martins Editora, de São Paulo,deu à estampa uma edição de valor excepcional«Obras Ilustradas de Jorge Amado».Tratou-se de uma homenagem ao romancista no momento em ele comemorava 30 anos de actividade literária,tendo colaborado alguns dos maiores artistas brasileiros da época,tais como Carlos Scliar,Di Cavalcanti,Clóvis Graciano ou Darcy Penteado. As ilustrações de «Os Pastores da Noite» foram da responsabilidade de Aldemir Martins.Trata-se de uma obra que exalta o povo de Baía,são estórias para rir e chorar de gente humilde conduzida a feitos sublimes no amor e na amizade.Um dos clássicos inatacáveis de Jorge Amado,escapa à erosão do tempo.






O Pimbas soubera do grande desastre da jangada que se virara no Cheche em 6 de Fevereiro de 1969 (tinha havido quarenta e sete desaparecidos nas águas revoltas do Corubal) quando estava em convalescença de uma pequena cirurgia a uma fístula. No dia seguinte a este episódio dramático, vim a Bambadinca depois de Mato de Cão, ele estava deitado no seu quarto, recebeu-me com “Os Pastores da Noite”, de Jorge Amado, na mão, perguntou-me se conhecia a obra. E falámos da cidade de Salvador da Baía, as suas ladeiras, as rodas de capoeira e um elenco espantoso de personagens retirados do mundo popular: o cabo Martim, elegante, fino, a viver um dos casamentos mais turbulentos do mundo; Jesuíno Galo Doido, com a sua sabedoria de cabelos brancos, vagabundo e mestre da vida; Tibéria, mulata sessentona, dona de bordel afamado; mas falámos também das quatrocentas mulatas de Pé-de-Vento, do negro Massu, de Otália, a prostituta que tinha uma boneca e sonhava com o casamento, de Marialva, de Eduardo Ipicilone, e outros oriundos do fabulário baiano, dos feitiços e feiticeiros e sobretudo do amor que preside à arquitectura deste grande romance. Porém, tudo não passava de um devaneio, uma pura ocupação do tempo, eu vinha de Mato de Cão para comprar comida e levar munições, a notícia infausta de dezassete desaparecidos do nosso batalhão impunha um procedimento excepcional ao comandante de Bambadinca, eu via que ele conversava para ganhar coragem, para ter ânimo e partir para junto daqueles que estavam a viver uma tragédia. Olhei para o relógio, levantei-me e terei dito algo como isto: “O meu comandante tem coisas muito importantes a fazer imediatamente, tem soldados em grande tristeza que precisam de receber o seu estímulo. Sei que vai fazer um sacrifício, penso que está fisicamente incapaz para esta viagem, mas o seu lugar não é aqui. Deixo-o para se vestir, desejo-lhe muita coragem para os momentos que vai viver”. O Pimbas partiu e não esqueceu o empurrão que lhe dei, mais de um ano depois.

No dia seguinte, Cherno vem chamar-me ao meu quarto, o régulo Malã e Mussa Mané, o chefe de tabanca de Missirá, querem falar comigo. Estou a ser convidado a acompanhar o comandante da CCS, capitão Passos Marques, a Missirá, o gerador já está a funcionar. Hesito e depois digo que sim, é impossível recusar. Partiremos amanhã no Sintex até Gã Gémeos, hoje tenho expediente na secretaria, à noite emboscada no Bambadincazinho, a manhã será passada em Madina Bonco. E começo a tratar do expediente. Dauda Bari acaba de ser promovido a primeiro cabo, o pelotão vai receber a notícia com regozijo, é o primeiro cabo de etnia fula. Uma secção acompanha uma equipa de cinema que vai filmar nos Nhabijões; trabalho no processo da condecoração de Mamadu Camará, começo a amaldiçoar os questionários e exposições torrenciais, nisto bate-me à porta o Príncipe Samba, chegou ontem à noite de Bissau, ainda se apoia a uma bengala, tem fractura de calcâneo, cambaleia um pouco, disfarça com o seu andar elegante. Leio o parecer da Junta Médica, é um escândalo, é uma indignidade o que ali vejo escrito: deve permanecer ao serviço como favor do batalhão, já que os milícias não têm direito de passar aos serviços auxiliares. Sinto que me vou envolver numa nova luta, mais um labirinto burocrático, mas o Príncipe Samba merece, pela sua valentia e dedicação às milícias de Missirá que superintende como um dedicado chefe militar.

Da visita a Missirá, retiro de um aerograma as impressões que enviei à Cristina: “Chegámos ao princípio da tarde, e, embora na época das chuvas, estava um dia ensolarado. Ligou-se a moderníssima instalação eléctrica, a tarde tornou-se irreal, até me lembrei do céu transtornado pelos tornados quando ligaram os potentes holofotes nos postos de vigia. Valeu a pena a interminável correspondência para a engenharia de Bissau, durante mais de meio ano. À noite vimos cinema, um filme de Sarita Montiel, “La Violetera”, um sucesso que esteve meses a fio no Odeon, não sei há quantos anos. O régulo Malã, Quebá e Lânsana estavam na primeira fila, mirones gulosos. Nunca imaginei ver Sarita Montiel em Missirá, coleante e de ar fatal. Contive as minhas emoções, de manhã acompanhei o capitão de Bambadinca na visita às instalações do aquartelamento, regressámos logo, eu tinha o pretexto de partir para um patrulhamento entre Samba Silate e Amedalai. Apareceu-me Braima Mané, voltou a levar uma tareia do irmão, tive que ir à feira fazer as pazes entre os dois. No final, Malã, o irmão, coseu-me os calções a troco de uma lata de sardinhas. Não é a primeira vez. Não devia ter voltado a Missirá, já li várias vezes que o criminoso não deve voltar ao local do crime”.

Uma recordação inesquecível de “Literatura dos negros”

Tenho que devolver livros à D. Violete, é uma braçada de obras de valor desigual, apontei tudo no meu caderninho: “Guiné, Alvorada do Império”, 1952, Bolama; “Guiné: apontamento histórico”, por Amadeu Cunha, Lisboa, Litografia Nacional; “Guiné, minha terra”, por Armando de Aguiar, 1964, Agência Geral do Ultramar. Ainda folheei “A Guiné, suas características e alguns problemas”, por Fernando Simões da Cruz Menezes, nada me satisfez. Mas o último livro, “Literatura dos negros, contos, cantigas e parábolas”, pelo padre Marcelino Marques de Barros, publicado em 1900, aguçou-me a curiosidade, devorei e repeti. Li e tomei nota do seguinte extracto do conto “A noiva da serpente”:

“Havia nas terras dos mandingas uma bonita aldeia, a qual com o rumor e o bulício da sua numerosa população animava as clareiras de uma imensa floresta.

É, a diferentes títulos, uma obra de consulta obrigatória para conhecer o que se estava a passar na Guiné, após a implantação da República. Carlos Pereira era o Governador nomeado pela República, 2.º Tenente da Armada, omem entusiasmado e culto. O texto é uma exaltação das potencialidades económicas da colónia, como se quisesse afastar o fantasma de uma região sem qualquer futuro. O acervo fotográfico é insuperável: dinâmica em Bolama, Bissau, Buba, Cacheu, desvela-se as belezas naturais dos Bijagós, ilha após outra. Escolhi este par de Bijagós pela simples razão que me fascina a preocupação do fotógrafo , e que se mantém actual: um pano que funciona como um ecrã que esconde a vegetação circundante,não nos podemos distraír...

Ainda hoje, para as bandas do Sul e não muito longe desse lugar, encontra-se uma praia cujas areias reflectem o sol do meio dia como um grande incêndio: e uma fila de blocos de basalto partidos, tombados, ou suspensos no ar, cinge em hemiciclo essa estância povoada de espíritos encantados, de medos e de fantasmas.

Do outro lado, ao norte, onde os baobás, os cipós e as paudemas terminam com os seus maciços de verdura, desdobram-se, até onde a vista pode alcançar, extensas pradarias mosqueadas de garças brancas, de rebanhos, de mergulhões, de flamingos.

E a uma distância de cinquenta arremessos de lança, destaca-se no horizonte, como um gigantesco ramalhete, um bosque de tamareiras, de fetos arbóreos, e de festões de lianas, a cuja sombra umas nascentes de abundantes águas se ouvem cantarolar no meio de pedregulhos roliços e esverdeados”.

O que mais saboreio desta prosa é a verdadeira aculturação do padre Marcelino. É missionário e nasceu na Guiné, agora sente-se que está receptivo aos floreados literários da época, não sei se estou a ler Trindade Coelho ou Pinheiro Chagas, tenho dúvidas que ele se tenha deixado arrastar pelos odores autênticos da sua terra. Mas gostei muito e guardei regalado o que ele escreveu. É quando vou entregar à D. Violete estas leituras que ela me dá a notícia: “Senhor alferes, já sei mais alguma coisa sobre a Sociedade Agrícola do Gambiel, teve uma triste sorte. Encontrei num Boletim Cultural da Guiné Portuguesa de Outubro de 1948 a seguinte referência, isto num artigo sobre a nossa agricultura. Ora escute: “Ao longo do Geba estabeleceu-se em tempos uma exploração agrícola chamada Gambiel que nunca prosperou devido a erros de técnica na escolha do local para o fim em vista. Quando reconheceram tal erro já era tarde e impossível de remediar... Com esta empresa, da qual restam apenas umas dezenas de ares de cana sacarina, formaram-se núcleos indígenas (mandingas e fulas) que também cultivam cana que vendem à empresa, já próxima do último suspiro”. D. Violete justificava-se: “Não sou assim tão velha, a empresa do Gambiel já deve estar extinta há vinte anos. Mas vou falar com a gente do Cuor. Tenho ainda outras notícias para si...”. Interrompi-a, tinha o pelotão reagrupado, já devia ter partido para o patrulhamento de Samba Silate para Amedalai.

O Ministério das Colónias da 1.ª República pretendeu publicar anualmente um relato de tudo quanto se passava nas possessões do Ultramar. Falhou, mas 1916 teve direito a um bem elaborado anuário. O que tem muito interesse para nós é o mapa da época: os nomes das localidades, o posicionamento das etnias, a designação das diferentes regiões. Olhando o mapa à procura dos sítios onde combati, no Leste, não existe o Cuor, existe Gufie, fala-se em Sambel Nhanta (residência do régulo), mas aparecem em Badora nomes que nos eram familiares, como Fá e Bricama. Geba era muito mais importante que Bafatá. Curiosidades...

Um ataque aterrador a Demba Taco

De Nhabijão Cau a Samba Silate não são só os três quilómetros da carta. Em primeiro lugar, enveredamos pelos velhos arrozais, ora infecundos, vamos até ao tarrafe do Geba, à procura de canoas ou de outros indícios da presença da gente de Madina. Aparentemente, estes locais não estão a ser percorridos, todos os sulcos de ténues picadas estão votados ao abandono. Depois, rumámos para Samba Silate, aqui há indícios, são trilhos desencontrados, não abrem pistas. O sol declina, estugo o passo, incito a caminharmos rapidamente para Amedalai, uma secção da milícia local já terá picado até á ponte de Udunduma, a ver se regressamos a casa já com o lusco-fusco mas em segurança. É nisto que deflagram uns estampidos em cadência, é muito para lá de Amedalai. Chegados à tabanca, o fragor das explosões continua a aumentar, já identificámos dois canhões sem recuo e os morteiros 82 a flagelarem um qualquer aquartelamento. Converso com Mamadu Bari, ele confirma: “Naquela direcção só pode ser Demba Taco (ele acentua o “o” aberto, é capaz de ter razão, na carta escreve-se Demba Tacò), eles vieram com vontade de partir tudo”. Prontamente decido: não vamos regressar a Bambadinca, o Valente das transmissões vai informar o comando que partiremos de madrugada para Demba Taco, agora é impossível, não sei se há minas ou emboscada montada, com a primeira luz do amanhecer iremos ver o que se passou, peço viaturas até Amedalai, e que venha alguém da CCaç 12 ao romper da alva, entretanto, sairemos daqui com os militares e civis de Amedalai. Bambadinca responde afirmativo, estou autorizado a permanecer aqui, amanhã posso patrulhar e devo prontamente dar notícias depois. A mata estremece com as explosões ensurdecedoras, anoiteceu, ardem tabancas em Demba Taco, vê-se o fogo nos céus, daqui a um bocado vai sentir-se o fumo arrastado pela ligeira brisa. Nem parece a época das chuvas, agora está tudo seco, percebe-se a voragem do fogo lançado pelas balas incendiárias das costureirinhas. A hospitalidade de Amedalai surge com comida para todos, Mamadu Bari mandou preparar galinha com chabéu, está uma delícia, é pena ter de a acompanhar com água fresca, os soldados do Pel Caç Nat 52 agradecem oferecendo-se para fazer os turnos da noite, peço uma manta e vou dormitar, derreado, a olhar o céu estrelado, pedindo a Deus que poupe Demba Taco.

E com a primeira luz do dia partimos, ficam duas secções à espera do grupo de combate da CCaç 12. Sempre apreciei todo o itinerário entre a velha tabanca de Colicumbel e o palmar de Taibatá, há amplas lalas que sempre dissuadiram as gentes do Buruntoni, avista-se quem vai e quem vem à distância de vários quilómetros. Vamos velozes, em menos de duas horas, mesmo usando todas as cautelas, chegamos à tabanca em autodefesa de Taibatá onde fomos recebidos efusivamente por Cassamá Baldé, o comandante das milícias. Estão todos apreensivos, aguardavam uma coluna de auxílio, não esteja montada uma cilada à entrada de Demba Taco, aqui o mato é frondoso, ainda não se tinham capinado as bermas da picada. Levamos tudo quanto é padiola, estojo de maqueiro, os apontadores de dilagrama à frente, a flanquear os picadores. O odor a queimado é persistente, não há gente nas vizinhanças de Demba Taco. Já próximos, começamos a gritar a anunciar a chegada. Não somos recebidos em festa mas há contentamento no olhar de todos. Cherno Baldé, o comandante da milícia, é a máscara da exaustão e é com ele que percorremos os escombros do ataque devastador: sete moranças reduzidas a cinzas, caíram algumas fiadas de arame farpado, três adultos e cinco crianças estão estilhaçados com alguma gravidade, embora não haja perigo de vida.

Enquanto percorro esta terra calcinada, interrogo-me sobre a estratégia de terror montada entre povos africanos da Guiné. É verdade que neste regulado do Xime, desde a extinta Moricanhe até Amedalai, pontificam os beafadas que juraram resistir até ao fim, quem foi para o mato já decidiu há bem oito, nove anos, as escolhas estão feitas. Olhando aqueles semblantes cansados, eu tinha de me perguntar qual o perdão dos homens para estes cercos brutais, pilhagens e raptos, destruições imprevisíveis, os anos passam e vivo em agonia com este arremedo de guerra civil sob a caução das autoridades portuguesas. Com as padiolas aos ombros, regressamos a Amedalai onde as viaturas levam os sinistrados para Bambadinca. À tarde trouxemos cunhetes de munições, rolos de arame farpado, tesouras corta-arame, o indispensável para reinstalar alguma segurança. Ainda não sei, mas é a última vez que visito Demba Taco. Quando abraço Cherno Baldé é também pela última vez. Coisas que acontecem na paz e na guerra.

Um pequeno relatório de duas leituras muito importantes

Capa de João da Câmara Leme,Texto integral pela primeira vez publicado em Portugal,tradução de Cabral do Nascimento, Portugália Editora, 1962.Na prisão de Reading,condenado por «actos indecorosos»,Wlilde escreve uma longa carta a Lord Alfred Douglas, de quem fora amante.É um dos documentos mais confessionais e pungentes da melhor literatura.Wilde chamou à carta »In Carcere et Vinculis».É a última obra em prosa de Wilde escrita em inglês.È a história de uma relação que terminou no enxovalho de Wilde.Não falta à narrativa um tom amargo e de reprovação que irá culminar numa profunda reflexão sobre o amor cristão.Transcrevi em Bambadinca o final da carta:«Não temas o passado.Se te observarem que é irrevogável,não acredites.O passado, o presentee o futuro são apenas um instante aos olhos de Deus,perante quem diligenciamos viver.Tempo e espaço, sucessão e extensão:meras condições acidentais do pensamento».

De Profundis” é a última obra literária de Oscar Wilde em língua inglesa. É uma carta confessional dilacerante em torno de um amor impossível. Escrita na prisão Reading, fala dessa relação fatídica que destruiu a reputação de um dos maiores ficcionistas britânicos de todos os tempos. Descrevendo a amargura dessa relação insana que terminou no enxovalho e na condenação de Wilde, a narrativa confessional termina numa apoteose de esperança e sentida humildade “O que está à minha frente é o passado. Tenho de olhar para ele com diferentes olhos, fazer com que o mundo o observe com diferentes olhos e com que Deus o veja com diferentes olhos. Isto não o conseguirei se não o desconhecer, ou o menosprezar, ou enaltecer, ou o desmentir. Devo aceitá-lo todo inteiro, aceitando-o como parte inevitável da evolução da minha vida e do meu carácter; curvando a cabeça a tudo o que padeci”. A tradução de Cabral do Nascimento é insuperável.

Dos anos 50 para os anos 60, as Edições Bestseller, do Brasil, publicaram algum do melhor Simenon.Depois, a Bertrand revelou o humaníssimo Comissário,que fizera a tarimba nas esquadras,nos anos 60.Este Maigret não é bom,é fabuloso: um psicopata percorre o bairro de Montmartre matando mulheres como um verdadeiro serial killer.Após algumas diligências decorrentes de um cilada montada por Maigret,Marcel Moncin é detido.Maigret vai ao fundo de uma tragédia de fracasso e ódio pelas mulheres.A confissão do mulher do psicopata é um das páginas de ouro da literatura policial.

“Maigret arma uma cilada”, de Georges Simenon é também fascinante. Um serial killer aterroriza Montmartre, o comissário mais humano do mundo arma mesmo uma cilada e o resultado é mais digno de um filme de horror do que de um livro policial, é uma descida aos infernos de mentes doentias, duas mulheres que pretendem ter um psicopata nas mãos. O interrogatório final tem dignidade para constar nas páginas de ouro da melhor literatura policial de todos os tempos. Sim, foram boas leituras que me suavizaram os fantasmas e o ataque devastador a Demba Taco.

Agora, vou a correr a Bissau, serei ouvido no julgamento de Quebá Sissé, o nosso inesquecível “Doutor”. Depois volto para a rotina por pouco tempo. Aguarda-me o mês de Julho, todo o mês de Julho, na segurança ao alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Foi uma nova rotina, mas cheia de surpresas. Como irei contar.
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Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)


Texto de Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Operação Macaréu à vista

Episódio XLII

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (5) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA

Beja Santos

Para Comandante Avelino Teixeira da Mota, em Luanda


Sr. comandante e meu querido amigo,

Cá recebi as suas notícias, vejo que está asfixiado em papel e sempre a investigar nas poucas horas disponíveis. Surpreende-me vê-lo tão indiferente com as atracções de Luanda. Peço-lhe que não se esqueça de contactar o meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, ele está ansioso por o conhecer. Estou agora nos Nhabijões, o reordenamento é enorme, mais de mil e seiscentas pessoas estão envolvidas, a obra de engenharia é de grande fôlego, estamos a fazer policiamento, tem havido raptos, roubos e episodicamente os nossos vizinhos de Madina lançam umas canhoadas da outra margem do Geba. Não percebo muito bem para quê, é puro fogo de vista, eles sabem que nós sabemos que é aqui que se abastecem, aqui têm familiares que lhes dão informações. Depois dos policiamentos, aproveito as últimas horas de luz, leio o que posso.

Venho revelar-lhe o meu espanto quanto a um documento de que já me tinha falado, confessando-lhe que a sua leitura foi uma feliz surpresa. Trata-se do relatório do administrador da circunscrição de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, referente a 1914. Foi uma neta do régulo Mamadu Sissé que mo emprestou através de uma professora de Bambadinca. Nunca li nada igual, o desassombro, o recorte literário, o entusiasmo das descrições tanto dos usos e costumes como das lutas entre etnias; Calvet de Magalhães fala inclusivamente de termos linguísticos locais e até da maneira como se deve resolver o assoreamento do rio Geba.

É evidente que não lhe estou a dizer nada que não saiba, quem foi apanhado de surpresa fui eu. Pergunto-me se este relatório é único, tal o inédito destas informações. Por exemplo, fico a saber que o régulo do Cuor, na época, se chamava Abdul Jujaz (não era Abdul Indjai?). Ele escreveu este relatório para o governador em Bolama ou queria fazer chegar as suas preocupações a Lisboa, candidatar-se a um qualquer cargo político? Não acredito que fosse comum na época escreverem-se coisas como estas: "O corpo de guardas é insuficiente! Não chegam mesmo para policiar a população; daí resulta que esta administração tem constantemente de encarregar diversos indígenas para irem desempenhar funções inerentes aos guardas, sem receberem remuneração alguma"; "Estes indivíduos recebem apenas uma instrução superficial e quando já sabem soletrar e juntar duas letras dão por finda a sua instrução, sendo, no futuro, uns descontentes, porque não vêem realizadas as suas aspirações, na escola não lhes criaram hábitos de trabalho"; "Os sírios começaram a aparecer em 1911 e são hoje uma elevadíssima colónia... O indígena é uma vítima nas mãos destes indivíduos que sem consciência nem escrúpulos o exploram". Estes são exemplos avulsos da linguagem crua de Calvet Magalhães. Penso que no futuro não se poderá estudar a situação da Guiné nesta época sem o ter em conta. Tomei nota do que ele escreve sobre os empregados aduaneiros: "Quando tomei posse do lugar de residente nesta circunscrição, em 1909, havia apenas um posto fiscal a que se chamava posto fiscal do Boé. Nunca houve, porém, posto algum no Boé, pois o que havia era em Pai-Ai, muito aquém do Boé. O aspirante ali destacado fazia o que queria. Apreendia borracha, mercadorias e dinheiro aos indígenas do nosso território, enfim, um verdadeiro salteador de estradas e nunca um funcionário da Alfândega. O que é, porém, uma verdadeira lástima, é o corpo de guardas fiscais. São recrutados entre indivíduos que já têm longa permanência na província, cheios de vícios e de uma indisciplina inacreditável. O guarda que estava em Bambadinca embriagava-se todos os dias, acabando por querer agredir o chefe de posto daquela localidade com um faca. O que estava em Che-Che encontrei-o no caminho a chorar, dizendo-me que ia para Bafatá, porque não podia viver sozinho no mato! O que foi para Che-Che substituir o primeiro não vem a Bafatá quando é chamado pelo chefe de posto fiscal e cada mês apresenta apenas o rendimento de cinquenta a sessenta centavos... Isto é para que V. Exa. possa avaliar a qualidade de pessoas que existe na classe de guardas fiscais!" Ele devia ser esforçado, procurou conhecer os rudimentos da etnografia e da antropologia. Fala da raça fula como formada por nómadas que vieram residir para os territórios dos mandingas e beafadas. E escreve: "A cor do fula varia entre a cor do bronze florentino e o negro mais carregado. Reputam-se brancos, a estatura é regular, têm a fronte bem desenvolvida, nariz aquilino, boca grande, os incisivos proeminentes, os membros perfeitamente bem modelados. Uma diferença enorme existe entre a mulher fula e a mulher fula-preta. A primeira tem glândula mamária perfeitamente esférica enquanto que a segunda tem-na em forme de pêra... Os mandingas têm as espáduas altas, o pescoço mais curto, o esqueleto mais forte do que os fulas". Decididamente, ele tinha pendor por estes estudos etnográficos, escreve sem hesitar, como se dominasse a matéria. "Todos os fulas-pretos ou fulas cativos da região Geba guardam respeito aos fulas forros. Todos os fulas-pretos da região são descendentes de mandingas, beafadas e soninqués... As crianças, criadas de pequeninas no meio dos fulas, e vivendo com eles em comunidade, herdavam-lhes todos os hábitos e esquecendo as suas línguas primitivas só falavam a fula. Daí resulta o chamar-se-lhes fulas pretos porque sendo os fulas forros de tez acobreada e não se julgando pretos fizeram esse distinção". Desculpe estar a ser enfadonho, até pretensioso, falando-lhe do que conhece muito bem. Mas tomei este Calvet Magalhães como um funcionário raro na observação, na crueza da narrativa, embalado por encontrar soluções, por combater a corrupção, por querer conhecer a religião, a organização social, a língua dos povos que administra.

Para lhe ser sincero, sinto que a minha missão aqui está prestes a findar. Vi partir os meus camaradas com quem convivi praticamente vinte e três meses, os que acabam de chegar parece que não precisam da minha experiência. Muitos dos meus soldados partem também, o contingente actual não tem praticamente nada a ver com aquele que eu conheci em Agosto de 1968. E é ingrato repetirmos dia após dia, semana após semana, as mesmas colunas de reabastecimento, as idas ao correio, as emboscadas nocturnas, a protecção das populações. Não é cansaço que sinto, é falta de aproveitamento. Ninguém nos pergunta como tem evoluído a guerra, como responder à implantação do inimigo no terreno. Não o incomodo mais com os meus desabafos, vou pôr agora os meus aerogramas a Bambadinca e passo a noite a montar segurança na ponte de Udunduma, sempre com o meu pelotão repartido. Até breve e, por favor, continue a escrever-me.

O comandante Teixeira da Mota, em aerograma de Agosto de 1969, falou-me pela primeira vez nos sónôs, perguntou-me se já vira alguma e se não me importava de perguntar junto das gentes do Cuor. Ele escreve numa comunicação que apresentou em 1963: "Objectos constituidos por hastes de metal com cerca de 1,20m de altura e com a parte inferior adelgaçada ou terminando em ponta de seta. Ao longo da haste há por vezes braços laterais, terminando frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando fuguras humanas. No topo da haste principal estão encaixadas esculturas de bronze representando cavaleiros. São simbolos da realeza ou da chefia, antes da islamização". Contituem um património de incalculável valor sobre a velha arte animista, bem gostava de ter um.


Teixeira da Mota vive afogado em papéis, no Comando Naval, em Luanda, viaja pelos rios Zaire, Zambeze, Cuíto e Cuanza. Fala da sucessão de Amílcar Cabral e suspira por regressar ao Centro de Estudos de Cartografia Antiga, onde, aliás, irá produzir as suas últimas magníficas obras de investigação.


Para Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father,

Chegaram os seus livros, comecei logo a ler "Cien años de soledad", de Gabriel García Márquez. Meu Deus, que livro assombroso, mesmo não percebendo eu muitas da expressões deste castelhano da Colômbia. Já devorei quase cem páginas, a família Buendía e a povoação de Macondo vão ficar na literatura universal, estou absolutamente certo: magia , feitiço da palavra, a atmosfera das Caraíbas, gente retirada da literatura das fadas e dos génios de encantar. Muito obrigado por tudo.




Capa dos estúdios das Publicações Europa-América, tradução de Eliane Zagury. O exemplar que li devolvi-o ao Ruy Cinatti em 1970, era edição em espanhol, bem sofri mas deslumbrei-me. É um dos livros da minha vida, embora prefira Amor em tempos de cólera, a paráfrase do amor eterno. Todos os elogios apoucam ouvir falar deste colosso literário e não o devorar, primeiro, saboreando-o, a seguir: Muitos anos depois,diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo... Penso que o livro surgiu entre nós aí por 1971, continua êxito imparável.



O que se passa por aqui tem pouco interesse: estou nos Nhabijões, vejo uma nova povoação crescer, ando entretido com várias lides, desde destruir canoas do inimigo, a fazer autos de justiça militar, regresso às tarefas de professor, às emboscadas e apoio, quando me pedem, com informações o novo batalhão que acaba de chegar a Bambadinca. Em princípio será assim até ao fim do mês, parece que depois irei montar a segurança de uma estrada que está a ser alcatroada a partir do Xime, até Bambadinca.

Todo o tempo que posso reservar aos meus cadernos é destinado a leituras sobre a Guiné, aqui não há bibliotecas, nem mesmo em Bafatá encontro publicações que permitam conhecer o meio local, leio o que me emprestam. Imagine que eu já tinha a separata que me ofereceu sobre a casa timorense, comunicação que V. apresentou num congresso internacional de etnografia, em 1963. Pois as actas desse congresso foram-me agora emprestadas, reli o seu artigo que vem junto à comunicação de Teixeira da Mota, a dele sobre os bronzes antigos, os sónôs. O comandante já me tinha escrito em Agosto do ano passado a pedir-me para eu perguntar no Cuor e aqui em Bambadinca se havia vestígios de sónôs. Ninguém tinha visto essas esculturas que são ferros com mais de um metro e vinte de altura que têm braços laterais, também de ferro, que terminam frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando figuras humanas. De acordo com o nosso comum amigo, são símbolos da realeza ou de chefia antes da islamização. Certos actos importantes para a vida colectiva, como fazer a guerra, não eram decididos sem previa consulta ao sónô. Estas esculturas entraram em declínio no século XIX, com a islamização dos soninqués. Estes registos que vou fazendo despertam-me para a realidade dos meus estudos, se é verdade que ainda tenho deveres com os meus soldados, os Nhabijões têm metas próprias, não me provocam o fascínio de Missirá, não são a minha gente. Qualquer dia estou por aí, tenho muitas saudades suas, não pode imaginar como a sua presença é poderosa, as suas cartas têm sido um dos pilares da minha resistência. Mais uma vez muito obrigado por tudo e que Deus cuide da saúde do Dear Father.


Tinha estado a ler o livro de Apollinaire, que Ruy cinatti me enviara. É poesia sem interesse nenhum, é mesmo a última incursão no género. Retive 2 ou 3 imagens com alguma expressão intrínseca: «abicagem da galáxia numa cabana»; «falo do amor no açude dos tímpanos»; «ano versado, na parede brota um palavrão: guerra», nada mais. Mas senti os meus 25 anos, queria recomeçar a vida, estava apreensivo pela separação em marcha da solidariedade cimentada com os meus soldados.


Foi indiscutivelmente um grande poeta, inclassificável, um ilustre antropólogo, um amigo devotado de Timor. Deu-me uma companhia exemplar nos dois anos da Guiné, tenho legítimo orgulho em referir as suas cartas, os seus poemas que ali recebi, guardo a profunda saudade dos seus cuidados, comigo e com os meus soldados feridos. Encarou com o maior estoicismo a sua morte, em 1986, no Hospital de Santa Marta. Legou todos os seus bens à Casa do Gaiato.

Para Cristina Allen Santos

Meu adorado amor,

Bambadinca mudou muito com a partida destes amigos a quem tanto devo. Penso que o David Payne em breve vai para Lisboa, levei ao Xime o Augusto e o Calado, foi a segunda e a última leva do BCaç 2852. Não me perguntes como vai ser o meu futuro, aguardo instruções do novo comando. Por ora, a minha base está nos Nhabijões, mas não penses que são férias, as idas ao Xitole, as noites na ponte de Udunduma, as patrulhas às populações em autodefesa fazem parte do meu quotidiano. Também o pelotão começa a estar irreconhecível: partiu o Queirós, perdi um dos meus colaboradores mais preciosos, o Cruz, que viera substituir Alcino, baixou ao hospital com doença tropical. O Domingos já tinha partido, não resta nenhum dos cabos do tempo em que aqui cheguei.

Esta atmosfera não é a de Missirá, embora as populações do Cuor não percam uma visita a Bambadinca para me cumprimentar. Aliás, vieram convidar-me a ver a instalação eléctrica, o gerador está finalmente em funcionamento. Disse inicialmente que não, depois disse que sim, trouxe aquele gerador a ferros da engenharia de Bissau. O Mamadu Camará e o Queta Baldé vão partir para os Comandos, o Cherno já me informou que também partirá quando eu abandonar o pelotão, o mesmo me disse Adulai Djaló, o Campino. Fazemos toda a rotina mas aqui não há a chama de todo o regulado do Cuor, não me sei explicar. Leio muito, mas as tarefas de rotina também têm o seu peso: quase uma vez por semana vamos ao Xitole, ando a tratar do processo de Bacari Soncó para receber o prémio "Governador da Guiné", o processo de atribuição da Cruz de Guerra ao Mamadu Camará foi-me devolvido para dar informações complementares, voltei a ir a cerimónias de condolências. Desta vez, fui cumprimentar Fatu, a minha lavadeira, está inconsolável com a morte do seu Zé, um furriel dos Comandos que chegou a andar em operações comigo, pertencia ao pelotão do Saiegh, nos Comandos em Fá, ficou despedaçado por uma mina anti-pessoal na bolanha de Ponta Varela.

Bom, sigo agora para os Nhabijões, fico lá dois dias. Depois vou combinar com a D. Leontina dos Correios e telefono-te. Os meus soldados Serifo Candé e Ussumane Baldé foram premiados e vão passar férias a Bolama, podes imaginar o orgulho que sinto.

Depreendo da tua carta que não tens parado de procurar casa para nós. Sei que vais ser bem sucedida, vamos ter uma casinha muito bela e tu vais fazer milagres com o teu talento de decoradora. Mil beijos, toda a devoção, toda a minha saudade, está próximo o nosso sonho de Agosto, o nosso reencontro.

Para Emílio Rosa, em Bissau

Meu querido Padrinho,

Só duas palavrinhas para te agradecer tudo: a casa que nos emprestaste com a Elzira, a companhia que nos ofereceste com os Payne, os pequenos mas tão agradáveis passeios a Ponta Biombo, a Safim, a Nhacra. Foste um padrinho exemplar, tornaste a nossa lua-de-mel aprazível nessa cidade fardada. Por aqui o tempo corre, oiço música, acabo de ler "De Profundis", de Oscar Wilde, um Simenon memorável, estou a ler um colombiano de nunca ouvi falar, Gabriel García Márquez, toma notas dos livros que me emprestam sobre a Guiné (acalento o sonho de escrever sobre ela, mais tarde ou mais cedo), o resto é rotina, há mesmo um certo marasmo na actividade operacional de parte a parte, parece que o PAIGC está a avaliar o novo batalhão que chegou a Bambadinca.

Perguntas-me quando é que passo por Bissau. Recebi hoje uma convocatória do tribunal militar, vai ser julgado o meu soldado Quebá Sissé, por homicídio involuntário de outro, o Uamsambo. Será uma viagem muito rápida, não deixarei de te comunicar, vamo-nos encontrar, para mim é sempre uma grande alegria estar contigo. Fica a aguardar as minhas notícias, recebe a profunda estima do afilhado a quem forneceste toneladas de material de construção civil e toneladas de cordialidade e apreço.

Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Obrigado pelas suas notícias, folgo que esteja muito melhor do seu reumático. Está ansiosa por me ver, que direi eu? É previsível que em Agosto, na pior das hipóteses Setembro, eu esteja de regresso. A guerra por aqui está muito calma, houve mudança de tropa em Bambadinca, passo a maior parte do meu tempo numa povoação que está a ser construída na margem esquerda do Geba, Nhabijões. Obrigado pelas notícias que me dá do Paulo, do Fodé e do Alcino. O estado de saúde do Paulo é muito preocupante, o Fodé adapta-se á prótese, o Alcino coxeia, penso que vai ficar com deficiência para toda a vida. A Cristina continua a procurar casa para nós, está a fazer exames, sei que tudo vai correr muito bem. Penso que dentro de dias vou de fugida a Bissau, terei o cuidado de lhe telefonar. Um dos meus camaradas de Bambadinca que dentro de dias segue para Lisboa ofereceu-se para lhe levar umas lembranças, espero que goste dos tecidos que lhe mando e uma pulseirinha em prata. Não esteja preocupada comigo, gozo de saúde, voltei a fazer ginástica, sinto o prazer de dar aulas aos meus soldados sempre que é possível. Prometo-lhe escrever amanhã uma carta mais longa, vou para os Nhabijões, à noite tenho um petromax e conto-lhe com mais tempo tudo quanto tenho feito Receba muitos beijinhos deste filhos que nunca a esquece e que tento lhe deve.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3120: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (41): Um mês nos Nhabijões