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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7584: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (12): De Maná até Madina de Gambiel, depois Ponta do Inglês

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Naquela altura, o Tangomau sofria a valer, era uma corrida contra o tempo, tinham falhado vários itinerários, todos eles de valor precioso: o Cuor, na região de Finete junto ao Geba, até Aldeia e Gã Gémeos; a região de Fá; as tabancas beafadas perto de Amedalai; Samba Silate e os Nhabijões.
Esta foi uma manhã inesquecível. Mas a tarde, passada na Ponta do Inglês, não foi menos. E amanhã, domingo, vamos ter festa, os velhos combatentes vão conviver e recordar os seus mortos.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (12)

Beja Santos

A partir de Maná até Madina de Gambiel. A seguir, a Ponta do Inglês

1. O Tangomau está inquieto, sem retórica até se sente um pouco angustiado. Dormiu agitado e sente culpas no cartório, veio à Guiné por razões muito precisas ou lineares, sobressaltou pessoas e instituições para ter chegado a um programa lisonjeiro com alguma estadia na região de Bambadinca. Mas agora tudo lhe sabe a pouco, vai para a casa de banho refrescar-se com o duche de caneco e faz perguntas sem resposta: é justo regressar a Bissau sem ver a malta das tabancas beafadas, até Moricanhe? Andaste por aí a perguntar por gente que mora a escassas dezenas de quilómetros e não ousas pôr-te ao caminho, tens tanta soberba que até pensas que lhes compete serem eles a fazerem esta longa marcha de candonga ou bicicleta? Eras tu que querias fazer Finete a Missirá junto ao Geba e afinal rendeste-te ao argumento que está tudo alagado? És negligente, tens a mania das facilidades, perdeste o gosto pelo risco, és um merdas, disfarçado de caminheiro, só queres a vida facilitada.
Com os alvores do dia, passou do estado melancólico para a excitação, hoje vai começar por se despedir do Cuor, visitando Maná, Sansão e Madina de Gambiel, poderá dizer por quase todo o Cuor está conhecido, sem remissão. O que na prática não é verdade. Andou ali a discutir com o Fodé Dabaha que tinham ido a Madina de Biassa. Tinham sido quilómetros a mais, tinham chegado ali perto de Sancorlã, tabanca que visitara várias vezes no passado, em patrulhamento. Pedira para visitar Salá e Quebá Jilã, rendera-se ao argumento das bolanhas alagadas e estradas intransitáveis. Lânsana Sori devia ter entrado mais cedo na expedição, paciência. Agora, impunha-se usar o dia, intensamente. Lânsana chegou, pontualmente, fizeram-se as compras no mercado do Bambadincazinho, ei-los à desfilada do Bairro Joli à Bantanjã, daqui para Finete e depois Canturé. Começa a ritual das toranjas, aqueles citrinos que matavam fome e sede nas idas e vindas diárias a Mato de Cão. São árvores miraculosas, quase irãs, merecem uma imagem para a posteridade.



2. Apresentam-se mais cumprimentos a Malã Mané, o chefe de tabanca de Canturé, acena-se à população e ruma-se para a velha estrada que ligava no passado o Enxalé a Geba. Esta estrada exerce um estranho fascínio sobre o Tangomau, e logo desde Agosto de 1968. Vale a pena, resumidamente, explicar porquê. Dentro dos 16 itinerários alternativos entre Missirá e Mato de Cão (bem divulgados no mercado de Bambadinca de modo a que a informação chegasse a Madina, e os inibisse nas iniciativas de emboscadas e minas) atravessar aquela estrada era uma obrigação. Mas uma obrigação com fascínio, e não se exagera, basta tê-la percorrido. Era alcantilada em muitos pontos. Numa das margens, à direita, de quem ia de Missirá para Gambaná, muito densa, não foi por acaso que o PAIGC escolheu esses pontos em emboscadas passadas, na outra berma era tudo aberto e luxuriante, basta pensar em Canturé e Maná. Chegava a ter rectas de um quilómetro, era uma vista desafogada, de um lado, uma inquietação permanente de outro, mas tudo numa atmosfera de beleza selvagem, expectante. E um silêncio só interrompido pelas viagens dos pássaros e o restolhar da fauna de pequeno porte. No passeio de hoje, o Tangomau delicia-se com essa estrada perdida, quase sem préstimo, para chegar a Maná nem vai ser difícil, Lânsana Sori inflecte para a direita, muito antes de se passar de Cancumba para Missirá. É um renovado prazer, agora Maná tem vida, a tabanca começou a ser reconstruída logo em 1975, não tomem o Tangomau por pedante ou excessivo, agora que se entrou pelo trilho e se avista Maná, ele referencia o ambiente como um todo. É bem recebido por Silá Sani, o chefe de tabanca. Aqui vivem 175 pessoas, o Tangomau mostra os livros, pela enésima vez pedem-lhe que os deixe ali, lamentavelmente não é possível, mas eles estão à disposição em Missirá. Tiraram-se fotografias, por azar do destino tudo se perdeu e é por isso que se mostra a fonte de Cancumba, um dos lugares míticos do Tangomau. Só quem ali viveu é que pode compartilhar da alegria em saber que aquela fonte dá vida a Cancumba e mesmo a Missirá, pode recordar o pesadelo do abastecimento quando as duas viaturas estavam empanadas.



3. Em alvoroço, o Tangomau retoma à velha estrada que ligava Bissau a Geba. Agora quer ir a Sansão, terreno emblemático dos guerreiros do Cuor. Aqui, foi Sambel Nhantá, aqui combateu Infali Soncó, foi obrigado a recuar perante as tropas portuguesas, em Abril de 1908. A motocicleta passa por Missirá, novos abraços efusivos, o Tangomau obtempera a todos os pedidos, possíveis e impossíveis, desde equipamento de futebol a material escolar. Bantan Aiderá e Nhali Cassamá, esta última viúva de Quebá Soncó e que há poucas horas visitaram o Tangomau em Bambadinca, olham-no atónitas, parece que a motocicleta transporta uma alma do outro mundo. Até Lamine Suane, o filho de Cherno Suane, o guarda-costas do Tangomau pede fotografia para o pai ver em Lisboa. Aparece a correr Braima Sani, que veio de Maná, Nhali Cassamá indica o caminho para Sansão. O Tangomau leva o coração em festa, ali há vida, quase todos os dias se percorria Sansão então tabanca morta, com as suas hortas ao abandono. É recebido por Aladje Lamine Cassamá, há abraços, perguntas, mostram-se os livros. É nisto que começam os prodígios da manhã, dois amigos se apresentam, felizmente que a máquina fotográfica não traiu o evento. Eles são Dauda Mané, aquele menino que ficara surdo no ataque a Missirá no Natal de 1966, Dauda fora enviado ao hospital, regressou sem diagnóstico; a seu lado, temos Aladje, que o Tangomau tão bem conhece, naquele tempo era inimaginável supô-lo chefe de tabanca em Maná. O admirável diz tudo é conversa com Dauda, ele olha para os lábios do interlocutor, percebe e sente tudo. Sim, sente, aqueles abraços vêm cheios de meiguice, estão muito para além da falta de compreensão dos sons. Quanto o Tangomau agradece este afago, este olhar maravilhado de Dauda Seidi!



4. De regresso a Missirá, multiplicam-se os conselhos para chegar a Madina de Gambiel. São talvez dez quilómetros até chegar à fronteira do regulado do Cuor; uma fronteira com paraíso, é esta a recordação que guarda o Tangomau, uma atmosfera edénica, com palmares soberbos, as palmeiras de Samatra que Armando Cortesão, mais tarde um dos maiores cartógrafos do mundo, para ali levou. São bolanhas úberes, uma fertilidade espantosa, tudo o Tangomau conheceu ao abandono, como terra de ninguém, embora as populações na órbita do PAIGC as cultivassem do lado de Mansomine. É uma viagem extasiante, umas vezes dentro de um carreiro com a frescura das copas dos cajueiros praticamente entrançados, outras sentindo as hortas cultivadas, e depois o desfrute das águas e do arvoredo combinados. Caminhava-se para o paraíso de Gambiel.



5. A tabanca de Madina de Gambiel é modesta mas está cheia de vida. O Tangomau pede para falar com o chefe da tabanca, alguém parte à procura da individualidade, entregue as fainas agrícolas. Outra pessoa levanta-se de um banco de madeira e olha directa e mansamente e exclama: “Reconheci-te pela voz e pelo andar. O teu nome é… Eu sou o Ieró Baldé, fui teu soldado milícia em Missirá, até Novembro de 1969”. O Tangomau é quase derrubado pela emoção, tal coisa nunca lhe acontecera, se sentir a fome e quisera comer fruta e bolacha Maria e beberricar água, tal precisão partiu instantaneamente. Agarra na mão de Ieró e vão a conversar, como em Novembro de 1969, falam de famílias, sobretudo dos filhos, o Tangomau pergunta-lhe por camaradas como Gibrilo Embaló ou Tomani Sanhá ou Sila Sabali, Ieró não tem notícia de nenhum deles. E assim chegam à bolanha de Madina de Gambiel, dois quilómetros à frente, fazem o percurso a pé, vão acompanhados por curiosos, cenas destas não se vêem todos os dias.



6. O Tangomau está decepcionado com o que vê à volta. Afinal, para construir a tabanca, a estrada sobre o rio Gambiel, arrasaram o palmar, continua a haver beleza mas o magnetismo, o feitiço dos palmares a beijar a água em abundância desapareceu. O Tangomau explica que esteve em Madina de Biassa que afinal fica para lá de Sancorlã e que ali insistem que é Madina de Gambiel, foi assim que Djlimamadu Camará, exímio caçador e que sempre andara nas florestas com Cibo Indjai, sempre a designou. Os de Madina de Gambiel andam furiosos com esta confusão, nem chega a ser uma rivalidade como Nazaré e Peniche, é um abuso de confiança, uma usurpação de quem vive no Gambiel não gosta e recalcitra. A grande emoção, afinal, foi rever Ieró Baldé. Não deve haver ninguém no mundo que não aprecie ser reconhecido imediatamente depois de mais de 40 anos de separação. Mais palavras, para quê?



7. A manhã vai alta, urge regressar, Lânsana Sori quer comer e repousar em Bambadinca. De Madina de Gambiel parte-se para Missirá, quando o Tangomau acena para todos na tabanca sente o coração contrito, há sempre presságios, pensamentos negros do género: terá sido a última vez que visitei Missirá, lugar eleito? A motocicleta prossegue veloz em terreno alcantilado, sempre a fintar pequenos abismos e charcos esverdeados. A excitação apazigua-se vendo Maná ao longe, atravessando Canturé, isto com uma enorme falta de coragem de ter pedido a Lânsana Sori para descerem até Gambaná, é aqui que começa uma recta espectacular com Malandim à esquerda e Chicri à direita, não fosse aquele cansaço brutal, a roçar o desumano, e todos os dias valia a pena vir aqui, palmilhar mais de duas dezenas de quilómetros. Mas não, houve prudência, seguiu-se até perto de Finete e inflectiu-se para a Bantajã Mandinga e daqui para Bambadinca. Aliás há imensos pormenores a tratar com Calilo Dahaba, o homem grande Fodé decidiu que a festa amanhã não é cabrito é foleré bem especial. Para quem está esquecido, o foleré mete batata, candja, alho, calda de tomate, óleo, orégãos, djacatu, sal, cebola e caldo de carne. A proteína é à escolha, e o homem grande Fodé decidiu que vai ser carne de vaca com osso, da costela. Assim seja, o Tangomau quer é regozijo neste reencontro, passar o dia na festividade com todos aqueles que foi possível encontrar. Por insólito que pareça, mesmo junto ao Geba, quando os viajantes deixaram Finete, o Tangomau pediu para captar a última imagem, a despedida do Cuor, tem consciência de que não há grande beleza naqueles eriçados com a mata ao fundo. Mas foi o lugar em que viveu e de que se vai separar, não sabe se pela última vez. E agora vamos descansar. Lânsana larga o Tangomau num espaço fresco onde fica à frente de uma cerveja, com a sua bolacha Maria, goiabas e algumas bananas-maçã. Um rádio batuca uma melopeia pouco estridente. Ali ao pé, as vozes no mercado são cada vez mais sussurrantes, com a onda de calor todos procuram sombra, descansar o corpo. Com um frémito de prazer, o Tangomau prevê uma tarde apaixonante. Daqui a um bocado partem para a Ponta do Inglês, um dos roteiros mais cobiçados para esta viagem. Estonteado pelo calor, ainda com remorsos pelas viagens que não fará e que tanto gostaria de fazer, o Tangomau deslizou para a escuridão. Na vaga do calor, adormeceu.


(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P7571: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (11): Regresso de Madina e Belel, com paragem em Canturé

sábado, 8 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7571: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (11): Regresso de Madina e Belel, com paragem em Canturé

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2011:

Malta,
Este dia 26 vai desdobrado, tal o estendal de encontros e desencontros. Até num lastro de camião se viajou com a motocicleta de Lânsana Sori bem empanada.
Demasiado tarde, descobriu-se que a solução para chegar aos lugares mais ermos é mesmo uma motocicleta.
O Tangomau está tocado por ter sido apanhado pelas circunstâncias imprevisíveis, ele que se julgue metódico e disciplinado como um alemão. Por engano, está a horas de regressar e os horários não sopram de feição, haverá objectivos que não se cumprirão.
É por isso que a viagem nunca termina, é sempre possível recomeçá-la, haja determinação por parte do viandante.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (11)

Beja Santos

Regresso de Madina e Belel, com paragem em Canturé

1. É indiscutível que a passagem pelo Enxalé foi empolgante, há ali vestígios que mereciam uma atenção maior, estudo aturado e, sabe-se lá, um projecto de recuperação. A vida dos camaradas não deve ter sido fácil mas o ambiente é muito belo, o Tangomau recordou as duas viagens que lá fez e até pôde, com dificuldade das imagens difusas com 40 anos, recordar como o quartel ocupava um espaço central circundado pela compactação das moranças. Agora é tudo diferente, desafogado, são panorâmicas amplas, ali ninguém se pode queixar de claustrofobia ou ter sentimentos dominados pela aridez ou falta de água. Aqui se junta a última imagem de um plinto que tanto entusiasmou o Tangomau. Há já uma outra versão que seguiu no episódio anterior. Mas fica-se a guardar muito respeito por esta pedra escalavrada onde o homem cinzelou a sua presença, nada disto tem a ver com as garrafas lançadas ao mar, são monumentos aos vindouros, qualquer coisa como: “Recorda-te, camarada subsequente, aqui lavrámos a paz e a guerra, derramámos sangue, penámos as penas do inferno, não nos esqueças, chegará a hora em que sentirás vontade de gravar as tuas alegrias e as tuas dores, neste ou num novo plinto, até à consumação deste sofrimento.



2. É um momento extraordinário, o que se passou em Belel. A tabanca é pequena, os homens ainda estão na horta. Pediu-se para falar com alguém de uma idade próxima do Tangomau. E responderam: “Vamos já chamar o chefe da tabanca e um antigo combatente aqui de Belel”. Foi assim que chegaram à fala Farazinho Pereira e Sampere Mendes, ouviram atentamente as razões da viagem, o Tangomau identificou-se, mostrou os livros, pediu informações, quis saber quem ali vivia e como vivia. O que o Tangomau reteve desta conversa que decorreu numa atmosfera amena é que aqueles senhores, elementos do antigo “inimigo” guardavam a serenidade das contas feitas e sem fantasmas, tinham curiosidade em perceber qual a trajectória desta deambulação dentro do Cuor. E fizeram perguntas sobre a Missirá daquele tempo, até se pôs um mapa em cima dos joelhos e comentavam-se nomes de localidades por onde, uns e outros, patrulhavam, minavam e emboscavam. É por isso que se vê com muito enlevo a serenidade e a postura de quem nada deve com que se enfrenta a câmara. À despedida, tanto Farazinho Pereira como Sampere Mendes insistiram: “Volta sempre que queiras. É mais fácil tu vires de Bambadinca que nós irmos lá, de bicicleta é muito longe. Gostamos de visitas, pena é tudo ser tão pobre, para repartir”.



3. O regresso é um pequeno calvário para Lânsana Sori, paragens de quilómetro em quilómetro para bombear um pneu furado. Ele insiste e pede desculpa ao cliente. Mal sabe ele como o Tangomau se deslumbra com a cantilena dos pássaros, a passagem das formigas, os mares de capim agreste. Nestas paragens, até há tempo para conversar com quem viaja ou quem está à sombra, na tentativa vã de se refrescar. Há quem pergunte sempre ao Tangomau que missão o traz ali, se é médico, comerciante ou missionário. Passe o devaneio, a pesporrência, um quase estado de delírio, o Tangomau exulta, à semelhança de Ponta Varela veio hoje bater à porta do antigo “inimigo”, só recebeu consideração, provas de afabilidade, gente curiosa que quer saber mais sobre os porquês desta quase peregrinação. Uma coisa é chegar às tabancas como Amedalai ou Samba Juli e reencontrar rostos amigos, conhecidos, confrontar diferenças, pressentir queixumes, múltiplos sofrimentos. Outra coisa é a remoçada Missirá, que se expandiu, que não tem marcas da guerra. Outra coisa mesmo é bisbilhotar por territórios novos que eram terra de ninguém, as tropas do Tangomau podiam confrontar-se com as do PAIGC, mas era terra de ninguém mesmo, ali não havia direito de posse. Assim se conversou com Aliu Fati em Mato de Cão ou com o povo de Chicri, por exemplo. Mas outra coisa diametralmente distinta é subir aos territórios onde o PAIGC tinha as suas barbacãs, torres de atalaia, pontes levadiças, ali, quanto muito, era entrar a disparar e sair-se sem quaisquer tipos de diálogo. É esta a sensação que frutifica no ânimo do Tangomau. Enquanto Lânsana Sori se desmultiplica no esforço de bombear aquele pneu inútil, o Tangomau tagarela, capta imagens, com a devida licença, destes grupos humanos perguntadores, eles vêm do trabalho, o sustento liminar estampa-se-lhes no rosto. Nisso esta imagem é um espelho fiel.



4. Deu que fazer chegar à estrada do Enxalé, houve que negociar com um camião transportara a motocicleta semiadormecida, condutor e passageiro, tudo até à Batanjã Mandinga, onde se localiza uma oficina. Na caixa desse camião, o Tangomau deslumbrou-se com o desfrute da paisagem, mais dois metros acima do solo, dá para ver o Geba ao longe, os campos de nenúfares, as fainas de gente laboriosa. O que se fotografou perdeu-se e daí o recurso a uma imagem que sobrou do passeio ao Xime, aqui estão os vestígios do porto que o Tangomau viu medrar e transformar-se na mais importante infra-estrutura portuária da região Leste, a partir dos finais de 1969. Caprichos do destino, foi quando o transferiram de Missirá para Bambadinca, por coincidência Mato de Cão perdeu a relevância que tivera todo este tempo da sua estadia no Cuor. O pneu foi substituído, a motocicleta deu meia volta, voltou-se a passar o Geba, visitou-se Canturé. Quem arquitecta romances, novelas ou contos possui alguns segredos íntimos. O Tangomau está convencido que já descobriu o ambiente em que se finaliza aquele livro que anda por aí à solta a germinar, uma viagem que começou em 1967 e que terminará em Dezembro de 2010. Mas há que confirmar diferentes lugares. Por isso se volta a Canturé, uma das encruzilhadas maiores da vida do Tangomau.



5. Não faltasse uma hora para o sol se pôr a pique e o Tangomau iria vasculhar de Finete até Malandim. Urgindo o tempo, ali vai a motocicleta na gáspea, o estradão é de uma beleza impressionante, orlado pelos possantes poilões que vêm de um passado muito mais antigo que o Tangomau. Há que simular junto do povo de Canturé que é uma curta viagem, há ali um ou dois pormenores a ter em conta e depois se regressa a Bambadinca. Até se inventa o pretexto de que é precisa uma fotografia às toranjas de Canturé. A hora a que chega é de remanço e por isso o povo e as suas autoridades vão em conversas, querem sessão de boas vindas com Malã Mané, o chefe de tabanca à cabeça e incluindo Aruma Dahaba (ineditamente um familiar de Fodé). Malã esteve na guerrilha, nas fileiras do PAIGC. Trata sempre o Tangomau por Baké, prova de consideração mais elevada não há. Entre outras coisas, Baké é o guerreiro destemido, não há bala que lhe perfure o corpo. As saudações arrancam desse passado e chegam quase meteoricamente ao presente. O Tangomau está de olhos semicerrados, mais em escrita mental que em relação social. Está sonhador, esta Canturé que ele calcorreou praticamente todos os dias é de uma rara beleza, é luxuriante, tem hortas, está quase tudo cultivado, tudo é pobre mas nada é miserável. O Tangomau põe-se de pé e ata todos os vínculos com Canturé, abraçando Malã Mané, veio a propósito, a seguir a Belel e a Madina. Convém esclarecer, em abono da verdade, que a imagem que aqui se mostra foi tirada à porta da casa do Fodé, dois dias depois, em dia de festa. O que é inesquecível foi Malã ter afirmado perante o seu povo que recebia o visitante com orgulho em Canturé, aquele Baké mais do que destemido dera provas provadas de uma estima arreigada pelo Cuor e pelas gentes. E aquela guerra eram águas passadas.



6. Foi um dia extenuante, amanhã será mais. Porque amanhã ir-se-á de Missirá a Sansão, antes de Missirá, Maná; depois Madina de Gambiel; regressar-se-á a Bambadinca, Lânsana Sori precisa de descansar uma hora para a provação que se segue, de Bambadinca ao Xime, daqui até à Ponta do Inglês. O Tangomau anda com a consciência revolvida, vai regressar a Bissau dentro de dois dias deixando na escuridão pontos fundamentais: Fá, Demba Taco, Samba Silate, por exemplo. E se ficasse mais um dia, deitando para as ortigas o que se propõe fazer em Bissau? É neste dilema que se despede do Bambadincazinho e vai ver o pôr-do-sol no Bairro Joli. É tempo de mostrar gente da casa. Como se disse, vive aqui o engenheiro Fernando Ramiro Semedo, irmão do embaixador Inácio Semedo, ambos filhos do fundador deste projecto, Inácio Semedo, um dos dirigentes históricos do PAIGC. Fernando Semedo procura pôr de pé um projecto de recuperação de diferentes culturas entre o Bairro Joli e a Ponta Nova. É casado com Dada, o casal tem dois meninos. Estamos a ver Alberto Djata, trabalhador e quase da casa. É Felupe e já estivemos a ver fotografias de danças Felupes. O Alberto cozinha magnificamente. Trata-se de um instantâneo, o Alberto está concentrado e parece feliz. Depois o Tangomau foi para o balcão, levou “Gog”, de Giovanni Papini, aproveita o esplendor dos últimos raios solares.



7. Muitos críticos consideram “Gog” como a obra-prima absoluta de Papini. Trata-se de uma sátira de alguém que saiu do manicómio, fez fortuna e agora tem meios para satisfazer imensos caprichos. Um deles passa por conhecer os grandes monumentos literários mundiais. E Papini escreve: “Tive coragem para ler aqueles livros todos, menos três ou quatro que, logo às primeiras páginas, não pude suportar. Hostes de homens, chamados heróis, que se estripavam durante dez anos a fio, sob as muralhas de uma pequena cidade, por culpa de uma velha seduzida; a viagem de um vivo à fossa dos mortos, com o fim de falar mal dos mortos e dos vivos; um doido héctico e um doido gordo que vão, mundo fora, em busca de sovas; um guerreiro que perde um juízo por uma mulher e se diverte a arrancar azinheiros pelas selvas; um pulha cujo pai foi assassinado e que, para o vingar, faz morrer uma rapariga que o ama e outras personagens diversas; um diabo coxo que levanta os telhados de todas as casas para exibir as suas misérias; as aventuras de um homem de estatura média que faz de gigante entre os pigmeus e de anão entre os gigantes, sempre de modo inoportuno e ridículo; a odisseia de um idiota que, através de ridículas desventuras sustenta que este mundo é o melhor dos mundos possíveis; as peripécias de um professor demoníaco servido por um demónio profissional; a aborrecida história de uma adúltera provinciana que se enfastia e, por fim, se envenena; as surtidas loquazes e incompreensíveis de um profeta acompanhado de uma águia e de uma serpente; um rapaz pobre e febril que assassina uma velha e que depois – imbecil – nem sequer sabe aproveitar um álibi e acaba por cair nas mãos da polícia”. O Tangomau está divertido com leitura tão saborosa e tão desviante das epopeias do seu quotidiano. É nisto que a bola de fogo anuncia o rigor da noite tropical, com os vagidos, os mistérios e os odores das florestas à volta. Vamos ter noite estrelada pela certa. O Tangomau empolga-se, aquilo não é uma bola de fogo, é um primo dos cometas que se lança num estranho oceano vegetal. E diz para si, fundamentalista: quem não aprecia este fim de dia não sabe viver. Saboreia o jantar e vai cedo para a cama, preparar a longa jornada que o espera. E que será imprevisível, aquele sábado, 27 de Novembro, reserva-lhe alguma das mais bonitas emoções de todo o sempre. Para ler depois.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7567: Notas de leitura (185): Guiné-Bissau, Aspectos da Vida de um Povo, de Eva Kipp (Mário Beja Santos)

Vd. postes da série de:

2 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7370: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (1): Primeiras notícias da Guiné-Bissau

4 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7379: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (2): O primeiro dia em Bissau

7 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7397: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (3): O segundo dia em Bissau

10 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli

15 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7440: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (5): Do Bambadincazinho para Ponta Varela

18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7462: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (6): Bambadinca, recordações da casa dos mortos

26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7504: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (7): O primeiro dia no Cuor

27 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7511: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (8): O primeiro dia no Cuor (continuação)

30 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7528: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (9): O dia no Xitole e o regresso a Finete

5 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7557: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (10): O dia no Enxalé, em Madina e Belel

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7557: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (10): O dia no Enxalé, em Madina e Belel

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2010:

Malta,

É um tempo de dias excepcionais, boa colheita para o coração disponível.
Deixo aqui muito trabalho para a malta que viveu no Enxalé, segui depois para Madina e Belel, confirmei que tudo é áspero, penoso e até pobre. Mas o povo recebeu o Tangomau com calor, quis perceber o sentido da viagem, manda cumprimentos para quem ali combateu.

Um abraço do
Mário



Operação Tangomau (10)

Beja Santos

O dia no Enxalé, em Madina e Belel

1. Tudo quanto se vai ver, até a própria comunicação bem-sucedida com o recurso ao crioulo, deve-se ao infatigável desempenho do prestador de serviços Lânsana Sori. Sem ele, o Tangomau ficaria apeado, impossibilitado de visitar pontos ermos, inacessíveis a viaturas. Lânsana aparece na vida do Tangomau graças a Calilo Dahaba, condutor de ligeiros, que detectou a expectativa e encontrou uma resposta. Durante três dias, até ao termo da digressão em terras de Bambadinca e arredores, Lânsana será omnipresente, prestável, sorridente e compreensivo. 

Nesse dia 26, começou-se por ir ao mercado, depositaram-se as vitualhas no Bairro Joli, passou-se pela Bantajã Mandinga, inflectiu-se à esquerda, em direcção a Finete. Manga de cumprimentos na encruzilhada entre Finete e Canturé. O Sr. Biloche mostra casa, sabe-se lá até para dar um sinal da sua competência como construtor civil, ele andou com o Tangomau por Finete e discutiram com o chefe de tabanca a cedência de terreno para o anarca Jorge Cabral se transferir de Miami para ali. Há orçamentos, agora o anarca que tome decisões. 

O Tangomau não esquece a luminosidade do dia, o ar cheio de odores da floresta e os sons de Novembro. Não se vêem macacos mas há borboletas, os pássaros multicolores atravessam o Geba nos dois sentidos. O ronrom da máquina trepidante embala os viajantes. É uma sensação única ir falando para o ouvido do condutor e depois apontar com o nosso próprio ouvido para os lábios de quem fala. E assim se seguiu por Mato de Cão, Saliquinhé, São Belchior, sempre a avistar Samba Silate, na outra margem do Geba. Depois a curva para o Enxalé, é um dos trajectos mais gostosos para quem vê sem precisar de estar atento às rugosidades do estradão traiçoeiro. Feitas as apresentações, o Tangomau é conduzido por Suleimane Sanhá, chefe de tabanca, e dois antigos combatentes, Malã Tchamo e Sadjo Tchamo.


2. Em primeiro lugar, o Tangomau pediu esclarecimentos sobre o Enxalé de ontem e o de hoje. No passado, o Enxalé da guerra era abastecido por dois caminhos: o chamado porto novo, mais curto, na margem do Geba, em frente a Samba Silate; e o porto do Xime, um caminho de alguns quilómetros entre o Enxalé e o Geba. Hoje, estes dois portos estão desactivados. O que se está a mostrar era o início da estrada para o Porto Novo. 

O Tangomau não esconde a sua atracção pelos vestígios, pensa sempre nos sacrifícios, nas escoltas, nos cuidados, em aprovisionar em condições tão difíceis. A natureza ainda não mudou tudo. Certamente que quem viveu e combateu no Enxalé terá recordações deste caminho, um ponto de partida ou um ponto de chegada, consoante a situação, quem desembarcava não era só a comida nem as munições, eram também os homens que faziam a guerra.


3. Um plinto com história, alguém ali gravou nomes, talvez mortos em combate, sabe-se lá. O importante é que temos uma memória, os habitantes do Enxalé e cultores deste blogue terão histórias para contar. Tivesse havido tempo e tomava-se nota de tudo, até se teria fotografado em melhores condições. Agora, quem esteve no Enxalé conte a sua versão da história. Um esclarecimento: o Enxalé expandiu-se mas as edificações, disseram os acompanhantes do Tangomau, estão ali praticamente todas, à excepção dos abrigos e das vedações. 

Depois do Xitole, o Enxalé é um verdadeiro alfobre de vestígios. Oxalá que alguém os queira preservar.


4. Alto lá, aqui temos um sinal de uma companhia, a 556 (**), parece, está lá dentro um crocodilo e a legenda diz "Os Sem Pavor". Eles que se apresentem e que se orgulhem de que o tempo inclemente poupou a lembrança da sua passagem. O Tangomau ia cogitando: quem viveu e combateu no Enxalé tem razões de sobra para aqui vir em romagem de saudade.


5. Aqui está a prova provada da presença da Companhia dos madeirenses [, a CCAÇ 1439,]  os mesmos que habitaram em Missirá, que percorreram as mesmas estradas, que viram o sangue derramado no Cuor. O Tangomau foi convidado para o último convívio, que se realizou em Coruche e gostou muito. Agora pede-se a todos que escrevam sobre este monumento, certamente que lembranças não faltam.


6. Aqui temos um armazém, ou oficina, ou até caserna, a caminho da destruição total. Houve várias versões sobre a função do edifício, nem tem sentido andarmos a especular. Isto porque alguém avançou que se tratava de instalação comercial, anterior à guerra, mostrou os restos do telhado, dizendo que pertencia às instalações usadas por um comerciante. Compete à malta do blogue ler e identificar. Até teria mesmo sentido, caso seja possível, mostrar todas as fotografias de décadas atrás, de múltiplas presenças, e juntar agora estas imagens, para clarificar a memória.


7. Este edifício cheira a instalação do comando, seja para tratar do expediente ou local de convívio. Aqui também se ouviram opiniões díspares, houve quem argumentasse que era a casa de um antigo comerciante, nada da Casa Gouveia ou Ultramarina, um comerciante que ali viveu. Seja como for, tem função e está preservada. Agora, os antigos habitantes do Enxalé que se pronunciem.


8. Os guias foram peremptórios: aqui era refeitório, talvez dos oficiais ou dos sargentos, ou de ambos. Mais material para descodificar. Felizmente, que lhe puseram cobertura: será escola? Terá funções de mesquita? Era tal o afã do Tangomau em tudo registar que nem se pôs com conversa fiada, e bem gostaria. 

Não é preciso ser antropólogo para se saber que isto de conversar não é atar e pôr ao fumeiro, é preciso estar, criar atmosfera, deixar as mentes confiarem nas suas memórias; é preciso tempo para ganhar confiança. Talvez mais um motivo para voltar, assim pensa o Tangomau, este Enxalé está cheio de preciosidades, apetece andar por estes caminhos até ao rio, beleza natural não falta.


9. Quem terá vivido aqui? Mais discordância: para uns, aqui trabalhava o capitão e aqui vivia; para outros, era sala de convívio; houve reticentes, disseram que a construção era anterior à guerra. O Tangomau mantinha-se indiferente a tantas razões inconclusivas, o que ele queria era captar todos os vestígios, todas as marcas, ninguém o incumbiu da missão, foi ele que inventou esta obra asseada. Vamos a ver o que dizem os bloguers que lá viveram.


10. Armazém? Caserna? Escola? Edificação da tropa ou de comerciante? Que é de estrutura impressionante, não restam dúvidas. Quando se percorre o Enxalé fica-se com a noção de que a povoação já tinha história e um certo passado de residência e estadão comercial. Na reunião de Coruche compareceu uma senhora que ali viveu na infância, salvo erro filha de um comerciante. (**) O que se espera é que alguém lhe faça chegar estas imagens e a convoque para rememorar, mais não seja com base no seu acervo fotográfico.


11. Do Enxalé partiu-se à procura de Madina. Saiu-se de um território amplo, com vistas largas e com história. Entra-se num espaço hermético, árido e até inóspito. Não é difícil perceber como o PAIGC aqui estava aninhado e bem protegido. Este caminho fala de secura, de pouca fertilidade, de distâncias longínquas. Como se irá comprovar, deu que fazer os primeiros quatro quilómetros até Cabuca, passou-se ao largo, mas deu para ver que ali havia tabanca, e não pequena. 

É tudo aspereza à volta de Madina. O chefe de tabanca não estava, andava na faina. Foi o Sr. Sebastião Mendes quem nos acolheu, já Lânsana Sori dava sinais de esgotamento, graças àquele maldito pneu furado, que vê na primeira imagem. O que o Tangomau quis captar foi o futuro, as crianças à sombra, pois cá fora temos a ameaçadora fornalha do sol. E pensarmos nós que aqui houve combates terríveis, que morreram homens, mulheres e crianças, aqui se sinistraram Quebá Soncó e Fodé Dahaba. A cabeça do Tangomau não pára de girar. Sente-se apaziguado mas reserva para si este dever de memória.


12. Seguiu-se para Belel. Esta é uma enternecedora memória, a escola de Belel. Curiosamente, o professor, vemo-lo na primeira fila de pé, também se chama Sori, recebeu-nos efusivamente, propôs fotografia. O Tangoamu gosta a valer desta imagem, mais do que futuro temos aqui a hospitalidade guineense. Aqui se interrompe a viagem, a motocicleta está cada vez pior e o narrador quer ter mais história para contar, amanhã. Vamos continuar, está prometido.


(Continua)

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Todos os direitos reservados.
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Notas de CV/LG:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7528: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (9): O dia no Xitole e o regresso a Finete

(*)  CCAÇ 556 foi mobilizada pelo RI 6, partiu para a Guiné em 4/11/1963 e regressou a 28/10/1965. Esteve em Bissau, Enxalé e Bambadinca. Comandantes: Cap Inf José Abílio Lomba M;artins, Cap Inf Carlos Alberto Gonçalves, Ten Inf Fernando Gonçalves Foitinho.

(**) Vd. poste de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6116: O Nosso Livro de Visitas (85): Maria Helena Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, localidade onde nasceu há 60 anos, hoje residente nas Caldas da Rainha (Luís Graça)

(...) Na sequência do encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/67) , em Coruche, contactou-me, por telefone,  a Maria Helena Carvalho, nascida no Enxalé, e actualmente casada, residente nas Caldas da Rainha (...) (Telef. 262 842 990). 

Seu pai, Amadeu Abrantes Pereira, natural de Seia, era um conhecido comerciante, o Pereira do Enxalé. Era dono um importante destilaria de aguardente cana, bem como de outras instalações e casas, que ainda hoje estão de pé. A família era muito estimada pela população local. 

A Maria Helena nasceu no Enxalé em 1950, se não erro. Saiu cedo de lá, creio que com sete ou oito anos, por volta de 1958, para ir estudar em Bissau e depois na Metrópole. Mas regressava nas férias grandes. As suas memórias de infância (e os seus amigos de infância) estão indelevelmente ligados a esse tempo e a esse lugar. Os pais acabaram por sair do Enxalé, fixando-se em Bissau, em 1962. Já havia nuvens negras que prenunciavam a chegada da borrasca da guerra. A matéria-prima (a cana de açúcar) que abastecia a destilaria começou a escassear. Os caminhos tornavam-se perigosos. O PAIGC fazia o seu trabalho de sapa. Entretanto, a mãe morreu e a Maria Helena ficou definitivamente entregue aos cuidados dos padrinhos, das Caldas da Rainha.

O património da família ainda lá está, no Enxalé, arruinado. Também tinham prédios em Bissau. Em 1989, a Maria Helena voltou aos lugares da sua infância. Ainda encontrou, no Enxalé, gente que trabalhava para o seu pai e amigos de infância.

Ela ainda fala do Enxalé e da Guiné com emoção. (...)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7552: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (8): Dia 26 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2010:

Malta,
Foi um dia em cheio. Agora, já conheço praticamente todo o Cuor. Mas ainda volto ao Cuor, ali há vida depois da guerra, surgiram tabancas em Sansão, Maná, Canturé e Madina de Gambiel.
Amanhã volto para completar o dia de hoje.
É em Gambiel que alguém me vai reconhecer 41 anos depois. Não sei como é que se explica e se comenta esta comoção. Prefiro dizer que chorei e lavei os olhos, enternecido.

Um abraço do
Mário


OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (8)

DIA 26 DE NOVEMBRO DE 2010

Foi um dia com um amanhecer ameno, troca de cumprimentos na estrada entre Finete e Canturé. Encontro imprevisto com o Sr. Biloche, presumível empreiteiro da casa do anarca Jorge Cabral em Finete. O Sr. Biloche mostra o seu palacete, é uma construção recomendável e muito provavelmente invejável para o que o Jorge Cabral pretende (mas em dimensão mais reduzida, o Sr. Biloche tem várias mulheres e muitos filhos e ainda não passou os 35 anos…). Segue-se por Mato de Cão, Saliquinhé, São Belchior e entra-se à esquerda na mais apetecível e frondosa avenida de poilões que deve haver em todo o mundo. Depois de cerca de 20 minutos a fugir das covas, capim das bermas e charcos, entra-se no Enxalé, mudou de fisionomia mas guarda preciosos vestígios de construções militares. Cabe aos interessados ajudarem a interpretar o que se vê. Por exemplo, este edifício. Segundo o chefe de tabanca, Suleimane Sanhá, seria uma oficina ou depósito, edificado com a primeira companhia que chegou ao Enxalé. A ver quem nos explica a função desta ruína.

Foto de Henrique Matos (Guiné, 1966/68) em que se vê a Oficina e uma casota semelhante à da foto acima

Na altura em que se tirou esta fotografia, o Tangomau estava acompanhado do chefe de tabanca, de Malã Tchamo, do pelotão de milícia 310 e de Sadjo Tchamo, igualmente milícia em Missirá e Finete. A explicação que deram é que se tratava de um posto de vigia fortificado, naquele tempo temia-se flagelações a partir da mata entre o caminho que leva ao Xime e o caminho que leva ao Porto Novo. Fica-se a aguardar os comentários de quem viveu no Enxalé

Segundo os acompanhantes do Tangomau, aqui começava o caminho que atravessava a bolanha, bem extensa por sinal que levava ao pequeno ancoradouro, mesmo em frente do Xime. Não há quaisquer razões para duvidar desta afirmação dos autóctones. O Tangomau já teve esta nostalgia em Finete, irá senti-la na Ponta do Inglês, amanhã. A Natureza toma conta do que o homem abandonou, a um prenúncio de civilização cresce um bulício da paisagem, sempre redentora.

Aqui a descodificação entra na fase mais empolgante. Aqui andou a companhia dos madeirenses, muito provavelmente os alferes Henrique Matos Francisco, João Crisóstomo e Luís Zagalo Matos cirandaram por aqui. Aguardam-se comentários: quando surgiu o memorial, quem foram os seus artífices, o que se escreveu para uma posteridade que não aconteceu em pleno

Henrique Matos (Guiné, 1966/68) junto aos memoriais da CCaç 1439 (madeirenses) e da CCaç 556 que a antecedeu

Fica-se com sérias dúvidas se os militares do Enxalé são capazes de decifrar de que instalação se trata. Os acompanhantes do Tangomau foram peremptórios: era armazém, depósito, talvez caserna, hoje é um antro de sabedoria, aqui se alinham as letras e se expande a capacidade matemática de meninos guineenses, até aqui provavelmente se revelarão pintores ou génios da informática. O fundamental é que da guerra se passou à paz, isto é um espaço para as crianças sonharem e para os mestres acreditarem no seu papel de ajudantes do sonho.

Longo, muito longo e atribulado é o caminho que nos leva da estrada do Enxalé até Cabuca, Madina e Belel. Estamos em Novembro, não esqueçam: o capim é elevado e amarelece, a época das chuvas deixou vestígios, esta região continua árida e um pouco inóspita, parece que ainda é uma praga da guerra. Não foi por acaso que o PAIGC aqui se instalou, de pedra e cal. Quem foi a Belel ou a Madina não esqueceu a aspereza do terreno, talvez a zanguizarra dos grilos, a majestade do baga-baga. Madina não é propriamente um oásis, já se passou ao largo de Cabuca (várias opiniões confirmam que aqui era a Madina do PAIGC, mais junto à água, mais inacessível e onde era mais fácil referenciar o atacante. O fundamental é que se chegou a Madina, fez-se a apresentação dos intentos da viagem, Lânsana Sori olha para a câmara, sentado, sabe-se lá se a esta hora já não estava arrependido da empreitada em que se metera. Este senhor em jovem foi combatente do PAIGC, recebeu risonho o Tangomau e pediu à mulher para ficar na fotografia. Ali trabalha-se arduamente, sim, a terra é madrasta, dói que se farta arrancar-lhe o sustento. O que o Tangomau mais gosta é da disponibilidade do casal em se fotografar, já se conversou sobre a pretérita guerra, a comunicação foi muito pacifica, o Tangomau e o seu condutor prometeram receber um pouco de mancarra e beber água quando vierem de Belel. São assim os ínvios caminhos da paz e da convivência dos homens.

Se há foto que neste dia encheu as medidas do Tangomau foi esta. Para quem esteve na operação Tigre Vadio até a pele se arrepanha quando se pensa que se andou por aqui em chacina, tal como aconteceu nos finais de Março de 1970. Se até Madina tudo é áspero, daqui até à tabanca de Belel é a aridez mais desolada, mais agreste, como se uma paisagem lunar atravessasse a luxúria tropical. Olhe-se para as lianas e para o capim. É tudo um convite para fugir. Para o Tangomau, vir a Belel era um ponto alto para a sua reconciliação. E assim aconteceu. Não esqueçam: quando aqui vierem, qualquer coisa como 5 km depois de Madina viram à esquerda, a pé, de bicicleta ou motocicleta. Se forem em frente, desatentos, entram no corredor do Oio, por portas e travessas chegam a Mansabá.

Já estamos no regresso, com a alegria da missão cumprida. Por hoje ficamos por aqui, mas ainda há muitas coisas a contar na Operação Tangomau. Despedimo-nos com esta imagem de gente apaziguada que recebeu calorosamente Lânsana e o Tangomau. Era a hora da sesta, eles preparavam-se para dormitar, a motocicleta trazia um pneu em baixo, o Tangomau mostrou-lhes os livros, houve risada e boa disposição. “Tira fotografia para lembrares o povo de Madina!”. Agradece-se à representação do povo de Madina esta visita há tanto aguardada. Agora já não há território inimigo. Apertam-se as mãos, diz-se até à próxima, entre nuvens de poeira regressa-se, sabe Deus como, até à estrada do Enxalé

O Tangomau vem publicamente agradecer as provas de perícia, competência e profissionalismo do motociclista Lânsana Sori, ao longo de três dias. Feito o contrato de prestação de serviços, que abrangia atestar o depósito e pagar os encargos diários de transporte, Lânsana tudo fez para tornar a viagem mais cómoda para o seu inesperado cliente. Mal ouvia uma exclamação, logo propunha uma paragem para captar um registo fotográfico, de nenúfares ou vestígios da presença militar se tratasse. Chegou ao cúmulo de propor regressos a Chicri, Mato de Cão e Canturé, serviços extra, ele ia acumulando cansaço, não deve ter graça nenhuma o elevado grau de concentração entre charcos de água e desníveis brutais do piso. Sem ele, o Tangomau não teria tido as compensações espirituais que teve. Recorda o martírio de um pneu furado, ainda não se tinha chegado a Madina, e que obrigou a uma alteração, chegados à estrada do Enxalé, houve que regressar num camião até à Bantajã Mandinga para substituição do pneu. Revelou estoicismo, o cliente passou a admirá-lo para o resto da vida. E se houver regresso à Guiné, como se prevê, é impensável chegar ao Buronton, ao Fiofioli, ao Baio, a Moricanhe, sem o talento e a dedicação de Lânsana Sori.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
Fotos (PB): © Henrique Matos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7541: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (7): Dia 25 de Novembro de 2010

sábado, 1 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7541: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (7): Dia 25 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2010:

Malta,
Hoje foi um dia mais apaziguado, depois do reencontro com o Príncipe Samba.
O Xitole dá que pensar, ainda tem condições para ser preservado, é bom não esquecer que já tinha bastante vida antes do desencadear da guerra, daí ter sido um quartel bem embebido dentro da povoação, com bons resultados à vista.
Amanhã e depois, vou dar cumprimento a duas rotas de exaltação: Madina e a Ponta do Inglês. Com agradáveis e gratificantes surpresas pelo caminho: o Enxalé devia aparecer dentro de uma rota de turismo militar; vou ser reconhecido em Madina do Gambiel, na fronteira do Cuor com Mansomine e Joladu. E a viagem à Ponta do Inglês foi toda ela feita com um frémito de emoção.

Um abraço do
Mário


OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (7)

DIA 25 DE NOVEMBRO DE 2010

Por decisão do homem grande Fodé Dahaba (acertada e de acordo com as precisões sentimentais do Tangomau, acrescente-se) o dia será passado para os lados do Corubal, mais propriamente na região do Xitole. É irresistível não ir ao encontro do Príncipe Samba, um dos seus mais dilectos colaboradores. Albino Amadu Baldé de seu nome, deu-lhe uma colaboração infatigável, comandando bem o pelotão de milícias de Missirá. Tudo quanto havia de bom aconteceu: era intérprete, conselheiro, professor, até contabilista. A sorte foi madrasta com o Príncipe: alguém roubou os salários dos milícias, em Finete, teve um processo, ouviu insinuações escabrosas, não conheceu descanso. E depois da independência, não lhe reconheceram os méritos. Como era da praxe, antes de partir, Fodé Dahaba partia mantenha com os visitantes. Hoje apareceu Mamadu Baldé, o filho de Queta Baldé, mas são visíveis Madjo, Djiné e Silá Sani, que vive agora em Maná onde em breve vai receber o Tangomau nesse dia exultante de visitas a Madina Gambiel, Sansão e Canturé.

Depois da viagem ao Xitole, depois da nova visita a Finete e à estrada de Canturé, procede-se à última visita ao que resta da Bambadinca de há quarenta anos. Trata-se de um itinerário mítico, à porta de todos estes estabelecimentos havia muita vida: máquinas de costura em movimento, gente abancada a beber e a conversar, comércio variado, gente a entrar e a sair dos diferentes estancos da Ultramarina, Casa Gouveia, lojas do Tavares e do Rendeiro. Aqui se encontravam velas, botões, carrinhos de linhas, lanternas, preciosas vitualhas, desde bifanas a leite condensado. Este universo extinguiu-se, o que era estrada tornou-se carreiro, ouvem-se as crianças na escola e pouco mais. Por isso se captou a imagem da ruína e da incompreensão porque de espaços sólidos se está a falar, agora são escombros definitivos, dentro de meses ou escassos anos, com chuvadas torrenciais ou tornados alucinantes, estes vestígios caíram por terra.

O Tangomau regressou apressado, quer apanhar o pôr-do-sol no Bairro Joli. Prevêem-se dois dias de excitação, de acordo com o contrato feito com Lânsana Sori: amanhã incursão pelo Enxalé e Madina; depois de amanhã a Ponta do Inglês, Madina de Gambiel, Sansão e Maná, entre outras gratas surpresas. Falando de surpresas, elas são como as cerejas. Apareceu Aliu Baldé, das milícias de Finete, tal e qual como há 40 anos; enquanto descia pelo que foi a tabanca de Bambadinca, o soldado Jabalu Baldé veio cumprimentá-lo. Por exigência de Madiu Colubali, o Tangomau e Calilo foram até Canjara, é ali a sua tabanca. Agora, importa pôr alguma ordem nas emoções, estão praticamente satisfeitos todos os pedidos a partir de Lisboa, só falta visitar Binta Seidi, a mulher de Cherno Suane, no Bairro do São Paulo, em Bissau. Mas o Tangomau sai com nova incumbência, a de contactar em Lisboa a mulher de Madiu, de nome Ale, tem estado hospitalizada em Lisboa, está agora convalescente na Quinta da Mocho. É provável que o leitor fique indiferente a esta bola de fogo pronta a despedaçar-se no interior da mata. Mas para o Tangomau é a quintessência do fim do dia tropical.

Reservou-se para este álbum a fotografia mais imponente do Príncipe Samba, em Sinchã Indjai. O encontro abalou as cordas afectivas da cordialidade do Tangomau. O que dói sempre mais é a impotência perante um talento, um recurso humano brutalmente desaproveitado. O Príncipe mantém a sabedoria, a cordura, a temperança e até a resignação, para lá de todos os revezes. Nada tem e disfarça o limitar da subsistência, essa linha ténue que em África separa a ausência da qualidade de vida da capacidade de resistir até ao dia seguinte. Aqui e acolá ainda há pessoas que oferecem uma galinha ao Tangomau. Este, conhecedor das realidades, sempre que possível pede polidamente para não levar o que faz falta, o bem que entra no tal limiar da subsistência. Momentos houve em que chorou convulsivamente, quando lhe pediram uma pequena ajuda, muito discretamente. Chora-se porque não se pode ser dadivoso a torto e a direito. O Tangomau enfureceu-se consigo próprio, devia ter previsto uma consideração excepcional com este príncipe, que não esperava encontrar na indigência total.

Aguarda-se, na mais viva das expectativas, que os confrades da tertúlia, aqueles que habitaram o Xitole, desvendem a utilidade desta habitação. O Xitole, de tudo quanto o Tangomau viu, só tem equivalente com o Enxalé, que irá visitar exactamente no dia seguinte. Já se viu como está Bambadinca, o que melhor resiste, para além das casernas, são as instalações de índole civil; Fá está a cair aos bocados; a Missirá da guerra praticamente desapareceu; do Xime restam as construções civis, todas as edificações militares foram terraplanadas; Mato de Cão deixou escassos vestígios, etc. Ora o Xitole, por razões que o Tangomau não sabe atinar, mantém a presença do passado, foram derrubados os abrigos e desapareceram as vedações do arame farpado. Mas o essencial do seu casario persiste e, coisa estranha, ainda podia ter utilidade e não este vil abandono como se fosse uma recordação nefanda que todos evitam.

Aqui e acolá aproximavam-se pessoas, identificavam.se sem pejo, casos houve em que perguntavam pelo capitão, alferes ou furriel. De olhos nos olhos, diziam: “Tomei farda em 1965, só a tirei quando acabou a guerra”. Este senhor chama-se Asimo Candé, estava a caravana no Xitole, ele assistiu a tudo à distância, quando a comitiva passou pela tabanca interpelou o Tangomau e apresentou-se. E deu ordens: “Tira fotografia, este é o meu neto”. Onde quer que estejas Asimo, quero que saibas que respeito a tua sinceridade e guardo sigilo quanto aos teus desabafos.

Foi finalmente desfeito um equívoco com mais de quarenta anos. Todos aqueles que patrulharam Mato de Cão a partir de Missirá, regra geral passaram por Canturé, era um cruzamento naquela que fora, até à guerra, a mais luxuriante e aprazível horta do Cuor. Pois bem, não poucas vezes se passava por ali com sede transcendente e uma fome devoradora. Por exemplo, sair de Missirá depois de almoço na expectativa de vigiar embarcações com passagem previsível pelas 16 horas. Podia dar-se o caso do barco encalhar devido às marés, havia que ali permanecer até aos alvores da manhã. Imagine-se a fome e a sede. No regresso, alguém suplicava: “Vamos comer as laranjas azedas de Canturé”. E assim ficaram baptizadas. Mas elas não são laranjas azedas, são toranjas. A verdade veio ao de cima no Bairro Joli, imagine-se. Dada, a anfitriã, mostrou uma toranja, tendo acrescentado que naquela manhã o Tangomau iria beber um sumo misturado com goiaba e cabaceira. Palavra puxa palavra e iluminou-se o espírito: em Canturé há toranjas e não laranjas. Por isso mesmo, e com enorme reverência, se fotografou uma das muitas árvores ali existentes. A despeito do gosto amargo, aligeiraram o sofrimento de muita gente. Quanto se agradece a estas toranjas que foram maltratadas como laranjas azedas…

Em praticamente todas as circunstâncias, o Tangomau fez o jogo limpo, nada de exigências, chegou a dialogar em alta voltagem com o homem grande Fodé Dabaha quanto a itinerários e errâncias espúrias. Insistiu em ir a Demba Taco e até Moricanhe, rendeu-se às evidências, não voltou a insistir. Mas não deixou de ter procedimentos manhosos. Esta foto atesta a sua paixão incondicional por terras de Finete e Canturé. Não resistiu ao contraste dado pelo sombreado da árvore, a luminosidade do verde e o fundo da mata, trata-se de um disparo da bolanha de Finete onde, inacreditavelmente, se perderam imagens soberbas (na percepção estética do Tangomau, claro). Todo o fotógrafo amador tem as suas decepções profundas, range os dentes perante certas perdas. Uma doeu-lhe muito: a perda da foto que apanhava a rampa alcantilada de Finete, o Unimog saía ajoujado e a resfolgar trepava aquela rampa antes de se lançar na bonita avenida de poilões que conduz a Canturé. Pois bem, subsiste dessa visita a panorâmica da bolanha com a floresta ao fundo. Do mal o menos!

As negociações para os dois últimos dias úteis do Tangomau foram muito ásperas. Constatada a impossibilidade de ir de Amedalai a Demba Taco, a impossibilidade de descer com a viatura até Samba Silate, negando-se o Tangomau a viajar até Bafatá ou fazer as tabancas de Cossé e Badora, tudo parecia caminhar para o impasse, era indispensável voltar ao Cuor, o Tangomau recusava aceitar as dificuldades postas pelo mau estado da estrada para Madina e Belel. Providencialmente, Calilo Dahaba sugeriu um contacto com Alassana Bari, um jovem da Guiné Conacri proprietário de uma motocicleta. O homem grande Fodé Dahaba espumava: “Não vais sozinho para Madina e Belel, e se há um desastre, qual é a minha responsabilidade?”. Pois bem, o Tangomau negociou diferentes prestações de serviços frente a um Fodé Dahaba alvoraçado pelo pânico: de manhã, amanhã muito cedo, depois das compras em Bambadinca, vamos até ao Enxalé, o Tangomau quer percorrê-lo a pente fino; depois viajar, inebriado, para as profundezas do Cuor, Cabuca, Madina e Belel; no regresso, se possível, passar novamente por Finete, mas antes parar um pouco nos palmeirais de Chicri. Amanhã será um dia de grandes surpresas. A maior, é o prazer de viajar de motocicleta, conversar em Francês ao ouvido de Lânsana Bari, de quem vai ficar amigo. E sem qualquer receio de se estar a fazer publicidade encapotada ou comunicação comercial agressiva, informa-se a todo e qualquer visitante da Guiné-Bissau que queira chegar aos lugares mais ermos, inacessíveis a qualquer tipo de viatura de 4 rodas, o Lânsana vai lá, entre poças de lama, charcos esverdeados e estradões perigosos, o Lânsana satisfaz a clientela mais exigente. Basta telefonar para 002456353016, falando em crioulo da Guiné ou francês.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010