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quinta-feira, 16 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14478: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel (O Inferno)

1. Em mensagem do dia 7 de Abril de 2015 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta memória da sua guerra que lembra a Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel.

Caros amigos
Tenho este trabalho pronto para encerrar o meu livro. Ele é fruto de alguns testemunhos que registam a participação da minha Companhia – a CART 1689. Portanto, perdoem-me a visão parcial e redutora dessa enorme e injustificada Operação que ficou bem marcada na história da Guerra Colonial.
Não sei se isto terá interesse para a publicação no nosso Blogue, até porque há vários testemunhos que já foram ali publicados.
Como hoje decorre o 47.º aniversário do início dessa Operação, lembrei-me de por o assunto à vossa consideração.

Um forte abraço do
Silva da CART 1689


Outras memórias da minha guerra

17 - Operação “Bola de Fogo” – construção de Gandembel 
(O inferno)



1 - DESTINO FELIZ OU PRÉMIO AO DEVER

Fui criado num ambiente extremamente humilde e bastante castigado pelo regime salazarista. Todavia, quando ouvi a minha Professora D. Irene, logo na primeira classe, ensinar-nos marchas e louvores a Portugal e aos nossos heróis, senti-me eternamente ligado à nossa Pátria. Recordo que, mais tarde, numa das redações que costumávamos fazer, exaltei o meu sentimento patriótico, prometendo que estaria disponível para dar a vida por Portugal. A Professora ficou comovida e, em lágrimas, aproveitou para me elogiar, arrancou a folha do meu caderno e colou-a na parede.
Orgulhoso pela história dos nossos antepassados, cimentei esse sentimento patriótico pela vida fora. Ainda hoje vibro de alegria ou choro de raiva, sempre que algum português se salienta ou é injustiçado.
Porém, quando a guerra do ultramar despoletou, já não sentia a mesma vontade e a mesma coragem de menino. No entanto, apesar de se notar bastante o interesse comunista em África, através da sua propaganda e apoio à libertação desses povos, era comum, entre nós, um sentimento de obrigação de lutar pela nossa defesa, pela defesa da nossa Pátria. Por outro lado, não havia grandes possibilidades de escolha; ou vais ou foges. Muitos fugiram porque tinham possibilidades financeiras ou contactos para fazer isso. Mais tarde, com o 25 de Abril, alguns deles beneficiaram, ainda, do estatuto de revolucionários, de antifascistas e de grandes patriotas.

Em 1965, quando ingressei no serviço militar, alimentava a esperança de que a guerra terminaria em breve. Porém, à medida que o tempo passava, as coisas pareciam piorar. Assim que me apercebi de que poderia ir para a guerra, procurei assimilar bem a instrução, especialmente quando tive que frequentar a especialidade de “Ranger” – Operações Especiais.
Na Guiné, tal como os outros combatentes, sofri com tristeza, raiva e angústia, os piores momentos da minha vida. Todavia, esforcei-me para dar o meu melhor na defesa dos meus interesses e dos meus camaradas, tendo participado nos maiores combates em que a minha CART 1689 esteve envolvida. Mas também tive a sorte de me safar positivamente deles.
Nunca faltei a nenhuma Operação até vir de Férias. Nem à OP Diabo Negro faltei (Vd. P7921 - Celebrando os meus 25 anos). Como fazia anos, poderia ter tido uma folga, normalmente concedida. Nessa altura o meu Pelotão estava mais desfalcado de graduados. Previa-se uma grande Operação e eu não me baldei. Quando falei nisso com o nosso Capitão, tive a oportunidade de lhe dizer:
- Enquanto estivermos em Intervenção, participarei em todas as Operações, mas quando regressar de férias “vou engolir um garfo” e não vou poder fazer mais nada!

Sempre soubemos que, depois de um ano em Intervenção, teríamos o chamado descanso. Por isso, programei as férias para Abril, com a convicção de que, atingido esse mês, poderia considerar-me livre de perigo.
Já de férias, enquanto me sentia efectivamente livre dos perigos da guerra e, ao mesmo tempo, já a entrar numa fase de projectos e de sonhos, coisas impensadas anteriormente, os meus camaradas da CART 1689 entravam (sem eu saber) na sua pior fase da guerra na Guiné.


2 - A CAMINHO DE GANDEMBEL
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

"Depois da saída de Catió, a 22 de Março e passada a noite ao largo de Bolama, recordo bem aquela calma e descontraída deslocação em LDG, a caminho de Buba.
Os militares foram-se acomodando junto das suas mochilas, já rompidas de tanto uso e de tanta mudança. Quase não falavam. Limitavam-se a poucas palavras mas a muitos pensamentos, interrogando-se e matutando neste momento apreensivo. Quem se mostrava mais inquieto era o Machado, que questionava:
- Estamos a poucos dias de fazer um ano de Intervenção, cheio de porrada, de cansaço e de ronco, porquê sacrificar-nos mais uma vez?
Logo respondeu o Viana:
- Vamos pagar o custo do nosso bom comportamento.
- Claro - acrescentou o Rodrigues, que concluiu:
- Orgulhem-se do reconhecimento ao nosso valor.
- Boa Rodrigues. Só esperamos que esse valor não nos fique caro. – acrescentou o Zacarias.

Entretanto, enquanto alguns, mais isolados, mexiam no saco das fotos, cartas e outras recordações, quase a meio da LDG, estava o nosso capitão, sentado num mocho, de cabeça curvada, mais parecido com um condenado à decapitação. Esperava a intervenção do nosso Barbeiro. Talvez com alguma apreensão devido à sua necessária apresentação formal ao Comandante do Sector, o coronel Celestino Rodrigues. O tal que viria a ser punido com dez dias de prisão agravada, por problemas nesta Operação Bola de Fogo. Coisa nunca vista num Oficial Superior – segundo lamentava o sargento Viscoso.
Passámos mais de uma semana de “férias”, com actividades de lazer e de treino de tiro. Ainda me rio de ver o Sargento Biscaia a tomar banho com umas cuecas, cheias de carimbos, a fazer de conta que eram calções de banho. Até ao dia 6 de Abril ocupou-se o tempo com patrulhamentos com pelotões alternadamente, fez-se instrução de tiro, com competições de tiro ao alvo e outras de índole desportiva.
Dia 7 de Abril deu-se início à OP BOLA DE FOGO, uma das maiores realizadas na Guiné. Foi, talvez, a mais difícil, mais violenta e mais estúpida, depois da tomada da Ilha do Como.

O objectivo apontava para a implantação de um Aquartelamento (Gandembel) para efectivo de Companhia, no Corredor do Guileje, na região entre Gandembel e Ponte Balana.
Durante a Operação e dias subsequentes, além da nossa Cart 1689, actuaram também:
3.ª Companhia de Comandos
5.ª Companhia de Comandos
CCAÇ 2316
CCAÇ 2317
CART 1612
CART 1613
Pel Sap do BART 1896
Pel Caç Nat 67
Pel Caç Nat 51
Pel Mil 138
Pel Mil 139
Pel Rec Fox 1165
Pel Rec Daimler de Aldeia Formosa
BEng 447
27 Carregadores de apoio

A ida para Aldeia Formosa, por terra, em coluna auto, fez-se sem grandes receios aparentes. Na chegada reinava a calma. Foi muito agradável termos jantado com a Companhia de Comandos e ter-me encontrado com o tenente Carapeta, meu comandante de pelotão em Vendas Novas.
Saímos dali, pelas 22h00, também em coluna auto, em direcção a Chamarra, onde estacionámos até as 03H00 (08.Abril.1968). Estava iniciada a OP “Bola de Fogo”, uma das maiores e mais perigosas de toda a Guerra Ultramarina".


3 - OPERAÇÃO BOLA DE FOGO
Por José Neto
(Memórias de Guileje (1967/68) – blogue “luísgracaecamaradasda guine”)

"(…) A abertura da picada estava a dar pelas barbas à nossa tropa.

Era impossível jogar com o elemento surpresa porque tornava-se necessário retirar abatizes, detectar e fazer explodir fornilhos (até uma viatura GMC em tempos abandonada pelas NT foi pelos ares porque se desconfiava que estava armadilhada) e, principalmente, derrubar árvores para substituir os troncos apodrecidos que, no leito dos regatos, serviam de ponte para a passagem de viaturas.
Os turras nem precisavam de atravessar a fronteira para morteirar os lenhadores. E nós não podíamos ripostar por respeito às convenções internacionais.
Ao fim de duas ou três semanas, com muitos ferimentos ligeiros, mas sem qualquer morto, o itinerário foi dado como praticável e ia seguir-se a segunda fase, que era a marcha da Companhia para Gandembel.

Parecia-nos que, das duas, a CCAÇ 2316 era a que ia avançar, já que a CCAÇ 2317 tinha sido inicialmente designada para nos substituir em Guileje, mas afinal veio a ser esta última, a do 1.º sargento Martins, comandada pelo capitão Barroso de Moura, a quem coube o petisco.
Ao mesmo tempo, como manobra de pressão, iniciou-se do lado norte a abertura da picada Chamarra – Gandembel.
A valentia e pertinácia dos bravos de Gandembel devem ter impressionado o inimigo que fez deslocar para aquela zona um potencial de fogo considerável.
Pelo itinerário de Chamarra juntou-se à CAÇ 2317 a CART 1689 e, com acções pontuais dos Paraquedistas e dos Comandos e o apoio do fogo de artilharia e bombardeamentos dos Fiat da Força Aérea a posição consolidou-se, mau grado as flagelações contínuas de que era alvo.
Mas o cerne da questão continuava. Como o IN precisava de manter o reabastecimento dos seus grupos que actuavam no interior do território, passou a utilizar trilhos um pouco a sul de Gandembel, perto de Paroldade, e esses trilhos cruzavam-se com as nossas colunas que também iam reabastecer o novo aquartelamento.
Nestas condições, cada reabastecimento nosso era uma autêntica operação de três, quatro dias, com fogachadas por todos os lados.

Na última das três operações desta natureza em que a minha Companhia e outras unidades estiveram empenhadas, houve três mortos, sendo um nosso (o 1.º Cabo José Augusto da Silva Leal), outro do Pel Caç Nat 51 (o Fur Mil Sebastião Dionísio) e o terceiro do Pel Rec Fox 1165 (o Soldado Manuel Vieira).
Dois soldados nossos foram gravemente feridos e evacuados para Lisboa, o Júlio Rodrigues Calado e o José Alves Pereira e mais doze, de várias patentes, dos quais três do Pel Rec Fox 1165, feridos com menos gravidade e evacuados para Bissau.

O regresso ao quartel foi difícil e dramático.

O Capitão Corvacho teve de pedir fogo dos obuses de 8,8 dando as coordenadas dum lugar já bem do outro lado da fronteira, mas que sabia ser o ponto de onde o IN o estava a atacar com armas pesadas. O alferes comandante da força de artilharia hesitou e, ao pedir a rectificação dos elementos de tiro, fez saber que o fogo ia cair na zona da fronteira da Guiné-Conacri. Pelo rádio percebeu-se bem a irritação do capitão que insistiu e perguntou ao alferes se desconhecia que ele era oficial de Artilharia.

Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. (…)
Mais ou menos por esta altura chegou à Guiné o Brigadeiro António de Spínola, logo depois promovido a General, para substituir o General Schulz no Governo e Comando-Chefe da Província.
Notou-se perfeitamente uma alteração na cadeia de comando principalmente porque, como diziam os soldados, enquanto o primeiro nunca tinha saído do asfalto de Bissau, o segundo aparecia em todo lado sem se fazer anunciar.
Uma das suas primeiras visitas foi ao inferno de Gandembel onde quase obrigou à força o tenente piloto do helicóptero a descer. Foi-lhe fácil concluir que a posição era pouco sustentável e ordenou a retirada progressiva de modo a salvar a face das nossas tropas.

Constou, não posso garantir, mas acredito, que naquela aventura, as NT tiveram cinquenta e dois mortos e muitos feridos graves”.

(P527 de 16 de Fevereiro de 2006 - blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


4 – Do primeiro dia da OP Bola de Fogo
(Texto do livro “Cambança Final” de Alberto Branquinho)

“SÃO JOÃO NO PORTO”

Havia muita tropa envolvida na operação junto à fronteira com a Guiné-Conakri. Uns vindos de norte, outros de sul, em coluna auto.
A tropa que progredia na mata no sentido norte-sul começou a ouvir água a correr em declive acentuado. Era o rio assinalado na carta, que tinham de atravessar. Quando começou a ser visível, constataram que, então, na época seca, era um riacho com três ou quatro pequenos braços de água. Água doce, sem lodo nas margens, devido à altitude, embora muito baixa.
O pessoal que ia à frente e se preparava para atravessar o rio, agachou-se atrás das árvores, aguardando autorização para encher os cantis. A zona era muito perigosa. Não passava por ali tropa havia muitos anos. A autorização foi dada, mas, antes disso, devia passar para a outra margem um número suficiente de homens, por razões de segurança. Quando os primeiros se tivessem abastecido, iriam os outros substitui-los e depois a coluna, seguindo-se andamento lento.

A primeira secção preparava-se para sair da mata e atravessar o rio, quando surgiu, descuidado, na outra margem, um rapaz com sete ou oito anos. Trazia um barrete camuflado. Acocorou-se e retirou da água um pequeno caniço, dentro do qual se debatiam dois peixes. Depois de um momento de espanto e indecisão, um soldado apontou-lhe a G-3 e ia fazer fogo. O alferes agarrou-lhe a arma pelo guarda-mão e empurrou-a para baixo.
- Jubi ! – chamou-o.

O rapaz olhou em volta, procurando de onde vinha a voz. Viu os militares. Levantou-se e ficou estacado, largando caniço e peixes.
- Jubi, bô bem. – e fez-lhe sinal com a mão para se aproximar.

O rapaz fez menção de ir dar um passo em frente, mas voltou-se e desatou a correr para uma baixa do terreno do outro lado da margem e desapareceu na mata, não muito densa. O mesmo soldado e outro levaram as armas à cara, mas o alferes gritou-lhes:
- Não!

Toda a secção desatou numa correria, tentando agarrar o rapaz. Os que vinham atrás correram, também, sem entenderem o que se estava a passar. O alferes foi incapaz de os deter porque estava a comunicar ao capitão, pela rádio, o que acontecera.
- Instalar! Passa a palavra: instalar.
A correria parou e alguns começaram a regressar.
O capitão e o alferes, agachados, passaram para o outro lado do rio. Um furriel, que fora na perseguição, veio ter com eles.
- Há gajos por aqui. Há fogueiras apagadas, com cinzas quentes.
O capitão chamou o guia e deu-lhe instruções.
Recomeçou a marcha, lenta e cuidadosamente.

Não tinham passado mais que dez minutos – uma emboscada. Pouco tempo depois - outra emboscada. A marcha prosseguiu assim, entre emboscadas e tiros de morteiro, disparados não de muito longe, causando só ferimentos ligeiros, de estilhaços e areias.
Sobre o meio da tarde ou porque se lhe escassearam as munições ou porque detectaram a coluna de viaturas vinda do sul, pararam os ataques.
Feito o contacto entre as duas colunas, começou a preparar-se a instalação para passar a noite.
Em pequenos grupos, foram encher os cantis no auto-tanque.

Mal a noite ficou bem cerrada, recomeçaram os ataques. Agora muito fortes. Ora de leste, ora de norte, ora de nordeste – armas ligeiras, metralhadoras pesadas, lança-granadas e morteiros. Ao rasto das tracejantes, silvos de balas, acrescentavam-se os rebentamentos, quase ininterruptos. Na escuridão da noite, sem qualquer abrigo adequado, era impressionante e aterrador.
O alferes, instalado com o pelotão no lado oeste, teve de mudar de lugar, onde estava bem abrigado atrás de um poilão, para não ouvir o soldado que o acusava:
- A culpa é sua, meu alferes. Se eu tivesse “lerpado” o “puto”, isto não acontecia.

Junto à nova posição de abrigo do alferes, um outro soldado, deitado de costas, com a G-3 ao lado, no chão, olhava para cima e dizia, repetidas vezes, em sotaque nortenho:
- Parece o São João no Porto, carago!»

(IN: “Cambança Final” de Alberto Branquinho – Página 199 – Edição Vírgula, Maio de 2013)



Gandembel

Fotos: © Alberto Branquinho (2012). Todos os direitos reservados


5 - O INÍCIO DE GANDEMBEL/PONTE BALANA
(Texto de Idálio Reis)

"(...)
E por via disso, na superior linha de festo do rio Balana, nos viemos a quedar nessa manhã, para de imediato dar início à odisseia que representou a construção de um posto militar fixo, que se viria a chamar Gandembel e mais tarde a uma anexa afastada apenas de poucas centenas de metros, de nome Ponte Balana.

Sob a vigilância directa de uma tropa já bastante mais experimentada - a CART 1689 -, que já reconhecera o local antecipadamente, e que teve uma acção extraordinária durante a permanência que teve connosco até à sua retirada a 15 de Maio, e que é de elementar justiça salientar o papel relevante que sempre demonstrou, começámos a arranjar as nossas guaridas colectivas, autênticos abrigos-toupeira, que nos ofertassem uma maior segurança pessoal durante o tempo de construção dos abrigos definitivos.

Mas antes do mais, houve que proceder à limpeza arbórea da zona, onde a única ferramenta mecânica - a moto-serra -, nos propiciou uma ajuda preciosa. Não foi assim, mestre-soldado Horácio Almeida? Tu que desde criança, tens tido uma vida mancomunada com a floresta.”(…)

(P1654 de 12 de Abril de 2007 – blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


6 - EM GANDEMBEL
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

"O furriel Marta, que se havia desviado para arrear a giga, ao sentir as formigas assassinas, a morder-lhe as partes, larga-se a correr agarrado às calças. Com este restolho, alerta uns turras que fugiram. Estavam a escamar peixe junto à margem. A nossa tropa, em descanso, não reagiu, para não espantar a caça.
Teríamos que continuar em direção ao Pontão, local apontado para nos juntarmos à CCAÇ 2317, futura defensora do aquartelamento a construir, com a designação de Toupeiras de Gandembel. Sob um sol escaldante, passámos entre um capim altíssimo, onde fomos atacados por moscas que, coladas ao suor, faziam de alguns de nós, pretos retintos. Seguíamos cautelosamente, tendo em atenção que o alerta já fora lançado, através dos fugitivos da beira rio.

Pelas 13H00, com o PCV e os T-6 à nossa vertical e quando já se ouvia o barulho das viaturas da coluna que vinha do Sul, o IN, instalado do lado Leste da estrada, desencadeou uma emboscada, cujo tiroteio demorou uns 10 minutos. Felizmente, tudo correu bem. De seguida avançámos para ver o ronco e fomos surpreendidos pelas abelhas. Situação resolvida e recebemos a ordem para avançar para o Pontão.
Inicialmente ficámos na dúvida se aqueles nativos, que vinham na frente. Seriam turras ou milícias. Valeu a nossa calma e uma dedução muito lógica: aquele barulho que os acompanhava não podia ser dos turras. Eles nunca se ouviam. Efectivamente, tratava-se da coluna que trazia os periquitos da CCAÇ 2317, acompanhados de outro pessoal, para iniciarem a instalação do aquartelamento. (…)
Fez-se a junção e procedemos à inversão de rumo, visando um local mais próximo do rio, para se fazer o aquartelamento. Guileje.
Mal nos distribuímos no espaço idealizado e logo sofremos um violento ataque de morteiros. Valeu-nos a 3.ª Companhia de Comandos, que acompanhava de perto a coluna e que deteve o avanço das tropas inimigas. Esta rápida intervenção dos Comandos deve ter tido grande influência intimidatória junto do IN, uma vez que passou a atacar mais de longe.

Nesta primeira noite em Gandembel, sofremos ataques às 20H00, às 23H30 e às 2h30.
Mal amanheceu, sofremos ataques às 6H00 e às 6H20.
Pelas 8H00, depois de reconhecido o local, procedeu-se à construção dos abrigos, cabendo à nossa CART 1689, a zona Norte e Oeste de um aquartelamento idealizado em forma de quadrado.
Neste dia 9, tivemos a primeira evacuação (por doença). Foi a de Joaquim Sousa Campos.
Grupos de 3 ou 4 elementos, com pequenas sacholas individuais, iniciaram escavações para se abrigarem do IN. Mal se cabia nas covas, cobriam-se com madeira e tudo que aparecesse. Enquanto uns trabalhavam no duro, outros tratavam da protecção da zona e do acesso à água. Apesar desta diminuta distância de 100 metros aproximadamente, o percurso foi sempre picado pela nossa CART 1689. Foram quase sempre os mesmos a fazer esta tarefa.

No dia seguinte (10 de Abril), pelas 10H30, sofremos um ataque que nos provocou dois feridos; João Inácio Sousa e o Eduardo Rodrigues Lopes.
O dia 11, que iniciou com um ataque sofrido durante 40 minutos, foi muito activo. Depois de uma boa resposta das NT, distribuímos pelotões por lugares chave, onde estiveram emboscados durante o dia. A partir deste dia, foi evidente o aparecimento de elementos doentes, que não podiam sair dos abrigos.
No dia 12, o ataque veio pelas 3H30. Nestes dias já encontrámos vário material deixado pelo IN e vestígios de sangue. Voltou a ser atacado pelas 22H30.
Este dia destaca-se pela chegada do primeiro correio e pelo início da construção da padaria.
Cedemos quatro “especialistas” para isso. O pessoal da nossa 1689, andava sempre ocupado em emboscadas e a montar segurança aos trabalhos da CCAÇ 2317, que veio a ser apelidada de “Os Toupeiras de Gandembel”. Abate das árvores e construção dos abrigos, eram trabalhos quase ininterruptos.
O tempo corria vagarosamente. Normalmente sofríamos ataques todas as noites. Por vezes, nem tempo nos davam para dormir.

Enquanto nós ansiávamos pelo regresso, cientes que terminaria o nosso período de intervenção, pensávamos nos desgraçados dos Toupeiras que iriam viver naquele inferno.
No dia 13 foi evacuado, por doença, Fernando Martins da Cunha.
No dia 17, quando faziam um patrulhamento de reconhecimento, foram atingidos por uma mina, o Furriel Belmiro Santos João e o nosso Capitão Manuel Moreira Maia. Foram evacuados para Bissau, onde viria a falecer o Belmiro.
No dia 19, dia em que deixou de haver pão, Foram atingidos por um dilagrama: Una Infalé, José M. Martins Costa Rêgo e Raul Pires. Foram evacuados para Bissau, onde veio a falecer o Una Infalé.
No dia 20, houve a primeira visita de um médico.

Dia 24. Já se havia entrado em comportamentos de rotina. Várias baixas, vários doentes inertes, dentro dos abrigos e muitos elementos debilitados, já se acomodavam ao esforço mínimo. Os Toupeiros, talvez mais cansados fisicamente, devido ao trabalho permanente, parecem agora pouco motivados e muito acomodados. Os militares da 1689, já com algumas baixas e sem o Capitão, chegaram a protestar por esta situação.
Lembro-me de termos ido montar segurança para protecção a uma coluna vinda do Guileje, comandada pelo Cap Corvacho, em que nos acompanhou um pelotão dos “Toupeiras”. Os turras soltaram as abelhas, que se dirigiram para este pelotão. Ia sendo um desastre! Estes militares descontrolaram-se e fugiram para o trilho, aos gritos, sujeitos a outro tipo de acção do IN. Muitos estavam tão inchados das ferradelas que nem se reconheciam. Regressámos ao aquartelamento e esperámos o que fazer. Chega a ordem para se voltar para a segurança à coluna e a maioria dos militares da 1689 recusa-se a fazê-lo, alegando o perigo da actuação da Companhia dos periquitos (Toupeiras). Estes apareceram mas, da 1689, só foram 14 elementos. Alguns, mais afoitos, isolam-se na coluna e provocam alguma confusão, porque outros não querem ir na frente. Rebenta um forte ataque do IN, que se havia emboscado à espera da coluna de Guilege. Aproximámo-nos do local do “assalto” e vimos o camião GMC carregado de cerveja, metido na cratera de um fornilho. Quando perguntei ao Corvacho o que iriam fazer à GMC e à cerveja, uma vez que estava a ficar tarde, ele disse:
- Não te preocupes, se a GMC não sair, rebento as garrafas com meia dúzia de granadas. Estes filhos da puta não vão beber nenhuma.

Felizmente a GMC saiu do buraco, para bem de todos e, muito especialmente, para os da 1689 que se abasteceram razoavelmente. Soubemos que no seu regresso a Guileje, esta coluna sofreu mais ataques em emboscadas e teve mais feridos.
Dia 26 de Abril, a nossa CART 1689 completava um ano. E todos os dias 26 davam motivo há maior bebedeira do mês. Ali, não havia Messes, Refeitórios ou Bares. Só buracos no chão e alguma água do rio. No entanto, sabe-se lá como, o nosso pessoal foi bafejado com a oferta de algumas garrafas de bagaço. Fracos e doentes como andavam, os soldados acusaram rapidamente o efeito exponencial de tais cargas etílicas. E o IN, talvez sabedor do significado desta data, resolveu atacar desmedidamente. Valeu-nos o ânimo bagaçal adquirido, para uma resposta compatível. E quando o festival acabou e se concluiu que ninguém havia sofrido ferimentos, foi a alegria generalizada".


7 – NOS PRIMEIROS DIAS

Vejo, pela História da Companhia, que a minha CART 1689 permaneceu naquele espaço, que veio a ser o quartel de Gandembel, cerca de um mês e meio.
Eu já tinha vivido com a Companhia a experiência de longos dias na construção de outro quartel totalmente novo (“Gubia”, no sector de Empada). Mas, devido a perigosidade da zona onde ia sendo construído o quartel de Gandembel, a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conakry, situado no chamado Corredor da Morte/Corredor de Guileje, eu calculava que os primeiros dias deveriam ter sido muito difíceis. Eram os ataques constantes de que falavam, a necessidade de água, organização do terreno para efeitos defensivos, para albergar (com a segurança necessária) duas-Companhias-duas num espaço tão limitado e em terreno praticamente plano.
Já tinha abordado estes aspectos com alguns graduados, mas a conversa derivava sempre para outros aspectos pessoais, de cada um, relacionados com a actividade operacional em período de tempo mais avançado e não durante a bagunça que, entendia eu, teriam sido os primeiros dias.

Num convívio da CART 1689 abordei este aspecto com alguns soldados:
- Então e nos primeiros dias, como é que foi? Muita confusão? E água? Havia água ou era cerveja?

Vou tentar reproduzir, com a realidade possível, partes do diálogo que as minhas perguntas causaram.
- Água? Água, a gente tinha. Havia um rio ali pertinho. Foi o único rio que eu vi na Guiné que não tinha água salgada.
- De dia os gajos atacavam, mas era só de longe. Com canhões e morteiros. Mas de noite os filhos da puta vinham de ao pé e com metralhadoras e tudo. E era todos os dias, de manhã e à noite e se não era de dia, chateavam-nos a noite toda.
- Então, quando a gente ainda estava a cavar os abrigos para três ou quatro de nós (que ficaram tapados com troncos em cimba e despois com chapas de bidões e depois com terra por cimba), não havia mais nada e tínhamos que ir “arrear o calhau”. Ora, pois! Como não havia inda onde ir, cagávamos do lado de lá das árvores maiores. Arreávamos as calças, púnhamos a G3 encostada às árvores, sempre com os olhos a olhar à volta. Feito o serviço, voltávamos p’rá picareta e p’rá pá. Quando os gajos vinham à noite p’rá atacar, deitavam-se ó detrás dessas árvores e cagavam-se todos. Eh! Eh! Eh! Eh! Eh!
- Póis! Mas as mais das vezes a gente andava a montar emboscadas e a fazer patrulhamentos de segurança às obras que os periquitos andavam a fazer.
- Mas, quando precisavas, também cagavas assim, daquela maneira, ou não?


8 - 15 de Maio – DIA TERRÍVEL
Primeiro ferido grave da CCAÇ 2317 – Furriel António Alves
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

“Julgo que era o segundo ou terceiro dia em que os Toupeiras efectuavam o trabalho do abastecimento de água. A Cart 1689 sairia neste dia de Gandembel e já deixara de o fazer.
A Companhia “Os Ciganos”, apesar dos seus cuidados bastante experimentados, tivera ali, em Gandembel, 2 mortes e dezenas de evacuados. Todavia, sempre manteve os cuidados essenciais de comportamento, incluindo, neste caso, a prática diária de picar esse escasso percurso de cerca de 150 metros.
Ora, os Toupeiras, ao contrário dos “Ciganos”, não sentiram necessidade de picar esse pequeno percurso. Claro que o experimentado IN estava atento a estes facilitismos e, logo no dia seguinte, ouviu o rebentamento das minas colocadas.
Disse-me o Cabo Mendes:
- Ó furriel, foi chocante ver o estado do seu colega que, com as pernas esfaceladas, dos joelhos para baixo, gritava:
- Tirem-me as botas! Tirem-me as botas!”


9 – No último dia da CART 1689 na OP BOLA DE FOGO
(Texto do livro “Cambança Final” de Alberto Branquinho)l

“DESPOJOS”

"Eram cerca de nove horas da manhã. O calor começava já a apertar. O pessoal da Companhia estava pronto e equipado para sair, com os seus pertences dentro dos sacos de lona. Estavam encostados nas sombras possíveis, na proximidade dos abrigos, prevenindo a necessidade de terem que se proteger em caso de ataque.
Aguardavam a coluna auto que estava a chegar, de norte, para, depois, saírem desse quartel fortificado, com as mesmas viaturas, em marcha apeada, fazendo o movimento de retorno. A norte ouviram-se três ou quatro (cinco?) rebentamentos de grande potência. A primeira reacção foi correr para os abrigos. Muitos estacaram imediatamente, porque, estouros com aquela força, não tinham nada a ver com “saídas” de canhão ou de morteiro. Todos os rostos se viraram, com expressão ansiosa para norte. Uma nuvem de fumo e pó começou a surgir e a avantajar-se muito ao longe.
- Que merda foi aquela?

A resposta chegou pouco depois, via rádio e retransmitida boca a boca: “Fornilhos”.
Chamam-se os enfermeiros e saem viaturas, com mais pessoal, em socorro.
A coluna tarda e não há mais notícias.
Chegam as viaturas que tinham saído. Os homens vêm com ar soturno. Duas viaturas tinham sido despedaçadas e havia muitos pedaços de corpos.
Quantos? Ninguém sabe responder.
As primeiras viaturas da coluna começam a chegar. Entra a viatura, de caixa aberta, com os pedaços de corpos. Alguns, curiosos, agarram-se às cancelas e espreitam:
- Foda-se! Queimados! Parecem todos pretos.

A viatura é coberta com panos de tenda amarrados, depois de enxotarem as moscas, que teimavam em ficar por debaixo dos panos.
Mais do que medo, uma raiva enorme, surda, irracional enche as cabeças e os peitos. Muitos cospem para o chão de forma maquinal, contínua, inconscientemente.
As viaturas são abastecidas de combustível para o regresso, directamente dos bidões, ao mesmo tempo que é retirada a carga que se destina ao quartel
Reorganiza-se a coluna para o regresso, com a indicação de que a viatura com os pedaços de corpos seguirá em último lugar. O pessoal da Companhia que aguardava seguirá apeado, espaçado, pelotão a pelotão, entre as viaturas.

Começa o andamento, desenrolando o “novelo” de viaturas e de homens. A raiva sobe-lhes às cabeças. Os dentes cerrados. Há indicação para estarem, também, atentos às copas das árvores.
Não demoraram muito tempo a chegar ao local de rebentamento dos “fornilhos”. Cabia um homem agachado dentro de cada buraco. Um furriel, quando viu um braço ou, talvez, uma perna, pendurado de um ramo, disse para um soldado:
- É pá, deixa aí a G-3 e vai lá em cima buscar aquilo, que a gente dá-te cobertura.
- Foda-se! Ir lá em cimba?! Bá lá bocê!

Frente à recusa, ficou parado, a olhar fixamente para “aquilo” e desistiu.
Ia recomeçar a andar e olhou para o chão. Viu, junto ao tronco de uma árvore, três ou quatro formigas grandes, pretas, que, com as pinças da cabeça cravadas, tentavam arrastar um pedaço de carne, ainda com um farrapo de farda camuflada agarrado. Com raiva, elevou o pé para esmagar as formigas (e, ao mesmo tempo, o pedaço de carne), mas susteve o pé no ar, com a perna flectida e acabou por dar um passo mais largo, passando adiante. Voltou-se para observar melhor e verificou que havia mais pedaços de carne, em volta. Ficou a olhá-los, sem dar conta que viaturas e homens iam passando por ele. Ele já não estava ali. Pairava, cérebro vazio…
Retomou a marcha, maquinalmente, devagar, muito devagar, titubeante e, entre dentes, ia repetindo Lavoisier: “Na natureza nada se cria… nada se… nada se… nada se perde… nada se perde… nada se perde…"

(IN: “Cambança Final” - página 157, edição Vírgula - Maio de 2013)


10 - O ALFERES MONTEIRO
(Texto do livro “Na Tenda do Mestre Isaías” de Emídio Soares)

"Quando passámos por Aldeia Formosa, onde jantámos na noite de 7 de Abril, tivemos a oportunidade de conviver com os militares ali estacionados. Dentre eles, destacamos o alferes Monteiro que, com a comissão quase terminada, aguardava, sem pressa, o seu regresso a Bissau e a Lisboa. Para além de manifestar essa satisfação do dever cumprido, o Monteiro, exteriorizava uma agradável camaradagem e uma evidente simpatia. Parecia que todos o admiravam. Todavia, quem mais o apreciava era o seu grupo de africanos com quem viveu intensamente quase dois anos.
No dia 14 de Maio, o Monteiro ainda estava em Aldeia Formosa. Precisamente nesse dia, o seu Comandante dava-lhe conhecimento que o seu pelotão teria que seguir de madrugada na coluna auto para Gandembel, a fim de levar materiais de construção e géneros alimentícios e, ao mesmo tempo, trazer de volta a CART 1689 que havia terminado a sua missão.
O Monteiro, numa atitude de solidariedade e de despedida do seu grupo, solicitou ao Comandante que o deixasse fazer esse último serviço.

A coluna seguia normalmente e cerca das nove horas já estava perto de Gandembel. Perante umas rajadas de armas ligeiras, a coluna parou e os militares atiraram-se para a as margens da estrada, a fim de se posicionarem e de se defenderem. Logo de seguida explodiram 12 fornilhos, transformando as valetas em crateras, e massacrando a maioria do pelotão do alferes Monteiro.
Seguiram-se cenas horrorosas na procura de corpos e pedaços de carne humana, espalhados em redor daquela zona de morte. Grande parte deles pendiam das árvores, para onde foram disparados.
(…)
No início desta recta, à terceira cratera, do lado direito, e junto à estrada, via-se um tufo de três palmeiras. Numa delas, estava uma perneira de calças de camuflado, com uma bota amarrada e pendurada na copa da palmeira. No tronco da palmeira central, estava a tampa do crânio de uma cabeça com cabelo loiro, à altura de um metro e quarenta, do chão. O resto do tronco até ao chão, era uma massa de carne e sangue, impregnada na casca da palmeira. Deduzimos que eram os restos mortais do alferes Monteiro. Ele era o único branco e loiro do pelotão”.(…)

(IN: “Na Tenda do Mestre Isaías” – página 120, de Emídio Soares, edição do autor)


11 – GANDEMBEL - A TERRA DOS HOMENS DE NERVOS DE AÇO

Por Idádio Reis

"(…) A briosa e colaborante CART 1689 despede-se definitivamente do nosso convívio, e a partida-separação deste bravo punhado de homens, deixou-nos claramente mais pobres, porquanto ficávamos francamente mais indefesos e inseguros. Em mais de um mês que nos acompanhou, até 15 de Maio [e 1968], desenvolveu um trabalho extremamente meritório, tendo-se empenhado denodada e esforçadamente em nos acompanhar. Passou também por graves vicissitudes, em que perde fatidicamente um furriel, alvo de um dos vários artefactos armadilhados por ela mesma, e sofre mais de uma dezena de evacuações, por ferimentos e doenças, entre os quais o seu capitão-comandante.” (…)

(IN: “No Corredor da Morte – A CCAÇ 2317, na guerra da Guiné” – página 112 de Idálio Reis, edição do autor – Fevereiro de 2012)


12 - HINO DE GANDEMBEL
Recolha de José Teixeira
Revisão e fixação de texto: L.G.

“Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte! (i),
Logo se ouve dizer.

Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.

A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (ii)
É preciso protecção.

Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.

Temos por v’zinhos Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.

Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!”

(P2319 de 1 de Dezembro de 2007 – blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


13 – NOTAS FINAIS

1 – Já em Catió, regressado de férias, deslocava-me amiúde para o Cais, esperando a chegada da minha Companhia. Na manhã do dia 24 de Maio ouvi um tiroteio a jusante. Era a LDG a ser atacada de ambas as margens, tendo-lhe sido causado dois rombos: um do lado esquerdo e outro à ré.
2 – Ao registar aqui a maior e mais perigosa OP realizada pela minha CART 1689, sem ter participado nela, pretendi somente transmitir alguns testemunhos que possam vincar a sua acção.
3 – Para assimilar melhor o que foi a guerra em Gandembel, aconselhamos o livro” No Corredor da Morte”, escrito pelo alferes Idálio Reis, da CCaç 2317, que esteve lá desde o início da OP Bola de Fogo até ao abandono do quartel, por ordem de Bissau (10 meses depois), do qual são transcritas acima algumas passagens.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12887: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (17): O Asdrúbal do Cu da Serra e os seus amores tardios

domingo, 23 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12887: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (17): O Asdrúbal do Cu da Serra e os seus amores tardios

1. Em mensagem do dia 17 de Março de 2014, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), reaparece com mais uma das suas ficções, quem sabe, baseadas em factos reais, para a sua série Ouras memórias da minha guerra:


Outras memórias da minha guerra

17 - O Asdrúbal do Cu da Serra e os seus amores tardios

Na tropa dizia que era do Porto. E como o apanharam em falso, garantia que era de Ermesinde. Porém, quando um “conterrâneo” lhe perguntou de que lugar ou rua, ele começou a gaguejar e jamais alguém acreditou na sua aludida naturalidade. Por isso, por sugestão do Massarelos, ficou baptizado como o Asdrúbal do Cu da Serra. Efectivamente, ele esteve em Ermesinde, no Seminário, uns quatro ou cinco anos, de onde saiu, por “aconselhamento” do guia espiritual, que não via nele a vocação que tanto prometera. A sua franqueza no confessionário terá causado a decisão do padre superior...

Serra de Valongo

Cada vez que o Asdrúbal ia a casa regressava com o saco cheio de pecados contra a castidade e causados por... maus pensamentos. Na origem estava uma bela rapariga, vizinha, que expunha facilmente as suas apetitosas carnes e os seus contagiantes calores. Tinham brincado juntos em crianças, mas, ela, mais velha uns dois anitos, desenvolveu-se rapidamente quer fisicamente quer em experiências amorosas. Aliás, com esses predicados mor(t)ais e liberta muito cedo dos estudos e de quaisquer compromissos, a “Toura”, como viria a ser conhecida, não demorou muito a iniciar uma grande carreira no negócio das carnes. Desadaptado do seu ambiente juvenil, decepcionado e desgostoso com esta paixoneta, o Asdrúbal ansiava a chegada dos 18 anos para incorporar, voluntariamente, uma unidade militar. Esteve na guerra no norte de Angola.

- Ora viva! Já lá vão uns anitos que não nos encontrávamos – disse o Alfredo, à saída do IPO do Porto.
- Sim, desde o funeral do nosso camarada de armas, o saudoso Zé Nogueira – respondeu o Asdrúbal, que acrescentou: - Que andas por aqui a fazer?
- Tive um cancro na bexiga e, como consegui curar-me, resolvi dedicar-me voluntariamente no apoio aos doentes deste hospital. - Respondeu o Alfredo, que continuou: - Enviuvei aqui, onde a minha mulher faleceu com 52 anos. Além dos conhecimentos que eu tinha na área da bioquímica, procurei e pesquisei tudo o que pude para resolver o meu problema e agora sinto-me na obrigação de transmitir o que sei e, ao mesmo tempo, pagar esta promessa até ao fim dos meus dias.
- Tiveste sorte, dá graças a Deus. Pois eu ando para aqui a correr, para fazer companhia à minha mulher que conseguiu juntar três cancros. Durmo cá todas as noites. Vou agora para casa fazer umas coisas e descansar um bocado. A minha filha foi lá para Lisboa, apaixonou-se por um mouro e quase não quer saber de nós. Isto não é vida, mas que hei-de fazer? – Observou o Asdrúbal.


O tempo ia correndo e nada se alterava. Apenas a colaboração do Alfredo se foi salientando, quer no apoio à doente, quer na moralização do camarada Asdrúbal.

Entretanto, o Alfredo foi falando da sua intensa actividade solidária, também através de um grupo de ex-combatentes. O Asdrúbal sentiu-se atraído por esse grupo bastante activo nas redes sociais, especialmente através do Facebook. Pouco depois já vinha matando o tempo nesse e noutros grupos similares que proliferam pela internete.

Grande parte dos facebookianos mostram, apenas, as fotos que mais os favorecem, o que é natural. Porém, entre os ex-combatentes (já sexagenários), abundam as fotos do tempo em que serviam a Pátria, nos seus quadros de guerra. Ora esses mocetões de peitos salientes e peludos, mesmo fardados, são uma atracção para as mulheres mais maduras. Viúvas, divorciadas, solteironas e mal-casadas aparecem a colar e a mostrar também as suas imagens mais favorecidas. Talvez seja por isso que existem tantos relacionamentos amistosos, mesmo que a maior parte das vezes, se considerem, essencialmente, virtuais. Desta forma, o amor paira no ar através do monitor do computador, quer no relacionamento via teclado, quer no contacto falado e visual através do Skype. E, daqui a umas sessões privadas de striptease (via monitor), é um pequeno passo.

É neste contexto social que vêm aparecendo casos e mais casos de uniões matrimoniais e de facto, merecedoras das mais belas páginas de amor.

O Asdrúbal foi sempre um homem avantajado. Já desde o tempo em que saiu do seminário ostenta um corpanzil de mais de 1,80m. Outrora bastante magricela, mas, agora, revestido com mais de 100Kgs. Visto de frente, sem que a sua exuberante barriga seja perceptível e vestido de tropa especial, carregado de insígnias e outros adornos militares, ele parece um General dos Marine dos USA. Por outro lado, o seu aspecto triste que, para nós, não é nada agradável, talvez esteja na origem de uma melosa paixão vinda do outro lado do Atlântico. Ela, a Donaida (Naidinha), uma brasa carioca de 42 anos, logo que soube da viuvez do Asdrúbal, arriscou tudo para vir consumar essa grande paixão.
Entusiasmado e crente, o Asdrúbal nem parecia o mesmo. Os últimos três anos de sofrimento junto da mulher hospitalizada e condenada, acentuaram o seu aspecto melancólico. Todavia, em pouco tempo, revitalizou-se milagrosamente.

Num dos convívios de ex-combatentes, o Asdrúbal falou-nos da sua felicidade e da sua determinação em mandar vir a sua Naidinha. O Silva, sempre na borga, pôs-lhe a mão nos cantos da testa, esfregou e perguntou:
- Ó morcão, tu queres mesmo ser corno, aos 70 anos? Vê lá no que te vais meter.
- Lá estás tu com as tuas brincadeiras. Olha que isto é mesmo sério – respondeu o Asdrúbal, perante a gargalhada geral.

De seguida, querendo justificar-se, acrescentou:
- A minha reforma é baixa. Não tenho nada a perder. Ela é muito independente. É especialista em massagens e depilações. Até tem uma sociedade com uma amiga. É muito conhecida na sua cidade, onde foi candidata a Deputada pelo partido do Piririca.

Então o Silva colocou-se a seu lado e pediu ao Maia que lhes tirasse uma foto “antes de…”.

O certo é que uns dias depois, o Asdrúbal confidenciava com o Alfredo:
- A Naidinha vem brevemente e eu ando preocupado porque já não desenferrujo o prego há mais de 3 anos. Nem sei se terei tesão para ela.

O Alfredo animou-o e disse:
- Como ela é boa e bastante experiente, não vais ter dificuldade nessa matéria. E continuou: - Olha, eu é que estive bastante mal nesse aspecto. Parei de f...r e como fiz medicação muito forte contra o cancro da bexiga, tive dificuldades em recuperar. Até a p… encolheu. O que me valeu foi um tratamento especial, feito na Clínica, onde duas enfermeiras me esticavam o material por processo mecânico e por massagens locais. Chegou uma altura em que a p… crescia só a pensar nessas massagens. Quando chegava à Clinica já ia armado. Elas aconselharam-me a iniciar os treinos junto de uma amiga. Hoje ainda tenho essa relação que me recuperou imenso.
- Oh lá, lá! Voici le padrecô da Fonte Velha! – observou uma senhora, dentro do Supermercado, apontando para o Asdrúbal.

Bastante surpreendido, até corou com as palavras da sua Belinha, outrora conhecida pela Toura da Ponte Nova. Como ficou embasbacado com a investida, ela acrescentou, num esforçado português destreinado e meio afrancesado:
- Talvez tu já ne me conais pas. Eu estou en France depois longos tempos. Casei e maintenant sou viúva mais de trois ans. Há muito tempo eu gostar de falar com o Asdrúbal. Lembrar tempo crianças. Sempre lembro tu a regarder moi, espreitar-me no campo. Eu rapidement dire que tu padre jamais.
- Belos tempos. Era novito e nem sabia o que fazer. Hoje reconheço que fui um morcom. Quando vou lá à aldeia recordo sempre a nossa meninice.
Agora mais à vontade, acrescentou:
- Vim às compras porque vivo sozinho. Também fiquei viúvo há cerca de meio ano. A minha mulher era muito doente. A vida não foi nada fácil.

À saída, a Senhora Isabel ofereceu-se para o levar na sua potente viatura BMW, ao que o Asdrúbal não se escusou. Durante esta curta viagem em que lhe correu um grande filme, ainda teve tempo para analisar as potencialidades da Toura colaborar num treino sexual, caso lhe sentisse alguma abertura. Mandou parar o carro e disse:
- É aqui que eu vivo. Hoje já não saio. Vou fazer umas coisitas e mais tarde vou fritar os jaquinzinhos. Vai ser uma barrigada.
-Moi ne sais pas que fazer. Mais o que gostava même era de manger jaquinzinhos. Tu donne-moi alguns? – Perguntou a Belinha. - Se quiseres, até os podes vir cá comer. – convidou o Asdrúbal.

Mal a Belinha seguiu, o Asdrúbal preocupou-se em ir procurar comprimidos azuis (ou brancos) para não ficar mal nos possíveis e desejados treinos.
A Belinha já acusa o peso dos seus 72 anos e o cansaço de quem sofreu muito na estrada da vida. Porém, a forma como se prepara, salientando as partes que julga serem-lhe mais favoráveis: olhos escuros, lábios carnudos, peitos salientes, traseiro arredondado e pernas torneadas, fazem dela um petisco ainda “comestível”.

Enquanto ultimavam a mesa com alguns aperitivos e os respectivos jaquinzinhos, eles iam falando das suas vidas, com especial destaque, no facto do falecido Pierre ter deixado bem a Madame Izabel Duval. Dizia ela:
- O Pierre era um cavalheiro. Toujours il me amou e respeitou. Tinha 82 anos quando morreu souvent. Senti beaucoup a sua falta. Foi para mim um pai e um marido sérieux. Il m’a fait sentir uma madame “à maneira”. Se hoje sou uma senhora, devo-o a ele. De resto, les autres hommes que j’ai connu seullement queriam este meu corpinho que Deus me deu e plus rien.
- Eu compreendo-te perfeitamente, dizia o Asdrúbal, que concluiu: - Não é para admirar, porque mandaste sempre um cabedal de primeira.

Conversados, bem comidos e bebidos, a Belinha pediu para ficar a ver a telenovela portuguesa que, na sua opinião:
- Aquilo é só putedo e paneleiragem. Copiaram dos brasileiros. Mas eu até acho engraçado ces histoires.

Logo que o Asdrúbal se apercebeu de que a Belinha estaria disposta a outro tipo de peixe, foi tomar meio comprimido de viagra. Quando acabou a telenovela, já estavam encostados um ao outro, sentados no sofá. Ele como não sentia o efeito do viagra, levantou-se e foi tomar um comprimido inteiro. Não queria perder esta oportunidade. Quando regressou, ela, abanando com as mãos a blusa desabotoada, atirou-lhe:
- Ui, que chaleur! Não sei se foi do vinho. Agora que te vejo a olhar para moi, fazes-me lembrar a cara de esfomeado, quando ias para o quintal caçar grilos.
- Podia não caçar muitos grilos mas não era por falta de gaiolas – respondeu-lhe.

De repente criou-se uma empatia tal em que o Asdrúbal assumiu o papel do engatatão que, em tempos, tanto lhe faltara.

Sobrado - Valongo

Três dias depois, no “Encontro de ex-combatentes”, o Asdrúbal respirava confiança e satisfação. Nem parecia o mesmo. O Alfredo interrogou-o logo mesmo na frente do Silva:
- Então, já fizeste os treinos? Sempre vais mandar vir a brasileira?
- Digo-vos uma coisa: não sei se foi da dose do viagra e meio que tomei ou se foi da limpeza dos tubos enferrujados. Só sei que tive uma noite de trabalho intenso e nem deixei a Toura dormir. Aquilo foi sempre a aviar. Andava a sonhar com ela pr’aí há sessenta anos! Tantas f...s que perdemos!

O Asdrúbal contou a coincidência do encontro que deu azo a ter-se saciado com a mulher que mais desejou em toda a sua vida.
- E ela aguentou? - Perguntou o Silva.

Ao que ele respondeu:
- Claro. É muito sabidona. Sabiam que aquela era a tal gaja da minha infância? Quando regressava ao Seminário via-a em todo o lado, até dentro da capela. Deu em puta selecta. Ela disse-me agora que o culpado foi um tio que lhe tirou os três aos quinze anos. Hoje é uma senhora viúva de um francês que já lerpou. O velho deixou-lhe umas massas e ela veio cá passar uns dias. Ficou apaixonada por mim e quer que eu vá para França. E logo agora que vou receber a minha boneca.
E continuou:
- Estais a rir de quê? Olhai que ela já nem queria ir para casa. E sabem o que ela me disse? - Já comi muitos quilómetros de p… mas nunca fiquei tão satisfeita!
- Já mandei vir a Donaida, Chega no dia 10. Vou buscá-la a Lisboa.

O Alfredo alertou-o:
- Tem cuidado com isso. Olha que o Zé Ribatejano contou que um amigo dele, que tinha uma reforma de luxo, entrou-lhe pelo Banco dentro a chorar e desorientado porque não sabia o que fazer. Andava todo entusiasmado com uma brasileira que lhe chupou tudo, ficou hipotecado sem saber e acabou por descobrir que ela trouxera do Brasil um gajo que estava hospedado em Santarém, de onde a ia orientando.
- Mas eu conheço o caso do Fonseca de Penafiel que leva uma vida feliz com a brasileira que arranjou. A minha Naidinha parece porreira e gosto dela – respondeu o Asdrúbal.
- Se assim é, não quero travar a mínima coisa – justificou o Silva, que continuou: - Em questões do amor, não quero interferir em nada porque já tive experiências muito desagradáveis. Se isto é realmente uma questão de amor, embora mantenha as minhas reservas, podes contar com todo o meu apoio. Aliás, deixarei de brincar com o assunto.

Foram quinze dias de lua-de-mel. Todos os contactos do Asdrúbal irradiavam felicidade. Ao mesmo tempo ia informando que era relacionamento sério e que era para casar. Aliás, a Naidinha não aceitava outro tipo de relacionamento.
- Meu bem, gostaria de ir Domingo a Guimarães, visitar minha prima Tété e passarmos pela Trofa, para levar connosco a sua filha Dédé – pediu a Naidinha.
- Tudo bem, meu amor, mas olha que temos gasto muito dinheiro e eu não tenho possibilidades para mais – respondeu o Asdrúbal, assumindo a posição de chefe de família bem controlada.

Em Guimarães, durante o almoço com as primas, onde se juntou o Julinho e a Nair, o Asdrúbal afastou-se, para ir dar uma mija. Como o WC era próximo, elas não se apercebiam de que, com o entusiasmo que estavam, dava para ouvir a sua conversa:
- Nós estamos a ganhar bem; eu por aqui e a minha Dédé lá nos arredores do Porto. Você vai ver que, com o corpinho que tem, não vão faltar clientes. Tem que casar rapidamente com o velho para poder ficar em Portugal, porque da outra forma, pelo turismo, não há possibilidades.

O Julinho também encheu de elogios a Naidinha, encorajando-a a integrar o “grupo de trabalho”.

Durante o regresso, o Asdrúbal nem sabia o que dizer. Limitou-se a pensar e repensar que, afinal, estava mesmo metido com putedo de primeira. Antes pensava muito nas carícias e nas palavras amorosas da Naidinha mas, agora, até lhe vinha à cabeça a sua recusa em fazer sexo oral e anal. No primeiro caso, ela alegava falta de ar e no segundo porque prometera à Santa do Caravágio manter a virgindade na bunda até ao casamento católico.

Já só via uma saída: mandá-la de regresso para o Brasil e, entretanto, aproveitar para lhe dar mais umas f…. valentes, como pagamento parcial do seu oneroso investimento.
Durante a noite, ele tentou cobrar o máximo mas, além de não sentir a potência necessária, a Donaida desculpou-se com o cansaço do dia agitado. Foi para o sofá, onde passou a noite.

Logo de manhã, passou pela Agência de Viagens, tratou da passagem de regresso da Naidinha, que encontrou ainda na cama.
- Naidinha, por favor vem sentar aqui no sofá, porque precisamos falar.
- Meu bem, que se passa, gosto não di vê você assim tão sério?
- Depois da viagem de ontem, verifiquei que tu pertences a outro mundo e eu não gosto dele. Não gostei nada de te ver amiga daquela gente.
- Mas, meu bem, elas são minhas primas. Você não vai condená-las por serem profissionais do sexo e ao Julinho que é o seu protetor. São todos boa gentche. Tchjura.

E acrescentou:
Nois não temos nada com isso, vamos casá e levá uma vida diferentche. Uma vida de amorrr e de paíssz.
- Já aqui tens a passagem. Podes estar comigo estes dias sem qualquer problema. Ficas à vontade, tenho aí outro quarto.

A Naidinha nem queria acreditar no que se estava a passar. Agarrou-se a ele, fez-lhe juras de amor e de fidelidade.
- Meu bem, eu amo você, nasci pra você e quero vivê só com você, toda sua vida. Eu lhe vou fazê uma massage para você relaxá e afastá o mau astral.

Acariciou-o tanto que ele começou a sentir-se arrependido pela decisão que havia tomado.
- Ok, então vais lá tratar dos assuntos que deixaste pendentes e voltas.

Logo no início da tarde, o Asdrúbal foi procurar reabastecer-se de material excitante e contactou o Zé Maia, que lhe arranjou “um verniz especial para endurecer madeira”.

Dois meses depois, o Asdrúbal queixava-se de que já lhe havia enviado dinheiro três vezes e ela ainda não via oportunidade de voltar. Precisava sempre de mais dinheiro. No entanto, ela não parava de lhe telefonar, mantendo-o amorosamente preso pelo beicinho.
- Ouve lá, ó morcom - interpelava-o o Silva no “Encontro” de Janeiro:
- Como é possível continuares a acreditar nessa mulher?

Ele respondeu:
- Tens razão, ela é uma putéfia de primeira, mas eu gostava muito dela. Ela era tão doce, tão meiga e tão boa que eu até me passava. Agora que vejo que vai ser difícil ela voltar, confesso-te uma coisa: - Com uma bunda daquelas, tenho pena de não a ter enrabado. É que ela era mesmo virgem e não parava de me falar no seu juramento à Santa do treinador Scolari. E continuou: - Estás a rir de quê? Disso percebo eu. Desde pequenino.

(Nota final: Há mais de quinze dias que o Asdrúbal não dá sinais de vida.
A última informação colhida foi que “estava a pensar emigrar para França”).

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11273: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (16): É guerra é guerra... (será?)

segunda-feira, 18 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11273: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (16): É guerra é guerra... (será?)


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > À esquerda o nosso tertuliano Silva da CART 1689 com o protagonista desta história, o camarada Dionísio 


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > Nesta  foto, parece que o Dionísio conta a sua aventura ao Silva, enquanto que de pé, seguem atentamente a narrativa, os camaradas Antero, à esquerda, e o (outro) Silva, à direita.


Fotos (e legendas): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013)


1. Em mensagem do dia 12 de Março de 2013 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta história verídica para as Ouras memórias da sua guerra:


Outras memórias da minha guerra

16 - É guerra é guerra… (será?)

Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, destinava à próxima quadra natalícia. 

Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:
 – Quem  está doente?

Logo a resposta veio célere:
  – É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.

E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:
 – Onde  andaste?
 – Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.
 – Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.

O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.

Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.

E foi assim:

É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom. Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª Classe, uma vez que já sabia ler.

Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.

Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano, no sector dos componentes eléctricos.

Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:
  – Senhor Zé,  tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.
  – Desembucha,  rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.
  –  Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.
 –Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.

E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.

Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “LIVRE”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “APURADO PARA TODO O SERVIÇO MILITAR!” Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.

Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um Aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal Ten Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.

Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no Ralis de Lisboa.  Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.

 –  Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei. 

E ele iniciou:
 – Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.

Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“OP Azimute”), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximamo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.

Avançavam as equipas de 2 de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.

Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?

Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o Sub-Cmdt Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
 – Cada  um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos.

O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:
 –Após  algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.

Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça.

Estávamos aquartelados em Brá – Bissau e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o Navio Uíge, que havia trazido mais militares (Bat.1913) e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.

Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.

As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.

Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.

Quando cheguei a Lisboa fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado.  Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.

Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.

Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.
- *
Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: 
 – O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras.

Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre, programa do conhecido Manuel Alegre.
Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.

Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.

Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:
 –Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.
 – Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.

No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:
 – Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório! 

Duas praças da Policia Militar, esperavam-no.  Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá. 

Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:
 – Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.

Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:
 – Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?
 – Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.
  – Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu Alferes Sampaio Faria.

 –Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou 2 vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor/Comando Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo Sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó.

Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné:  “Op. Bola de Fogo”,  para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade. 

Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta Op., o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.

O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-Furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.

 –  Entretanto, o Sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra Comissão de serviço.

O Dionísio, chateado, ainda perguntou:
– Quem  foi que lhe disse que vou para os Adidos?
 – Foi a informação que chegou do Quartel-General. – Respondeu o Sargento.

O Dionísio, saiu ao encontro do Capitão.
  – Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.
 – Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – Perguntou o Capitão.
 – O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.
 – Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação. – Disse o Capitão. 

Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rollis Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.

(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).

Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última Operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.

O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.
 – Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.
 
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- * -
Notas do autor:

1 - Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.

2 - Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:
 – Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.
– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?
– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?
– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.

Foi então que o Dionísio rematou:
 – Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9650: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Promessas

sábado, 24 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9650: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Promessas

1. Em mensagem do dia 19 de Março de 2012 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:

Outras memórias da minha guerra (15)

Promessas

Aproxima-se o fim do ano de 1966. Já é noite escura. Ela saiu da fábrica de papel e em passadas fortes vai directamente para casa. Tem 44 anos. Ficou viúva há sete, com 6 filhos, entre 1 e 15 anos. Agora, estão dois na escola primária, dois a trabalhar nas fábricas de cortiça (a Emília de 13 anos e o Francisco de 16) e dois estão na tropa. Mal entra em casa, vê que o Mário está a tirar dúvidas de tabuada à irmã mais nova.

- Vieste cedo, filho! Mandaram-te embora? – perguntou a “Ti Ana do Rusga” ao filho, que está a cumprir o serviço militar. E como ele demorou a responder-lhe, acrescentou:
- És órfão de pai, tens quase ano e meio de tropa e como o teu irmão já está em Angola há uns meses, é justo que te deixem vir para casa, ajudar os teus irmãos.
- Mãe, quantas vezes já lhe disse que vivemos numa ditadura e que a justiça deles não é igual à nossa? – respondeu o Mário.

A Ti Ana estremeceu, olhou preocupada a porta ainda aberta e lamentou-se:
- Lá estás tu, filho, com essas coisas de hereges e do comunismo na cabeça. A Sra Dona Julinha, está sempre a dizer-me que devias largar os livros e que não podes andar com os filhos do Dr. Baptista, porque esses qualquer dia vão morrer na cadeia, como o Ferreira Soares*. Sabes bem que tem de haver ricos e pobres e que se Deus Nosso Senhor nos fez pobres é porque é essa a sua vontade.
- Pois é, mãe, os ricos é que lhes metem essas coisas na cabeça e o nosso padre Inácio também ajuda. – respondeu o filho, que continuou:
- A mãe tem trabalhado sempre e nós, saímos da escola e vamos logo trabalhar. Andamos nas fábricas a fugir dos fiscais. Temos que suportar tudo por uns tostõezitos, porque quem for despedido, não é aceite pelos outros patrões. Temos vivido miseravelmente e a mãe não tem onde cair morta.

E, a seguir, interpela:
- Sabe qual foi a primeira ajuda do Salazar? Foi tirar-nos a Assistência Social e o direito ao abono de família, quando o pai morreu, precisamente na altura que mais precisávamos. Ninguém nos ajuda e ainda nos perseguem no trabalho. Há ricos que não vão para a guerra e nós, órfãos e necessitados, vamo-nos lá juntar os dois, que poderiam ajudar a família. Olhe, mãe, vim mais cedo porque vou mudar para o quartel de Gaia. E de lá seguiremos para a Guiné.

A Ti Ana começou a chorar e a lamentar-se:
- Ai, Nossa Senhora de Fátima que tens de me ajudar! Não me abandones! Cuida dos meus filhos e não os deixes ficar por lá.

E, de repente, reage a gritar:
- Oh meu Deus, que mal eu fiz para me castigares tanto? Eu não te peço para mim! Eu não rezo para ser santa! O que mais te peço é que me ajudes a criar os meus filhos! Tem dó desta desgraçada!

E, voltando-se para o filho, em tom mais sereno, continuou:
- Oh rapaz, tem temor a Deus e tem muito cuidado com o que dizes. Deus não gosta dessas heresias e pode castigar-nos. Olha que não podemos viver sem o respeito pelas autoridades e patrões e a bênção de Deus.
- Mãe, - respondeu o filho - essa gente trata-nos como escravos e ainda temos que lhes agradecer. Eu não posso aceitar isso, toda a vida. E Deus, se existisse, como exemplo supremo de bondade e com poder infinito, não deixaria haver tanta injustiça. Ele não deixaria sofrer e morrer tantos inocentes. E aproveito para lhe dizer já que não vale a pena fazer promessas a Fátima ou a outros santos, por minha causa. Eu, se escapar, não vou cumprir nada. Não acredito nesses “negócios”.

Estávamos na Quaresma de 1967. O Mário saiu de casa, a meio da manhã, sem se despedir. Passou pelo cemitério e foi contemplar a foto do pai, aposta numa placa de mármore, sempre acompanhada por lindas flores naturais. Ele não sabia se regressava. Ao recordar o pai, deixou cair algumas lágrimas de saudade e balbuciou:
- Pai, vou para a guerra. Sabia que eu era patriota mas agora não sinto vontade nenhuma de combater quem não me fez mal. Se tiver que matar é para não morrer. Prometo que tudo farei para regressar. O que mais me preocupa é a nossa família que continua destroçada. Vivemos consigo grandes privações mas após a sua morte, as coisas pioraram. Sentimos muito a sua falta.

As lágrimas redobravam, acusando, agora, a manifesta incapacidade e a revolta que sentia, pensando na má sorte que o perseguia. Um turbilhão de questões saltava na sua cabeça:
- Pai, porque quis tantos filhos? Porque acreditou nas promessas do Salazar? Não vê a situação em que ficámos?

As respostas eram evidentes e o Mário parecia estar a ouvi-las:
- Oh rapaz, os filhos são a bênção de Deus. A tua mãe dizia que era pecado evitá-los. Temos que ser tementes a Deus. Mas, não gostas dos teus irmãos? Não os abandones, especialmente os mais novos. - Olha que eu não gostava do Salazar. Morri cedo devido à fome e miséria que passei, em miúdo. Sabes bem disso.

Na Guiné, o Mário esteve muitas vezes debaixo de fogo. E, tal como os outros militares, passava horas e horas em silêncio durante a progressão na mata. Ali, apesar dos momentos intermináveis de tensão, tudo que era afectivamente mais próximo, ocupava-lhe desordenadamente o cérebro. E a questão principal ressaltava a cada momento: será que voltarei a vê-los?

Outras vezes, eram as noites mal dormidas, por tanto pensar ou por tanto e tão grande pesadelo.
Morreram-lhe vários militares amigos e companheiros. Um deles, nos seus próprios braços. Porém, por ele, ninguém sabia o que por lá se passava.
No aquartelamento, sempre se preocupava em escrever para casa e para os amigos, enviando fotografias, preferencialmente à civil, e contando sempre que estava a passar umas ricas férias.


Quando se aproximou o 13 de Maio de 1969, já os dois filhos mais velhos da Ti Ana haviam chegado sãos e salvos. Agora era preciso pagar as promessas. A Ti Ana vivia dias felizes, de bem com Deus e com todos os santos, a quem prometera sacrifícios até ao fim da sua vida. De sua casa partiram em conjunto mais de 20 pessoas, com destino a Fátima, a pé. Entre elas, seguiam vários jovens vestidos de camuflado como o faziam lá na guerra, nas Operações Militares. Um deles, estava numa cadeira de rodas. O Mário, que cumpria a sua promessa pela negativa, abeirou-se do rapaz e perguntou:
- Também vais até Fátima?

Ele respondeu:
- Sim, com ajuda da malta e da N.ª S.ª de Fátima que, graças a ela, aqui estou salvo, lá chegarei. E tu, não vais?
- Eu, não. Não fiz promessas e tive sorte. Pelo contrário, tive amigos que lá ficaram e tinham prometido ir a Fátima, Arcozelo, Peneda e Sameiro.
- Pois, tiveste sorte, é porque alguém pediu muito por ti. – respondeu o rapaz

Vinte e cinco anos depois, a Ti Ana, já com uns 70 e tal anos, deixou de poder cumprir a promessa, indo a pé. Confessou a sua impossibilidade ao padre das Missões, onde passou a colaborar, e “renegociou” as suas Promessas: passaria a organizar 2 excursões anuais, em autocarro, mobilizando mais de meia centena de seguidores de N.ª S.ª de Fátima.

Com a mãe a aproximar-se dos 90 anos, o Mário resolveu dar-lhe a alegria de ir a Fátima numa dessas excursões, que era, agora, ajudada na organização, pela filha mais nova. Ele gostou imenso daquele ambiente popular e alegre e prometeu ir lá mais vezes.

Quando, estavam em Fátima, o Armindo interpelou a Ti Ana, na frente do Mário:
- Como é que conseguiu que este herege viesse a Fátima?
- Olha, menino, quanto mais velha, mais feliz me sinto. Hoje estou a cumprir a minha promessa mais difícil. Há mais de 40 anos que a estava a dever à N.ª S.ª de Fátima!

Silva da Cart 1689

(*) Sobre o Dr. Carlos Ferreira Soares vd. Blogues:
Histórias da Minha Terra e Sobre o Risco

- Foto do Santuário de Fátima retirada da página Farol de Luz, com a devida vénia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9567: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (14): O Tininho da feira

terça-feira, 6 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9567: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (14): O Tininho da feira

1. Em mensagem do dia 1 de Março de 2012 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:


Outras memórias da minha guerra (14)

O Tininho da feira

O Tininho era o filho mais novo da família dos Quintelas. Eram cinco rapazes e duas raparigas. Trabalhavam todos em conjunto como negociantes de gado. Eles andavam de feira em feira, tal como o pai, e elas tratavam da casa e do gado. Como a mãe faleceu cedo, elas eram bastante acarinhadas pelos irmãos. Apenas o Tininho fez a escola primária. Razão porque eram vulgares as piadas a gozar com essa situação de iletrados, especialmente com o velho Quintela que, apesar de exibir um bonito relógio de bolso, preso por uma valiosa corrente, não sabia dizer as horas.

Os Quintelas não casados viviam na casa paterna, junto ao largo da feira de Lourosel. Era ali que se juntavam, discutiam e apuravam as estratégias para o negócio em equipa. Eu, ainda miúdo, tive a oportunidade de os ver trabalhar. Em dias de feira, dois deles deslocavam-se pelo caminho normal de acesso do gado. Um ficava a mais de um quilómetro e o outro a uns 500 metros. Outro estava à entrada da feira e o velhote e o filho mais velho, iam lá mais para o interior da feira do gado. O lavrador começava a ser influenciado logo no primeiro contacto. Ali, tomava conhecimento dos defeitos e valores do animal e do conselho “desinteressado” daquele senhor. Adiante, a cena repetia-se e, à entrada da feira, já o terceiro Quintela “abusava” dos valores fornecidos anteriormente e desafiava o vendedor a consultar outros negociantes, ao mesmo tempo que o estava a encaminhar para os seus possíveis compradores. Se, por acaso, algum comprador alheio ao esquema se metesse no negócio, era certo que em poucos minutos havia porrada da grossa. Eles, juntos, “amoleciam” qualquer valentão.

Também me recordo de ter visto carregamentos do gado, para levar para a Malveira. Faziam-no ao princípio da noite, de forma a chegar lá de madrugada. Naquela época (início dos anos 50), havia doença no gado, o que se prestava a negócios bastante vantajosos. Porém, algum gado morria antes de partir, e para que ele se aguentasse até à Malveira, pregavam uns barrotes atravessados no camião, de forma a manter o animal de pé. Dizia-se que alguns chegavam lá mortos. É esta a razão por que, falando-se de um doente, se costumava dizer, em tom de brincadeira:
- Sim, sim, esse está bom é para ir para a Malveira.

Ao Tininho não faltava nada. E como ele sempre foi de pequena estatura, beneficiava de um tratamento mais mimado. Até nos jogos de futebol improvisados junto à capela quase não se lhe podia disputar a bola. É que ele, às vezes, zangava-se e ameaçava levar a bola para casa. Por outro lado, gozava do proteccionismo exagerado dos irmãos, sempre munidos de bengala e de uma exuberante naifa de Fafe. Como ele tinha a voz muito fina e a cara muito lisa, também era conhecido por Tininha. Porém, ninguém tinha coragem de o chamar por esse nome, embora não faltasse vontade. Apenas o vizinho Ramião, filho da Dora Vadeca e de pai incógnito, que era deficiente de uma perna e meio atrasado mental, contrariava esse receio. Digamos que para o Ramião era um prazer enorme mostrar a sua coragem. Então, sempre que oportuno, exibia a sua voz grossa, entrecortada e pouco perceptível, e atirava:
- Tafôôuda Tinênha. Pareces mesmo uma Tinênha boieira!

- A Tininha está aqui. – gritava o Tininho com aquela voz feminina, enquanto apertava o centro das pernas provocatoriamente, dando azo à desejada gargalhada geral .

No entanto, o Ramião já havia sido apertado. Quem o safou dos Quintelas foi a GNR, depois dos gritos protectores da sua mãe e a solidariedade dos vizinhos.

O Tininho, que saiu tarde da escola, manteve a sua meninice até à tropa. Sim, ele foi à tropa. Já andava no CICA do Porto, quando rebentou a guerra em Angola. Em pouco tempo foi mobilizado e partiu para Luanda. Como andava sempre endinheirado, não foi difícil obter alguma predominância entre os seus camaradas. Acabou por ser o protegido de um primeiro-sargento, que o indicou para impedido de apoio a um Major, que vivia com mulher e duas filhas, em idade escolar.

As irmãs Quina e Micas, eram vaidosas e gostavam muito de mostrar o seu corpo avantajado, através das roupas ajustadas. E para salientar mais as mamas, atiravam provocadoramente o peito para fora. Digamos que, para aquela época, elas eram umas mulheraças. No entanto, o tempo ia passando e elas pareciam não segurar os namorados, talvez devido à falta de humildade e à sua apetência para mandar. Gostavam muitos das festas de arraial e de frequentar as actividades religiosas. E foi na frequência da igreja que elas desenvolveram uma relação com a família Santana.

O velho Santana, um conhecido industrial de cortiça, além da missa, gostava de ir ao cemitério com a sua neta Bélinha (Isabel), onde rezavam por alma do pai e da avó. O Sr. Santana costumava dar boleia às manas Quintela. A Bélinha, que cedo ficou órfã de pai, tinha a mãe bastante debilitada de saúde. Viviam em casa do avô Santana, que muito as acarinhava e amparava. A Bélinha, que estava internada num colégio de Freiras, só vinha a casa durante fins-de-semana. Ela era a alegria da família, incluindo os dois tios já casados.

Foi grande a alegria dos Quintelas ao receber de volta o Tininho, vindo da guerra de Angola. O rapaz que sempre fora mimado pela família, via esse afecto redobrado devido aos dois anos de ausência. Por outro lado, as manas faziam tudo para que a imagem de menino efeminado, fosse ultrapassada rapidamente. Compraram-lhe um carro VW azul claro, vestiram-no de tudo que era bom (foi dos primeiros a usar camisas TV) e adornaram-no de anéis, relógio de luxo, alfinete de gravata, etc. Embora não fosse bem o género de jovem moderno dos anos 60, ele, quando saía, cheio de pose, no carro a brilhar, de óculos Ray Ban e carregado de Brilcream na cabeça, era uma tentação para um certo género de miúdas. Porém, parecia não ser feliz nas suas conquistas porque, após os primeiros contactos, elas não mostravam interesse no relacionamento.

Agora, que dispunham de carro e de condutor, as manas Quintela mostravam-se mais. E, da igreja, chegaram a trazer a Bélinha, com a devida anuência do Sr. Santana. Como a Bélinha, já com 16 anos e corpo feito, praticamente não tinha outros contactos fora da família e do colégio, mostrava alguma simpatia com o ambiente amistoso das manas Quintela, agora também manifestado pelo irmão Tininho.

- Senhor Santana, como a Bélinha está de férias da Páscoa, podia ir connosco a Fátima, no próximo sábado - dizia a Micas, à saída da igreja, das cerimónias da Semana Santa, que continuou:
- Temos que ir lá a pé cumprir a promessa que devemos pelo meu irmão mas, por agora, só queremos ir à missa agradecer o seu regresso da guerra e dar umas voltas de joelhos na Basílica.

Respondeu, concordando, o Sr. Santana:
- Está bem, mas venham cedo porque a quero em casa antes do jantar. Sabem que a minha filha é doente e não pode ter aflições.

Tudo correu pelo melhor, quer na parte religiosa quer durante o almoço. O ambiente não podia ser melhor. Porém, no regresso, perto da Curia, o carro abrandou, parecendo avariado. O Tininho, mostrando alguma surpresa, pediu às irmãs que lhe dessem um pequeno empurrão. A Bélinha também queria ajudar mas disseram-lhe que não era preciso sair do carro. O carro avançou e o Tininho começou logo a dar sinal de querer voltar para trás. No entanto, quando voltou a sul, não parou e seguiu com a Bélinha. Neste caso, a forma mais correcta de dizer seria: fugiu com a Bélinha!!!

O escândalo rebentou. A desrespeitada e conservadora família Santana, entrou em desespero. E, como ferida no seu orgulho, não podia aceitar qualquer desfecho apaziguador. Por isso, moveu desde logo todos os meios para interceptar o raptor.

Só na manhã do dia seguinte o carro foi localizado perto de Mafra. Soube-se, também, que a Bélinha estava doente e que não seria aconselhável viajar nessas circunstâncias.
- Se a desonrou, tem que casar com ela - diziam uns.

- Isso quer ele. Por isso é que ele fugiu com ela – diziam outros.

- Ele não tem categoria para uma miúda daquelas. Além disso, mostrou que é um animal – diziam ainda outros.

- É evidente que as matronas ajudaram ao golpe - acrescentavam as más-línguas.

Pouco se sabia de concreto sobre o que se passara. O certo é que a miúda, ao fim de três dias, veio mesmo doente para casa, onde se manteve incontactável. O Tininho não se inibia de publicamente, fazer juras de amor e da vontade de “pagar” o seu apaixonado impulso mas, a família Santana, nem o queria ver por perto.

A Bélinha faleceu, pouco tempo depois. Havia gente que acusava a família por ter preferido a sua morte à desonra ou ao seu casamento forçado.
Bastante debilitada, a mãe da Bélinha não aguentou mais que dois meses, o choque daquela tragédia.
E o Tininho foi para a cadeia de Custóias, cumprir 14 anos de prisão.

Mais tarde, quando se perguntava por ele, pouco ou nada sabiam dizer. Como não era benquisto na zona, mudou-se para parte incerta. Também diziam que se dedicava, profissionalmente, à vida nocturna, talvez fruto das ligações adquiridas na prisão.

Há cerca de 10 anos, casualmente, encontrei-o. Eram altas horas da madrugada, quando fui abastecer o carro de gasóleo numa área de serviço, aberta toda a noite. E, quando estava a tomar qualquer coisa ao balcão, ele passou pela frente e foi colocar nas prateleiras umas revistas e os jornais do dia. Ao virar-se para os clientes do balcão e demais pessoal da noite, olhou-me e exclamou:

- Tu és o Zeca, não és? Há quantos anos não te vejo!!!

Disse-lhe que tinha casado em Crestuma e que vivia lá. E perguntei:
- E tu, que fazes?

- Faço vida lá no Porto. Comprei isto há pouco tempo mas dá-me muito trabalho. Não imaginava que custasse tanto.

Curioso, acabei por perguntar:
- E as tuas irmãs, que é feito delas?

Ele respondeu:
- A Micas já morreu e a Quina vive comigo.
- Não casaram? – perguntei.
- A Micas, não. A Quina namorou com o Tono da Lagoa durante dezassete anos e esteve casada com ele um ano e picos. O fdp, disse-lhe que ia visitar um primo a França, para ver se valia a pena mudarem-se para lá, e nunca mais apareceu. Viemos a saber que tinha fugido para a Venezuela.

E continuou:
- Um gajo que faz uma coisa destas a uma mulher, merecia que lhe cortassem o pescoço!

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste de 28 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9411: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (13): Vícios ou frutos da época