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sexta-feira, 24 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14928: Manuscrito(s) (Luís Graça) (62): "I want you, dead or alive"




Vídeo (0' 06'') > Alojado em You Tube > Luís Graça


Lourinhã, Vimeiro, 18 de julho de 2015_Reconstituição histórica da batalha de 21 de agosto de 1808 e mercado oitocentista. Vídeo: Luís Graça (2015)




"I Want you, dead or alive"
por Luís Graça (*)


À memória do Umaru Baldé, (que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dá pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras);

do Abibo Jau (, o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12., fuzilado em Madina Colhido);

do Abdulai Jamanca (, cmdt da CCAÇ 21, fuzilado em Madina Colhido);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015);

do Iero Jaló (, o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (, sold cond, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida ( que terá morrido de morte violenta, já como paisano);

e dos demais camaradas da CCAÇ 12 e da CCAÇ 21,
brancos e pretos,
mortos em combate
ou abandonados à sua sorte,
depois do regresso a casa
ou da independência da Guiné-Bissau;

ao José Carlos Suleimane Baldé,
felizmente ainda vivo, espero,
a morar em Amedalai, Xime
(e o único camarada guineense da CCAÇ 12
a integrar a Tabanca Grande);

a todos os demais camaradas da Guiné
que ainda hoje estão (sobre)vivos.




Foderam-te, meu irmão!
Enganaram-te, irmãozinho!
Traíram-te, amigo!
Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário
que vinha no cartaz de promoção turística,
com montes, vales e charnecas,
com rios, praias e enseadas,
com fama de gente patriótica,
riqueza gastronómica
e forte sentido identitário.

“I want you”,
disseram-te eles,
e tu respondestes sem hesitar:
“Pronto!”.

Meu tonto,
disseste "presente!",
mesmo sem poderes avaliar
todas as consequências presentes e futuras
da tua decisão,
em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração,
não com a razão,
deste um passo em frente,
abnegado e generoso,
mesmo sem saberes
onde era o distrito de recrutamento,
e sem sequer conheceres
o teatro de operações,
o estandarte,
o fardamento,
a ciência e a arte da guerra,
o comandante-chefe
ou até mesmo a cara do inimigo.

Um homem não vai para a guerra
sem fixar a cara do inimigo,
sem reconhecer a voz do inimigo,
pode ser que seja teu pai,
mãe, irmão, irmã,
vizinho, amigo,
ou até mesmo um estrangeiro,
um pobre e inofensivo estrangeiro,
apanhado à hora errada no sítio errado.

Camarada,
um homem não mata outro homem
só porque é estrangeiro,
ou só porque não pensa ou não sente como tu,
um homem não puxa o gatilho
ou saca da espada,
sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem,
de ânimo leve,
gratuitamente,
só porque alguém o elegeu como teu inimigo.

Não, meu irmãozinho,
não eram estes outdoors
e muros grafitados,
ao longo da picada,
não, não era este trilho,
que era pressuposto levar-te
do cais do inferno
às portas do paraíso.

Sim, porque no final, 
meu irmão,
há sempre alguém a prometer-te
o paraíso,
o olimpo,
o panteão nacional
ou cruz de guerra com palma,
em troca da dádiva suprema
da tua vida,
do teu corpo,
da tua alma.

Todos te querem,
todos te queremos,
“I want you”,
sim, quero-te, mas por inteiro,
quanto mais não seja
para tirar uma fotografia contigo,
não vales nada
cortado às postas,
decepado,
decapitado,
ou, pior ainda,
perdido, errático,
com stress pós-traumático
sem bússola nem mapa,
apanhado à unha pelo inimigo,
ou fuzilado no poilão de Bambadinca
ou de Madina Colhido.
Fuzilado, és um cadáver incómodo,
apanhado, és um embaraço diplomático,
pior do que tudo isso,
doente psiquiátrico.



Não, não foi este destino
que compraste,
com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas,
enganaram-te, os safados,
os generais
e os seus ajudantes de campo,
os burocratas da secretaria,
os recrutadores,
a junta médica,
os instrutores
e até os historiadores.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”,
alguém escreveu no poilão de Brá
ou na estrada de Bandim,
a caminho do aeroporto, tanto faz,
“Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”.
Ou então foi imaginação tua,
pesadelo teu,
deves ter sonhado com essa placa toponímica,
algures,
numa noite de delírio palúdico,
deves tê-la visto
a sul do deserto do Sará.

Alguém sabia lá
onde ficava a Guiné,
longe do Vietname,
alguém se importava lá
com o teu prémio da lotaria da história,
mesmo que em campanha
te tenhas coberto de glória!

Acabaram por te meter
num avião “low cost”
ou num barco de lata,
ferrujento,
deram-te um pontapé no cu
ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo.
"Bye, bye, my friend.
Fuck you, man”.
Nem sequer te desejaram
"Oxalá, inshallah, enxalé,
que a terra te seja leve!"

País de merda"...
Tinha razão o polícia, racista,
que te quis barrar a entrada
no aeroporto de Saigão
(ou era Lisboa ?
ou era Amsterdão?).

Quem disse que os polícias
de todo o mundo
são estúpidos ?
Até o polícia racista
entende o sofisma
do país de merda:
“Pensando bem,
soletrando melhor,
país de merda,
país de merda,
só pode ser o meu”.

Os gajos estavam fartos de ti,
meu irmão,
meu camarada,
meu amigo.
Os gajos pagavam-te,
se preciso fosse,
para se verem livres de ti,
vivo ou morto,
devolvido à procedência.

“I want you, alive ou dead”,
porque na contabilidade nacional
tudo tem de bater certo,
diz o cabo arvorado.
Todo o que entra, sai,
é o deve e o haver
do escriturário, encartado,
mesmo que seja merda:
“Garbage in, garbage out”,
se entra merda, sai merda.

Procuraram-te por toda a parte,
do Minho ao Algarve
do Cacheu ao Cacine,
só te queriam bem comportado,
escanhoado,
ataviado,
de botas engraxadas,
se possível herói de capa e espada,
medalhado, condecorado,
de cruz de guerra ao peito,
mesmo que viesses amortalhado.

E tu ?
Sabias lá tu
o que era a pátria,
onde ficava a tabanca da pátria,
onde começava e acabava o chão da pátria ?
Muito menos sabias
a geografia da guerra,
Aljubarrota,
Alcácer Quibir,
Vimeiro,
Waterloo,
La Lys,
lha do Como,
Guidaje,
Gadamael,
Dien-Bien-Phu,
Madina do Boé,
Ponta do Inglês,
Madina Belel...

Conhecias lá tu
da pátria a anatomia e a fisiologia ,
o intestino grosso e delgado,
o que é que a pátria comia,
o que é que a pátria defecava,
ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava,
se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado,
anestesiado,
amnésico, de preferência,
sobretudo amnésico.
alienado,
aculturado,
desformatado,
paisano,
só assim eles te queriam de volta
ao teu anódino quotidiano,

Meu irmão,
meu pobre camarada,
fizeste por eles
o trabalho sujo
que compete a qualquer bom soldado
em qualquer guerra.
Mas nem como soldado eles te trataram,
nem sequer como mercenário
te pagaram,
em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou,
como todas as guerras acabam,
até mesmo a guerra dos cem anos
teve um fim
com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos.
“Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?”,
pergunta o sorja da companhia.
“Boa pergunta, meu primeiro,
mas há muito já que eu não cheiro,
a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015,
Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808)
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14846: Manuscrito(s) (Luís Graça) (61): Poema interpretativo da batalha do Vimeiro (, dedicado ao Eduardo Jorge Ferreira)

sábado, 1 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris

Lembra-te, ó homem, que és pó!...

por Luís Graça

[em dia de finados, 
lembrando os nossos entes queridos, mais os amigos e camaradas, todos os  que já partiram à nossa frente...]

O cemitério enche-se de flores,
ostensivamente;
é um jardim de mármore e granito,
com centenas de velas acesas
que à noite se transformam em fogos fátuos 
e libertam fortes odores.
Durante toda a tarde as famílias da freguesia
visitam as campas e os jazigos dos seus mortos
e convivem, ruidosamente, umas com as outras,
os vivos com os mortos,
os mortos com os que hão-de morrer.
Mistura-se a tristeza com a alegria,
mas vai-se ao cemitério de dia,
nunca de noite.

É a festa dos mortos,
mas também a celebração da vida,
a afirmação da convivialidade,
a reafirmação do poder da vida sobre a morte,

o reforço dos laços dos vivos,
que são vizinhos uns dos outros,
parentes, 

familiares,
amigos,
e que também estão na lista dos candidatos ao além.
Não sabem, porém,
nem quando, 

a que dia, hora e minuto,
nem em que lugar,
nem como nem porquê…
E mais: 

recusam-se a marcar passagem…
Só o velho barqueiro de Caronte
é que tem a lista dos passageiros
e os horários
e os percursos da última viagem
da terra dos vivos.
Aquela que poucos fazem de bom grado...

É também quiçá a recusa da morte,
da partida definitiva,
do fim da peregrinação terrena,
a reivindicação da imortalidade,
o pecado da usurpação do poder divino,
é, enfim, a manifestação da culpa por se estar vivo
em lugar daqueles de nós,
que nos eram muito queridos,
e se calhar muito melhores do que nós,
e que morreram (ou partiram),
injustamente,
antes de nós,
muito antes de nós,
alguns em tenra idade
sem sequer terem conhecido 
os sabores do leite e do mel
da terra que lhes fora prometida ao nascer...

Quem vive mais longe 
(Porto, Lisboa e até Paris...),
vem de propósito neste dia
enfeitar as campas e os jazigos dos seus mortos,
aqui erigidos neste cemitério.
em terra de antigos rendeiros,
camponeses pobres,
que ainda hoje cultivam a memória do Zé do Telhado,
herói do banditismo social oitocentista,
e que fazem questão de mostrar,
aos ricos 

e aos fidalgos de antigamente,
que a democracia e a liberdade trouxeram também
a igualdade de oportunidades
e a miragem da mobilidade social,

e o sonho do sucesso na vida,
tipificados no brasileiro 
e no francês do século passado...

No meio do pequeno cemitério da freguesia,
construído tardiamente, 
em finais do século XIX,
há ostensivamente uma capela,
a da família da casa
que, foi desde os tempos do liberalismo,
a verdadeira dona e senhora desta terra
e dos seus habitantes,
dona dos seus corpos 
e até das suas almas...
No cimo da porta da capela,
em estilo neogótico revivalista,
pode ler-se a frase niilista,
em poético latim:
Memento, homo, quia pulvis es
et in pulverem reverteris.

Como os antigos pobres rendeiros não sabiam ler,
e muito menos o latim 
dos frades absolutistas e dos juristas liberais,
alguém terá escrito a giz, branco,
no mármore liso.
a corresponde tradução em português chão:
Lembra-te, carago, que és pó
e em pó te hás-de tornar...


Mesmo na morte, os homens tentam,
pateticamente,
inutilmente,
bizantinamente,
reproduzir a segregação socioespacial,
a distância, que mantinham entre si, em vida,

conforme a classe em que nasceram
ou a que ascenderam...
É por isso que eu gosto da designação, 

filosoficamente irónica,
dada a alguns cemitérios públicos no sul, no Alentejo:
Campo da igualdade...
Metaforicamente falando,
a gadanha da morte ceifa tudo e todos,
ceifa rente a vida,
e não poupa tanto a espiga de trigo
como a erva do campo,
a papoila vermelha e o saramago,
a raposa e a abetarda,

a lebre e o cágado,
a mondadeira e o patrão,
a rosa e o espinho,
o rico e o pobre,
o herói e o cobarde,
o general e o soldado,
a bonita e a feia,
o novo e o velho,
o amo e o servo,
o poeta e a sua musa,
o médico e o doente,
o santo e o pecador,
o amigo e o inimigo...

Passei por lá,
pelos cemitérios 
de Paredes de Viadores
e Paços de Gaiolo,

a serra de Montemuro em frente,
o vale cavado pelo rio Douro, a meio,
e havia gente à volta das campas,
de todas as campas, menos de duas...
Tirei fotografias 

aos grandes,
vistosos 

e dispendiosos arranjos florais,
sobre as pedras de mármore ou granito polido,
que devem ter custado os olhos da cara 
aos parentes dos mortos...
Fotografei grupos de familiares e amigos
em amena 
 (e aqui e acolá alegre, 
viva,  franca,  saudável) cavaqueira. 
Quem disse que o cemitério não pode ser uma passerelle ?
Percebi que a homenagem aos mortos
é também (e sobretudo ?) um pretexto
para os vivos se reencontrarem
e se mostrarem uns aos outros...
e para dizerem, alto e bom som,
que estão vivos,
e de boa saúde,
e que estão prósperos,
bem de vida,
com os seus Mercedes de matrícula K,
com os exames e análises em dia,
e o certificado de robustez física,
enfim, com o corpo e todas as miudezas 

dentro do prazo de validade.
Em suma, estão vivos,
sãos,
e recomendam-se...

Mas que também têm sentimentos,
não importa se pequenos ou grandes.
E que sabem mostrar 
que têm decência
e recato e memória e saudade...
E que sabem chorar, 
sinceramente, os seus mortos,
os seus entes queridos,
que, mesmo contra toda a evidência,
estarão algures numa galáxia
a zelar por eles,
ínfimas partículas do sistema solar.
Muito simplesmente, são
ou parecem ser gente feliz
com uma lágrima furtiva ao canto do olho.
Em dia de festa dos mortos,
ou melhor, em Dia (feriado) de Todos os Santos
que é também, para o povo, 
 o Dia de Finados ou dos Fieis Defuntos.
Um dia , ao mesmo tempo,  de tristes e doces lembranças.

No sul, da Reconquista, 
de onde eu venho,
e a que eu pertenço,
mix de bárbaro, romano, judeu,
visigótico, mouro, franco, africano,

também há o culto antiquíssimo, 
megalítico, pagão,
dos mortos,
de que as antas, os menires e os cromeleques 
são um magnífico exemplo arqueológico.
Mas aqui, no norte, o cristianismo
(e a Igreja Católica Apostólica Romana)
soube quiçá enquadrá-lo melhor,
dar-lhe a necessária dimensão
escatológica, cultural, gregária, 

simbólica, normalizadora...
Por todo o país, no Portugal profundo
(ou no que resta desse mito),
os mortos são lembrados no seu dia,
e no seu sítio,
convenientemente apartados dos vivos.
All souls' day, diz-se em inglês,
o dia das alminhas 

(que ternura de termo!),
diz o nosso povo.
Leio na Enciclopédia Católica
(cuja origem remonta a 1917):
"A fundamentação teológica desta festa
é a doutrina segundo a qual
as almas que, ao partirem do corpo,
não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais,
ou não tenham totalmente expiado
as suas transgressões passadas,
ficam privadas da Visão Celeste.
No entanto, os fiéis sobre a terra podem ajudá-los,
por intermédio de orações, esmolas
e sobretudo do santo sacrifício da Missa".

Não sei, contudo, 
qual é o entendimento da Igreja Católica
em relação aos seus membros 

que morrem em combate,
sejam quais forem as causas, boas ou más,
por que se tenham batido...
No passado, nas Cruzadas,
ou dilatando a fé e o império, 

ao serviço do rei,
mais tarde pela Pátria, 

conceito republicano e burguês.
Pode ser-se herói,
e herói da Pátria,
e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos,

que são todos os nomeados e lembrados...
Pode ter-se morrido pela Pátria
e mesmo assim esse sacrifício 

ter sido perfeitamente inútil...
Ou no mínimo, branqueado,
ignorado,
esquecido,
ocultado
ou até mesmo denegado.
Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria
(que o mesmo é dizer

morrer-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão),
em Angola, Guiné ou Moçambique,
e mesmo assim ser-se completamente olvidado
(que é o pior dos abandonos),
nos nossos cemitérios,
no dia da festa dos mortos...

Para onde irão as almas dos combatentes?,
pergunta, ingénuo, o poeta…
Quase sempre, muitas vezes, 
em toda a parte,
em todos os tempos,

vão para o limbo, 
vão, quando muito, 
para o silêncio dos arquivos e das estatísticas,
vão para o purgatório do olvido,
que é esquecimento 

mas também letargia, adormecimento. 
Como em Paços de Gaiolo,
do antiquíssimo concelho,
já extinto, de Bem Viver,
ou em tantas outras freguesias
do nosso querido Portugal profundo,
que já foi medievo, mouro, visigótico, romano, celta, lusitano...
Como estas duas campas, rasas, 

de dois bravos
que deram a vida aos vinte anos, 
no ultramar português,
Joaquim Araújo, 

Francisco Soares…
Deram a vida por alguém, 

por alguma coisa,
a que eles e os seus, carinhosamente,
chamavam Pátria,
Morto pela Pátria…
Eterna saudade de mãe e irmãos…


De facto, a guerra do ultramar nunca existiu.
Os mortos do ultramar nunca existiram.
Há uma amnésia geral
em relação aos nossos mortos do ultramar,
uma espécie de má consciência,
de denegação,
de branqueamento,
de alívio...
Mesmo que hoje comecem a aparecer,
nas nossas cidades, vilas e vilórias,
monumentos ao combatente,
como antigamente proliferaram
os monumentos ao soldado desconhecido
da I Grande Guerra.
Pode-se monumentalizar os mortos,
e esquecer os vivos.
Pode-se exorcizar os fantasmas,
mas não desformatar o disco rígido
de toda uma  geração.
Por que o fim da guerra colonial
(ou do ultramar, como quiserem),
foi literalmente o fim de um pesadelo...
Para os jovens da minha geração,
um milhão e trezentos mil que por lá passaram,
fora os duzentos mil 
que não se apresentaram às sortes...
E é bom que os jovens de hoje, 
os nossos filhos e netos, 
saibam isso,
que havia então o serviço militar obrigatório
e que era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado
para uma das três frentes de guerra,
ou teatros de operações,
que Portugal mantinha em África...
Hoje há ainda algum pudor em falar dessa guerra,
de baixa intensidade,
mas que consumia vidas e cabedais.
mesmo que o suicídio, 
os acidentes rodoviários,
os acidentes de lazer,
e os acidentes de trabalho,
matassem muito mais 
que todas as três guerras juntas...
Só o suicídio mata mais, por ano,
em todo o mundo,
que todas as guerras juntas,
locais, regionais e interbacionais..
Pudor, 

lassidão,
talvez vergonha, 
quiçá culpa...
Da guerra e dos seus mortos, 

de ambos lados,
dos trasladados e dos insepultos,
dos seus desaparecidos,
dos seus estropiados,
dos seus mortos-vivos, 

dos seus vivos-mortos,
dos que não vieram nem em caixão de chumbo,
dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas
pelas margens dos Rios da Guiné,
Geba, Corubal, Mansoa,
Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine...
Ou dos rios de Angola e de Moçambique
cujos nomes os poetas, os bandeirantes e os geógrafos
já esqueceram...

Se calhar a amnésia é recíproca:
de nós, felizardos, safados,
que estamos vivos 
(mesmo que mais velhos, mais tristes e mais pobres),
em relação a eles 

que tiveram o supremo azar de morrer
(em combate, ou de acidente, doença,

ou até de homicídio e suicídio);
e, se calhar,  deles em relação a nós,
já que não mais nos visitam, 

escrevem,
assombram,
incomodam,
interpelam,

imploram,
gritam,
atormentam
ou questionam...

No dia dos Fiéis Defuntos, 
na festa dos mortos,
os que morreram de morte natural,

ou de morte matada
no campo de batalha, 

nas picadas
e nos aquartelamentos,
na África remota,
distante,
dos séculos passados,
na antiga vila e freguesia da germânica Fandinhães
(substituída do tempo do Marquês de Pombal
por Paços de Gaiolo),

não têm,  no cemitério local,
uma menção especial,
um pequeno talhão,
uma atenção especial,
um arranjo floral,
umas simples flores de plástico,
ou até uma singela frase
escrita a pau de giz, branco,
na pedra oxidada e suja da sua campa...

Mas será que deveriam tê-lo ?
Hoje são apenas pó,
na terra dos homens,
e sobretudo, o que é mais triste,
na memória dos vivos...

Candoz, 1/11/2008
Versão 10, revista em 1/11/2014

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 2 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12703: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Guia do Instruendo (documento, de 21 pp., inumeradas, recolhido por Fernando Hipólito e digitalizado por César Dias) (1) : Parte I (1-6 pp.)



Tavira > CISMI (Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria) > 1969  > Encostas do Rio Gilão (ou melhor Rio Séqua, pois que o Gilão só começa depois da ponte romana...)  > 1º Pelotão da 2ª Companhia > O Carlos Silva, natural de Gondomar, foi um dos muitos camaradas que, tendo feito a recruta no RI 5, Caldas da Raínha, foi frequentar o  2º ciclo do CSM, no no CISMI em Tavira, neste caso para tirar a especialidade de armas pesadas de infantaria (canhão sem recuo, morteiro 81, metradalhadoras pesadas Browning e Breda...). Esteve lá, de 10/4/1969 até 27/6/1969. Passou ainda pelo RI 10 (Aveiro) onde foi promovido (e "praxado") como 1º cabo miliciano até ser mobilizado para a Guiné. Embarcou no "Ana Mafalda" a 17/9/1969, com os seus camaradas do BCAÇ 2879. Esteve na região do Oio, Setor de Farim.

Foto do Carlos Silva, inserida na sua página e aqui reproduzida com a devida vénia.












As seis primeiras páginas, não numeradas, do "Guia do Instruendo", usado no CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, em Tavira, na altura em que o César Dias lá fez a recruta e a especialidade (sapador) (2º semestre de 1968). O documento, de 21 páginas, era policopiado a "stencil". O César Dias mandou-nos  o documento em "power point", com 21 "slides". As páginas foram convertidas em formato jpg. O original foi-lhe dado pelo seu camarada de recruta,o Fernando Hipólito, que foi depois mobilizado para Angola, enquanto o César foi parar à Guiné.

Imagens (digitalizadas): © César Dias (2014). Todos os direitos reservados.[Edição: L.G.]


César Dias, Mansoa, 1970

1. O César Dias [,ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71, foto à esquerda, ]  mandou-me ontem a seguinte mensagem:


Boa noite, Luis

Como tens falado de Tavira, aqui nos meus papéis e fotos encontro coisas que serão inéditas, penso eu. Esta é uma delas, um documento histórico, apanhado na altura num cesto de papéis. Um abraço, César


2. Resposta de L.G.`

Camarada César, é uma preciosidade roubada à "cesta secção"... Dou-te os parabéns por a teres salvo... Ou melhor: dou os parabéns ao teu (e nosso) camarada Fernando Hipólito que te fez chjegar o documento...  Tenho uma vaga ideia de também ter recebido (ou lido), no CISMI,  um exemplar do "Guia do Instruendo", quando lá fiz  a minha especialidade de armas pesadas, na mesma altura que tu (set/dez 1969). Vou publicar o documento em partes numa série com o teu nome...  Outra questão: tens mais fotos da instrução, do nosso tempo ?  São fotos raras... Se sim, digitaliza e manda, por favor!... Um alfbravo miliciano. Luis



Tavira > CISMI > Almoço do dia do Juramento de Bandeira > Meados de 1968 > Tony Levezinho de lado (elipse encarnada), César Dias,  de frente (a azul) e, em segundo plano, o Fernando Hipólito (a amarelo). O Hipólito, que descobriu o César Dias através do nosso blogue, foi mobilizado para Angola. O António Levezinho, por sua vez, vou conhecê-lo, mais tarde, no Campo Militar de Santa Margarida, nos princípios de março de 1969,  aquando da formação da nossa companhia (independente), a CCAÇ 2590/CCAÇ 12. Foi um dos grandes amigos que eu fiz na Guiné.

Curiosamente, não sei onde é que ele tirou a especialidade (atirador de infantaria). O Cèsar ficou no CISMI, para o 2º ciclo do CMS. Foi nessa altura que estivemos juntos. E, depois, na Guiné, estivemos perto, mas nunca nos encontrámos: ele, em Mansoa; eu (e o Tony) em Bambadinca. Ele partiu para a Guiné em 7/5/1969 e nós,  duas semanas depois... No mesmo navio, o Niassa. (LG)


Foto: © César Dias  (2010). Todos os direitos reservados

3. Comentário ao poste P12673, assinado pelo César Dias [, foto atual à direita] : 

Luís, também eu estive 6 meses em Tavira, na recruta (3ª Companhia) e na especialidade de Sapador ( 2ª Companhia), e pelos vistos estivemos no mesmo turno, com o tal tenente Esteves do qual me recordo como se divertia ao anunciar à sexta feira os cortes nos fins de semana:  "O militar é a parte válida do povo e como tal não há fim de semana para ninguém".

Eu penso que ficámos retidos algumas vezes porque foi nessa altura que Salazar caiu da cadeira.  Sobre esse Alferes [de que falas], lembro-me que era algarvio e também dava instrução de provas fisicas ao meu pelotão, Deves-te lembrar do meu pelotão, pois andavam todos com um estropo de corda ao ombro, fazia parte da farda.

Tudo o que referes avivou-me a memória já muito fraca, mas foi a parte de Tavira que conheci.



Tavira > Quartel da Atalaia > Antigo CISMI, hoje RI 1 > 1 de fevereiro de 2014 >  Belo exemplar da nossa arquitetura militar, fica situado na Rua Isidoro Pais. Imóvel em vias de classificação,segundo o excelente síio da Câmara Municipald e Tavira, de onde  se extrai, com a devida vénia, o texto abaixo reproduzido.

Foto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados


(..) "Quartel da Atalaia (...): Por volta de 1780, devido à transferência do Regimento de Infantaria de Faro para esta cidade, aumenta o número de efetivos militares em Tavira. O facto leva o Governador e Capitão-general do Algarve, Nuno José Fulgêncio de Mendonça Moura Barreto, a exercer a sua influência junto da corte no sentido de se construir um quartel em Tavira, capaz de alojar condignamente o regimento da cidade.

O Quartel da Atalaia, um dos mais antigos do país, é iniciado em 1795 com o beneplácito de D. Maria I, de acordo com a inscrição lapidar que encima o arco da entrada principal. A construção foi interrompida pouco tempo após o seu início, sendo apenas retomada em 1856, depois de atenuados os efeitos de uma conjuntura politica e economicamente desfavorável, de invasões francesas, de permanência da corte no Brasil e de convulsões politicas que conduziram à implantação do Liberalismo e à Guerra Civil. 

Durante este interregno os militares acolhiam-se em casas particulares até que, em 1835, na sequência da extinção das Ordens Religiosas, é entregue ao exército o antigo Convento de Nossa Senhora da Graça. Aí, rapidamente adaptaram os militares as antigas estruturas religiosas a aquartelamento militar.

Por sua vez, o Quartel da Atalaia, ainda por concluir, servia de hospital de coléricos civis por ocasião da peste que se abateu sobre a cidade em 1833. O edifício ficará concluído somente nos primeiros anos do século XX, só então para lá se transfere a guarnição de Tavira.

Trata-se de um rico exemplar de arquitetura militar. Apresenta planta retangular composta por corpos ligados em torno de um amplo pátio central interior. O maior interesse reside na fachada principal, constituída por um solene corpo central que forma a porta de armas, dois pavilhões de telhado simples de quatro águas com mansardas, terraços cercados por balaustrada e, nas extremidades, torreões com duplo telhado. 

Embora o recorte dos vãos, de inspiração barroca, revele o gosto cortesão próprio da época de D. Maria I, poderá estar aqui presente a lição da arquitetura pombalina da recém-fundada Vila Real de Santo António, em cuja implantação colaborou o engenheiro militar José Sande de Vasconcelos (1730 - 1808), destacado para o Algarve cerca de 1772 e possível autor do projeto deste quartel.

No decurso do século XX, o edifício sofre algumas alterações funcionais. Assim, em 1950 é construído um novo refeitório, em 1954 é calcetado o pátio da parada e em 1970 é adicionado um segundo piso nas alas laterais, para servir de novas casernas." (...)

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11690: Blogpoesia (344): A minha Pátria (J.L. Mendes Gomes)

1. Poema enviado ao fim da tarde deste dia de 10 de junho de 2013,  pelo nosso poeta e camarada J.L. Mendes Gomes:

Minha Pátria

É uma parcela de terra,
Pequena

Da Europa gigante
Cercada de mar.


Tem campos e serras,
Uma teia de rios sem fim.
Ramadas perenes,
Carregadas de vinho. 

Uma fartura de hortas,
Lezírias,
Campos de milho,
Searas de pão
Que chegam e que sobram.

Tem feno e tem linho.
Secando ao sol,
Na orla dos rios.

Florestas à farta,
Estaleiro imortal
Das naus da glória.
Repasto malévolo
Dos incêndios de Agosto...

Guarda tesouros de oiro,
No seio do solo.
Tem um império de mar
Onde pode pescar,
Para comer e vender.

Tem sol a brilhar,
Com fartura,
E muita areia nas praias,
Toneladas de iodo,
Para dar e mercar.

Sobretudo, 
Tem gente rica e valente
Com alma gigante,
Com história brilhante
E antiga.
Que canta e que fala
Numa língua, 
Exacta e perfeita,
Mais rica, na terra,
Não há...

Ovar, 10 de Junho de 2013
19h14m

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes
______________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11670: Blogpoesia (343): Recuso dizer uma oração / ao Deus que te abandonou... (José Manuel Lopes, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10923: Blogpoesia (316): Apat(r)ia... (J.L. Mendes Gomes)

1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2013, o nosso camarada J.L. Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil e Catió, 1964/66), enviou-nos este poema para publicação:


APAT(R)IA

Ardem-me os olhos
E amarga-me a boca.
O coração me sangra
Dentro do peito.

Acordo atónito,
No terror deste Portugal de Abril,
Atraiçoado e traído.

Está tudo apático!...
Paralíptico, asséptico, seco e amorfo.
Andam à solta  ladrões nos quintais
Ao pé das galinhas!
Não há caçadeiras!
Nem ladram os cães!...

Só para a caça!...
Ó que desgraça!

O abade ressona!
O regedor esgravata!
Os presidentes, sem guelra,
Andam nas feiras…
Enfiando barretes…
Exibem gravatas
E comem pipocas!

Mas que sujeira de gente de trampa...
Medra nestas paradas desertas,
Sem tropas…
Só mangas de alpaca
E sebo nas botas!...

Apanhem, ao menos,
Os fueiros das vacas !
E escavaquem-lhes os ossos das costas,
Se é qu’inda há costas erguidas de gente,
Com vergonha na cara!...

Choro de dor, vergonha e de raiva,
Neste País de tanta honra e glória
Na história!?...

Ouvindo Hélène Grimaud tocando Chopin
Zehlendorf, 7h41m do dia 7 de Janeiro de 2013
Joaquim Luís M. Mendes Gomes




2. Comentário dos editores:

Joaquim: Fizemos uma brincadeira com o título do teu poema: APATIA... Achamos que ficava bem o R, entre parênteses: APAT(R)IA... Vista de Berlim, a pátria está a sofrer de apatia... Todos o sentimos, mesmo às portas da  capital... Espero que os nossos leitores o entendem como um grito de revolta, patriótico, apesar de irónico,  de um antigo combatente,  um grande palmeirim, que deu o melhor de si nas bolanhas e savanas da Guiné...  (LG)

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10909: Blogpoesia (315): Em louvor da CART 566 (Bissau, Bissorã, Olossato e Bissorã, jul 64/ out 65) (Viçoso Caetano)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)


[Imagem à esquerda: Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... 

Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]




S.T.T.L... Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria,
ao menos, te seja leve!

por Luís Graça



1. Um dia até as pombas da paz do Picasso
repousarão no museu da guerra.

Em relicários,
de aço.
Mais as moscas,
regressadas dos campos de batalha,

que ficarão lá espetadas em alfinetes
nos respetivos mo(n)struários.

As moscas.
Exangues.

Cobertas de terra.
E a merda das moscas,

liofilizada,
como os grelos que comias na noite de Natal,
a merda agora elevada à categoria
de artefacto cultural.

Um dia ouviste um coronel, 

veterano,
dizer, sem rancor nem fel
(mas nunca viste isso escrito na Ordem de Serviço):
 Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na cozinha.


A tua guerra foi tacanha.

Foi uma guerrinha,
de baixa intensidade,
assegura-te o escriba, submisso,
agora garboso historiador oficial.
Não viste mísseis a cruzar o Geba ou o Corubal,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada,
da água da bolanha.
Fria.
Desconsolada.

A responder-lhe,
ao veterano,
seria com a célebre frase de um  general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,

ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado 
do que um coronel do exército colonial):
– A guerra não é mais do que
a continuação da política de Estado
por outros meios. 

Fim de citação. 
Ponto final.
Siga a Marinha.
Até ao Terreiro do Paço. 

2. De megafone em punho,

o guia-mor do museu,
antigo combatente
maneta, 
o olhar baço, 
o peito ainda ardente, 
fala-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que é devida
aos detalhes
de barba.
Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
– Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto.
Confessa, camarada,
que nunca chegaste a perceber
por que é que o soldado tem que ser tosquiado.
E ir ao encontro da deusa da morte... devidamente ataviado.

3. Faltou-te sempre a visão do todo,
que, para um estratega, 
bem escanhoado,
como o teu major de operações,
só podia ser maior do que a soma dos detalhes.
A única filosofia de vida,

de vida sem liberdade,que tu ouviste,
foi na tropa,
ao teu tenente de instrução da especialidade 

de atirador de armas pesadas de infantaria.
Começava em porcaria, 
e rimava com morte.
Era cínica e dissolvente,
como qualquer vulgar detergente
de cozinha:
- A merda é o adubo... da vida;
é fazendo merda, que tu aprendes;
e sobretudo nunca te esqueças
que é com a merda dos grandes,
que os pequenos se afogam.



À quinta feira, 
recordas-te ainda tão bem,
depois da feira do gado vacum, 
em Tavira,
fazia-nos, à malta do nosso pelotão,

rastejar na bosta,
enquanto ele gania como um cão
debaixo da janela da sua amada.  
É por isso que ainda hoje 
nem tu nem eu gostamos... de xarém.

4. Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo

nunca soubeste
onde ficava o norte,

meu desgraçado!
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço.
Nem fazer o nó à gravata.
Nem onde pôr a mão esquerda.
Nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma.

Nem fazer o pino.
Nem adivinhar a hora da sorte.
Nem sequer fazer um manguito de bravata.
Nem por isso te chumbaram,
coitado.

Depois um dia, no meio da guerra,

quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho,
porque o RDM,
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável 
nem a do cacimbado
(muito menos  a do psicopata... do major).
 Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças. –
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável, 
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês:
– Sempre é mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!

5. Prometeram-te depois um mundo melhor,

porém chato, chatíssimo,
com escudo de proteção 
e seguro contra todos os riscos;
não te disseram onde,
nem quando,
nem a que preço.
Descobriste que era tarde
e longe do planeta

e caríssimo.

 6. Ter a consciência limpa,

ó meu... sacana ?!
Para ti, é ter a memória com as baterias em baixo.

–   Por favor avisa-me, camarada,
quando elas estiverem a cinco por cento.
Quero fazer 'reset' das minhas memórias da Guiné.


Procuras, além disso, uma mão ?
– Direita, 
com cinco dedos,
disposta a ajudar
o meu pobre braço.
Esquerdo.
Decepado.
Dou alvíssaras,

estou disposto a pagar
com o American Express Card.
Golden, claro!


7. Morrer é 

quando tu chegas um beco sem saída
e não tens um kit de salvação.

Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto faz.
A morte não tem SPM.
E quem morre,  morre de vez,
quer mortalha,
e sobretudo quer que o deixem em paz!

8. A vida com a morte se (a)paga.
Há sempre moscas à espera
do teu cadáver,

mesmo seco e magro.
E jagudis.
E formigas bagabaga.

E um dia aziago.
E um primeiro sorja da CCS que te põe os pontos nos ii.
E um capelão que te fecha os olhos, 
com extrema unção e compaixão.
E um coveiro que te prega as tábuas do caixão.
– Não me perturbem o sono eterno! –,
podia ser o teu epitáfio,
ó tuga dum carago!

9. A prática, dizem-te, leva à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa

que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o coiro, encardido,  contra o Erre-Pê-Gê.
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse
o único que te restasse

no calendário de parede,
no teu abrigo,
grafado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete, 
marcando a eternidade de uma semana, 
ou de um mês:

Cada dia era o primeiro, 
o único, 
o original, 
o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E todos as manhãs fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das pisadelas,
o mais azarento, 
o rebenta-minas!

10. Não sei se o pintor de Guernica 

(ou Gernika, que o topónimo é basco),
gostaria de ter conhecido
Adão e Eva
no Paraíso.

Ou a Terra Prometida quando era rica,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro, o incenso e a mirra.
Deve ter achado que 
esteticamente o Inferno
dava muito mais... pica.





PS - Aqui vai, para a comissão de ética,

 a tua declaração de conflito de interesses:
– Não conheço nenhum museu da paz,
apenas este,  o da guerra.

Nada sei de estética.
Não sou columbófilo.
E muito menos fã do Picasso. 


Já agora escreve, 
no teu testamento vital,
a tua última vontade, 
o teu desejo final:
Quando eu morrer, camaradas, 
que a terra da minha Pátria, 
ao menos, me seja leve!

_____________


Nota do editor:


Último poste da série > 2 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10466: Blogpoesia (305): O helicóptero (Jorge Cabral, Missirá, 1970)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8953: Blogpoesia (161): Hino aos combatentes do Ultramar (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Como, Cachil e Catió, 1964/66)

1. Recuperação de um poema do nosso camarada J. L. Mendes Gomes, já aqui publicado no poste P1646 (*)... Esperemos que esta nossa série, Blogpoesia, um possa um dia dar à luz um livro de antologia dos nossos poetas...


O nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes, hoje jurista, reformado,  foi Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, (Como, Cachil e Catió,  1964/66)





HINO AOS COMBATENTES DO ULTRAMAR (**)
por J. L. Mendes Gomes


1


Corriam os anos sessenta.
Os clarins da guerra ressoaram, frementes,
Nos céus de Portugal, há muito,
Por artes do divino, do fado ou do destino,
Uma terra de paz, alegria e brandas gentes.


A cobiça de corsários, falsos,
Arautos de ideologias, vãs e malsãs,
Da igualdade e da fraternidade,
Servos do capital, cego e voraz,
Só do ouro, petróleo e diamante,
Da madeira, rica e do minério abundante,
Em filões,
Vestiu, de agna pele, e fez aliados,
Os eslavos cegos, os ianques e os saxões.


2


Avançar p'ràs terras da Índia, distantes,
E africanas, bem portuguesas.
Já e em força.
Foi o grito, presidente.
Imperativo, indiscutível, se tornou.
Defender as gentes e os haveres,
Muitos e imensos,
Até ao extremo,
Como glórias, lusas e sacras. Nossas.
Foi o lema, pronto e certo!


Queira ou se não queira,
A história do porvir, logo, aberto,
Bem claro, o demonstrou:


3


Aos sonhos do trabalho, da escola e da esperança,
Na flor d'aurora e no fulgor primeiro,
As gerações sucessivas, a gente jovem,
Pronta e digna, disse, adeus…


Vestiu farda e pegou armas, de guerreiro.
Fez-se aos mares, rasgou os ares,
Correu riscos…tantos… sofreu tormentos.
Só Deus o sabe…
Ofereceu tudo, a saúde e a vida, pela Paz!
Oh! Loucura e vã tristeza!… Para quê?!…
Tudo… em vão!


4


Com os ventos da discórdia,
Em desvario e revolução,
Não foi a mesma a pátria que os acolheu!
A que os mandou à guerra,
Cobarde e lesta, se despediu…
De tudo, aquela, hipócrita, se esqueceu.
Ou, bem pior, tudo… denegriu:
O sangue, o suor e as lágrimas,
Que Portugal, inteiro, verteu.
Ficou tudo letra morta…


5


Desfeitos os sonhos, a noite de breu
Dos novos mundos, incertos,
Pós-revolução,
Toldou-lhes as vontades traídas
E, em pé de igualdade, abertos
Foram os caminhos da fortuna,
Da escola e do sucesso…
Como se nada fosse e nada houvesse,
Ou
Do zero, tudo começasse…


Oh!…Vil e imperdoável traição,
A desta pátria, secular…
Que tão ingrata se tornou
Para os guerreiros nobres do ultramar!?…


_____________


Notas do editor:


(*) Vd. poste de 5 de Abril de 2007 >  Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu


(**) Último poste da série > 18 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8789: Blogpoesia (160): Na morte de Mamadú Baldé, descendente do régulo Monjur: E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu (Artur Augusto da Silva)