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segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18138: Notas de leitura (1026): A luta armada na Guiné reexaminada por Mustafah Dhada (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
É de salientar que estas imagens terão sido captadas aí à volta de 1977, dá para perceber que o património arquitetónico deixado pela potência colonial ainda não foi desvirtuado, as ruas estão limpas, os jardins tratados. Este álbum terá sido encomendado para mostrar as potencialidades turísticas, o exotismo, a diversidade étnica, as potencialidades agrícolas. Tem um resumo propagandístico da história do PAIGC e da luta de libertação.
Vasco Cabral, o poderoso comissário da Economia, fala de plantações de cana-de-açúcar para 60 mil toneladas. René Dumont ficou alarmado quando ouviu estes números e fez as contas, teria um preço incomportável.
É um tempo de sonhos, de fantasias e de uma ingenuidade que custou muito caro.

Um abraço do
Mário


A luta armada na Guiné reexaminada por Mustafah Dhada

Beja Santos

Mustafah Dhada é um categorizado investigador de acontecimentos contemporâneos, incluindo as lutas de libertação em África. Pertence ao naipe de nomes sonantes como Basil Davidson, Gérard Chaliand, Patrick Chabal, R. H. Chilcote e Lars Rudebeck que durante e após a luta de libertação se têm debruçado atentamente sobre o ideal revolucionário de Cabral, a forma como liderou, no plano ideológico, militar e diplomático a condução da luta, e a vida do país depois da independência.

Tomámos a liberdade de pegar num seu ensaio datado de 1998, publicado no prestigiado The Journal of Military History, em que ele procede a um reexame da luta armada, com a finalidade de ver os aspetos essenciais da sua argumentação, ter uma postura crítica face ao acesso às suas fontes e tecer conclusões quanto à premência de os investigadores de diferentes proveniências (incluindo portugueses e guineenses) ponderarem as lacunas inaceitáveis que existem, reapreciarem as fontes consultadas e debateram informalmente o modo de superar fontes propagandísticas, muito úteis para a luta ideológica, inaceitáveis para elaborar uma primeira tentativa da história da Guiné-Bissau a partir da sua luta armada.

Mustafah Dhada inicia o seu trabalho com a fase de arranque da luta armada e a estratégia seguida. Os dados avançados parecem-me irrepreensíveis. Apostou-se no Sul, pelas suas dificuldades de acesso, desde o segundo semestre de 1962 a sublevação foi destruindo infraestruturas e comunicações, escolheu posicionamento em pontos naturalmente de muito difícil acesso. Enquanto decorria esta operação a Sul, criava-se a chamada frente Norte, no Oio. Tudo isto decorria ainda com armamento precário, recorria-se ao abatis e às emboscadas do “bate e foge”. O ano de 1963 marca a consolidação no Sul e uma progressiva extensão nas regiões de Cacheu, Bissorã e fronteira senegalesa. Em 1964, a guerrilha estende-se à região de S. Domingos, põe um pé no Gabu, aparece no Boé e ocupa o Corubal. Noutro capítulo fala da estratégia usada para combater a presença do PAIGC no Como e a resistência posta pela etnia Fula ao PAIGC. A economia no interior do país desarticula-se progressivamente, fecham as serrações, não se cultivam bolanhas, desaparecem as destilarias, o comércio do amendoim reduz-se. A resposta de Louro de Sousa e depois de Schulz é a criação de destacamentos, a formação de milícias, a proteção de tabancas, é uma malha de pequenas unidades gravitando à volta de batalhões que procura estender-se pelo território.

Faz-se aqui uma pausa para mostrar dois mapas. O primeiro, data de 1960 e parece-me demonstrativo da colocação das etnias por todo o território.


Dá-se entretanto uma transformação das FARP, são divididas em três forças regionais em que 200 a 300 militares estacionam nas principais bases do interior. Foram selecionados alvos privilegiados no Boé e na região de Guileje. Recordo que quando o capitão Tomé Pinto (o conhecido “capitão do quadrado”) chegou a Binta, em 1964, os grupos afetos ao PAIGC estavam implantados a escassos dois quilómetros do quartel e circulavam com toda a facilidade entre Binta e Guidage. Schulz obtém de Lisboa um elemento dissuasor fundamental: as bombas de fósforo e mais meios aéreos. O PAIGC é forçado a reduziras as bases, a torná-las mais contingentes, os grupos mais reduzidos, é uma flexibilidade que responde às destruições provocadas pelos bombardeamentos. O Corubal torna-se praticamente intransitável.

Hélio Felgas, que comandou um batalhão de Bula, escreverá anos depois um livro intitulado “Guiné 1965”, não ilude o tom laudatório para as atividades desenvolvidas na sua área, mas também não esconde que as FARP se aproximam de Bigene, Ingoré, Barro, Binar. No início de 1967, os helicópteros semeiam o terror, é uma arma nova que surpreende a guerrilha quando pretende fazer frente às tropas portuguesas em campo aberto. Vejamos agora um mapa em que Mustafah Dhada mostra a existência de conflito militar em 1967.


O mapa revela imprecisões, algumas delas com bastante gravidade. Falo do teatro de operações em que combati, a região do Cuor, limite, no Centro-Norte do mapa, vem lá referido Sinchã Corubal. Do lado de lá de Bambadinca, havia dois destacamentos no Cuor e um no Enxalé. Sinchã Corubal era uma tabanca abandonada, perto ficava o acampamento de Madina e a Norte, numa região profundamente árida, Belel, o início de um corredor que prosseguia por Sara-Sarauol, esta uma posição importante, dispunha de um hospital de campanha. A norte do Cuor havia a região de Mansomine, onde o PAIGC se posicionava sobretudo em Sinchã Jobel. Nós, no Cuor, podíamos calcorrear uma boa parte do regulado, fora dos destacamentos de Missará e Finete, as populações residentes em Madina e Belel vinham comerciar e obter informações nos Nhabijões (portanto próximo de Bambadinca, na outra margem do Geba) e em Mero, também na outra margem, tabanca habitada por população Balanta. Quem olhar para este mapa é capaz de pensar que não havia conflito latente/permanente no Xitole e em toda a região até Geba, em 1967, nada de mais errado. Seguramente que outros combatentes que estejam a ler este texto encontrarão outras anomalias no mapa referente a 1967.

De 1967 para 1968 assiste-se a uma penetração na região de Teixeira Pinto, no Sul o Comandante-Chefe Schulz determinou um conjunto de operações com forças especiais e na região Norte entraram em cena bombardeamentos em povoações afetas ao PAIGC próximo de Farim, Bissorã e S. Domingos, suspeitas de abrigar as FARP. Segundo Mustafah Dhada foi um período extremamente difícil para as FARP, perderam abastecimentos, passaram fome, é um período inclusivamente marcado por contestação à estratégia militar no interior do PAIGC. Cabral consegue o reequipamento das FARP e em 28 de Fevereiro de 1968 um comando atacou Bissalanca. Pretextando doença, Schulz retira-se e é substituído por Spínola. Abandonam-se quartéis e posições consideradas inviáveis, redesenha-se a guerra psicológica, reagrupam-se as forças, estabelece-se um plano de reordenamentos, e Dhada traz um elemento novo, o apoio de Spínola a uma força política opositora ao PAIGC, a frente unida de libertação. Dhada como outros autores, labora num equívoco que é atribuir a exclusividade a Spínola da criação de milícias, grupos em autodefesa e a formação de caçadores nativos, de um modo geral esta africanização já estava em curso no tempo de Spínola o que este conseguiu foi obter financiamento para acelerar a africanização inclusive ao nível das tropas de elite. Dhada, não se sabe qual a fundamentação e os documentos em que baseou, dá como certo e seguro a constituição da FUL onde cabiam dissidentes do PAIGC, Rafael Barbosa e nacionalistas guineenses.

A operação de ataque a Conacri acabou por minar a política externa portuguesa, teria começado aí a congeminação do plano para chegar às negociações diretas com Cabral, entretanto a agressividade militar de Spínola parecia imparável, o que obrigou a uma nova reformulação das FARP. Dhada fala sistematicamente das operações anuais das FARP, omite as operações de iniciativa portuguesa, o que é incompreensível em historiografia militar. Temos as conversações com Senghor e refere-se um plano para dividir o PAIGC entre a ala cabo-verdiana e a guineense, seria com esta, segundo Dhada, que Spínola contaria preparar um plano de autodeterminação.

Em Janeiro de 1973, tudo vai mudar com o desaparecimento físico de Cabral, o PAIGC envereda por ataques seletivos, cria infernos à volta desses objetivos selecionados. O autor detém-se sobre os acontecimentos de Copá, em Janeiro de 1974, os bombardeamentos sistemáticos das FARP e as emboscadas próximo de Pirada bem como a coluna vinda de Bajocunda em direção a Pirada que foi brutalmente atacada. Dhada refere um número de baixas para os efetivos portugueses que é manifestamente delirante, em 1973 diz que o número ultrapassou os 2 mil mortos, o segundo mais alto desde o início da guerra armada (!), isto quando há muito tempo já há dados sobre os mortos portugueses em campanha.

O que se pode depreender de um trabalho onde há uma indiscutível investigação séria, mas onde existem lacunas relativamente ao comportamento das Forças Armadas portuguesas (nem uma só palavra sobre o papel da Marinha que, como é de todos sabido, foi primordial), onde se usam mapas fantasiosos? Tudo leva a querer que personalidades como Mustafah Dhada, Julião Soares Sousa, António Duarte Silva, Leopoldo Amado, historiadores militares portugueses como Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes conversassem entre si, sobre as fontes probatórias e aquelas que ainda estão inquinadas pela propaganda (não é a primeira vez que vejo escrito que as tropas portuguesas tiveram 650 mortos no Como entre Janeiro e Fevereiro de 1964), e que depois de laborioso acerto sobre o rigor dos dados transmitissem o produto das suas reflexões para meio universitário e para as opiniões públicas dos dois países mais afetados pelo que aconteceu naquela luta armada, a Guiné-Bissau e Portugal. Quanto ao mais, de boas intenções está o inferno cheio.

Recomendo a todos os interessados a leitura integral do ensaio de Mustafah Dhada no site:
https://www.academia.edu/4022011/Mustafah_Dhada_The_Liberation_War_In_Guinea-Bissau_Reconsidered_Journal_of_Military_History_62_3_Summer_1998_571-593

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18123: Notas de leitura (1025): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (14) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13696: Notas de leitura (639): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
O embaixador João Rosa Lã conheceu a Guiné nos primórdios do multipartidarismo.
É um observador mordaz, tanto usa a ironia fina como a farpa envenenada. Discreteia sobre o processo eleitoral, a subsidiodependência, mostra-nos um Nino Vieira tirado das peças mais virulentas de Shakespeare, cruel e timorato, em confronto com os camaradas da luta de libertação, prendendo-lhes até familiares. Passa em revista a nossa cooperação, desvela episódios anedóticos, não terá gostado do país mas amou as gentes.
Até hoje.

Um abraço do
Mário


Embaixador João Rosa Lã na Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Em livro recentemente dado à estampa, intitulado “Do Outro Lado das Coisas, (In) confidências Diplomáticas”, o embaixador João Rosa Lã descreve ao pormenor a sua missão na Guiné-Bissau nos anos de 1993 e de 1994, período que correspondeu às primeiras eleições livres e democráticas que o país conheceu. Repare-se que Nino Vieira e o PAIGC não eram adeptos fervorosos da democratização, foi o termo da Guerra Fria que lhes exigiu a organização de processos eleitorais transparentes e pluripartidários, se acaso não aderissem teriam consequências funestas na cooperação oferecida pelos países desenvolvidos. Nino recorreu a todas as astúcias e manobras dilatórias com o processo eleitoral, temia os resultados das eleições livres, sabia sofrer quebra na popularidade e via em ascensão o Movimento de Bafatá e o PRS, ligado a um jovem demagogo, Kumba Yalá. Apercebendo-se que as manobras dilatórias se tinham tornado insustentáveis, Nino recorreu a Portugal, pediu ajuda ao Secretariado Técnico de Apoio aos Processos Eleitorais - STAPE. Toda a oposição apoiou. Nino Vieira fez uma comunicação pública comprometendo-se a respeitar as regras democráticas. A ONU designou o antigo presidente da Comissão Eleitoral que tinha organizado as eleições em Angola, Dr. Onofre Martins dos Santos, para dirigir toda a operação de fiscalização.

O STAPE veio a revelar-se eficaz. Enquanto esta máquina era posta em funcionamento, Nino Vieira angariava novas forças de segurança, os “Ninjas”, um elemento desestabilizador e que podia conduzir a um fiasco eleitoral. As eleições aconteceram, Nino Vieira não conseguiu a maioria absoluta, teve que ir a uma segunda volta com Kumba Yalá. Mas o PAIGC manteve uma larga maioria de assentos, o Movimento de Bafatá ficou em segundo lugar e o PRS em terceiro. E o diplomata comenta: “Apesar das chuvas intensas e das dificuldades nas comunicações terrestres, com o auxílio das duas lanchas LDM, que oferecêramos à Marinha guineense, e dos helicópteros dados pelos soviéticos, que a todo o momento ameaçavam cair, a segunda volta realizou-se sob fiscalização internacional. O ato eleitoral decorreu na maior calma, mas sem grande entusiasmo popular. As pessoas estavam cansadas, os candidatos tinham esgotado os seus argumentos e a chuva, imensa, desmobilizara muita gente”. Vencedor, Nino mantinha-se silencioso, Kumba tinha lançado foguetes antes da festa, muitas forças da oposição temiam confrontos, a situação tinha-se tornado explosiva já que os partidários de Kumba tomaram conta das ruas da capital, festejando a vitória. Finalmente Nino fez uma declaração presidencial, a oposição, em parte relutante, aceitou os resultados.

Para segunda prioridade da sua missão, Rosa Lã pretendia o reforço da posição portuguesa, sentia-se o rolo compressor da influência francesa, e comenta: “Historicamente, a França, como potência colonizadora da África Ocidental, dificilmente aceitava a presença portuguesa num território que pertencia, em sua opinião, a uma zona da sua influência exclusiva”. Os diplomatas franceses faziam tudo para bajular a elite política, não havia projeto de cooperação que não incluísse uma prebenda, ao tempo a administração guineense tinha um número impressionante de Peugeots. Os problemas não acabavam aqui, Bissau, sempre a sonhar com milagres, queria substituir o peso pelo franco CFA, como veio a acontecer. Os franceses também tudo fizeram para afastar a TAP e para que a TAGB fosse integrada na AIR-AFRIQUE, operação que falhou porque esta última abriu falência. Rosa Lã, além de mordaz é por vezes chocarreio, como exemplifico: “O comportamento do embaixador francês merece uma referência especial. O homem viera desesperado para Bissau, depois de lhe terem prometido a missão em Reiquejavique, na Islândia. Descendente de uma família islandesa, o embaixador adorava o frio e a escuridão. Na sua residência, moderníssima, toda de vidro feita, com um gigantesco pé direito, mais parecendo uma gare de aeroporto, punha a temperatura ambiente a níveis dos da Islândia. Quando tínhamos a desdita de nos deslocarmos até lá, víamo-nos obrigados a vestir roupas de inverno, incluindo cascol e casaco grosso. Dava o homem a desculpa de que a aparelhagem do ar condicionado ficara mal dimensionada e ele era obrigado a ter aquela temperatura em casa”. E é igualmente impiedoso com a falta de coluna vertebral na política externa, a Guiné-Bissau vendia despudoradamente o seu reconhecimento diplomático aos Estados que dele necessitassem e mais pagassem: “Periodicamente, Bissau abria relações com o Estado e cortava com o rival. Passados uns anos, denunciava esse reconhecimento e recuperava as relações com o outro. E assim sucessivamente, desde que essa mudança desse lugar a uma compensação conveniente”. Rosa Lã desce por vezes ao nível do pátio e soalheiro, fala expressamente em Vasco Cabral sempre a pedinchar subsídios ou bilhetes de avião para Lisboa, era a imagem descarada da subsidiodependência.

O diplomata passa em revista as jóias da cooperação como o projeto do Quebo, uma experiência piloto em que fazia investigação sobre novas espécies e culturas a introduzir: “Quando saí da Guiné, o projeto derrapava e os abutres das cooperações concorrentes tentavam absorvê-lo. Apesar de todas as vicissitudes por que a Guiné-Bissau passou, ainda hoje aquele projeto se mantém e continua a ser o melhor projeto em matéria agrícola, da nossa cooperação em África”. Amante da pequena história e da historieta picante, descreve Mário Soares num almoço oferecido às delegações dos países lusófonos, após a cerimónia de posse de Nino Vieira, Soares deliciava-se vagarosamente com digestivos e charutos, fazendo pagar a Nino a indelicadeza da véspera, em que o deixara à mesa para ir acompanhar ao aeroporto o chefe de Estado do Senegal. Os últimos meses da sua estadia deram para perceber como o governo de Saturnino Costa caminhava para o colapso, faltava combustível, havia um surto de cólera, as tensões político-militares cresciam. Saído de Bissau, foi encaminhado para São Bento, tornou-se assessor diplomático do primeiro-ministro Cavaco Silva, de quem não esconde a admiração e a colaboração dada até para a sua candidatura presidencial. Rosa Lã não voltou a África, a não ser em viagens meteóricas. O povo guineense e o seu lindo sorriso ficaram-lhe no coração, di-lo abertamente.
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 3 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13685: Notas de leitura (637): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13691: Notas de leitura (638): Algumas considerações às perguntas deixadas por Rui A. Ferreira no seu livro "Quebo - Nos Confins da Guiné" a propósito da retirada do Guileje (Coutinho e Lima)

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13182: Notas de leitura (593): "O Eco do Pranto - A criança na poesia moderna guineense", recolha e coordenação de António Soares Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
Conforme anota Leopoldo Amado na introdução, uma plêiade de jovens poetas entrou em cena no período que precede a independência guineense e nela vai viver as primeira décadas, são estros líricos que apontam para novas direções e, de um modo geral, a criança, em metáfora, é a tocha que ilumina os caminhos sombrios daqueles tempos de derrisão e múltiplas derrotas do sonho coletivo em tempos melhores, sonhos do desenvolvimento, da criatividade.
Tal como Cabral dizia que as crianças eram as flores da luta dos independentistas, estes poetas agarram-se à ternura e à inocência ofendidas para acender o rastilho da esperança, às crianças tudo se deve prometer, têm o futuro por sua conta.

Um abraço do
Mário


O Eco do Pranto:
A criança na poesia moderna guineense

Beja Santos

“O Eco do Pranto, A criança na poesia moderna guineense” é uma recolha e tem coordenação de António Soares Lopes, prefácio de Leopoldo Amado, Editorial Inquérito, 1992. Ao tempo, era pertinente a observação de Leopoldo Amado de que a poética guineense ainda estava profundamente marcada pela temática revolucionária, uma constante em obras como a de Vasco Cabral e Amílcar Cabral. A geração subsequente à independência tornou mais amplo o leque temático, e chegados os anos de 1990 era já possível pôr em coletânea poemas dedicados à criança, mesmo com ligações ao período libertador e ao tratamento poético, por vezes melancólico, dos estados de deceção pelo país à deriva, mais pobre e com elevado sentido de derrotismo. A coletânea abre as hostilidades com Agnelo Regalla, jornalista e político. Ele é autor da poesia “O Eco do Pranto”.

Associando Amílcar Cabral à expressão que as crianças eram as flores da luta em curso, dedicou ao líder assassinado um poema que assim se inicia:

No chão vermelho
Do teu sangue, camarada,
Caem como gotas de orvalho
As lágrimas sinceras da dedicação.
As flores da nossa luta
Que tu com carinho plantaste
Estão a desabrochar
Em gargalhadas infantis


- O poema “Saudade” é de 1973 e correlaciona a luta com o futuro melhor para as crianças:

Sinto… A amargura dos que vão
Na onda dos emigrados.
Sinto também,
A secura nos meus lábios
E o último prazer daquele beijo
Na tua face, Mãe.
Na minha bagagem,
Só roupas e alguns livros,
A tua fotografia
o sofrimento de um Povo escravo.
Trago ainda comigo
A recordação das crianças
Com fome e sem escola.
Estou a vê-las
Com cestos à cabeça,
E o passo apressado
De quem tem a noção do tempo;
E assim lá vão…
São homens pequeninos,
Sonhando com livros,
Brinquedos e jogos, como todas as crianças.


- António Soares Lopes, jornalista, denuncia no seu poema “Teto do Silêncio” as degradantes condições de vida da criança:

Ergo a minha voz
e firo o teto do silêncio
Nego a morte de crianças
porque há míngua de medicamentos.

Na angústia
liberto o verbo
mordo o pólen da desgraça
que graça
nesta África desventurada
em obra
e graça
subdesenvolvendo-se.
............

Exorcizo o paludismo
apeio a poliomielite
amputo a desgraça
encho a taça de ternura
e fica a graça da criança
florescendo a vida.


Conduto de Pina, técnico de artes decorativas, no seu poema “Criança” exalta a inocência, a candura, a promessa de amanhã radiosos, verseja em moldes clássicos:

Não sabes odiar, não sabes desprezar
Só queres criancinha, amigos arranjar
Na tua inocência, na tua espontaneidade
Dizes o que ouves, p´ra um novo amigo cativar.


- Félix Sigá, músico e compositor, dirige-se ao filho, pioneiro, acalenta-o com esperança em tempos de tanta desorientação:

Não deites lágrimas no meu pranto
............

Com liturgias frustradas
Esvaem-se idolatrias
por pseudo-mitos
E este Povo martirizado
embrenha-se sempre
pelas veredas do PAIGC
Na senda do progresso e felicidade
para sua e tua gerações


Hélder Proença, deputado escritor e responsável político, escreve uma vibrante elegia intitulada “O baque do pranto em dez poemas com terra e lágrimas”, é uma construção rigorosa e clássica, como se exemplifica

Não era dia nenhum
quando o pêndulo emudeceu
e o sorriso murchou
na flor da idade.
Não era tarde nenhuma
aquela hora
em que não se ouvia
a tua respiração.


- Jorge Cabral, diplomata de carreira, é portador de uma lírica luminosa, ritmada, cândida, pronta a ser soletrada na própria escola, como se exemplifica com o seu poema “Bom Dia, Menino”:

Bom dia, menino

Agora que saíste
vencedor
da tua primeira luta
pela vida

Sê bem-vindo
e perdoa-nos
pela imperfeita herança
deste presente amargo e fugaz feito
de esperança e ilusão
de jardins por regar
e corações por limpar
de penumbra por iluminar
e prantos por secar
de dor por consolar
e sonhos por realizar
de miséria por aliviar
e morte por ressuscitar

A coletânea inclui ainda poemas de Mariana Ribeiro, Pascoal D’Artagnan Aurigemma e Vasco Cabral. Enfim, um retrato das gerações mais jovens associadas à luta pela independência e amargados pelos sonhos desfeitos.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13162: Notas de leitura (592): "Operação Mar Verde" em banda desenhada, por A. Vassalo (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8756: Notas de leitura (272): Comunicação da escritora Joana Ruas na 8.ª Bienal Internacional do Livro do Ceará (Joana Ruas / Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2011:

Queridos amigos,
Pedi à escritora Joana Ruas que me emprestou o seu romance “A Pele dos Séculos” que tivesse a amabilidade de nos ceder outros textos seus versando a temática da Guiné-Bissau. Acaba a escritora de me enviar esta comunicação que apresentou numa universidade brasileira, autorizando a sua publicação no blogue.
É um texto belíssimo que, creio, trará um maior entendimento ou compreensão ao movimento de escritores do nacionalismo guineense, antes, durante e após a libertação.


Um abraço do
Mário


8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará

A aventura cultural da mestiçagem

Aproximar o distante — Do Estranho ao familiar
Duas Experiências :Timor-Leste e Guiné -Bissau
(parte referente à Guiné-Bissau)

A Luta é a minha primavera

A luta
É a minha
Primavera

Sinfonia de vida
O grito estridente dos rios
A gargalhada das fontes

O cantar das pedras
E das rochas
O suor das estrelas

A linha harmoniosa dum cisne!

Vasco Cabral (1926 – 2005)


Vasco Cabral nasceu em 1926 em Farim na então Guiné Portuguesa e cedo se interessou pela política participando na campanha de Norton de Matos, candidato da Oposição anti-salazarista à Presidência da República Portuguesa. Formado em Ciências Económicas e Financeiras, é preso em 1953 em Lisboa quando regressava de Bucareste onde participara no IV Festival Mundial da Juventude.

1962 foi um ano pleno de acontecimentos relevantes no quadro da resistência ao regime salazarista pois pela primeira vez nas ruas do Porto e no 1º de Maio em Lisboa são gritadas palavras de ordem contra a guerra colonial e, num tribunal de Luanda, são condenados os escritores António Jacinto, António Cardoso e Luandino Vieira a 14 anos de prisão; nesse mesmo ano, ameaçados de novo pela polícia política, o angolano Agostinho Neto acompanhado pela família e Vasco Cabral, numa fuga de barco organizada pelo Partido Comunista Português, alcançam Rabat, em Marrocos. 

 Tendo aderido ao PAIGC, Vco Cabral  participa na luta armada de libertação nacional tendo sido ministro da Economia e das Finanças do 1º Governo saído da Independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente a 24 de Setembro de 1973 na sequência do assassinato de Amílcar Cabral. Fundador da União Nacional de Escritores da Guiné –Bissau, morre a 24 de Agosto de 2005, em Bissau.

A sua poesia acha-se publicada na Antologia poética da Guiné-Bissau / União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. – Lisboa, : Editorial Inquérito, 1990; in África : Literatura. Arte. Cultura sob a direcção de Manuel Ferreira. - Lisboa : África Editora, L.da. - Vol. I, n.º 5; ano II (Jul-Set), 1979; in Antologia : Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe : poesia e conto, selecção e organização de Lúcia Cechin. - UFRGS : Porto Alegre, 1986; as suas alocuções , discursos e colóquios nomeadamente sobre Amílcar Cabral e sobre a colonização da Guiné acham-se publicadas em Soronda - Revista de Estudos Guineenses.

Vasco Cabral começa a escrever poemas na prisão, em 1953, poemas que já depois da independência da sua pátria reunirá num volume que intitulou precisamente A Luta é a minha primavera.

Ao lermos este poema não podemos deixar de sentir com quanto despojamento se manifesta o despertar de uma energia feita de desprendimento de si e de total entrega. Na sua solidão essencial, há neste homem, preso mas pronto para o combate, a abundância primaveril das grandes forças da natureza: a da água que estridente se solta pelos rios abaixo e a que jorra das fontes. Mais do que fecundar a terra, água é a linguagem da fluidez invadindo o espaço, grito e gargalhada sonorizando as paisagens mudas. O homem que no combate vai suar o suor das estrelas longínquas, está mais perto do céu do que da terra e, inamovível no seu ideal, o seu canto é igual ao das pedras e das rochas. Frescura, clareza e pureza eis o que caracteriza a linguagem do espírito novo para que nasça uma nova vida. A vida para o prisioneiro passa, infinita e informe fora e dentro das grades da prisão. Contudo, algo se move, algo busca uma forma, e não é apenas um homem, um poeta cujo canto se ergue sobre searas de desolação a proclamá-lo , é também um povo que em breve se erguerá numa luta de libertação nacional. Em Discours Antillais, Édouard Glissant, numa clara alusão aos espoliados e oprimidos, conclui, neste seu ensaio, que "O homem, não é uma mera cana que pensa, mas, segundo Shakespeare, é uma floresta que marcha".

Geração sacrificada a um ideal, o cisne deste poema é a metáfora de uma forma harmoniosa. Seja qual for a cor da sua pele, o cisne, símbolo de luz, representa o ideal de brancura e de graça do guerrilheiro no seu combate por uma causa nobre, a causa da libertação de um povo por um futuro de paz e no achamento de uma felicidade terrestre para cada homem, mulher e criança.

É sob o lema deste muito justamente célebre poema do querido e saudoso amigo , combatente e poeta, Vasco Cabral,que vos vou falar da minha experiência na Guiné-Bissau onde estive nas zonas libertadas e, posteriormente, trabalhei como jornalista cultural no jornal Nô Pintcha desde o seu primeiro número.

Não posso aqui recordar a totalidade dos acontecimentos que constituem parte integrante da minha experiência na Guiné- Bissau e em Timor-Leste. Talvez a parte mais substancial dessas experiências repousem ainda no coração da minha memória. E, embora essas experiências tenham frutificado em duas obras literárias, A PELE DOS SÉCULOS no caso da Guiné-Bissau e a obra em três volumes com o título genérico de A PEDRA E A FOLHA cujo primeiro volume A BATALHA DAS LÁGRIMAS acaba de ser editado em Portugal, tudo o que permanece ainda no palimpsesto da memória, deixa-me, como escritora, num estado de espírito entre o terror do enorme trabalho que me espera e o encantamento perante um mundo que, afundado nos labirintos do esquecimento, sai para a luz do dia , esse espaço da criação literária onde cabem tantos e tão diversos mundos, todos regorgitando da vida de quantos homens, mulheres, crianças, árvores, animais e rios se haviam atravessado na minha vida. O primeiro prosador do quotidiano guineense da época colonial foi o cabo-verdiano Fausto Duarte com o seu livro Auá. Uma das razões pela qual decidi escrever A PELE DOS SÈCULOS e A PEDRA E A FOLHA foi a leitura da obra de Marcel Mauss, um dos fundadores, em 1904, do L’Humanité e autor do celebrado Essai sur le don Mauss achou que era altura do romance dar a povos considerados até então inferiores e primitivos o rosto humano que lhes fora roubado.

Dizem que a palavra Guiné é de origem tuaregue e designa o país dos negros. Data de 1444 a entrada dos primeiros escravos da Guiné em Portugal. Em 1460 António di Noli implanta a cana do açúcar nas ilhas de Cabo Verde. Faltando a mão de obra, ele obtém do rei de Portugal permissão para mandar ir negros da Guiné. Enquanto os barcos corriam as costas da Guiné em busca de escravos, a rainha Isabel, a católica, enchia os mercados da Sicília e de Nápoles com escravos mouros e judeus que dali eram encaminhados para os mercados de escravos do norte de África. O mundo árabe absorveu parte deste contingente que lhe chegou dos reinos da Espanha e da Sicília pois esta ilha era então pertença de Aragão. Os judeus iam nas caravanas pelas rotas sarianas do ouro que saíam de Anafé (a actual Casablanca) e Safim e, descendo África abaixo, alguns deles íam como pastores de cabras nas tribos tuaregues enquanto outros eram acolhidos nas tribos mandingas onde os foram assimilando até à sua chegada à Guiné (então conhecida como Etiópia austral ou Líbia inferior). Em 1492, o rei de Portugal obriga os judeus que tinham sido expulsos de Castela a abraçar a religião cristã (cerca de 60.000 passam a fronteira).Inicia-se a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos. Muitos destes são enviados para o norte de África, enquanto outros preferiram ficar muitas vezes na condição de escravos. Centenas dos seus filhos menores ser-lhes-ão arrancados à força e enviados para povoar S. Tomé. De Portugal chegaram a Cabo Verde, a São Tomé e Príncipe, à Guiné, Angola, Moçambique e Timor. Na Espanha do século XVI e do começo do século XVII a urgência está em caçar judeus e mouriscos e de vigiar os conversos. Os reis católicos, receando a mestiçagem, não queriam consentir na escravatura em terras de Espanha. Deste modo, de 1609 a 1613, os mouros, chamados os marranos do Islão, têm a mesma sorte dos judeus.

Álvaro de Caminha , nomeado donatário da ilha de S. Tomé, é o terceiro para ali enviado por D. João II. Partiu acompanhado por jovens cristãos novos, escravos negros e degredados para iniciar a colonização da ilha. A cada um dos degredados, para fins de povoamento, foi dada uma escrava. É uma das provas reais da chamada miscigenação. No século XVI havia na Gâmbia uma aldeia dos Herejes povoada de africanos lusitanizados. De 1835 a 1839 há um intenso tráfico negreiro espanhol para Cuba efectuado por armadores e comerciantes cabo-verdianos metidos de permeio, servindo-se a fundo das suas redes de parentes e aliados continentais a partir das suas instalações no Arquipélago dos Bijagós, onde certas ilhas (Galinhas, Bolama) eram verdadeiros pontos de concentração do tráfico de escravos, com o conhecimento das autoridades portuguesas , cúmplices ou impotentes.

O decreto de 10 de Dezembro de 1836, abolindo as exportações de escravos em todos os territórios portugueses tanto ao norte como ao sul do equador, não afectam os dois maiores traficantes desta época, o antigo governador da Guiné e coronel de milícias, o metropolitano Joaquim António de Matos e o governador de Bissau, o comerciante Caetano José Nozolini, mestiço cabo-verdiano descendente de um marinheiro italiano, amante e depois marido e sócio de Mãe Nhána ou Nhara Aurélia Correia, oriunda da aristocracia das Ilhas Bijagós. Nhara é o termo equivalente a um estatuto elevado na burguesia mestiça das feitorias da Grande Guiné. Uma das suas feitorias ou plantações onde trabalham centenas de escravos enquanto esperam pelo embarque é na ilha de Bolama. Nos Bijagós está ainda a poderosa matriarca , a Nhara Júlia da Silva

Em 1841, Bissau exporta para Cuba mais de 2000 escravos vendidos por Caetano José Nozolini. Ziguinchor estava povoada por mestiços luso-africanos, grumetes e escravos. O chefe da feitoria vem de uma família mestiça, os Carvalho Alvarenga, ramo donde virá Honório Pereira Barreto. Honório é filho de um cabo-verdiano e de Rosa de Carvalho Alvarenga, a poderosa Rosa de Cacheu, uma Nhára comerciante originária de Ziguinchor. Honório Pereira Barreto sendo governador de 1835-39, o número de escravos libertados nos 55 navios provenientes da Guiné e apresados pelos cruzadores, fixou-se em cerca de 3.929. Os grumetes, na sua maioria de etnia papel, e habitantes de Cacheu, eram africanos lusitanizados e cristianizados e constituiam, para o colonizador português, um perigo que não era étnico mas social. Viviam nas feitorias portuguesas ou gravitavam na sua periferia em funções de marinheiros, de operários e de pequenos bufarinheiros. Os grumetes tinham um comportamento imprevisível, colocando-se quer do lado dos seus irmãos de etnia quer do lado dos portugueses contra estes.Com o advento da República juntam-se às elites luso-guineenses e cabo-verdianas mestiças implantadas na praça e que querem desempenhar um papel polírico, tornando-se assim em proto-nacionalistas guineenses.

Do legado imaterial dos escravos da Guiné ficaram-nos poemas dos séculos XVII e XVIII na então chamada língua de preto. Língua de preto era o linguajar característico dos negros que foi explorado para fins literários burlescos do século XVI a XVIII. Em 1990 Ana Hatherly publica em Lisboa, na Editora Quimera, na obra intitulada Língua de Preto, alguns desses poemas. Da sua música e das suas canções resta-nos apenas uma Canção de Natal, há pouco descoberta e que havia sido recolhida no século XVII por um missionário anónimo de Coimbra.

Sã qui turu zente pleta
Sã qui turu zente pleta (hé,hé)
Sã qui turu zente pleta de Guiné (hé,hé)
Tambor flauta y cassaeta e carcavena sua pé(hé,hé)
Vamos fazer uns fessa
Vamos fazer uns fessa
Ao menino Manué (hé,hé)

Com o advento da ditadura do Estado Novo foi proibida toda a actividade político-partidária. Logo em 1927 foi encerrada a sede da Confederação Geral do Trabalho. A repressão abate-se ferozmente sobre os sindicatos e movimentos operários e grevistas. Em 1933, decalcado da Carta del Lavoro do fascismo italiano, foi promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional que constituiu o golpe de misericórdia para os sindicatos livres . No que se referia aos trabalhadores das colónias, logo em 1928 foi promulgado o Código do Trabalho dos Indígenas das Colónias Portuguesas de África. Mantém-se e reforçam-se neste Código a utilização compulsiva da mão de obra em condições de trabalho forçado e de contrato em regime de semi-escravatura. Devido à natureza deste código, Portugal não ratifica, em 1930, a Convenção n.º 29 da Organização Internacional do Trabalho relativa a trabalho forçado.

No que se refere à África Ocidental, em França, o Governo da Frente Popular permitiu a criação de sindicatos em Março de 1937. No período compreendido entre 1944 e 1957, a legislação sobre o direito sindical foi levada, pelo Código do Trabalho Ultramarino de 15 de Dezembro de 1952, a lei quadro. Mas só em 1957 é que as restrições até então havidas, tais como saber falar francês, nível escolar etc., caíram e a liberdade sindical foi reconhecida. Nesse período de nascimento dos sindicatos africanos, a acção dos sindicatos metropolitanos foi importante. Os sindicatos metropolitanos foram buscar no Ultramar efectivos complementares para reforçar ainda mais as suas posições respectivas. Alguns como a CGT francesa, não encararam com bons olhos a independência africana o que explica a criação, por parte de Sékou Touré, da UGTAN, União Geral dos Trabalhadores da África Negra.

O movimento sindical africano, no entanto, só foi admitido pelas administrações coloniais no fim da 2ª Guerra Mundial com o despertar da consciência dos africanos, com a experiência dos antigos combatentes, com a actividade dos estudantes negros na Europa e com a conferência de Bandung.

No plano internacional, os sindicatos, em todo o mundo colonizado, só se afirmaram como actores sociais eficazes a partir da descolonização. No entanto, a sua contribuição para a luta pela independência foi capital. No que à Guiné- Bissau diz respeito, em 1954 foi criado o Movimento para a Independência da Guiné e de Cabo Verde. E, em 1957, no 5º Congresso do PCP, que teve lugar na clandestinidade, no Estoril, o Partido Comunista reconhece o direito à independência dos povos colonizados. Daí a repressão violenta, em Bissau, de uma greve de estivadores que desde logo supunha uma organização que embora se socorresse da clandestinidade existia já como força social.

Em toda a África colonizada, as reivindicações dos trabalhadores exprimiam de forma rigorosa o anticolonialismo e o nacionalismo e era igualmente uma forma de rejeitar a dominação económica e portanto a dominação colonial.

Em Les bouts de bois de dieu, o romancista e cineasta Sembène Ousmane, relata a greve dos ferroviários da linha Dakar-Niger que durou de Outubro de 1947 a 19 de Maio de 1948, uma das mais longas greves da história do movimento sindical e que constituiu uma contestação radical do sistema colonial.

Em todo o mundo colonizado os sindicatos contribuíram eficazmente para a causa da independência. A guerra colonial, na Guiné-Bissau, teve como causa próxima a greve dos estivadores do cais do Pidjiguiti que em 1959 protestavam contra as condições de trabalho. Nesta greve, ferozmente reprimida, foram mortos 50 grevistas e feridos mais de cem. Estes estivadores estavam organizados clandestinamente, uma vez que o regime fascista tornara ilegal a actividade sindical e política. Contudo, já em 1954 fora criado o Movimento para a Independência da Guiné e de Cabo Verde.

Cumpre referir que uma vez adquirida a independência, face às novas realidades políticas e socio-económicas, os sindicatos são confrontados com os problemas do subdesenvolvimento e com a prioridade da construção do Estado-nação. Estas realidades vão modificar sensivelmente as relações de força entre governos e sindicatos.

Conheci a Guiné-Bissau quando a dinâmica da luta de libertação nacional animava ainda as populações das zonas libertadas. Os africanos lutaram para terem acesso ao tempo, ao tempo das nações independentes, ao tempo de um tempo e de uma história própria. A luta deles era uma luta de libertação nacional e não a travavam com o sentimento de uma perda de tempo. Eles lutavam para que o tempo lhes desse o ganho de um espaço próprio, um espaço reconquistado a uma espoliação de séculos. Uma luta de libertação não é possível sem consciência nacional que se pode definir como a consciência de pertença a um mesmo povo e consciência dos seus interesses nacionais, enfim, uma vontade comum de se definir enquanto nação. A consciência nacional caracteriza-se pelo seu carácter dinâmico e essencial e para isso necessita de um suporte objectivo para essa vontade - o meio natural comum, uma comunidade de civilização e de cultura, uma comunidade política e uma comunidade económica. Quanto às diversas etnias, quase todas participaram no esforço de guerra e esse facto foi um factor de coesão que teve o seu epílogo com o desenvolvimento da democracia.

A geração de poetas que se exprimiu depois da conquista da independência, era muito menina quando em 1959 começou a luta de libertação desencadeada pelo massacre dos estivadores no cais do Pindjiguiti. A sua poesia escreveu-se em crioulo e em português. Um deles, Agnelo Augusto Regalla, num seu poema intitulado Poema de um assimilado, reconhece em si a herança cultural do colonizador e lamenta o que ficou na penumbra, esse imenso continente chamado Mãe África e dos seus filhos: Samory, Abdelkader, Cabral, Mondlane, Lumumba e Henda, Lutuli e Bem Barka e ainda de Canhe Na N´Tuguê e Domingos Ramos, heróis guineenses, todos de cultura crioula mas da crioulidade militante dos que se não esqueceram e fugiram à doce melodia dos corás. Morés Djassy no seu Poema da Natureza Africana apela às tradições para que vençam os séculos roubados unindo-se às mensagens da revolução. António Soares Lopes Jr. cujo poema Mantenhas dá o título a esta antologia, recorda episódios da luta de libertação e envia mantenhas para quem lutou e luta. Integram a antologia Carlos de Almada celebrado autor de Canto Alegre pra N´Dangú, Helder Proença, Jorge Ampa Cumelerbo, Tony Davyes, José Carlos que verseja em crioulo, José Pedro Sequeira, Justen, Nagib Said, Kôte, Tomás Paquete. Muitos deles como José Carlos Shwartz integraram a luta armada tendo este poeta sido preso e deportado para a ilha das Galinhas.

Em Classe e Nação, Samir Amin chama a nossa atenção para o desenvolvimento capitalista periférico que favorece as elites urbanas em detrimento do mundo rural e das etnias mercantis e que permitindo que a formação nacional assuma consistência , desagrega a sociedade opondo-se à sua eventual constituição em nação. A nação supõe a etnia mas ultrapassa-a. As lutas étnicas são a manifestação das lutas de classes e são frequentemente manipuladas do interior e do exterior por forças capitalistas. A verdade é que na Guiné-Bissau, à excepção dos quadros do PAIGC e das forças armadas que entraram em Bissau, a população de Bissau acolheu mal a independência. A pequena burguesia de Bissau passou a controlar o aparelho central do estado, sem assegurar a unidade da vida económica da comunidade, isto é, sem desenvolvimento nem circulação de bens que tornassem coesas as populações integrantes da nação. Ora a nação estruturava-se assim de forma contraditória, com forças armadas e policiais de um lado e classe dominante do outro. Naquela época, as antigas potencias coloniais tudo faziam para que não vencessem as forças que elas não tinham conseguido derrotar.

Com o golpe contra Luís Cabral, Nino Vieira desfez a aliança da Guiné e de Cabo Verde instituída por Amílcar Cabral. A coluna vertebral dessa aliança era o PAIGC. O golpe de Nino Vieira representou o abandono da vertente marítima pela vertente continental. Os quadros superiores e intelectuais guineenses que não se reviam em Nino Vieira e não se revendo também em Ansumane Mané porque estava desde sempre ligada a Cabo Verde, fugiram de uma guerra que não lhes pertencia. Com a queda de Luís Cabral , a Guiné, à medida que começa então a ser absorvida pela massa continental que a rodeia, é objecto de novas tensões interétnicas que vão sendo absorvidas através de golpes de estado sucessivos. É de recordar que para uma das etnias maioritárias, os mandingas, um mundo africano ocidental totalmente francês constitui um desiquilíbrio pois as campanhas francesas foram, ao longo dos séculos, de liquidação das etnias mais fortes daquele contexto, o que era o caso da etnia mandinga. Os mandingas devem pois aos franceses o seu declínio histórico. No meio do século XV, Cadamosto e Fernandes diziam que os Mandingas da Gâmbia se consideravam súbditos do Mali.A campanha do governador Songhai, Oumar Kanfari, a partir de 1490 conquistou o Fouta e dirigindo-se para o Niger anexou Dyara. O imperador do Mali, aflito, apelou para a aliança do rei D. João II de Portugal. Mas nenhuma das missões portuguesas enviadas na época chegou ao destino. A mitologia mandinga está impregnada pela figura do herói trágico como se constata na Balada de diu diu.

A guerra civil levou ao colapso da nação guinenese. O Estado ficou desestruturado e os quadros superiores refugiaram-se em Portugal. Nos golpes de estado, o poder legal, tornado ilegítimo, abandona as populações enquanto o poder ilegal mas legítimo pela adesão das populações, combatendo por elas e em seu nome, tem dificuldade em protegê-las. As populações pulverizadas , incapazes de vencerem os interesses instalados nas formações partidárias e infiltradas no aparelho de estado, terão tendência para se refugiarem no lar étnico. A filosofia de resistência à expansão mandinga presente na recolha que efectuei em Eticoga não se deve apenas ao acto belicoso da conquista. Houve e há um entrechocar de duas culturas que nas suas linhas fundamentais se opõem. A sociedade animista é horizontal e matrilinear enquanto a sociedade mandinga, islamizada, é vertical e patrilenear. Essa tensão ou conflictualidade surgiu quando da invasão mandinga que começou em 1303, empreeendida pelo sobrinho do imperador do Mali, Sundiata Abubacar II que se celebrizou pela tentativa de exploração do oceano Atlântico. Muitos vocábulos mandingas integram o crioulo como, por exemplo, Farim, quer dizer governador dentro da hierarquia imperial mandinga.

Sendo a língua crioula a da luta pela independência, de um modo geral os governantes e líderes políticos falam às populações em crioulo o que significa a sua opção pela mestiçagem cultural e pela coesão das etnias como fundamento da nação. Na nação mestiça e no crioulo é que repousa a paz e segurança.

Durante a luta de libertação havia aquele momento em que nos era possível vislumbrar nalguns homens a pureza dos ideais como se a alma até então oprimida se achasse aliviada e a respirar. Nos países pobres, em que a luta pela afirmação da dignidade humana é tão vital ,todos vivem perigosamente. Esta é a raíz da tragédia. Para nós não tem sentido estas lutas em que morrem milhares de homens porque há grupos que se agigantam na sua reivindicação de humanidade e de justiça e nessa afirmação, nessa luta pela história arrastam consigo milhares de vidas humanas. Mas quantas mais não morreriam e não morrem em lutas calmas e silenciosas que anunciam que todo o sentido se perdeu. Fazer arrastar lutas como esta faz parte do crime, do monstruoso crime da desorientação do objectivo, da perda do sentido inicial da luta. Até se chegar à morte lenta, até se chegar ao fim. Hoje há uma propensão para a desistência, pior, para a renúncia em participar em actos cívicos na medida em que se sente que se está a participar em algo que está sistematicamente distorcido e desviado do seu sentido inicial o que torna qualquer melhoria inatingível.

Em Julho de 1975 quase toda a redacção do Jornal Nô Pintcha foi mobilizada para as festas e cerimónia da proclamação a 5 de Julho da independência de Cabo Verde. O então ministro da Informação Manuel dos Santos, com base na teoria de Amilcar Cabral, de que “a cultura deve ser utilizada como instrumento de libertação nacional”, enviou-me a Bubaque para acompanhar o comissário e simultaneamente abordar as lendas e mitos bijagós. Para o comissário político, a expedição tinha como objectivo restabelecer contacto com oos povos dos Bijagós levando-me como prova de que a guerra chegara ao fim. O PAIGC pretendia iniciar o processo civilizatório aglutinando lentamente culturas e línguas muito antigas cujo processo de fusão fora durante cerca de 500 anos interrompido.Dentro desse âmbito eu poderia efectuar uma recolha .

Deslumbrada, eu chegar à praia as gentes das ilhas. Vinham em pirogas muito frágeis carregando bois, frutos, cachos de bananas e de dendém. Altivos , altos e fortes, semi-nus, penteados de tranças, pareciam transportados de um mundo mítico de auroras para uma praia do tempo, para a praia do último quarto do século XX.A sua entrada no meu campo de percepção abalava as dimensões do meu mundo. A obtenção da licença para visitarmos a aldeia de Eticoga demorou-nos em Bubaque 2 semanas. Na primeira semana aventurámo-nos a chegar lá mas a meio do percurso o barco parou devido a uma avaria pelo que passámos a noite no mar , olhando as estrelas e ouvindo as canções que o soldado que era a minha segurança pessoal , entoava à medida que a noite nos encerrava no seu manto de treva e o brilho das estrelas vacilava sobre as nossas cabeças. O espaço era estreito e partilhado com o jornalista estagiário do No Pintcha, o comissário Armando que ia falar no comício, e eu. Segurando-se na arma como a uma estaca, o soldado, manjaco, moço esbelto e desinibido cantava o seu canto de chamamento o Tchilá tchitchilá e canções ao Jaco, o pássaro totem do seu povo. O estagiário era um moço que saía pela primeira vez de Bissau, a sua terra natal. O comissário Armando oriundo do interior da Guiné, fora enviado pelo PAIGC, ainda adolescente, para Moscovo para estudar ciências políticas.Ao outro dia, avisado pelos pescadores, a lancha do dono da Pousada, sabendo que eu ia a bordo, mandou a sua lancha buscar-nos. Uma segunda tentativa teve o mesmo resultado mas como partimos de manhã muito cedo regressámos antes do anoitecer a Bubaque.O comissário Armando acreditou então que , como fora avisado pelo emissário por ele enviado a Eticoga, que sem permissão da comunidade de Eticoga não iriamos chegar lá devido aos poderes dos antepassados da aldeia, seus guardiães.

O PAIGC tentava nas Ilhas a reconstrução de um diálogo entre o partido no governo e o povo bijagó.O percurso até à aldeia foi percorrido com lentidão para me não cansarem nessa caminhada sob o calor do sol abrasador.O caminho pelo bosque é regular,batido a peso dos passos dos que saiem da aldeia para o litoral onde têm as canoas de pesca Naquela longa marcha da praia até à aldeia eu atrasava-me e a cada passo os meus companheiros esperavam-me mais adiante, sentados à sombra de uma árvore e limpando o suor do rosto. Só o soldado que tinha por missão guardar as minhas costas, parava cansado da minha lentidão na marcha. Recordei que nas zonas libertadas onde eu tinha estado no ano anterior , eu embora indo num grupo liderado por uma guerrilheira andava à solta excepto quando saídos de Candjambari nos internamos na mata seguindo um trilho que bordejava uma vasta zona minada à volta da grande aldeia libertada de Morés.

Naquele momento da sua história ,os guineenses tinham avançado no tempo devido à guerra. As tradições pareciam desvanecer-se ou alterar-se e eu perguntava-me que povo iria sair daquela guerra, com que qualidades novas e com que defeitos antigos.

Chegámos à tardinha a Eticoga. Deram-nos limonada e ao jantar, frango guisado com arroz e leite dormido com mel , uma espécie de iogurte. As casas da aldeia tinha cada uma grandes terrenos à volta muito limpos e bem varridos.Para mim tinham construído uma cabana e dentro dela um estrado de cerca de dois palmos de altura coberto de folhas de milho tapadas com um pano. O comissário tinha trazido um mosquiteiro que foi pendurado ao tecto. A um dos cantos havia uma estaca em forquilha espetado no chão que servia de cabide e um estradinho pequeno para banco.

Logo pela manhã foi o comício debaixo de uma mangueira, a árvore das palavras da tradição africana, situada no centro da aldeia.Nenhum de nós conhecia a língua mas estava connosco, como intérprete, um cabo-verdiano , um antigo funcionário da administração que vivia ali há muitos anos e que falava bem o português.O comissário dirigiu-se ao povo que ali estava em peso , dizendo que a guerra acabara, que o PAIGC iria cuidar deles como pai estremoso pois por eles lutara e por eles muitos haviam dado o seu sangue e a sua vida. Quando acabou perguntou se queriam algo do pai PAIGC. Eles gritaram em uníssono:Armas, armas. Fez dó o espanto na cara do comissário que ripostou perguntando para que queriam eles as armas, eles que não tinham lutado contra os portugueses, queriam agora armas para lutarem contra os seus irmãos do PAIGC? Que Portugal não estava zangado e a prova estava na presença amiga de uma portuguesa que queria conhecer as histórias que as mães velhas guardavam para as gerações futuras e que eles iam guardar nos gravadores assim que as mães se dispusessem.Seguiu-se um longo silencio depois do que eles se puseram falando uns com os outros a ponto do comissário se sentar pacientemente até a conversa entre eles acabar. Os Bijagós não possuem uma autoridade central pelo que é o grupo parental que detém o poder judiciário e este grupo confronta os outros. A solidariedade do grupo é a lei que tem acima de tudo em conta não uma justiça abstracta mas a preservação da segurança do grupo daí o seu interesse pelas vítimas não vingadas com o intuito de travar a vingança através de uma reconciliação.A ideia de justiça está no princípio da reciprocidade e compete ao ofendido ousar e querer a vingança.Finalmente, o comissário fez sinal para que se calassem e voltou a perguntar a que conclusão haviam chegado e que resposta tinham para a sua pergunta. Então eles responderam que as armas eram para afastarem os hipopótamos que lhes devastavam os arrozais.Na verdade o que sucedia era uma espécie de jogo feito para descobrirem o que lhes reservavam as novas autoridades. Eles estudavam a forma como a nova autoridade se comportaria em relação a eles tentando assim a definição de posições de poder pois a vida, também ali deseja deixar expandir a sua força. Os povos do arquipélago , inseridos na roda do mundo, ensaiavam uma definição da sua situação face ao poder.E a reciprocidade, quanto a eles, só se verificaria se os armassem porque os antigos administradores impunham-se pela autoridade das armas.Só sentiriam como sendo seu o novo poder se, enquanto grupo, pudessem ter a autoridade que a arma confere. Isto era ambíguo, era como se dissessem que só haveria paz quando houvesse armas iguais. No arquipélado dos Bijagós há muitas doenças do foro oftalmológico e, nas aldeias mais interiores quase ninguém possui dois olhos sãos quando não é inteiramente cego.

Eu aguardava com ansiedade o momento em que essas matriarcas me abrissem o grande livro da memória. Gravei a narrativa de três velhas na tabanca de Eticoga na ilha de Orangozinho. O tema foi escolhido pela mais velha que me recebeu depois de um longo cerimonial na casa dos antepassados da aldeia. Vestia um saiote e cobria-se com uma manta de tara. Era a pessoa mais respeitada da aldeia. A segunda mulher nascera em Orango Grande mas fixara-se há longos anos nesta aldeia. A terceira estava de visita e viera da tabanca de Acanhô. A aldeia de Eticoga fica a 7 km da praia. Orangozinho não tem escola, nem posto sanitário nem encarregado de posto desde a administração colonial. A narrativa é complexa porque se reporta a factos históricos de diferentes épocas que foram passando de geração em geração através da tradição oral. O sofrimento do povo é o que a memória do povo regista e passa através dos séculos. Elas, as contadoras são a palavra, o passado contido no presente e o presente que é futuro do passado.

Os Bijagós falam o Kamona, o Kagbaasga, o Kajoko, línguas da Família Niger-Congo,Grupo atlântico, Sub-grupo Bijagó. A recolha foi traduzida por três tradutores da língua bijagó para o crioulo e do crioulo para o português. A recolha tal como foi feita foi entregue no Nô Pintcha e de uma cópia é que foi trabalhada literáriamente até lhe ser dada a forma poética.

Partimos de Orangozinho contentes pois os seus habitantes tinham-se revelado gente paciente e desejosa de nos contentar. Ao despedir-me deixei lá o pijama, os sapatos e tudo o que levava na minha bagagem incluindo a mala e os livros.Uma semana depois retribuiram mandando-me frangos, ovos , peixe e bananas.

Eu havia elegido a Humanidade como sujeito universal e percebendo que aquela gente sabia de si própria mais do que eu havia julgado apesar da interferência secular do homem branco, eu perguntava-me que parte me reservavam eles na sua mente e no seu coração. Mas compreendi que a resposta não poderia ser individual, a resposta teria de ser colectiva e a partir do momento em que eles tomassem posse da parte que lhes caberia na economia mundo.

Na Guiné tive o raro privilégio para um mortal de assistir ao meu próprio velório entre danças e cantos, numa noite de um claro luar que eu não gozei porque dormia aquilo que se pensava ser o sono da morte. Quando as populações de Bubaque e de Orangozinho souberam que eu tinha sido picada na praia por um animal que os baboleros chamados ao posto médico não tinham sido capazes de identificar, acorreram à pousada e instalaram-se no largo defronte do meu bangalô. Devido à chuva não era possível trazer até ali um avião e o posto não possuía soro anti-ofídico. Convencidos do meu envenenamento, para não sofrer enganaram-me dando-me em vez da vacina , uma injecção que me fizesse dormir profundamente.E foi o que aconteceu. Ao outro dia de manhã muito cedo, quando acordei, embora com a perna inchada, abri a porta do bangalô. Ouvi então um imenso Ah e algumas vozes gritando: está viva! Enxerguei a multidão que se pusera de pé, as máscaras do boi poisadas no chão e um bezerro amarrado ao tronco de uma árvore. Soube que se tinham cotizado para a compra do bezerro que iriam comer nos ritos do meu funeral . Pouco depois já se discutia o que fazer do bezerro. A carência permanente de carne devido a uma dieta essencialmente vegetariana e tendo como base o arroz, leva a que as cerimónias e em especial os velórios sejam uma ocasião preciosa para o restabelecimento das energias.Então, incomodada por os ter decepcionado, pela indelicadeza de não estar morta, resolvi que o bezerro pagá-lo-ia eu para celebrar o facto de estar viva, junto deles e que a festa podia começar. A partir desta experiência, deixei de pensar no meu velório póstumo, deixei de pensar onde seria bom morrer para pensar onde seria bom viver.

Joana Ruas
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Notas de CV:

Na foto: Joana Ruas lê a sua palestra na 8ª Bienal.
Com a devida vénia ao site Triplo V

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8741: Notas de leitura (271): Contra-Inssureição em África, 1961-1974, O modo português de fazer a guerra, de John P. Cann (Mário Beja Santos)