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segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21331: A galeria dos meus heróis (37): Rosemarie e os seus dois maridos...IV (e última) Parte (Luís Graça)


Indochina > Dien Bien Phu > 1954 > Ao fim de um cerco de 55 dias, o exército francês, de 17 mil homens (quase dois terços dos quais  legionários), pede rendição, em 7 de maio,  às tropas do general Vo Nguyen Giap (1911 - 2013) . Foto, do domínio público, mostrando a marcha dos prisioneiros franceses.  

O luso-francês Antoine Ben Oliel, desta história,  teve a sorte de ter escapado a esta cena final, sendo gravemente ferido, logo no início da batalha, em 13 ou 14 de março de 1954.

Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons.


A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 
IV (e última) Parte (Luís Graça) *


(Continuação)


− Era violento, o Antoine ? – perguntei à Rosemarie, em 2018, o último ano em que nos vimos, estávamos os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de nós, na sequência da pandemia de Covid-19.

− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surmenage… Entendes ?

− Stress, como nós dizemos aqui.

Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…

− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.

− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, teria eu dois anitos.

O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E eu recordei-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia… 

− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie... 

Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…

− Mas também sobrava para si, não ?!...

Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!

− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.

− Era a minha sina!... Afinal, tive dois homens que me batiam.

Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era ciumento. Sugeri à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…

Qu'est-ce que ça veut dire ?

Referi o facto de ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada…  Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário. 

Na minha opinião,  a minha interlocutora nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.

− A minha mãe era uma santa – recorda ela.

− E o pai ?

− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.

− E a mãe, consentia ?!...

− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas. 

Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela,  como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.

− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!

Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….

E pormenorizava:

− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.

− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão  ? – perguntei eu.

− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!

E acrescentava:

− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.

Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.

−Os meus manos foram muito amigos dele!

Todavia, a  Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.

Jalousie, ciúmes! – achava ela.

O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o “Francês”. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine. 

Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida,  a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.

Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito comigo sobre a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…

− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo para aquele gajo!

Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.

Heuresement, felizmente! − exclamava.

Nunca soube nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de culpa "por não ter dado filhos ao Antoine". Talvez fosse “estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)

Em resumo, admito que ela terá tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu-me a entender que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.

Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…

Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não me escondeu, de resto,  que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…

Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir  de 1974... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!,  com uma carreira artística como fadista em França!...

Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada. 

Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...

− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.

Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património… 

Foi ela, a Rosemarie,  quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.

Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.

Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível  da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.

Sentindo a sua saúde piorar, o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.

Em 1997, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 66, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne.  Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.

Três anos depois, sem chegar a fazer os 70 anos, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.

No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos,  que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.

− Gente ingrata, des gens de merdre! –arrematou ela.

Os dois últimos anos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um  ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...  

−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-me a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!

Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.

Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Eu, pelo meu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.  Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estava esperançado que ela me arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.

Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E há menos de seis meses morreu, vítima de Covid-19, tendo sido cremada.
Só vim a saber da triste notícia através dos amigos da casa da Lagoa de Óbidos. Confesso que fiquei desolado...

Com a morte da Rosemarie, inesperada (e chocante para os seus amigos, como eu), apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto... 

Da última vez que a vi, no verão de 2018, parecia-me uma mulher finalmente feliz, reconciliada com ela e com a vida, liberta das sombras negras do seu passado. Era uma mulher sem rancores, que quis toda a vida amar e ser amada: despediu-se de mim, a cantarolar a Edith Piaff, "Non! Rien de rien, / Non! Je ne regrette rien. / Ni le bien, qu'on m'a fait, / Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"...

Sorriu quando lhe prometi esperar, "até aos seus cem anos", para então lhe publicar a sua "histoire de vie".

Estava determinado (e condenado) a respeitar a sua vontade: agora que ela partiu, ao quilómetro 82 da sua "estrada da vida" (aliás, mais 'picada' do que autoestrada...), deixo aqui a sua história. A sua "petite histoire"... Caberá aos leitores ajuizar se ela fica bem, ou não, na "galeria dos meus heróis".

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)


16 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)

(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia (...) a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá foram massacrados. (...)

Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses, em 13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phi,   ser ferido gravemente por um estilhaço de obus, que lhe desfigurou o rosto. Teve a sorte de ainda poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses depois, em maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)



25 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)


(...) Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos. (...)

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)


Foto: © Gerald Bloncourt (1926 - 2018) > Travessia dos Pirinéus por imigrados portugueses. Maio de 1965. Foto: cortesia de Le Blog de Gerald Bloncourt  > L'immigration portugaise. 

[O grande fotógrafo da imigração portuguesa foi condecorado em 19 de novembro de 2015 pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, com a Ordem do Infante Dom Henrique, grau Comendador. Na página oficial da Presidência da República pode ler-se, por ocasião da sua morte, a seguinte mensagem, com data de 30/10/2018: 

"Ao tomar conhecimento da morte de Gérald Bloncourt há um dever de memória em evocar o seu trabalho, que imortalizou a história da emigração portuguesa em França nas décadas de 60 e 70.

O fotógrafo francês foi uma das testemunhas do duro quotidiano dos compatriotas que viveram os primeiros anos da maior vaga de emigração para França, sendo simultaneamente amigo e companheiro de tantos portugueses que ali construíram o seu futuro.

Isso mesmo testemunhei em Champigny-sur-Marne, por altura das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10 de junho de 2016, reconhecendo o seu espírito de missão pela defesa da dignidade humana junto da comunidade portuguesa, com o grau de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique. "]


A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 
Parte III (Luís Graça) *

 

(Continuação)



A Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos.

Em Cascais, estava longe da família e da terra, que já não era Cabeceiras de Basto, mas Resende…Tinha um dia de folga, que aproveitava para conhecer Lisboa e os arredores. Metia-se no comboio e desaguava no Cais do Sodré, cujas “luzes de néon” a atraíam, como à borboleta, mas onde nunca entrou em nenhum bar.

No máximo, à meia-noite, o mais tardar, tinha que estar de volta a casa no dia de folga. E, depois, aquele era um mundo estranho e perigoso para uma rapariga de província, que fora parar a Cascais com cartas de recomendação.

Ainda se aventurou a ir, um dia, ao Bairro Alto dos fadistas, onde se dizia que se cantava o fado castiço, mas sentiu-se intimidada, com todo aquele corropio de gente, a sair e entrar de tipografias, redações de jornais, casas de pasto, tabernas, oficinas, lojecas e casas que pareciam de bonecas, com mulheres a assomar à janela, ou vagabundear pelas ruas.

Havia prostituição de rua, mas nada no entanto parecido com a que irá conhecer, uns anos mais tarde, na Rue de Saint Denis, em Paris, quando um dia lá for com o "seu" Antoine, só para ver aquelas pobres mulheres trajando ricos casacos de vison, umas, outras quase nuas...

Raramente via os patrões, lá no palecete de Cascais. Tinha uma “chefa" que era de "gancho” (sic), e que mantinha a criadagem na linha. O seu dia a dia era passado no meio de tachos e panelas, no rés do chão. A senhora, “que era do Norte”, apreciava o seu “arroz de anho no forno”, uma das suas coroas de glória culinárias… Mas a cozinheira-chefe, francesa, tinha ciúmes dela e não a deixava fazer grandes pratos, apenas o trivial, o pequeno almoço, o lanche, coisas ligeiras. Mas acabou por aprender, à socapa, uns pratos da cuisine française e começou a arranhar o francês… (Falava-se francês lá em casa, o patrão era de origem francesa.)

Já não se lembrava sequer do nome dos patrões, que eram gente muito rica e muito fina, de famílias tradicionais, católicos, mas liberais e respeitadores do pessoal menor… Cultivavam, no entanto, muita distância. Nunca se lembra, por exemplo, de ter entrado na sala de jantar, a não ser pelo Natal, em que senhores e criados consoavam juntos.

Os tempos que passou em Cascais, cerca de dois anos, eram sobretudo lembrados pela Rosemarie pela sua iniciação ao fado de Lisboa. Na escola de adultos, onde tirou a quarta classe, conheceu uma jovem fadista amadora que tinha ambições de concorrer à Grande Noite do Fado, no Coliseu dos Recreios.

À noite as duas cantarolavam uns fados no regresso a casa, já que moravam perto Ficaram amigas mas a Rosemarie perdeu o seu contacto quando foi para França, no verão de 1967. Tinha para com ela uma dívida de gratidão, arranjou-lhe alguns discos e letras, da Amália, e da Maria da Fé, de quem a Rosemarie também era fã, até por ser uma mulher do Norte.

Logo no início, em meados de 1965, teve autorização de ir ao Cais da Rocha Conde Óbidos abraçar um dos irmãos que chegava da Guiné, depois de cumprido o serviço militar. Vinha “mais maduro, mais homem”, e confidenciou-lhe que tinha intenções de emigrar, talvez para a Alemanha, de comboio. Era só tratar do passaporte, que agora, com a tropa feita, não precisava de ir “a salto”. Tinham-lhe prometido um emprego numa fábrica de automóveis, mas precisava de “aprender a língua alemã, que era tramada”. E na realidade conseguiu ir para a Alemanha, em meados de 1966, mas teve de começar por trabalhar nas obras. Durante alguns anos, não se viram até que ele foi passar o Natal, com ela e o Antoine, em 1973.

Foi também por essa altura, por volta de 1966, que a Rosemarie começou a congeminar a ideia de ir para França viver e trabalhar. Mas só podia ir “a salto”. Sendo oficialmente casada, precisava de autorização do "cabrão do marido", o "chefe de família", ausente em parte incerta...

Por outro lado,  as suas fracas economias não davam para “comprar a passagem”…Precisava de ter pelo menos uns 15 contos, para a passagem e para os primeiros tempos. Nessa época, era uma fortuna, quase 6 mil euros, a preços atuais. 

E foi também por essa altura que umas antigas colegas e amigas das Caldas de Aregos, em Resende,  lhe deram notícias do Antoine Ben Oliel.  Um dia conseguiu o seu contacto. Escreveu-lhe uma carta, com letra muito bonita, e com algumas palavras simpáticas em francês (desculpando-se dos "erros de ortografia"), e mandou-lhe uma foto tipo passe. 

Ele não lhe respondeu logo, mas na carta que ela recebeu, passadas umas largas semanas, disse-lhe que, "sim, senhora,  se lembrava dela, de Chaves, em  1957, e que ia ver o que podia fazer por ela"... Mas acrescentava logo a seguir: " Sem papéis era mais arriscado, para mais sendo mulher. Mas prometia lembrar-se do seu caso e do seu pedido"...  

Determinada a sair do círculo vicioso da pobreza e da solidão, a Rosemarie começou a preparar a "mala de cartão" e, um dia, com a desculpa de ir visitar a mãe “muito doente”, obteve autorização para gozar uns dias de licença, na terra.

Nunca mais voltou a casa dos patrões em Cascais. E uma semana depois estava a atravessar os Pirinéus, escondida na mala do carro do Antoine.

Não lhe fez desconto nenhum, “o gajo” (como ela o tratava)!... E sabiam pouco um do outro. Mas deu conta que o Antoine se sentia atraído por ela... Na viagem, partilhada com mais gente (“rapazes novos, um deles fugido à tropa”), foram pondo, lenta e discretamente, a conversa em dia. Ela, sempre muito faladora, “um livro aberto”, ele sempre muito calado, de óculos escuros, a cigarrilha ao canto da boca, do lado da cicatriz…E usava um chapéu à cobói, que puxava para a cara, a tapar-lhe os olhos…

Na presença de terceiros, evitava ter com ela conversas mais pessoais. Respondia-lhe, quase sempre com monossílabos, os olhos postos na estrada, enquanto o Peugeot ia devorando quilómetros.

A cena mais caricata foi a passagem da Rosemarie num posto fronteiriço pirinaico, em Hendaia, que era pressuposto ser “da confiança do Antoine”.


Como era habitual, os homens que seguiam na viagem, ape
avam-se uns quilómetros antes, ainda em território espanhol, e seguiam por um trilho, seguro,  atrás do guia basco que trabalhava habitualmente com (ou para) o Antoine, que por sua vez os voltava a apanhar mais à frente, já em França. Tratava-se apenas de salvar as aparências,  não fosse algum chefão aparecer por aquelas bandas sem avisar.

A Rosemarie foi poupada ao incómodo da travessia a pé, seguindo, deitada e tapada com um cobertor,  na mala do carro do Antoine. À frente seguia um empregado do Antoine, com a carrinha de nove lugares, vazia. Cada passageiro transportava na mão as valises en carton, no trajeto a pé. Traziam o mínimo, uma ou duas mudas de roupa, calçado, farnel…

Habitualmente era o Antoine que conduzia a carrinha e naturalmente, era conhecido, e mais do que isso, “amigo dos guardas fronteiriços”.  Há muito que fazia os postos fronteiriços de Hendaia  e Irun, sendo conhecido como marchand d’art. Na realidade, também comprava e vendia velharias, antiguidades e móveis de estilo, abastecendo algumas lojas no Norte de Portugal e na Galiza. Rentabilizava assim a viagem. Trazia tralha. E no regresso levava viande à canon, carne para canhão (como ele dizia, na galhofa, lembrando-se porventura dos seus duros tempos de legionário). 

Mas daquela vez estava de serviço o  “novato” de um agente que não  conhecia o Antoine ou, pelo menos,  não o reconheceu "tout court"... Mandou parar o carro e abrir a mala…

A Rosemarie não ganhou para o susto, mas de acordo com as instruções do Antoine, “não tugiu nem mugiu”… Tudo se resolveu num ápice quando o Antoine “puxou dos galões”, e falou no nome do “chefe”,  seu velho conhecido do tempo da Legião…

Aliviados, seguiram a viagem, pela route nationale 10 (desgraçadamente também conhecida como cemitério dos portugueses),   sem mais sobressaltos, até ao destino, que era… o famigerado bidonvillhe de Champigny.

A Rosemarie, ingénua (quando lhe convinha), nunca soube, ao fim destes anos todos, quais foram les frais de transport...  Mas, nesse troço da viagem, já em território francês,  ficou então a saber que o Antoine era viúvo e vivia num château, nos arredores da petite ville de A.... no Val-de-Marne.

Simpático, cavalheiro, ofereceu à Rosemarie uma cama num duplex, grande demais para um homem que vivia sozinho, e que era a única parte habitável do casarão,  que em tempos devia ter feito parte de uma quinta, sacrificada à expansão urbanística…  O chateau não era, afinal, o "castelo dos contos de fadas"  que ela imaginava... 

Passada uma semana, já dormiam os dois na mesma cama. E ela arranjou, também por convite do Antoine,  um primeiro emprego no bistrot, “O Cantinho da Saudade”.

Como sabia cozinhar, e "até cozinhava bem", foi uma boa aquisição para o tasco do Antoine. À noite, o bistrot enchia-se de clientes, a maior parte portugueses com saudade do "caldo verde"  e de umas boas bifanas no "casqueiro".

Com o seu trabalho, a Rosemarie pagava a “renda da casa” e ia descontando um xis por mês para as despesas da passagem. Trabalhou um ano para o Antoine,  sobravam-lhe uns trocos para os “alfinetes”… Saía de uma escravatura para se meter noutra, receava ela. 

Arranjou, por isso, um part-time na limpeza de um consultório médico e depois numa clínica. Vinha a tempo de fazer o almoço para os dois. À tarde e à noite trabalhava no bistrot, era pau para toda a obra, estava na cozinha mas também dava um jeito nas mesas e ao balcão. E ao fim de semana havia fado…

Ao fim de alguns meses, lá pelo volta do Nöel de 1967, já se “desemerdava” (sic)  com o francês. "A vida rolava bem". Estreou-se tempos depois no bistrot a cantar, em caraoque,  a Amália e a Maria da Fé,  que também começava a estar na moda…

Ainda não havia guitarrista, só viola. Alguém desencantou um tipo fugido à tropa que em tempos tinha acompanhado, à guitarra, fadistas amadores em tascos do Bairro Alto. Trabalhava como operário numa fábrica da Citröen. Dois ou três meses depois, com muitos ensaios, a Rosemarie apresentou-se, de xaile preto e rosa vermelha ao peito, a cantar o fado no bistrot, acompanhada à guitarra e à viola…

Comme il faut!

  Antoine não escondia o seu orgulho. Apresentava-a já como sua copine, não escondia o seu afeto por ela e elogiava o seu talento.

Une deuxième Amalia! garantia ele aos seus amigos franceses.

Foi a altura em que os nossos anfitriões da Casa de Óbidos a conheceram. Foi também o melhor período da vida da Rosemarie, não só da sua vida em França, como de toda a sua vida!

Ah!, oui, j’ ai été três heureuse à cette époque-là!  − garantiu-me ela.

A Rosemarie, aux yeux verts,  "de olhos verdes", começou a ser notada. E o bistrot do Antoine duplicou a faturação. Mas o seu principal negócio continuava a ser o “ilegal”, o transporte de imigrantes clandestinos, de carro e de comboio… Como fachada legal e fiscal, tinha o bistrot e uma loja de antiguidades, no próprio château, na prática, um depósito de velharias… Com os negócios a prosperar, também comprou um licença de táxi e arranjou um motorista, luso-francês de confiança.

Mas era  a atividade de passador que lhe garantia mais proveitos. Terá ajudado centenas de portugueses e até magrebinos,  a instalarem-se e legalizarem-se em França. E dizia-se até que explorava os desgraçados dos imigrantes com o aluguer de algumas "barracas" em Champigny. Coisa que a Rosemarie nunca soube (ou nunca quis saber). Nisso era notável a sua habilidade em ignorar, escamotear ou "branquear" algumas partes mais desagradáveis da sua vida em comum com o Antoine Ben Oliel.

Tudo corria bem,  para o Antoine (e para a sua companheira), até à crise económica de 1973 e sobretudo até ao 25 de Abril… Meteu-se depois la merdre de la politique, lamentou-se a Rosemarie. A partir de 1974, começou a baixar a clientela do bistrot e as viagens a Portugal tornaram-se mais espaçadas…

Et le fado devient… réactionnaire! indignava-se ela.

− Reacionário... como assim ?  perguntei-lhe eu, fazendo-me ingénuo,

Não soube ou não me quis responder. Repetia apenas que o fado se tornara  "reacionário", e que os baladeiros haviam destronado os fadistas... 

Em suma, a Rosemarie “perdeu o pio”, deixou de cantar por uns tempos, aproveitando a má maré  para  dedicar mais tempo à sua atividade principal,  de femme de ménage.  Criou uma empresa de limpezas, com o Antoine como sócio minoritário… E que foi um sucesso. Começava assim a ganhar independência em relação ao “seu homem”… 

− Há males que vèm por bem! − contemporizava eu.


Cantava, mais esporadicamente, em festas de portugueses, até meados dos anos 80… "Sempre em portugês"... Naturalmente que nessa altura a estrela da canção luso-francesa era a Linda de Susa... que a Rosemarie nunca conheceu pessoalmente, mas de cuja voz e canções também gostava muito. Viu-a apenas uma vez num concerto em Paris, já vedeta internacional.

Começou a fazer amigos franceses. E integrou-se muito bem naquela pequena cidade de província, na "banlieue" de Paris. Durante muitos anos não veio a Portugal, nem mesmo quando o pai faleceu. E por volta de 1987 ou 1988 consegue finalmente obter o divórcio do seu primeiro casamento. Nunca chegou a saber o destino que teve o seu primeiro marido, desaparecido para sempre, talvez assassinado numa lixeira de São Paulo ou do Rio de Janeiro.

No início dos anos 90, o Antoine Ben Oliel, já sexagenário, terá tido uma depressão, começou a beber mais ido que o habitual, e os negócios ressentiram-se. Ela ajudou-o a reequilibrar-se com "apoio psiquátrico". Mas em 1995 ele tem uma nova recaída e faz um tentativa de suicídio. Puxou do revólver e apontou à cabeça. In extremis, ela salvou-o, mesmo com risco da sua própria vida... Na luta corpo a corpo, a arma ainda disparou dois ou três tiros para o ar... Talvez por gratidão o Antoine aceitaria, mais tarde, casar-se com ela, já no ocaso da vida.

(Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:

Postes anteriores da série:


(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélia, como légionnaire. Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)

(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia não aos paraquedistas mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. (...)

Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses,  em  13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phu, ser ferido gravemente por um estilhaço de obus.  Teve a sorte de ainda poder set evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses depois, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)

(Continua)

© Luís Graça (202o)

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > Instrumentos musicais populares portugueses, dos anos 60: da esquerda para a direita, rabeca chuleira, viola amarantina, bombo e baqueta (em primeiro plano) e os ferrinhos (em segundo plano). Foto: Virgílio Pereira, s/l, s/d. Cortesia de Museu Nacional de Etnologia / Arquivo Virgílio Pereira (2020)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > A rabeca chuleira: fabricante Guilherme Almeida & Sousa Sarmento (Baião, 1873); proveniência: Santo Tirso (1962). Nº Inventário: NME BB 405


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Candoz, Quinta de Candoz  >  20 de outubro de 2012 >  Festa das bodas de ouro da Rosa (Carneiro) e do Quim (Barbosa) > Baile mandado > Tuna Rural de Candoz: Músicos: Júlio e João (violinos), Nelo, Luis Filipe, Miguel e Tiago (violas). Mandador: Joaquim Barbosa (Quim). O baile mandado é uma tradição que se está a perder... E que só os mais velhos sabem dançar. Neste caso, o mandador também participa na coreografia. Clicar aqui para ver o vídeo, alojado em  You Tube / Luís Graça


Vídeo (4' 08''): Luís Graça (2012).

Galeria dos meus heróis > A Rosemarie e os seus dois maridos... 

 Parte I

por Luís Graça


  Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a salto, escondida na mala do carro de um passador…

Foi assim que a Rosemarie começou o seu relato de vida: um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.

A salto !... Como se dizia então em francês ?!... Le saute, até há um filme que passou na televisão de cá…

Ah!, oui?!... Nunca vi.

− E no entanto a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille

Une balzacienne, uma mulher de 30 anos já feitos!...Nasci em 1937, mon chérie.

− Ah!, sim, uma balzaquiana, como dizemos nós…

Morto o Antoine [lê-se: "antu-ane"], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á libertado de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro… Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros. os filhos do primeiro casamento.

Libertou-se sobretudo de uma estranha relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.

− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou remediada em França… Enfim, tenho o meu pé-de-meia. 

Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido segundo marido. Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie, como ela repetia amiudadas vezes, com humor, sem azedume, quase sem rancor. E, no entanto, foi uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela.

Foi uma vida passada entre o Portugal dos sombrios anos 30, 40, 50, e a França gloriosa, da V República.

− Voltei à minha terra natal, para morrer… mas só aos 100 anos. E agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.

Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido  materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélio,  como légionnaire

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor,  fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França.  O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu "accent": não carregava suficientemente os "erres"...

L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.

Eu havia-a conhecido, há já uns bons anos, quando ela  andava perto dos 75,  conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.

− Quando tinha quinze anos, mon chéri,  eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.

Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente, tendo-me autorizado a publicar a sua história de vida que "até dava um filme” (sic), com uma única ressalva:

− Só depois de ser chamada ao Reino dos Céus!... (Como ela queria viver até aos 100, perdi a esperança de poder publicar a sua história em tempo útil!... Charmosa, tratava-me por mon chéri.)

Era “crente sem ser beata”… E agora que “Deus a chamou ao seu reino”, fica o caminho aberto para partilhar as suas confidências. De facto, acabou de morrer, estupidamente,  de Covid-19, logo no início da pandemia. Constou-me que foi por infeção hospitalar… Ia fazer 83 anos.

Sinto-me, de qualquer modo, à vontade para evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconheço se deixou herdeiros, mas deve ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.

Resta-me dizer onde a conheci. Foi na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão. Agora, professores reformados,  passavam cá mais tempo. A Rosemarie era  visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos. 

Nunca soube exatamente quais eram as suas afinidades mas, pelo que me apercebi das nossas conversas, haviam-se tornado amigos  desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.

Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezassete anos de diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:

− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos  verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como punhais'... Quem cantava isto ?...Ah!, o Francisco José,. um rapaz do meu tempo...

Estes nossos amigos franceses adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido,  em vida, e aclamado no Olympia de Paris.

Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado,  em que conheci a Rosemarie, rapidamente ganhei a sua confiança e até afeição. Falávamos ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos nossos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras.  Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só comigo.

Disse-lhe que estava muito interessado em conhecer a  histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.

Acabámos por criar laços afetivos, de empatia e até de amizade. Ainda nos encontrámos três ou quatro vezes e falámos ao telefone. Com tristeza soube da sua morte, vítima da pandemia do século. Tratava-me, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal. Nunca teve filhos, ao que eu saiba.

Era da região de Basto, ou Terras de Basto,  sendo os seus pais  oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.

− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas,  uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.

E acrescentava:

− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.

Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou  para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O mais longe era para o Porto,  para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.

− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.

E mesmo assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…

As raparigas não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de uma mestra particular ou uma “regente escolar”.

No caso da Rosemarie,  já era uma moçoila quando abalou para Chaves, em 1952,  como “criadita de servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…

Fidalgo ?! – indaguei eu, curioso.

− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada ou muito pouco.

Eu sabia que tinha casado, já depois de atingida a maioridade, que naquela época era aos 21 anos.

− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.

Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves,  casou com "o primeiro fils de putain, o primeiro filho da puta", que conheceu num baile, já em Resende, em 1961.  E que a “desonrou” (sic).

Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine,  de quem voltaremos a falar, mais à frente.

A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor. Para mim, era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais, obrigando-me a reformular ou repetir a pergunta…

Nascida em 1937, a Rosemarie casou aos 24, "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...

− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época.

E confidenciava, com graça:

− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é  que percebi o sentido que os padres, no confessionário,  davam à expressão 'comer a maçã'.

O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 7 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.

Não se atreveria naquele tempo, a  casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida”. Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda,  que tivessem a desdita de  ser mães solteiras.

− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.

À medida que se entusiasmava com a conversa,  Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pêlo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a  inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não me deixavam todavia de surpreender, talvez por sermos de gerações diferentes, eu já filho do pós-guerra e criado em ambiente urbano, ela bem mais velha do que eu.

Afinal, isto passava-se no meu país, ainda nos anos 50 e 60. E eu não podia deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem  duras.

− No meu tempo, as moças repudiadas,  ou fugiam  para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.

− A liberdade paga-se sempre  cara!... Não nos é dada, conquista-se  − avancei eu, usando  um chavão que é, de há muito, um lugar comum.

− Ah!, sim, veja o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.

− A sério?!... A tiro ?!... Agora percebo por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…

− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos,  para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas, ao bufete!”…

Os “bailes mandados” ? Explicou-me ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador',  no meio,  a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras…

Mas os feitios de ambos,  e  sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.

Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a  maior parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as dívidas.

− Mas como é que vocês se conheceram ? – quis eu saber, intrigado.

− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…

− Em Chaves ?...

− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de  meia e quis celebrar… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…

− A tuna ?

− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca. Juntavam-se a outras tunas, ali da região do  Marão e Montemuro,  de Baião a Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa,  dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.

− E tocava bem, o seu homem ?

− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a contradança… Já havia rádio,  mas pouca gente tinha rádio e telefone…  E a televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele tempo éramos umas atrasadas… 

− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria, miséria mesmo ?

− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier – começou-me a tutoyer, a tratar por tu, a que eu não respondi do mesmo modo, continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela,  até como estratégia defensiva enquanto entrevistador…

Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de granito, tosca,  o interior com paredes de tabique, um quarto para os  pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.

Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e Guiné. Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à pequena nobreza rural, decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo. 

− E porquê Resende, Rosemarie ? – perguntei-lhe eu.

Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou promessa de emprego,   numa empresa encarregue, já em 1964,  dos trabalhos preparatórios da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).

Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria  ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E,  também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.  

Depois da separação (de facto mas não de jure), a Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...

− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?

Ela contou-me tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos factos.

A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia bailes, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 15 anos,  ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de varapau”.

− Varapau ?...

− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens…Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.

− O seu irmão ?!...

− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. ´

− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, que eu já estou perdido... Estávamos a falar do baile…

− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente, mas naquela época  eu era uma raparigaça que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar…E, depois, como também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.

−…Até ao dia em que...?

− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...

− Um amor de perdição!... Mas como assim ?!...

− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!...Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo  em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?,  'desavergonhada'!...Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio…

− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!...  Não me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...

D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque,  era o que eu era nessa altura…

− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…

Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na força da idade, se bem que ele  fosse mais  velho do que eu… E deixa-me dizer-te  que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.

− E a tuna, os bailes, as tainadas?... – perguntei-lhe eu.

− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...

− Ficou, portanto,  o caldo entornado – comentei eu.

− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.

− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…

− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…

− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…

− Passaram-se os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!... Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…

− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…

Ah!, oui!... Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso, estúpido… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.

E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.

− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar  a vizinhança... Eu desculpava-me,  que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim,  uma vergonha para a minha família...  Até um dia em que bati com a porta e voltei para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… 

− E depois ?...

− Lá conseguiu arranjar um passaporte, meteu-se um barco e fugiu para o Brasil… Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando me quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, com mais de 50 anos…

− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…

− Se foi!... Dava para outro filme… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée

 (Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor: