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sexta-feira, 27 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13335: Notas de leitura (605): "O Retorno dos “Gans”, de Fernando Perdigão (2): Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Tudo leva a crer que a base histórica forjada por Fernando Perdigão para o ressurgimento dos Gans não passe de uma trama bem magicada. Dá uma oportunidade única para conhecer as práticas rituais da comunicação com os mortos, seus oficiantes, desempenho de curandeiros, sacerdotes e sacerdotisas e a invocação dos irãs. E também abre espaço para pressentir as aspirações de uma classe burguesa que procura afanosamente uma saída para o desenvolvimento, empreender com algum respeito pela tradição.
Uma leitura que traz ganhos culturais, indubitavelmente.

Um abraço do
Mário


O Retorno dos “Gans” (2): Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné

Beja Santos

A morte e as exéquias de Procópio Fidalgo são o pretexto para uma viagem aos mistérios e aos tabus associados ao culto dos mortos na Guiné-Bissau no romance de estreia de Fernando Perdigão «O Retorno dos ‘Gans’», Edições Colibri, 2013, ao que sabemos é a primeira obra da literatura luso-guineense que se debruça com tal profundidade sobre os santuários das cerimónias tradicionais, sacerdotes, curandeiros, peregrinações aos locais de culto, irãs, cerimónias de toca-choro, esteiras de choro, amuletos, comunicação com o espírito dos falecidos. O outro pretexto, porventura uma aventura ficcional, são os Gans, em que, segundo o autor, os familiares dos antigos escravos passaram a viver independentes e fora das cercas das feitorias e das empresas dos antigos colonos, isto nos arrabaldes de Cacheu, Bolama, Farim, Geba, bem como Bissau, instituindo uma nova ordem social e económica. Pesquisei sobre os Gans e nada se encontrou, nenhuma literatura de referência consultada aborda tal problemática. O autor estabelece o enredo em torno de famílias de estatuto pequeno-burguês, dando-lhe uma permanente tensão entre a modernidade e a tradição, a família Fidalgo vai delapidando o seu património em todos os cerimoniais de choro e nas sucessivas receções dos muitos convidados, sabemos como a Guiné tem famílias extensíssimas. Nascem amores, confirmam-se casamentos, um psicólogo interpreta sonhos e um sociólogo disserta sobre os Gans.

O autor recorre ao expediente de jornadas universitárias para discorrer sobre o passado. Aqui e acolá, dá a sua alfinetada sobre a situação política: a lenta evolução do país à mercê das profecias; um funcionalismo público que tem emprego mas não tem trabalho, uma classe política arranjista… O sociólogo, de nome Fundungo, disserta sobre os Gans que teriam aparecido no período pós-descobrimentos, mais concretamente no período de instalação das feitorias. Os Gans teriam sido desmantelados até meados do século XX, eram um edifício educativo tradicional do país, os seus patriarcas constituíam uma espécie de assembleia restrita. Saúde-se o autor por esta nota de exótico que irá apimentar o livro até ao fim. Porque toda a obra está embrenhada de imaginário religioso à revelia do que prevêem os códigos cristão e islâmico. Por exemplo, a cerimónia do “cabaz”, o casamento tradicional guineense, materializado num objeto envolto de uma toalha branca e que é posto no meio da sala, simboliza o termo de compromisso entre duas pessoas e descreve-se com detalhe o longo cerimonial da chegada dos noivos na presença dos parentes, abre-se o cabaz de onde se retira um envelope branco e outros objetos, foi assim que “casaram” Ernesto e Kilda. Ficamos a saber que neste cerimonial há em sequência o pedido da mão da noiva, a abertura do cabaz e o casamento oficial. Este Ernesto era irmão do defunto Procópio, será ele que irá revitalizar Gan Fidalgo. E entretanto prosseguem cerimónias em memória do falecido Procópio, copos de água, missas, elogios…

Esperança, a filha de Procópio que casara com Gilberto, um angolano, e viveu em Lisboa, decidem refazer a sua vida em Bissau, ela trabalhar nas Linhas Aéreas Lusófonas, Gilberto tem outros planos, quer fazer uma agência funerária moderna. Depois das cerimónias religiosas do Dia de Todos os Santos, chegou o momento para o cerimonial do irã e dá-se a seguinte explicação: “Naqueles tempos, quando os brancos cá chegaram, isto era tudo mato cerrado, cheio de poilões e calabaceiras habitados pelos irãs. Mas havia caminhos muito antigos que os filhos da terra, habitantes das tabancas, percorriam, como itinerários sagrados, em direção aos santuários. Os portugueses em conluio com certos irãs, apoderaram-se do território e derrubaram muitas dessas árvores sagradas e até ficaram com alguns irãs para eles. Os nossos antepassados transferiram outros irãs para outros sítios…”. E presenciamos um cerimonial de irã, no quintal do “Caminho do Irã”.

Fernando Perdição não perde oportunidade para ventilar algumas das questões ditas fraturantes da sociedade guineense como a mutilação genital feminina. O toca-choro é também alvo de minúcia descritiva, é convocado para proteger a nova casa-grande de eventuais entradas dos espíritos maus. Faz-se o chamamento dos defuntos, instrumentos repicam, como o bombolom, segue a ladainha das mensagens, invocam-se os nomes dos entes queridos dignos de lembrança e choro, explica-se a indumentária com que todos se apresentam na cerimónia, segue-se a matança dos animais, uma boa parte de cada animal havia de ficar na casa de acolhimento da cerimónia. No contexto da tensão entre a tradição e o moderno, estes reagem e tecem críticas: as crianças não devem compadecer a cerimónias destas, pois a violência da carnificina do abate de animais pode provocar traumatismos graves, devia-se arranjar uma maneira simbólica de derrabar um bocadinho de sangue, não se devia consentir neste atentado à moral e à saúde pública já que o sangue e as fezes que se extraem das tripas acabam por apodrecer ao relento e favorecer doenças.

Começaram as obras de preservação de Gan Fidalgo, entretanto o seu herdeiro direto, Ernesto, vai remexer nos papéis do falecido Procópio que deixara imensos escritos, descobre que este era completamente hostil a este culto desordenado dos mortos e deixara, entre outras, a seguinte observação: “Faz-se o culto da personalidade aos vivos em troca do dinheiro, e o culto aos mortos, só pode ser, entre outras velhacarias, para que as almas nos ajudem a garantir um lugar no outro mundo, lugar esse que, se calhar, nem o merecemos”.

A saga encaminha-se para o fim, aparece a árvore genealógica dos Fidalgos, tudo começara em finais do século XVIII com Adelaida Fidaldo, filha de pai português e mãe Pepel, esta escrava guineense. Gan Fidalgo, vem a descobrir-se já tem cerca de 170 anos. Gilberto já pôs de pé a Agência Funerária Pés-Juntos, de colaboração com o Ernesto, que deixou o seu lugar no Ministério da Agricultura. Alguém critica-o: “Onde é que foram buscar essa ideia estapafúrdia de criar uma empresa para tratar de mortos, a ponto de te levar a abandonar o Ministério para ficares sem trabalho?”. Ao que Ernesto responde: “Aqui na Guiné as pessoas pensam que trabalho a sério é só quando se trabalha para o Estado. A nossa agência privada é também trabalho sério, tão sério que eu vou ter que tirar um curso para poder ser administrador da agência”. Ernesto pôs uma nova cobertura de zinco na Casa-Grande, do Gan Fidalgo, uma nova escadaria de acesso à varanda frontal, uma nova pintura, mandou colocar um letreiro em madeira esculpida “Gan Fidalgo”. E disse para si próprio: “Os Gans são os pilares da cultura guineense”. No dia da inauguração profere um vibrante discurso sobre a história dos Gans.

Fica-se com a ideia de que Fernando Perdigão pretende abrir uma via para que os guineenses alcancem um novo paradigma, inovando e assimilando a tradição livre de adulterações e obscurantismos. Depois da luta de libertação chegou o momento de tomar consciência de uma nova mudança. Há que restituir importância aos Gans, fazer deles a base de uma sociedade mais organizada e sem violência. Os Gans contribuirão para que cada guineense possa criar riqueza na sua própria terra, os Gans serão também renovação cultural, prepararão a sociedade para criar riqueza e equidade.

Utopia ou não, há uma mensagem de espírito de renovação, mesmo supondo que os Gans são ficção pura. E para o leitor não iniciado esta cosmogonia da dimensão cultural dos mortos é uma perfeita revelação.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13322: Notas de leitura (604): "O Retorno dos “Gans”, de Fernando Perdigão (1): Uma viagem ao ocultismo ligado ao culto do morto na Guiné (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, com data de 5 de Abril de 2012:

Caro Luis e Carlos Vinhal,
Num comentário ao mais recente Post da minha série de memórias de infancia, o Luis Graça, com a perspicácia que lhe é caracteristico, perguntou-me se, por acaso, havia alguma relação entre o velho Irã dos Poilões sagrados e o Djinné dos muçulmanos.
Nunca tinha pensado no assunto e na tentativa de refletir e encontrar as (des)semelhanças acabei compilando o texto que agora vos envio para vossa apreciação. É um texto de pura curiosidade e criatividade pessoal sem qualquer pretensão de carter sociológico ou etnológico.

Um abraço amigo aos dois e cumprimentos aos demais editores e colaboradores da TG.
Cherno Baldé


Viagem pelas maravilhas da minha terra

O Irã animista e o Djinné muçulmano

Entre o temível e poderoso Irã dos povos animistas das florestas do sul e o Djinné, vizinho ciumento, atrevido e folgazão dos muçulmanos da região Sahelo-Sahariana, coexistem algumas similitudes da mesma forma que se podem observar grandes diferenças, dependendo do ponto de vista de quem observa de fora.


O Irã - onde vive e como se manifesta?

Entre os chamados animistas, o Irã desempenha, por meio de cerimónias, rituais próprios e canais de comunicação específicos, uma importante função reguladora da vida social, económica e politica das comunidades que animam a sua existência, formando um tronco comum cuja base se assenta no culto dos mortos e se reproduz através de mitos fundadores, à volta dos quais se constroem os pilares (a cosmogonia) das sociedades tribais e se processa a ligação essencial entre o mundo visível (dos vivos) e o mundo invisível, ou seja, dos que tendo partido para o além, ainda continuam a influenciar a vida quotidiana dos vivos por meio de sinais e de linguagens que apenas os iniciados, pessoas consagradas, os Djambakôs, podem entender e decifrar.

Falar do Irã é falar da vida que, por sua vez, nos faz retornar a terra, a mãe que gera a vida e que é, ao mesmo tempo, o centro, o umbigo do mundo onde convivem e interagem dois mundos que se afrontam e se completam. A trinómica ligação entre as dimensões: Irã-vida-terra, é tão importante para o funcionamento do culto tradicional como é essencial a manutenção da eterna e fundamental ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, entre as ideias, a magia e a religião dos homens.

Os Djambakôs, sacerdotes por excelência e intermediários da comunicação entre dois mundos, não usam artefactos alógenos. Os seus pés nus devem estar em contato com a terra, devem ser puros na sua conduta moral e espiritual e fazer uso de uma linguagem simples e genuína.

O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.

Local de culto animista

Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.

O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.

Divertido, às vezes, sem nunca sair do sério, o Irã é justo nas sentenças que aplica e implacável nas suas represálias. Não esquece uma promessa dada, que pode passar dos avós aos seus bisnetos, de geração em geração, sem mudar a sua essência. As regras que impõe são para cumprir a risca (...)


Djinnégi – vizinhos, admirados e odiados

Quanto ao Djinné dos muçulmanos, qual um rei (Irã) destronado do seu trono de culto, trata-se de um ser ambivalente, dessacralizado, com características que variam entre o ser humano e o ser diabólico, mas sobretudo ele é um ser extraordinário que em certas ocasiões é dotado de super-poderes e noutras não passa de um ser velhaco e oportunista que não hesita em trocar suas pernas tortas e moles com as de uma pobre criança desprotegida.

O Djinné, vizinho admirado e odiado ao mesmo tempo, serve de bode expiatório para justificar as fraquezas do muçulmano assim como todas as frustrações da vida no mundo estreito, obscuro e adverso em que se tenta impor, malgrado a sua crença num Deus Único e Omnisciente. Não estando autorizado a tirar a vida dos homens, uma dádiva de criação divina, ele é, frequentemente, culpado de estar na origem da paralisia infantil e da doença dos pés moles, dos maus-olhados e dos ventos quentes, maléficos das regiões tropicais.

Por vezes tido como profundamente religioso e praticante assíduo, cuja devoção não é valorizada por Deus, Senhor da terra e dos céus, na justa medida da sua dedicação, outras vezes é tido como um alcoólatra incorrigível que estimula a desordem e o caos e atormenta os espíritos mais fracos.

O Djinné, também, habita na natureza, com morada nas grandes árvores, em particular nas mais frondosas e saborosas, a Tabay e a Tambarina. Como as pessoas, em relação aos quais sente inveja e tem ciúmes devidos a benevolência que Deus lhes concedeu em seu detrimento, há Djinnés de todos os tipos e para todos os gostos: homens e mulheres, velhos e jovens, bons e maus. O seu meio de locomoção preferido são os nossos vulgares remoinhos de vento que acompanham o período quente da quaresma tropical.

Regeneração natural > Flor e fruto da bananeira

Assim, os remoinhos concentrados e longilíneos que circundam a aldeia dirigindo-se, calmamente, as bolanhas, junto as nascentes de água, são os mais velhos que vão matar a sede. Os mais novos, quando se deslocam não resistem a tentação de entrar nas aldeias, devastando casas e campos de lavoura, pondo em prática, pelo seu comportamento odioso, as ideias conspiratórias tecidas pelos mais velhos nas conversas de bentém, a sombra das árvores tambarinas e tabay.

Para seu azar, não tem seguidores nem servidores e os seus detratores são numerosos. Às vezes, pondo de parte o terrível ódio da vizinhança, beneficia um ou outro humano, mais perseverante, com a sorte de uma resplandecente e rápida riqueza, mas apesar disso, é ele que carrega a totalidade do fardo da responsabilidade sobre os malefícios humanos na terra.

O Djinné, estando intimamente associado a revelação de fenómenos raros e não controlados pelos humanos, como a riqueza ou o azar que nos invadem sem bater a porta, ele também é considerado um artista e músico de dotes excepcionais. Isto é tão certo que a música que o homem consegue (re)criar para alegrar a sua alma, leviana por natureza, não passa de uma péssima réplica da original e coreográfica Djinnegi ópera.

Mulheres grandes regressando a casa depois do dever cumprido

Por favor Senhor... atende que é uma urgência

Ter a sorte e o dom de assistir à cena de uma concentração desses seres em festa de consagração é o maior espetáculo a que um humano pode ter na sua curta e miserável vida. Mas, como sempre acontece, esta possibilidade, sendo muitíssimo rara, não está isenta de perigos. No mundo fantástico dos Djinnés o riso é um atributo completamente desconhecido e a melodia excepcional saída dos seus instrumentos musicais únicos é acompanhada de uma grotesca e hilariante dança de pés coxos. Assim, aos humanos que foi dado assistir e que não conseguem resistir a tentação do riso são sancionados com a perda imediata das suas pernas a favor daqueles demónios, passando a ornamentar o corpo disforme de um Djinné afortunado, que se vê assim liberto da sua maldita condição, imposta dos Céus, a sua vil, diabólica e Djinnégi raça:

Ao infeliz humano que assim se vê privado dos privilegiados meios de locomoção que Deus, por amor e a sua imagem lhe concedeu, no princípio dos tempos, restará olhar para o céu coberto de nuvens sombrias e marcadas pela fugaz passagem da chuva que demorou a chegar e entoar a cantilena da sua triste sorte nascida no rápido deslize de um (sor)riso humano:

- Nâgghel Nâgghel fêthtu-ferééé!... Ndúunda wyôô kanh-wawymma!!! (1)

É esta a melodia que sai das flautas nómadas dos pastores fulanis e se espalha infinitamente longe no deserto, levada pelo vento e pela brisa quente do Sahara. Cantilena de esperança num mundo em rápida transformação, caminhando firme nos trilhos secos das suas manadas de bovinos, rumo ao sol nascente.

Se é verdadeiro ou falso, desconheço. É esta a mensagem e o ensinamento que nos transmitiram em prolongadas noites de luar africano. A palavra ao seu dono. Quem falou já não está aqui. Enquanto uns vão outros regressam. O fio da vida se tem princípio não tem fim. Tenham boa noite e bons sonhos.

Bissau, Abril de 2012.
Cherno Abdulai Baldé

Notas de Cherno Baldé:
- Djinné - Singular
- Djinnégi - Plural

(1) - “Sol, oh sol amigo, mande a tua luz, intensa, pois as trevas dizem que são mais fortes que tu!!!
Canção de crianças pastores após a passagem das chuvas. Apelo as forças da natureza.

Consulta bibliográfica:
1. Tratado da história das religiões, Edições ASA. 1992 e 1994 de Mircea Eliade.
2. Antropologia: Ciência das sociedades primitivas? De J. Copans, S. Tornay, M. Godelier e C. Backes-Clément. Perspectivas do homem, Edições 70, 1988.

Fotos: © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9671: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34): Cherno Fanca, aliás Cherno Comando, aliás Cherno Amadu...As peripécias de um jovem fula nos labirintos da guerra colonial

quarta-feira, 4 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3978: Nuvens negras sobre Bissau (14): N' cansa tchora guine (Anastacio di Djens / Luís Graça)

Video clip de Anastacio de Djens - N'cansa tchora guine - Produção: TVKlele. Um dos temas, o 4º, inseridos no álbum musical, não comercial, com video clipes da TV Klele, distribuídos juntamente com a pasta do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008). O álbum tem por título Guiné-Bissau, Terra de História e Cultura. A televisão comunitária TV Klele, do Bairro Quelélé, de Bissau, tem o apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento.

O tema musical deste videoclipe é fortíssimo. Mesmo não entendendo a 100% toda a letra (em crioulo de Bissau), não consigo ouvi-lo e vê-lo sem deixar de me emocionar. Anastácio di Djens, que eu conheci por ocasião do Simpósio, em Março de 2008, é uma das vozes mais belas e promissoras da nova geração musical. Oxalá haja oportunidades de trabalho para ele desenvolver e dar a conhecer o seu grande talento, a sua voz, a sua sensibilidade, dentro e fora da Guiné-Bissau, país de grandes músicos e de grandes tradições musicais. Daqui de Lisboa, numa semana de luto, para todos nós, vai um grande abraço, amigo e solidário, para ti, Anastácio, e para todos os jovens da tua terra que cantam e dançam a tua música. Um abraço também para a talentosa rapaziada da TV Klele. E, claro, para o Pepito e a malta da AD... Eles são, todos eles, os melhores filhos da Guiné.

Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)

Guiné-Bissau > Bissau > Simpósio Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008) > Capa e contracapa do álbum Guiné-Bissau, terra de história e de cultura. Bissau, TV Klele Produções, 2008. Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Guiné, Tabanca Grande (...) Quem disse que Deus, Alá e os bons irãs não montaram morança nesta terra ? Não foi o muntu. Não foi o tucurtacar pangolim. Não foi a rapaziada do Bairro do Quelélé. Não foi o fula nem o nalu. Não foram as aves do Cantanhez. Não foram os homens grandes do Gabu. Não foi o tuga, nem foste tu nem fui eu. (...) Ah!, como está ainda bem longe, Cabral, o ideal por que lutaste e morreste, uma vez, tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria. Nada que tu não saibas, lá no Olimpo dos deuses e dos heróis, ou não soubesses já, cá na terra dos homens, que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos, de Revoluções que devoram os seus filhos... (...) Quem disse, afinal, que tu,Guiné, não tens futuro ? Se não o foi macaco fidalgo, foram os teus inimigos, os de fora e os de dentro, os teus filhos bastardos e os filhos bastardos de outras nações. Os que dizem mal de ti, que te querem comprar a preço de saldo, e que te arrastam pela lama do tarrafo. E que dizem que és um narco-Estado. E que vives da caridade internacional. E que já não tens fé, nem caridade, nem esperança, nem voz, nem lágrimas para chorar. Que já não tens alma, nem salvação, nem pudor. E que Cabral morreu e está enterrado, na antiga fortaleza colonial da Amura. (...) Como te imploram os teus filhos, não queiras chorar mais, Guiné! N ka misti tchora mas! Faz das tuas lágrimas a força do macaréu da tua revolta e do teu ânmimo que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro, a construir o Novo Corredor do Povo, a Nova Estrada da Liberdade. Que eu só desejo que seja tão grande, larga e fecunda, como os teus rios míticos, do Cacheu ao Cumbijã, do Geba ao Cacine. Ou tão límpidos e belos e selvagens como o Corubal. E que o Nhinte-Camatchol, o grande irã, te proteja, Guiné, Tabanca Grande. Excertos de: "Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné, Tabanca Grande" por Luís Graça (*) ___________ Nota de LG. (*) Vd. poste de 31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2704: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (12): Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné-Bissau Vd. também último poste da série Núvens negras sobre Bissau > 4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3977: Nuvens negras sobre Bissau (13): Como acabar de vez com esta espiral de violência ? (Pepito)

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2846: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (16): Salvemos o Cantanhez (II)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Rio Cacine > Cananima > 2 de Março de 2008 > Concentração dos participantes do Simpósio Internacional de Guileje na praia e porto fluvial de Cananima, frente a Cacine, na margem direita do Rio Cacine (1).

O Cantanhez é delimitado pelos dois rios principais, o Cumbijã e o Cacine. As margens destes rios são constituídas por uma vasto e rico mangal. A bacia do Cumbijã é conhecida por ser (ainda) um dos celeiros de arroz do país (cerca de 13 mil hectares de bolanhas cultivadas em finais da décad de 1990). A actual crise alimentar no mundo está também a afectar a Guiné-Bissau, cujos dirigentes políticos e agentes económicos têm apostado na monocultura do caju, para exportação (seguindo, desgraçadamente, o mau exemplo colonial, da o da monocultura do amendoím), e na importação de arroz estrangeiro que, devido aos preços mais baixos particados pelos grandes produtores mundiais, acaba por ter uma vantagem decisiva em relação ao arroz nacional. É preciso que os guineenses aprendam as sábias lições do Cantanhez. Hoje, mais do que nunca... É preciso salvar as bolanhas. É preciso lutar contra a erosão e a salinização das melhores terras de cultura do arroz... É preciso evitar a sangria dos jovens, atraídos pela miragem da grande cidade... É preciso dar sentido ao futuro, é perciso dar esperança aos guineenses...

O Rio Cacine, por sua vez, é rico em peixe e moluscos. É muito procurado por pescadores da vizinha Guiné-Conacri, concentrados sobretudo na Ilha de Melo, na foz do Rio Cumbijã. As espécies piscícolas mais procuradas são o Djafal, o Bagre e o Tubarão (este apanhado sobretudo como juvenil, o que vem compromter o equilíbrio da fauna marinha, já que é uma espécie que está no topo da cadeia alimentar). Há uma crescente consciente ecológica entre as gentes do Cantanhez, que representa, pela sua biodiversidade, um património riquíssimo que é preciso preservar, proteger e utilizar, numa óptica de custo-benefício, de maneira a tirar partido de todas as suas potencialidades, hoje e sobretudo amanhã.

Segundo a ONG Tiniguena - Esta Terra É Nossa que lançou um belíssimo calendário para 2008 - Matas de Cantanhez: Biodiversidade ao serviço da soberania, com magníficas fotos de Augusta Henriques (sua secretária-geral), Emanuel Ramos, Pierre Campedron, André Barata e Cristina Silva - , um estudo feito junto dos Nalus mostrou que mais de 200 espécies vegetais selvagens são utilizadas regularmente pelas famílias, mais de metade das quais na farmacopeia (produtos medicinais tradicionais) e cerca de 20% na alimentação. "Estes recursos e saberes da biodiversaidade são um valioso património a proteger contra a biopirataria e a preservar para o futuro", diz a Tiniguena.

A floresta também satisfaz a quase totalidade das necessidades da população local, em matéria de energia. A recolha de lenha não é vista como um perigo. Duas das ameaças que pairam sobre o Cantanhez, levando à degradação das suas florestas (que os Nalus consideram sagradas), são a produção de carvão com fins comerciais e as queimadas para fins agrícolas. Por razões históricas e culturais, mas também económicas e sociais, logo, de sobrevivência das gerações futuras, é fundamental salvar o Cantanhez, verdadeiro ex-libris da Guiné-Bissau.


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A simpatiquíssima Cadidjatu Candé, da comissão organizadora do Simpósio Internacional de Guileje e colaborada da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, servindo um fabuloso arroz com filetes de peixe do Cacine e óleo de palma local, que tem fama de ser o mais saboroso do país, devido à qualidade da matéria-prima e às técnicas e condições de produção (artesanal). Na imagem, um diplomata português, o nº 2 da Embaixada Portuguesa, que integrou a nossa caravana (e cujo nome, por lapso, não registei, lapso de que peço desculpa).



Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um dos pratos que foi servido no almoço de domingo, aos participantes do Simpósio Internacional de Guileje, foi peixe de chabéu, do Rio Cacine, do melhor que comi em África... Durante a guerra colonial, na zona leste, em Bambadinca, só conheci conhecíamos o desgraçado peixe da bolanha....


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O nosso camarada Cor Art Nuno Rubim passando revista à logística do Comes & Bebes, da comissão organizadora do Simpósio, e que nos acompanhou desde Iemberém... É obra, isso dar de comer e beber a tanta gente, esfomeada e sedenta...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um outro aspecto da improvisada cozinha que foi montada em Canamima, logo de manhã, e onde se fez o almoço (um prato de carne e outro de peixe) para as dezenas de participantes do Simpósio.



Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Francisca Quessangue, uma das mulheres que fez a guerrilha e esteve no ataque a Guileje, como enfermeira.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O Luís Graça entre a Francisca , enfermeira, e a senhora Ministra dos Antigos Combatentes da Liberdade da Pátria, Isabel Buscardini.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Catarina Silva, filha do Pepito e da Isabel, que é portuguesa. É formada em psicologia social, pelo ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. Integrou a nossa caravana e foi sempre uma simpatiquíssima companhia durante este fabuloso fim-de-semana. É também, como o pai e a mãe, uma entusiástica defensora do Cantanhez, da sua fauna, da sua flora, das suas gentes.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Catarina Santos que, juntamente com o Vitor Ramos e o Alfredo Caldeira, representaram (e muito bem!) a Fundação Mário Soares no Simpósio Internacional de Guileje.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O famoso óleo de palma do Cantanhez. A sua cor vermelha intensa deve-se às características da variedade do chabéu (termo científico, Elaeis guineenses), que é rico em caroteno.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um médico cubano, ortopedista, cooperante em Bissau, o Dr. Mário. Pelo pouco que conversei com ele, soube que trabalha no Hospital Nacional Simão Mendes é também professor da Faculdade de Medicina de Bissau, criada em 1977 e desactivada no início dos anos 90, tendo o projecto sido relançado mais recentemente com o apoio da cooperação cubana. Cuba é dos países mais activos na cooperação com da Guiné-Bissau, no campo da saúde e da educação.


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Em primeiro plano, da direita para a esquerda, a Isabel, a Alice e o Álvaro. De perfil o Pepito, em segundo plano, mais o Sérgio Sousa, um Gringo de Guileje.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Diana Andringa, que registou em vídeo todas ou quase todas as actividdades destes oito dias, com destaque para as comnunicações ao Simpósio. Em segundo plano, a Júlia.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Diana Andringa e o marido, Alfredo Caldeira; em segundo plano, a Júlia e o marido, Nuno Rubim.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O Dr. Alfredo Caldeira, chefe da delegação da Fundação Mário Soares...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O nosso amigo catalão, Josep Sánchez Cervelló, professor universitário em Tarragona, especialista em história sobre o 25 de Abril e a descolonização portuguesa... Esteve encantado estes dias todos com os tugas...
Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau (se não me engano). Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia, a Alice, a Isabel... Seu nome: Cadi, filha de um antigo guerrilheiro, nalu, da região...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um amostra de conchas do Rio Cacine, reveladoras da riqueza, em moluscos, marisco peixe, deste belíssimo rio do sul da Guiné...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados.



II. O Turismo na região de Tombali (2) (Continuação)
por Brígida Rocha Brito


(...) 1.2. Os elementos culturais

A população residente na região de Tombali estava estimada em 91.930 habitantes, por referência a 2004 (…), representando 7,1% do total. Do ponto de vista étnico, os grupos principais são Nalu, Fula, Balanta, Tanda e Sosso, encontrando-se grupos secundários como Manjaco, Djakanka, Papel, Bijagó e Mandinga.

Tradicionalmente esta era uma área identificada com os Nalu, etnia caracteristicamente animista, com hábitos enraizados, desenvolvendo práticas culturais ancestrais perpetuadas ao longo do tempo através do costume e da tradição oral, entre as quais os ritos de iniciação e de passagem. Uma parte do território, identificada como as Florestas de Cantanhez, é tradicionalmente conhecida como o Tchon di Nalu (…) ou Terra dos Nalu, apesar de actualmente, e depois de se terem efectuado deslocações internas, se encontrar uma multiplicidade de comunidades com origens étnicas diversas.

Cada grupo étnico apresenta particularidades próprias no que respeita à forma e ao tipo de produção principal, à organização do espaço e materiais utilizados na construção, às práticas rituais e às formas de culto. Apesar da paisagem florestal ser dominante, a influência da diversidade étnica na forma de produzir a terra e de relacionamento com o meio confere à região uma imagem de mosaico marcado pela heterogeneidade.

Dadas as características de toda a zona costeira e fluvial, e tendo presente a importância e a dimensão dos rios e cursos de água, as áreas de mangrove, mangal ou tarrafes, adquirem grande importância, principalmente para os Balanta que aproveitam o solo salinizado para a produção de arroz M'pampam.

A fertilidade do solo, natural ou provocada através da prática de queimadas, tem permitido incrementar a produção frutícola, com destaque para os citrinos e o caju, que tem vindo a ser fortemente explorado pelas potencialidades (*) que o caracterizam. Este tipo de produção, conseguido a partir da desflorestação e das queimadas, é fortemente desenvolvido pelas comunidades de origem Fula, que eram tradicionalmente pastores.

Em maioria, os Nalu são pescadores, agrupando-se muitas vezes em acampamentos temporários e itinerantes, e dedicando-se também à extracção de óleo e vinho de palma ou à produção de culturas agrícolas para consumo directo.

Além da produção para subsistência, as comunidades locais produzem peças de artesanato e utensílios vários, que utilizam no dia-a-dia ou que vendem em mercados locais e lumus (**) . São objectos típicos e fáceis de encontrar para observação aquando das visitas às tabancas, se bem que ainda não se verifique a disponibilidade para aquisição: esculturas e máscaras de madeira produzidas pelos homens Nalu; esteiras e cestos trabalhados pelas mulheres Nalu; potes e recipientes de barro produzidos pelas mulheres Balanta; panos confeccionados pelos homens Manjaco.

Uma grande parte do artesanato produzido, nomeadamente pelos animistas Nalu, tem significado simbólico representando as forças sobrenaturais, havendo a crença de que conferem poderes a quem os usa ou detém. Estes são os caso do Banda, uma máscara que reproduz uma imagem de associação entre o Homem e os animais, como a ave, a cobra, o peixe e o crocodilo, utilizada em momentos festivos; ou do Ninte-Kamatchol [ou Nhinte-Camatchol] (3), uma cabeça de ave com rosto humano, utilizada em ritos de iniciação.

Todas as peças artesanais são susceptíveis de adquirirem interesse turístico, sendo necessária a disponibilização de originais para mostra, exposição e comercialização.

No que respeita às comunidades animistas, é possível encontrar junto de áreas residenciais elementos e locais de culto, nomeadamente pequenos recipientes contendo água para o irã, onde são realizadas práticas de veneração. Além da importância das crenças animistas, na região sul da Guiné-Bissau, o islamismo tem adquirido importância sendo hoje predominante, de tal forma que existem escolas islâmicas com professor próprio, organização e funcionamento autónomo do ensino formal.

A religião e as crenças influenciam ainda os modos de vida das comunidades, no que respeita por exemplo a horários, gastronomia e vestuário: nas tabancas muçulmanas, é habitual o dia iniciar com as orações cantadas pelos homens, que se levantam de madrugada, sendo cuscus marroquino a primeira refeição.

Qualquer uma das práticas exemplificadas reveste interesse turístico no sentido da divulgação e do aprofundamento dos conhecimentos sobre os modos de vida e de organização social das populações autóctones, por serem elementos diferenciadores e conotados com exotismo.


1.3. Os Factores Históricos e Nacionalistas

A região de Tombali, em particular os sectores de Bedanda e de Cacine, fortemente envolvidos pelas Floresta de Cantanhez, é entendida para a maioria do povo guineense como o berço da independência. Esta foi a zona de excelência da luta armada contra a colonização portuguesae o ícone da libertação, tendo albergado alguns dos principais aquartelamentos de tropas portuguesas, como Guiledje, Bedanda, Cacine e Cameconde, mas também os acampamentos da guerrilha, protegidos e apoiados pelas comunidades animistas Balanta e Nalu.

Os Matos de Cantanhez reúnem dois traços que são entendidos como fundamentais para o sucesso das tropas do PAIGC: por um lado, a riqueza dos recursos florestais e as difíceis condições físicas impostas pelo meio denso e fechado, que favoreceram as comunidades locais que detinham conhecimentos únicos propiciados pela vivência directa, adquiridos atravésda experiência ancestral. Por outro lado, a crença no apoio espiritual e na protecção das forças superiores da floresta, o irã, reforçaram a auto-estima e a identidade comunitária, resultando em catalisadores para a concretização da luta.

Os momentos chave da longa guerra colonial foram assim enquadrados pela densidade florestal, desde a fase de organização até às disputas armadas propriamente ditas. Ao longo dos sectores de Bedanda e de Cacine são vários os locais de valor histórico e que representam marcos na História nacional, onde ainda existem partes de aquartelamentos, antigos abrigos, material de guerra, como obuses que se encontram ora espalhados pelo parque florestal, ora amontoados após ter sido efectuada uma primeira recolha, e objectos vários, como pratos e materialde cozinha. Da mesma forma, nas proximidades da tabanca Cassacá, existe um marco de importância extrema para a História da República da Guiné-Bissau: o local onde foi realizado, em 1964, o 1º Congresso do PAIGC, local que Luís Cabral tinha intenção de transformar em cidade pelo simbolismo que representa.

Paralelamente, vivem na região testemunhas vivas da guerra colonial, ex-combatentes que, em maioria, demonstram receptividade para contar e descrever vivências pessoais relacionadas com os momentos mais marcantes, sejam dificuldades ou sucessos, experiências que se transformaram em histórias de vida de uma época que é definida como um dos períodos mais importantes para a Guiné-Bissau e para Portugal.

pp. 35/37
___________

Notas da autora:

(*) O caju é aproveitado como fruta fresca, secando-se a castanha para comercialização, produzido sumo, vinho e aguardente.

(**) O lumu é um mercado local de dimensão alargada e sujeito a uma determinada organização que funciona com uma periodicidade semanal, reunindo comerciantes que se deslocam a partir das diferentes localidades da região.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série: 24 de Abril de 2008 >
Guiné 63/4 - P2793: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (15): Salvemos o Cantanhez (I)

(2) Vd. publicação disponível, em formato pdf, no sítio do Instituto Marquês de Valle Flôr :Estudo das Potencialidades e dos Constrangimentos do Ecoturismo na Região de Tombali

(3) Vd. poste de 31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2704: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (12): Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné-Bissau

segunda-feira, 31 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2704: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (12): Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné-Bissau



Guiné-Bissau > Bissau > Simpósio Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008) > Capa e contracapa do álbum Guiné-Bissau, terra de história e de cultura. Bissau, TV Klele Produções, 2008.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.









Video clip de Anastacio de Djens - N'cansa tchora guine - Produção: TVKlele. Um dos temas, o 4º, inseridos no álbum musical, não comercial, com video clipes da TV Klele, distribuídos juntamente com a pasta do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008). O álbum tem por título Guiné-Bissau, Terra de História e Cultura. A televisão comunitária TV Klele, do Bairro Quelélé, de Bissau, tem o apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento.



Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém> Simpósio Internacional de Guileje > 1 de Março de 2008 > Grafito com o desenho nalú do irã protector da tabanca, o Nhinte-Camatchol, e que foi o logótipo do Simpósio, orgnaizado pela AD -Acção para o Desenvolvimento, o INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesqusias, e UCB - Universidade Colinas do Boé

O Nhinhe Camatchol é uma escultura dos nalus do Cantanhez usado na festa do fanado. Representa uma cebeça de pássaro com rosto humano, sendo a mensagem aos participantes deste ritual de iniciação à vida adulta a seguinte: que todos eles passam a considerar-se como verdadeiros irmãos, mais verdadeiros que os próprios irmãos biológcios. O que deve ser entendido como a afirmação do interessse colectivo, comunitário, acima do interesse dos indivíduos e das famílias. Orginalmente esta máscara não poderia ser vista pelos não iniciados, sob pena de morte (Campredon, Pierre – Cantanhez, forêts sacrées de Guinée-Bissau. Bissau,Tiguena. 1997, pp. 32-33). (LG)

T-Shirt com o logótipo do Simpósio Internacional de Guileje, inspirado numa das mais famosas esculturas nalús Animais do Cantanhez... Desenhados nas paredes das instalações da AD em Iemberém

Fotos: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.



Que o Nhinte-Camatchol te proteja,
Guiné, Tabanca Grande


por Luís Graça (1)


Quem disse que a Guiné-Bissau não tem futuro ?
Não fui eu, que pouco valho.
Não foi o dari,
que não tem seguro
de acidentes de trabalho.
Nem de saúde.
Quem disse que o futuro não passa por aqui,
amiúde ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,
e não tem protecção no desemprego.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do pobre
como se fora leitão da Bairrada.
Nem o mandinga, bom negro,
tocador de Kora,
que se foi embora,
em busca de outro chão,
livre do som da Kalash.

Quem disse que Deus, Alá e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu.
Não foi o tucurtacar pangolim.
Não foi a rapaziada
do Bairro do Quelélé.
Não foi o fula nem o nalu.
Não foram as aves do Cantanhez.
Não foram os homens grandes do Gabu.
Não foi o tuga, nem foste tu nem fui eu.

Ah!, como está ainda bem longe, Cabral,
o ideal
por que lutaste e morreste,
uma vez,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,
ou não soubesses já,
cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de Revoluções que devoram os seus filhos...
Tudo isto, para te dizer
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo Acampamento Osvaldo Vieira,
nas matas do Cantanhez,
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo,
em Portugal, em Cuba, na China,
na América, no Brasil ou em Angola ...
Pelo menos os teus sabiam a letra,
a tua letra,
e até a música que foi composta pelo Sr. Xiao He,
um obscuro chinês,
do tempo do maoísmo.

Quem disse, afinal, que a Guiné não tem futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos
e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti,
que te querem comprar
a preço de saldo,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado.
E que vives da caridade internacional.
E que já não tens fé,
nem caridade,
nem esperança,
nem voz,
nem lágrimas para chorar.
Que já não tens alma
nem salvação
nem pudor.
E que Cabral morreu e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial
da Amura.

Os teus jovens,
os teus músicos,
o Furkuntunda,
o Anastácio di Djens,
grande senhor,
os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho,
imaginação,
talento,
alegria,
nobreza,
criatividade,
espontaneidade,
afabilidade,
hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso
da pobreza.
Do teu povo, Guiné,
de Norte a sul,
dos Bijagós às Colinas do Boé,
de Iemberém ao Quelélé.

Eu acredito em ti,
país-irmão.
Eu quero acreditar em ti,
Guiné,
eu quero remar contra a maré do cinismo
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo.

Eu acredito nas tuas mulheres,
empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e o seu chabéu.
E o seu sabão.
E ainda têm tempo para ir à pesca e ao mercado
E para cuidar dos teus meninos.

Eu acredito,
no talento dos teus jovens, criativos,
Como o Grupo de Teatro Os Fidalgos.
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens (e mulheres)
que lutaram, por ti,
no Como,
Em Cassaca,
em Cadique,
em Madina do Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Guidaje,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão
e com as ideias e os valores na cabeça.
Para que tu fosses livre
e independente,
e fosses justa
e fraterna.
Uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,
os homens grandes
e as mulheres grandes
e as meninas
que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as vaidosas cabaceiras.
Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,
a liberdade,
a justiça,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome e se sonha e se dança.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.

Ah!, a paz, a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,
ou que é tão lento, desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro...

Mas para isso, terás que fazer a ponte
com o passado.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.

Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu
da tua revolta
e do teu ânmimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Corredor do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã,
do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens
Como o Corubal.

E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã, te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.


Simpósio Internacional de Guileje
Iemberém, 1-2 de Março de 2008
Bissau, 2-7 de Março de 2008
Lisboa, 30 de Março e 2008

Luís Graça
_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste anterior: 29 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2695: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (11): Iemberém, uma luz ao fundo do túnel (I)